Acessibilidade / Reportar erro

Migrações internas e subdesenvolvimento. Uma discussão

Internal migrations and underdevelopment. A discussion

RESUMO

A migração interna é um fenômeno com graves consequências sociais, principalmente nos países em desenvolvimento. Entre as questões demográficas da baixa população em algumas áreas à superpopulação em outras à emergência de empregos de baixa qualidade, torna-se relevante entender como isso se enquadra na pesquisa de desenvolvimento econômico e tentar entender também suas causas. Este artigo tem como objetivo realizar uma revisão crítica das teorias atuais sobre migração interna.

PALAVRAS-CHAVE:
Migrações; subdesenvolvimento; história do pensamento econômico

ABSTRACT

Internal migration is a phenomenon with serious social consequences, particularly in developing countries. Between the demographic issues of low population in some areas to overpopulation in others to the emergency of low-quality employment, it becomes relevant to understand how it fits inside the research of economic development and try to grasp its causes as well. This paper aims to perform a critical review of the current theories around internal migration.

KEYWORDS:
Migrations; underdevelopment; history of economic thought

É inequívoca a importância que assumem as migrações internas nas sociedades modernas. Nos países periféricos, essa importância se reveste de uma dramaticidade inconteste. Isso se deve, principalmente, ao inter-relacionamento direto entre as migrações internas e o intenso processo de urbanização desigual, bem como à problemática do excedente de força de trabalho, subsistente nessas áreas.

Destarte, diante das condições gerais, excludentes, do desenvolvimento associado na periferia, os movimentos migratórios internos, sejam intra ou inter-regionais, atuam descomprimindo certas áreas (estagnadas ou em processo de modernização), resultando na compressão de outras, especialmente alguns centros urbanos polares.

Das resultantes dessa mobilidade, ou transferências dos excedentes populacionais ao nível de determinadas áreas interiores de um país, duas se destacam com maior relevância nos países periféricos. A primeira delas, de natureza mais demográfica, diz respeito à existência de um intenso movimento populacional concorrendo para o despovoamento relativo de algumas áreas (rurais ou urbanas) e o crescimento desmesurado de outras, contribuindo para uma distribuição populacional por demais assimétrica num determinado espaço regional.

Essa assimetria se verifica bem mais acentuadamente no aparecimento de poucos centros urbanos, que passam a exercer função catalisadora desses fluxos migratórios, culminando naquele fenômeno que tem sido vulgarizado como de “inchação das cidades”.

A segunda resultante se relaciona ao papel pelo qual as migrações internas atuam nos países periféricos como “correias transmissoras” do subemprego das áreas de origem para as áreas de destino. Ou seja, se se pressupõe que a migração interna decorre, em sua magnitude relevante, das condições de subemprego/desemprego nas áreas de origem, resulta que a consecução do movimento, ao consubstanciar os níveis de excedente de força de trabalho no destino, atua como se “deslocasse” o subemprego de uma área para outra, obviamente com características diferentes.

Dadas essas condições gerais, torna-se importante buscar as explicações do fenômeno em suas determinações objetivas, no contexto do desenvolvimento econômico. Nesse sentido, várias tentativas têm sido feitas, com maior ou menor sucesso, no sentido de explicá-lo de modo, digamos, paradigmático partindo do princípio de que a sua manifestação se revela como um processo social.

Nesse artigo, procuramos estabelecer uma discussão crítica dessas linhas explicativas do fenômeno migratório. Estabeleceremos a existência de duas grandes correntes, que podemos, grosso modo, denominar de “psicologizantes” e “estruturais”, respectivamente. O primeiro tipo de abordagem está referido, em suas linhas mais gerais, à chamada teoria do capital humano e considera a possibilidade dos custos-benefícios do processo migratório ante as disparidades de renda entre as áreas de origem e de destino; a segunda, ao contrário, procura estabelecer as inter­relações estruturais da atividade econômica que determinam fatores de repulsão e de atração.

CONCEPÇÕES TEÓRICAS DA INDUÇÃO ECONÔMICA AO PROCESSO MIGRATÓRIO

Como ressaltamos, o fato de se admitir a migração como um processo social suscitou a necessidade do estabelecimento de modelos que envolvessem variáveis econômicas explicativas desse processo.

Para efeito de exposição, estabeleceremos a existência de duas grandes correntes que, embora comportando variantes significativas, na essência das suas grandes linhas encerram certos pontos convergentes explicativos dentro de cada uma, contudo com diferenças significativas entre as duas, sobretudo aquelas referentes à qualificação do problema.

A primeira, que denominaremos Comportamental Racionalista, parte do pressuposto de uma concepção de equilíbrio geral, sob condições de perfeita mobilidade dos fatores, especialmente da mão-de-obra, e procura relacionar os diferenciais de renda, espacial e/ou setorial, e a eficiência alocativa do sistema vis-à-vis os deslocamentos populacionais.

Em segundo, surge aquela que busca aprofundar as relações socioeconômicas do processo de acumulação, nos locais de origem e destino, que determinam os fatores de expulsão e atração. Ademais, torna-se sobremaneira importante os inter-relacionamentos existentes entre a industrialização e urbanização e as suas consequências sobre as condições de vida da força de trabalho, fato mais notável nas economias subdesenvolvidas. A essa postura metodológica chamaremos de Estruturalista.

No que se segue, discutiremos analiticamente essas duas correntes com base nalguns trabalhos que julgamos abrangerem as suas ideias gerais.

1.1. A concepção comportamental racionalista

Sem dúvida, os trabalhos de Sjaastad, Todaro e Todaro/Harris1 1 Sjaastad, Larry A. “The Costs and Returns of Human Migration”. Journal of Political Economy, 70(5); 80-93, oct. 1962. Suplement. Tradução impressa em Moura, H. A. (org.) Migrações Internas. BNB-ETENE, 1980, pp. 117-143. Todaro, Michael P. “A Model of Labor Migration in Less Developed Countries. The American Economic Review, 59(1) 138-148, mar. 1969. Tradução impressa em Moura, H. A. (org.) op. cit., 147-171. Todaro, Michael P. e Harris, John R. “Migration, Unemployment and Development: Two-Sector Analysis”. The American Economic Review, 15.126-142, mar. 1970. Tradução impressa em Moura, H. A. (org.), op. cit., 175-209. expressam significativamente o paradigma metodológico dessa corrente.

Comecemos, então, por uma exposição das ideias de Sjaastad.

Do seu ponto de vista, a questão fundamental está em tentar verificar se as magnitudes dos fluxos migratórios expressam eficiência adequada no sentido de corrigir as desigualdades de renda prevalecentes, desde que esses fluxos ocorram numa “direção correta”. Em outros termos, se se adota o princípio de que a migração promove uma realocação espacial do fator trabalho, até que ponto esse movimento é capaz de induzir uma redução das disparidades de renda geográfica.

Apesar de a mobilidade humana ser de magnitude não-desprezível, observa Sjaastad, permaneceram as disparidades de renