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O investimento na economia camponesa: considerações teóricas* * Trabalho realizado como parte da pesquisa “Estudos agroeconômicos e sociais do setor primário da Amazônia”, convênio SUDAM - Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia/Universidade Federal do Pará - Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/FADESP - Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa.

Investment in peasant economy: theoretical considerations

RESUMO

Este artigo apresenta um modelo baseado em Marx e Chayanov que explica o investimento da unidade de produção camponesa. O artigo apresenta a base da visão pessimista de Marx e a abordagem de Chayanov à propensão especial dos camponeses ao investimento. Com base nessa discussão, é formulado um modelo analítico que considera o potencial chayanoviano derivado de uma perspectiva microeconômica do camponês e os limites do investimento camponês em um sistema capitalista derivado de uma perspectiva macroeconômica marxiana sobre as características específicas de produção de pequeno porte. Por fim, o artigo aponta para generalizações centradas nas contradições entre restrições reais determinadas por macro variáveis e o potencial subjetivo da unidade familiar de produção e consumo, foco essencial da interpretação das diversas formas da relação camponês / capitalismo.

PALAVRAS-CHAVE:
Economia rural; investimento no campo

ABSTRACT

This paper presents a model based on Marx and Chayanov which explains investment by the peasant production unit. The paper presents the basis of Marx’s pessimistic view, and Chayanov’s approach to the peasants’ special propensity for investment. Based on this discussion an analytical model is formulated which considers the Chayanovian potential derived from a microeconomic perspective of the peasant, and the limits on peasant investment in a capitalist system derived from a marxian macroeconomic perspective on the specific characteristics of petty commodity production. Finally, the paper points to generalizations which center on the contradictions between real restrictions determined by macro variables and the subjective potential of the family production and consumption unit, the essential focus of the interpretation of the diverse forms of the relationship peasant/capitalism.

KEYWORDS:
Rural economics; farm investment

1. INTRODUÇÃO

Uma das questões mais controversas no debate sobre o campesinato no capitalismo é a relativa à formação de capital nessa forma de produção. O debate, desde mais de um século, polariza-se nas posições que defendem, de um lado, uma incapacidade estrutural das unidades camponesas de internalizar sobretrabalho - uma baixa capacidade de investimento que inviabilizaria a permanência do campesinato junto ao modo de produção capitalista, no qual, ao contrário, as empresas são compelidas a contínuos investimentos e, com eles, à incorporação dos avanços da ciência através de adoção de novas técnicas. De outro lado, vê-se na unidade de produção familiar uma microeconomia particular, responsável por uma propensão especialmente alta às inversões de capital.

A produção econômica de Marx é a matriz da primeira posição, enquanto as teorias do economista russo Chayanov encontram-se na base da segunda. Neste artigo empreenderemos, em primeiro lugar, um resgate dos fundamentos teóricos de ambos os autores. Em um segundo momento buscaremos uma aproximação dos resultados das duas proposições e formularemos alguns enunciados próprios. Aqui, procurar-se-á encaminhar questões básicas em um programa de pesquisa sobre o papel do campesinato no desenvolvimento agrícola na Amazônia.

2. OS PROBLEMAS DO CAMPESINATO NO CAPITALISMO EM MARX

Marx era particularmente pessimista em relação ao futuro do campesinato no capitalismo. Sua análise supõe que a relação campesinato/capitalismo far-se-ia sob condições particulares estabelecidas tanto no plano da distribuição quanto no plano da troca enquanto instâncias mediadoras distintas da produção e do consumo.1 1 No texto “Para a crítica da economia política”, Marx estabelece bem a diferença entre o momento da distribuição e o momento da troca em relação com a produção e o consumo. “A produção aparece assim como ponto inicial; o consumo como ponto final; a distribuição e a troca aparecem como meio-termo, que é, assim, dúplice, já que a distribuição é determinada como momento determinado pela sociedade, e a troca como momento determinado pelos indivíduos. Na produção a pessoa se objetiva; no consumo a coisa se subjetiva; na distribuição, a sociedade, sob forma de determinações gerais dominantes, encarrega-se da mediação entre a produção e o consumo; na troca, esta mediação realiza-se pelo indivíduo determinado fortuitamente” (1978, pp. 107-8). No plano da distribuição, a forma camponesa de produzir caracterizar-se-ia por entregar de graça parte do trabalho excedente por ela produzida para a sociedade (Marx, 1985MARX, K. O capital: crítica da economia política Livro 3, V, VI. São Paulo, Difel, 1985., pp.923-4). Tal afirmativa funda-se na constatação de uma especificidade dos camponeses quando comparados aos empresários capitalistas: eles não param de concorrer entre si enquanto o lucro e a renda da terra estão sendo corroídos por preços de mercado sistematicamente abaixo do valor, mantendo-se produtivos mesmo quando o seu rendimento equipara-se apenas ao salário médio de mercado, ou mesmo quando se situa abaixo deste (idem, p. 923). Tal forma de produzir não poderia, assim, absorver os progressos tecnológicos necessários ao enfrentamento das empresas capitalistas, compulsivamente inovadoras na busca concorrencial do lucro (ibidem, p. 924).

No plano da distribuição, pois, estabelece-se uma exploração não localizável, sistêmica, de tal modo que

W M C W M I = 1 + a (1)

em que WMe é o valor de mercado do produto camponês, WMI o valor de mercado dos produtos adquiridos pelos camponeses e “a” é uma taxa de exploração tendencialmente maior que zero. Considerando que para Marx o valor de uma mercadoria é o “ ... tempo de trabalho em média necessário ou socialmente necessário para a [sua] produção ... “ (v. Marx, L. I, pp. 45-6), WMC equivaleria à parcela Qc da mercadoria produzida pelos camponeses multiplicada pelo valor médio desta mercadoria, isto é, pelo resultado da divisão da quantidade total de trabalho despendido em conjunto por todas as unidades produtivas (não apenas camponesas) na obtenção do total socialmente disponível da tal mercadoria, pela sua quantidade total (Qt). A taxa de exploração “a”, válida para o conjunto das unidades camponesas que participaram da produção de Qc, impor-se-ia para cada unidade de produção individualmente mediada por sua condição particular (e fortuita) na produção e na troca. Na produção afirma-se o peso da diferença entre a condição da unidade particular e a média de todos os produtores. Assim, a taxa de exploração social “a” apresenta-se para um produtor individual como a taxa na expressão abaixo:

+ α = W L C · W M C W M C · W M I = Q C L · W L C Q C L · W M C · W M C W M I = W L C · W M C W M C · W M I (2)

em que W te é o tempo de trabalho localmente (particularmente) aplicado na obtenção de WMC’ QCL é a quantidade produzida do produto em questão pela unidade produtiva (ou estrutura meso) particular, wLC é o tempo de trabalho médio realmente aplicado localmente por unidade de produto e wMC é o seu valor médio de mercado.

Reescrevendo a expressão acima, considerando que wLC/wMCMe é igual à relação entre a produtividade média do mercado nacional e a produtividade local, ao que chamamos de co, explicitamos melhor o fundamental da teoria de Marx:

+ α = W L C W M I ω · 1 + a (3)

ou

W M I = W L C · 1 ω · 1 + a (4)

ou

W M I K = W L C · 1 ω · 1 + a W I D (5)

Se cresce ω ( a desproporção entre produtividade local e nacional), ou a, ou ambos os fatores, eleva -se o esforço da unidade produtiva, expresso em WLC’ para a obtenção da mesma quantidade de produtos industriais WMI. Ou, para esforço constante, a unidade produtiva obterá cada vez menos produtos industriais, bloqueando as possibilidades de investimento (impondo limites graves ao tempo disponível para investimentos, WMIK, na consideração de que WMID expressa o tempo necessário para obtenção dos bens industriais necessários à reprodução da família).

No plano da troca, Marx releva a mediação do capital mercantil e usurário como bloqueadora do desenvolvimento técnico dos camponeses. Partindo-se de uma dedução trivial de que o lucro do capital mercantil nessa mediação afere-se pela taxa m, tal que

m + 1 = Q C · P M C Q I · P M I (6)

em que m é a taxa de lucro, QC é a quantidade de produtos camponeses postos no mercado, Pmc, seu preço de mercado, QI, a quantidade de produtos industriais consumidos pelos camponeses e mediados pelo capital mercantil e PMI, seu preço de mercado, teríamos, multiplicando ambos os membros da equação por WMC/WMI,

m + 1 · τ = W M C · Q C · P M C W M I · Q I · P M I (7)

em que τ é igual a WMC/WMI, fração cujo numerador, como já se definiu, representa o valor médio de mercado do produto camponês, e o denominador o valor médio, ou melhor, uma ponderação dos valores médios dos produtos industriais consumidos pelos camponeses.

Considerando que WMC.QC/WMI.Qi nada mais é que o primeiro membro da equação (1), tem-se que

m + 1 τ = 1 + a · P M C P M I = 1 + a · ρ (8)

e q u e 1 + a = m + 1 · 1 ρ · τ (9)

Se, τ é estruturalmente estável no médio prazo, a taxa “a” depende do inverso da relação de preços dos produtos camponeses em relação aos produtos industriais (p) e da taxa de lucro do capital mercantil. E, pela conclusão expressa na equação (5), aumentando m ou deteriorando-se a relação de trocas, aumentam as dificuldades das unidades camponesas quanto ao investimento.

A teoria de Marx, nesta matéria, poderia ser resumida como segue: acossadas por suas contradições mediante o mercado ( concorrência além do limite que permitiria a incorporação na unidade de produção camponesa do sobretrabalho por ela gerado) e exauridas pelas formas “antidiluvianas” de capital, as estruturas camponesas sucumbiriam inexoravelmente, uma vez que sua produtividade, pela ausência de formação de capital, tenderia a cair continuamente, ou, na melhor das hipóteses, se estável, tenderia a se confrontar com uma produtividade média crescente para o conjunto da produção (derivada tão-somente da cada vez mais presente produção capitalista), aumentando inexoravelmente co e a exploração a das estruturas camponesas.

3. OS FUNDAMENTOS DA PROPOSIÇÃO DE CHAYANOV

Ao contrário de Marx, cuja perspectiva parte do sistema econômico para análise da relação campesinato/capitalismo, e dos clássicos da questão agrária que o sucedem insistindo na dominância das mesmas tendências, a teoria chayanoviana do campesinato parte de uma perspectiva microeconômica (Archetti, 1974). Enquanto no primeiro caso chegava-se à visualização de unidades produtivas cujo comportamento específico (quando comparado ao comportamento capitalista) levaria a resultados homogêneos (a não-internalização de sobretrabalho pelo fato de o camponês como empresário abrir mão da taxa de lucro e da renda da terra, satisfazendo-se com remuneração de assalariado de si próprio - nesse sentido o campesinato, enquanto estrutura econômica, não se regularia pela taxa de remuneração do capital e da renda da terra mas, sim, unicamente pelo valor do salário), para a perspectiva chayanoviana o caráter específico da unidade camponesa leva a uma economia sem determinações derivadas das grandezas socialmente determinadas, tanto do lucro e renda da terra, quanto do salário. Partindo daí, Chayanov formula sua teoria do investimento camponês.2 2 É curioso que pouca atenção tenha sido dada a essa perspectiva na obra desse autor, talvez porque conflite com o núcleo da sua teoria, que termina por sugerir um equilíbrio relativamente estático entre as condições endógenas de estabelecimento do nível de produção camponês.

Para Chayanov a família é o fundamento da economia camponesa - na sua condição de economia sem assalariamento -, uma vez que é tanto o ponto de partida quanto o objetivo da sua atividade econômica. Como única fonte de força de trabalho a família é o suposto da produção cujo objetivo nada mais é do que garantir a própria existência. A unidade camponesa é, pois, a um só tempo unidade de produção e unidade de consumo, e encerra concomitantemente as funções das esferas de produção e reprodução de tal modo que “(...) a família e as relações que dela resultam têm que ser único elemento organizador da economia sem assalariados” (Chayanov, 1923CHAYANOV, A. Die Lehre von der bãuerlichen Wirtschaft Versucb einer Theorie der Familien- wirtschaft im Landbau Berlim: Paul Parey, 1923., p.9).

As dimensões econômicas da empresa camponesa, como unidade de produção, são determinadas pela sua disponibilidade de membros aptos para o trabalho. Isto é, pela quantidade máxima de trabalho que estes podem realizar até atingir o limite de sua capacidade física. Por seu turno, o caráter de unidade de consumo impõe um nível mínimo de atividade, uma dimensão econômica mínima determinada pela “quantidade de bens materiais absolutamente necessários à família” (idem, p. 9).

Para a unidade camponesa, pois, não existe uma dimensão econômica que tenha que ser necessariamente atingida e que seja estabelecida por um rendimento socialmente determinado de cada unidade de trabalho aplicada - como é o caso da empresa capitalista em relação ao salário. Aí, a atividade econômica mínima terá que produzir valores pelo menos equivalentes ao conjunto dos salários pagos e cada trabalhador trabalhará necessariamente pelo menos até o ponto em que o rendimento das suas atividades cubra o preço de mercado de sua força de trabalho. Para a empresa camponesa, o que existe é um nível de atividade a ser necessariamente atingido que determina com que rendimento cada unidade de trabalho da família tem que contribuir. Em outras palavras: não pertence à realidade da produção camponesa um rendimento por unidade de trabalho que seja determinante, como o é, para a empresa capitalista, o rendimento correspondente ao salário enquanto grandeza socialmente determinada, mas, sim, um rendimento por unidade de trabalho determinado pelas necessidades anuais da família camponesa - pelo caráter, pois, da empresa camponesa enquanto unidade de consumo.

O rendimento anual do trabalho, “a grandeza central dominante da empresa familiar” (ibidem, p. 70), é, para Chayanov, uma significativa categoria. Vejo-a utilizada de duas maneiras: (i) como um valor planejado, como um orçamento transformado em objetivo acatado pelos membros ativos e determinado pelas necessidades de toda a família durante um ano - objetivo esse que norteará as decisões relativas às aplicações da força de trabalho familiar durante esse ano; (ii) como um valor realizado, que influi nas decisões relativas aos empregos futuros da força de trabalho familiar.

Como valor planejado o rendimento anual do trabalho da empresa camponesa é (i) a base do cálculo a partir do qual a validade do emprego de cada unidade de trabalho é considerada e (ii) o ponto objetivo em tomo do qual se movimenta o equilíbrio entre as medidas subjetivas dos graus de satisfação das necessidades e de penosidade (fadiga) do trabalho. De acordo com Chayanov, o emprego de uma unidade adicional de trabalho é visto pelo camponês como economicamente vantajoso sempre que o rendimento daí resultante possibilite o preenchimento do orçamento. Essa aplicação, todavia, só é considerada otimizada se esse rendimento adicional foi obtido com o menor esforço possível. Aqui se pressupõe que para a unidade familiar camponesa o emprego de unidades adicionais de trabalho, em confronto com a obtenção de unidades adicionais de rendimento, não é avaliado indiferentemente, pois emprego adicional de trabalho significa maior penosidade da força de trabalho, que, no curto prazo, é invariável, dada pelo tamanho e composição etária da família; por outra parte, supõe-se que quanto mais próximos de atingir o orçamento planejado estiverem os rendimentos totais, tanto menor será, para a família camponesa, o significado da última unidade de receita obtida (v. ibidem, pp. 34-37). Representem-se graficamente os comportamentos acima supostos e ter-se-á como resultado duas curvas com inclinações contrárias, cujo ponto de interseção corresponderia ao equilíbrio entre as medidas do grau de satisfação das necessidades e da penosidade do trabalho. Se esse ponto fosse alcançado no nível do preenchimento das necessidades, ter-se-ia, então, que o rendimento de cada unidade de trabalho correspondente seria considerado não apenas efetivo ou vantajoso, mas, também, otimizado no curto prazo (v. Gráfico 1).

Gráfico 1:
Relação entre os graus de penosidade do trabalho e de satisfação da unidade marginal de receita da unidade camponesa

Como valor realizado o rendimento anual do trabalho da família camponesa influi nas decisões relativas ao emprego futuro da força de trabalho e das inovações técnicas que devem ou têm que ser incorporadas para o atingimento do equilíbrio otimizado acima mencionado.

“Para uma empresa camponesa que dispõe apenas do mínimo em terra e meios de produção existe um forte estímulo para colocar estes fatores num nível ótimo (... ).” (ibidem, p. 63).

4. AUTO-EXPLORAÇÃO, INVESTIMENTO E DIFERENCIAÇÃO DEMOGRÁFICA

À medida que a empresa familiar camponesa, enquanto unidade de produção, se orienta a partir de suas necessidades enquanto unidade de consumo, o desenvolvimento natural da família (seu crescimento natural, seu envelhecimento etc.) exerce permanente pressão para mudar a relação

T r a b a l h o T e r r a + C a p i t a l

Tal ocorre seja porque tem-se que tomar mais efetivos os mesmos recursos materiais para fazer frente a tarefas de reprodução expressas por orçamentos anuais crescentes, seja porque terra e meios de produção adicionais se tomam imprescindíveis para a obtenção - de uma maneira que se pudesse considerar como eficiente - dos meios de satisfação das necessidades ampliadas. Isto é, atender essas necessidades no ponto em que a penosidade do trabalho se equilibraria com a utilidade da última unidade de receita da família - ambos valores subjetivamente avaliados. Daí deriva Chayanov, a um só tempo, uma teoria da produção e uma do investimento, da qual faz parte uma teoria do desinvestimento. Esta última curiosamente tem sido objeto de maior atenção, no contexto das argumentações que apresentam os processos de diluição, multiplicação e reintegração das unidades camponesas como decorrência do fato natural a que denominou de diferenciação demográfica do campesinato, em contraposição à categoria de diferenciação social desenvolvida por Lenin.

Pouca atenção tem sido dada, contudo, ao significado que o desenvolvimento demográfico da família tem, para o autor, como motor da dinâmica da empresa camponesa no que tange aos investimentos e ao grau de auto exploração da força de trabalho. São quatro os argumentos em defesa dessa suposição.

Primeiro, o mero crescimento do número de membros da família exige um orçamento maior, um nível maior da empresa enquanto unidade de consumo e, assim, um volume maior da receita a ser necessariamente obtida pela família como unidade de produção - considerada naturalmente a hipótese de que o número de seus componentes aptos ao trabalho continuou o mesmo.

Segundo, mesmo que a relação

T r a b a l h o T e r r a + C a p i t a l = N º d e T r a b a l h a d o r e s x D i a s d e T r a b . / a n o x H o r a s d e T r a b . / d i a T e r r a + C a p i t a l

mantenha-se inalterada na sua grandeza (ou seja, mesmo que as disponibilidades em terra e capital cresçam em proporções equivalentes ao trabalho) e o rendimento por unidade de tempo de trabalho aplicado (hora, por exemplo) continue o mesmo para maior intensidade do trabalho, mesmo assim, o crescimento das necessidades da família como consumidora exige um crescimento do rendimento anual de cada trabalhador da família - o que só pode ser conseguido através de ampliação da jornada de trabalho (do prolongamento do dia de trabalho) ou do aumento dos dias de trabalho no ano, enfim, através da elevação da penosidade do trabalho na mesma proporção do crescimento do orçamento familiar. Nessas circunstâncias, cada mudança no tamanho (número dos seus membros) ou na composição (relação força de trabalho/número dos membros) da família conduz ao mesmo tempo a alterações no grau de penosidade do trabalho.

Terceiro, mesmo se a disponibilidade da empresa em terra e capital não puder ser alterada (a relação trabalho/terra+capital mencionada acima varia apenas a partir de unidades adicionais de trabalho), o crescimento da família conduz a uma variação contrária no rendimento de cada unidade de trabalho e, com isso, o grau de penosidade do trabalho se elevaria de forma mais que proporcional à variação no orçamento. Nesse caso, uma ampliação da força de trabalho da família conduziria à redução da penosidade - todavia, com concomitante queda no rendimento de cada unidade de trabalho - , significando, assim, que o novo grau de penosidade permanecerá maior que era antes do aumento da família.

Quarto, consoante a isso, as mudanças, seja no tamanho, seja na composição da família, significariam permanentes elevações no grau de auto exploração da força de trabalho da família camponesa e pressionariam constantemente no sentido da redução da relação trabalho/terra+capital através da elevação do seu denominador, ou seja, através de novos investimentos.3 3 É interessante observar como esses argumentos são praticamente os mesmos desenvolvidos por Esther Boserup para a compreensão da lógica de sucessão dos diversos estágios de desenvolvimento da agricultura. A sua teoria é proposta para regiões, e não para a unidade produtiva, substituindo o desenvolvimento demográfico da família (de natureza cíclica) por uma variável linear e independente de crescimento populacional de uma determinada área. O principal resultado de sua investigação é o enunciado de que, à proporção que a população cresce, haveria condições de passagem da agricultura de ciclo longo para a de ciclo mais curto - de tecnologias extensivas para tecnologias mais intensivas (enfim, os investimentos na agricultura que chama primitiva associam-se a pressões demográficas). E os estágios não poderiam inverter-se, precisamente porque à intensidade dos ciclos corresponderia uma elevação do montante de trabalho por ano despendido por cada trabalhador, e uma queda na produtividade do trabalho medida por hora aplicada - isto é, ao lado do crescimento da produtividade por unidade de área, proporcionado pela agricultura de maior intensidade, reduzir-se-ia a produtividade por unidade de trabalho. (V. Boserup, 1988.)

Concluindo: encontramos em Chayanov, uma vez considerado o todo de sua argumentação, uma teoria do investimento camponês que se fundamenta primordialmente em dois pontos. Primeiro, na consideração de que o rendimento do trabalho camponês não é regulado (não é uma média relativamente estável), podendo sua relação com os custos se situar, sem constituir anomalia, muito abaixo mas também muito acima do permitido pela soma do salário e do lucro. Segundo, no entendimento, a partir dos quatro argumentos acima, de que há uma pressão interior à unidade camponesa, que atua ao longo de quase toda a sua vida (só na fase madura essa pressão se inverteria na direção do desmembramento da unidade) continuamente no sentido de alterar a base produtiva, no sentido de investir, ampliando a disponibilidade de recursos naturais e de capital.

Pode-se inferir do exposto uma relação entre os dois pontos apresentados, o que permitiria uma importante conclusão: para um número estruturalmente significativo das unidades camponesas há uma disposição a investir que funciona independentemente das condições cíclicas da economia como um todo ou mesmo dos movimentos conjunturais do mercado agrícola; a materialização dessa propensão em investimentos reais, contudo, requer conjunturas favoráveis.

O tratamento que Chayanov dá a essa relação é insuficiente 4 4 Parece inquestionável a importância que o autor dava às conjunturas, sem, contudo, chegar a uma teoria consistente. , gerando o que Ellis (1988ELLIS, F. Peasant Economics: Farm Households and Agrarian Development. Cambridge, Cambridge University Press, 1988., p. 114) veio a entender como sua ambiguidade no trato do impacto das decisões da unidade produtiva nas mudanças na função de produção. Contudo, a colocação permite supor um potencial distinto das estruturas camponesas, entendendo-as como capazes de inovar e, mais que isso, altamente propensas a tal. A incompatibilidade apresentada por Marx, entre campesinato e capitalismo, pareceria não ter razão de ser.

5. ELEMENTOS PARA UMA TEORIA DO INVESTIMENTO CAMPONÊS

Os últimos setenta anos de convivência do campesinato com o capitalismo mostram, grosso modo, realidades que parecem paradoxalmente confirmar e negar as proposições de Chayanov e Marx. Confirma as noções de Chayanov que aqui apresentamos, a permanência de formas camponesas em todos os países capitalistas avançados. E, mais que isso, a sua tendência ao superinvestimento - objeto das análises de Johnson (1969) e Cochrane (1979) e base para o desenvolvimento da teoria do treadmill: os camponeses, na sua relação com o capitalismo, são levados a atitudes microeconômicas que os fazem andar sempre com todo o vigor sem, todavia, sair do lugar; precisamente como as pessoas que movem o moinho treadmill -, apresentada entre nós por José Eli da Veiga (1991VEIGA, J. E. da. “Fundamentos do agro-reformismo”. Lua Nova nº 23, 1991.: pp. 49-51) e Ricardo Abramovay (1992ABRAMOVAY, R. Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão. São Paulo, Hucitec, 1992., pp. 214- 20). Todavia, por que em vários países os camponeses não se tecnificam, não se modernizam?5 5 Questão objeto das preocupações de uma discussão relativamente extensa, em que se destacam os questionamentos de Schultz (1964), Lipton (1982) e mesmo de autores de inspiração nitidamente chayanoviana como Mellor (1963), Sen (1966) e Nakagima (1969). V., para aprofundamento, os trabalhos de Blum (1989), Harris (org., 1982), Ellis (1988) e Abramovay (1992).

A busca de respostas a essas questões nos induz a defender a proposição, já feita por Tepicht (1973TEPICHT, J. Marxisme et Agriculture: le Paysan Polonais. Paris, Librarie Armand Colin, 1973.), de que por mais que se defenda a especificidade da microeconomia camponesa, é fundamental compreender a socialização do específico (Costa, 1991, p. 184). Nesse sentido, interessa estabelecer primeiro uma distinção e, segundo, a relação entre a auto-exploração camponesa - entendendo-a como aquilo que se impõe por condicionantes puramente internos da unidade - e a exploração derivada do ambiente socioeconômico no qual ela se insere: a exploração contida nos parâmetros estabelecidos macroeconomicamente, no interior dos quais a família camponesa terá que se reproduzir. Aí, buscar-se-ão as bases para uma teoria do investimento camponês - fundamento de seu movimento, de sua trajetória ascendente ou descendente no interior do capitalismo.

5.1 - Do sistema de forças internas e da determinação de um ponto de acomodação estrutural da unidade camponesa

À semelhança de Chayanov, para nós a intensidade do trabalho aplicado por determinação exclusiva de fatores internos da unidade familiar, em que se incluem padrões culturais definidos em relação a necessidades reprodutivas (padrões de consumo) e produtivas (ética do trabalho e das relações com a natureza), resulta de um sistema de forças contrárias que estabelecem tendencialmente um ponto de acomodação relativamente estável. Esse sistema poderia ser descrito por equações que expressem respectivamente a evolução da insatisfação da família com o seu nível de consumo e o seu grau de fadiga e incômodo para cada nova unidade de trabalho alocado. Por exemplo,

V = v · 1 + 1 C - H (10)

K = k · 1 + 1 T H (11)

em que V e K são, respectivamente, o grau de insatisfação com o nível de consumo e o grau de fadiga da família para cada nível de H (trabalho alocado para o preenchimento do orçamento), v é o grau de insatisfação máxima e k, o grau de fadiga mínimo para um orçamento nulo, C, o número de consumidores e T, o de trabalhadores equivalentes da família. O ponto de equilíbrio (ponto de acomodação) He variará com deslocamentos de v e k (introdução de novas necessidades de consumo e padrões de trabalho), para C e T constantes e com as mudanças nas inclinações das curvas provocadas pelas variações de C e T. Se aumenta o número de consumidores, a curva torna-se menos inclinada, indicando que a insatisfação reduz mais lentamente para cada nível de atendimento do orçamento, e só com um orçamento maior encontrar-se-á um novo equilíbrio para novo grau de fadiga. Se aumenta o número de trabalhadores, acontece o mesmo com a fadiga, que passa a crescer menos para o conjunto da família, por cada nova unidade de trabalho despendida no atendimento das necessidades familiares etc. (v. Gráfico 2).

Gráfico 2:
Relação entre os graus de fadiga do trabalho e de insatisfação com o consumo para cada nível de aplicação de trabalho

5.2 Das determinantes externas dos movimentos de fuga em relação ao ponto de acomodação reprodutiva da unidade camponesa

Considerando, todavia, como estabelece Marx e, de resto, Chayanov, que campesinato supõe mercado, as condições expostas na seção 2 fazem-se valer, de forma que o orçamento (He) exigirá uma quantidade real de trabalho (Hr) igual a

H r = 1 + α · H e (12)

em que A significa precisamente a taxa de exploração total conceituada na relação (3), da seção 2.

Pelas argumentações de Ellis (1988ELLIS, F. Peasant Economics: Farm Households and Agrarian Development. Cambridge, Cambridge University Press, 1988.) e as minhas próprias (Costa, 1989COSTA, F. de A. Bauern, Mãrkte und Kapitalakkumulation. Saarbrücken - Fort Lauderdale: Breitenbach Publishers, 1989. e 1991), de que a integração camponesa com os mercados é quase sempre parcial, percebemos que o balanço de trabalho da unidade faz-se de tal forma que

H r = 1 + α · 1 - u · H e (13)

em que u é igual à proporção do orçamento absorvido na forma de valor de uso (autoconsumo). 6 6 Para uma dedução mais completa da fórmula do balanço de trabalho, v. Costa (1989, pp. 232-8 e 1991, pp. 184-7).

Assim, se é verdade que a unidade camponesa se orienta por uma tendência de equilíbrio estabelecido a partir das condições internas derivadas do fato de ser ela unidade de produção e consumo é também certo que sua realidade se efetiva por contínuos desvios em relação a essa acomodação; desvios esses provocados por fatores externos (expressos pela taxa a de exploração total) atuantes conjunta e contrariamente com o autoconsumo na determinação de um tempo real de trabalho Hr. E cada um desses desvios leva a uma situação de maior fadiga para o mesmo nível de satisfação.7 7 Esse tipo de compreensão marca uma diferença em relação ao esquema analítico de Chayanov. Para este, uma deterioração nos termos de troca camponeses levaria a um deslocamento para a esquerda, da curva penosidade do trabalho, colocando a família diante de um orçamento inferior ao dado antes como satisfatório. Na nossa interpretação, tal procedimento só aconteceria se o novo Hr fosse maior que Ht, o total de trabalho da família. Nesse caso, a família trabalharia com nível máximo de fadiga e num nível de insatisfação, como consumidora, superior ao precedente. Se Hr<Ht, ela buscaria atender com mais trabalho o orçamento He.

A unidade camponesa tem, por definição, uma outra grandeza decisiva: o tempo total de trabalho passível de ser desenvolvido pelo conjunto da família, Ht. Se α>O, então Hr>He e HrHt, em que Ht é a disponibilidade total de trabalho da unidade familiar medido pelo tempo potencial de sua alocação.

As estratégias de reprodução no longo prazo, em que o investimento na mudança da base técnica tem papel central, definem-se a partir de uma insistente busca em minimizar os desvios entre o tempo de trabalho realmente despendido, Hr, e o orçamento de acomodação He.

5.3 A grandeza básica da unidade camponesa: o coeficiente de transformação de trabalho despendido em meios de reprodução

Pelo exposto, as estratégias de alocação de trabalho visam a reprodução da família de tal modo que Hr-He seja mínimo. Ou seja, que o desvio entre o trabalho total alocado e o nível de reprodução que se pudesse considerar de acomodação seja mínimo.

Gráfico 3:
Relação entre He, Hr e Ht

A quantidade total de trabalho aplicado nas diversas produções que conformam uma unidade camponesa é

r = i = 1 n W L C I W L C 1 + W L C 2 + W L C 3 + . . . + W L C 11 (14)

em que WLc (já definido acima) é o tempo de trabalho que a unidade particular despende na obtenção do total do produto i.

Por sua vez, a transformação do trabalho total em orçamento (meios de reprodução), de tal forma a compor o orçamento He, faz-se por taxas de transformação particulares para cada produto. Assim,

H e = 1 1 + α 1 · 1 - u 1 · W L C 1 + . . . + 1 1 + α n · 1 - u n · W L C n (15)

Isso posto, será estabelecido um índice relativo de transformação do trabalho total aplicado em meios de reprodução da unidade produtiva, desde que se substitua o tempo absoluto de trabalho aplicado em cada produto pela proporção de cada uma dessas parcelas no tempo total despendido com todos os produtos. Isto é: se dividirmos toda a relação por Hr teremos como resultado uma grandeza entre 0 e 1 que representa quanto uma dada unidade produtiva aproveita de cada unidade de trabalho despendida. Considerando, para cada produto i,

λ i = 1 1 + α i · 1 - μ i (16)

η 1 = W L C i H r (17)

teremos, para cada unidade produtiva, um índice particular de transformação do trabalho despendido em meios de reprodução, h, dado pela relação abaixo:

r = i = 1 n λ i · η i (18)

Consideramos esta a grandeza mais importante da unidade de produção camponesa. Pois ela se constitui - por expressar uma síntese entre as condições de auto exploração (He) e as que resultam de condições outras, determinadas por forças de mercado ou peculiaridades físicas com efeito sobre a produtividade - na medida mais forte da eficiência da unidade produtiva. Em princípio, quanto mais próximo de 1 for h, mais eficiente economicamente é a unidade produtiva que atua, perseguindo, por isso, a sua maximização.

A elevação de h resultará, para os valores de ηi, constantes (isto é, para um mesmo sistema de produção, as mesmas proporções de dispêndio de trabalho em um mesmo conjunto de produtos), pela elevação de λ i. O que, considerada a definição de α(ver relação 3), ocorre com a redução dos valores respectivos de a, ω e 1u, alterados individual ou concomitantemente, em relação a todos ou pelo menos um dos produtos em questão.

As possibilidades de alteração dessas variáveis são diferenciadas de produto para produto e, às vezes, de unidade produtiva para unidade produtiva. Por exemplo, pelo visto na equação (5), a taxa “a” diminui com a redução da taxa de lucro do capital mercantil e com a melhoria da relação de preços. Para alguns produtos, dependendo do circuito de comercialização, é possível alterar as condições de intermediação, rompendo com alguns elos da cadeia mercantil. Para outros produtos isso é praticamente impossível sob certas condições. Da mesma forma, alterar ω implica certos supostos mais ou menos difíceis de ser atendidos. Nem todo produto, também, pode ter seu autoconsumo ampliado.

Se, por outra parte, os limites de alteração das variáveis que determinam λ i mostrarem-se absolutos, h sempre poderá crescer a partir de mudanças nas proporções ηi de aplicação do trabalho total, de tal sorte que se aloque relativamente mais tempo de trabalho da família nos produtos de maior λ i Ou, ainda, a partir da inclusão de novos produtos com coeficientes λ i mais elevados. Aqui ganham vulto as alterações nos sistemas agronômicos de produção e o significado estrutural da diversidade (também biológica) para a economia camponesa.

5.4 O investimento camponês

Em qualquer dos casos, contudo, a maximização não fortuita de h requer investimentos, aqui entendidos sempre como resultado do dispêndio adicional de trabalho (além de Hr) que se faz ou para obter, pela via do mercado, novos requisitos de capital produtivo ou mercantil ou para aplicar diretamente na formação interna de meios de produção ou na reorganização do sistema de produção (implantação de novos produtos, intensificação do sistema vigente etc.).

Considerando as argumentações de Chayanov, dispêndio adicional de trabalho com vistas à formação de capital, far-se-ia por uma propensão dada pela relação

δ = H r - H e H e (19)

Todavia, é lícito introduzirmos o argumento de que a propensão a investir ô incide sobre um fundo restante de força de trabalho na determinação do tempo efetivamente disponível para investimento (WMIK’ também já definido acima).

W M I K = δ · H t - H r (20)

Aqui reside uma das fortes contradições da economia camponesa: à proporção que a propensão a investir aumenta (como aumento de Hr), a base de trabalho sobre a qual incide - e que permite o investimento ou na forma de autoconsumo intermediário (investimentos feitos com o uso da força de trabalho familiar), ou na forma de receita extra obtida por produção adicional de mercadorias - diminui, até o ponto em que ela é máxima e o fundo de trabalho restante é zero. Ponto em que o investimento se torna impossível.

Existe um ponto de Hr em que o tempo disponível para investimento é máximo. Se o dispêndio de trabalho total se distancia daí, para a direita ou para esquerda, reduz-se a disponibilidade efetiva para investimentos.

O movimento expressa-se pela parábola

W M I K = - 1 / H e · H r 2 + 1 + H t / H e · H r - H t (21)

apresentada no Gráfico 4.

Gráfico 4:
Evolução do tempo efetivamente disponível para investimentos em unidades camponesas

6. CONCLUSÃO

Se uma unidade camponesa produz sob condições tais que o dispêndio total de trabalho (Hr) para obtenção de sua reprodução faz-se no limite da disponibilidade de força de trabalho (Ht) ela tenderá a ser extremamente conservadora em relação a mudanças: apesar de ter fortes razões para mudar, ela simplesmente não tem como fazê-lo sem correr fortes riscos, de vez que sua capacidade está totalmente comprometida, sem folga para absorver instabilidades decorrentes de experimentações. Se, ao contrário, Hr se aproxima do ponto de acomodação He, não haverá disponibilidade para o investimento porque não haverá razões reais para a sua existência (h tende ao máximo e o funcionamento da unidade produtiva tende a parecer, para os componentes da família em questão, ótimo).

O primeiro caso corresponde ao que Marx entendia como a situação por excelência do campesinato no capitalismo: a relação de preços e taxa de lucro do capital mercantil movimentar-se-iam sempre no sentido de manter Hr próximo de Ht, eliminando as possibilidades de investimentos e provocando, a partir dos efeitos sobre a produtividade oi, uma causação cumulativa de desvantagens econômicas que terminariam por conduzir à extinção do campesinato.

O segundo caso corresponde, para a unidade de produção camponesa, à situação prevista por Boserup para uma comunidade de camponeses que simplesmente se compreende produzindo o mais eficientemente possível para atendimento de sua função básica, a reprodução do grupo, em condições objetivas dadas.

A história do desenvolvimento da relação do campesinato com o capitalismo, incluindo aí sua saga no capitalismo brasileiro, apresenta situações ilustrativas de ambas as possibilidades, digamos, extremas. Relativiza-as, contudo, apresentando, na verdade, em muitos casos, a relevância estrutural das condições que determinam uma elevada disposição de investir do conjunto dos camponeses.

Nos países de capitalismo avançado, a antevisão de Marx foi contrariada pela organização cooperativa, de um lado, e pelas políticas de subsídios, de outro. Também aí, os riscos de uma acomodação à la Boserup sempre estiveram minimizados pelo fato de o esforço de maximização de h se fazer sempre pela ampliação da oferta dos produtos camponeses e, portanto, deteriorando a relação de preços entres estes produtos e os produtos industriais. Em conjunto, esses movimentos tiveram como resultado uma administração da máxima permanência do campesinato em posição de elevada exploração com máxima disposição a investir.

No caso da fronteira amazônica demonstramos (Costa, 1989COSTA, F. de A. Bauern, Mãrkte und Kapitalakkumulation. Saarbrücken - Fort Lauderdale: Breitenbach Publishers, 1989. e 1991) que o capital mercantil tem amplo campo de ampliação de m ali onde há baixa densidade demográfica: nas áreas novas de fronteira o capital mercantil e usurário faz oscilar sua taxa de lucro m em função direta do movimento dos preços dos produtos camponeses no mercado nacional. Nas áreas de alta densidade demográfica, ao contrário, em conjuntura de alta dos produtos camponeses o capital mercantil amplia a massa, mas reduz, por efeito da concorrência entre suas parcelas, a taxa de lucro. Adicionalmente, demonstra-se que com o adensamento populacional e a urbanização a ele associada criam-se mercados locais não desprezíveis, ampliando-

-se as alternativas para mudanças nos sistemas de produção e para implementação de estratégias de maximização de h distintas do que usualmente se considera tradicional em contexto de fronteira. Tanto num caso como no outro, há movimentos contra restantes às determinações das posições extremas, em movimentos semelhantes aos indicados por Shanin (1982SHANIN, T. “Polarization and cyclical mobility: the Russian debate over the differentiation of the peasantry”. In Harriss, J. (1982).) na determinação de uma mobilidade cíclica - permitindo visualizar, também aqui, um campesinato capaz de se comportar com elevada motivação, capacidade e oportunidade de, a seu modo, investir.8 8 Foi o que os dados censitários de 1985 insinuaram, permitindo os meus comentários e indicações sobre um possível campesinato inovador em Ecologismo e questão agrária na Amazônia (Costa, 1992). Com os primeiros resultados de pesquisa detalhada por mim coordenada pode-se ser mais incisivo em relação a essas possibilidades (v. Costa, 1993).

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  • VEIGA, J. E. da. “Fundamentos do agro-reformismo”. Lua Nova nº 23, 1991.
  • *
    Trabalho realizado como parte da pesquisa “Estudos agroeconômicos e sociais do setor primário da Amazônia”, convênio SUDAM - Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia/Universidade Federal do Pará - Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/FADESP - Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa.
  • 1
    No texto “Para a crítica da economia política”, Marx estabelece bem a diferença entre o momento da distribuição e o momento da troca em relação com a produção e o consumo. “A produção aparece assim como ponto inicial; o consumo como ponto final; a distribuição e a troca aparecem como meio-termo, que é, assim, dúplice, já que a distribuição é determinada como momento determinado pela sociedade, e a troca como momento determinado pelos indivíduos. Na produção a pessoa se objetiva; no consumo a coisa se subjetiva; na distribuição, a sociedade, sob forma de determinações gerais dominantes, encarrega-se da mediação entre a produção e o consumo; na troca, esta mediação realiza-se pelo indivíduo determinado fortuitamente” (1978, pp. 107-8).
  • 2
    É curioso que pouca atenção tenha sido dada a essa perspectiva na obra desse autor, talvez porque conflite com o núcleo da sua teoria, que termina por sugerir um equilíbrio relativamente estático entre as condições endógenas de estabelecimento do nível de produção camponês.
  • 3
    É interessante observar como esses argumentos são praticamente os mesmos desenvolvidos por Esther Boserup para a compreensão da lógica de sucessão dos diversos estágios de desenvolvimento da agricultura. A sua teoria é proposta para regiões, e não para a unidade produtiva, substituindo o desenvolvimento demográfico da família (de natureza cíclica) por uma variável linear e independente de crescimento populacional de uma determinada área. O principal resultado de sua investigação é o enunciado de que, à proporção que a população cresce, haveria condições de passagem da agricultura de ciclo longo para a de ciclo mais curto - de tecnologias extensivas para tecnologias mais intensivas (enfim, os investimentos na agricultura que chama primitiva associam-se a pressões demográficas). E os estágios não poderiam inverter-se, precisamente porque à intensidade dos ciclos corresponderia uma elevação do montante de trabalho por ano despendido por cada trabalhador, e uma queda na produtividade do trabalho medida por hora aplicada - isto é, ao lado do crescimento da produtividade por unidade de área, proporcionado pela agricultura de maior intensidade, reduzir-se-ia a produtividade por unidade de trabalho. (V. Boserup, 1988BOSERUP, E. Evolução Agrária e Pressão Demográfica. São Paulo, Hucitec , 1988..)
  • 4
    Parece inquestionável a importância que o autor dava às conjunturas, sem, contudo, chegar a uma teoria consistente.
  • 5
    Questão objeto das preocupações de uma discussão relativamente extensa, em que se destacam os questionamentos de Schultz (1964SHULTZ, T. A transformação da agricultura tradicional. Rio de Janeiro, Zahar, 1965.), Lipton (1982LIPTON, M. “Why poor people stay poor “. In Harriss, J. Rural Development: Theories of Peasant Economy and Agrarian Change Londres, Hutchinson University Library, 1982.) e mesmo de autores de inspiração nitidamente chayanoviana como Mellor (1963), Sen (1966SEN, A. K. “Peasants and dualism with or without surplus labor”. The Journal of Political Economy LXXIV (5), 1966.) e Nakagima (1969). V., para aprofundamento, os trabalhos de Blum (1989BLUM, V. Zur Organization kleinbàuerlichen Wirtschaftens. Saarbrücken-Fortlauderdale. Breitenbach Publishers, 1989.), Harris (org., 1982), Ellis (1988ELLIS, F. Peasant Economics: Farm Households and Agrarian Development. Cambridge, Cambridge University Press, 1988.) e Abramovay (1992ABRAMOVAY, R. Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão. São Paulo, Hucitec, 1992.).
  • 6
    Para uma dedução mais completa da fórmula do balanço de trabalho, v. Costa (1989COSTA, F. de A. Bauern, Mãrkte und Kapitalakkumulation. Saarbrücken - Fort Lauderdale: Breitenbach Publishers, 1989., pp. 232-8 e 1991, pp. 184-7).
  • 7
    Esse tipo de compreensão marca uma diferença em relação ao esquema analítico de Chayanov. Para este, uma deterioração nos termos de troca camponeses levaria a um deslocamento para a esquerda, da curva penosidade do trabalho, colocando a família diante de um orçamento inferior ao dado antes como satisfatório. Na nossa interpretação, tal procedimento só aconteceria se o novo Hr fosse maior que Ht, o total de trabalho da família. Nesse caso, a família trabalharia com nível máximo de fadiga e num nível de insatisfação, como consumidora, superior ao precedente. Se Hr<Ht, ela buscaria atender com mais trabalho o orçamento He.
  • 8
    Foi o que os dados censitários de 1985 insinuaram, permitindo os meus comentários e indicações sobre um possível campesinato inovador em Ecologismo e questão agrária na Amazônia (Costa, 1992COSTA, F. de A. Ecologismo e Questão Agrária na Amazônia. Belém, Editora da Universidade Federal do Pará, Série Estudos SEPEQ - Setores Pesquisas/ NAEA), 1992.). Com os primeiros resultados de pesquisa detalhada por mim coordenada pode-se ser mais incisivo em relação a essas possibilidades (v. Costa, 1993COSTA, F. de A. “Valor e preço, exploração e lucro da produção camponesa na Amazônia: crítica à noção de funcionalidade da produção familiar na fronteira agrícola”. In Léna, P. e Oliveira, A. E. (orgs.). Amazônia: a fronteira agrícola 20 anos depois Belém, MPEG- Museu Paraense Emílio Goeldi (Coleção Eduardo Galvão), 1993.).
  • 10
    JEL Classification: Q12; Q10; B51.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1995
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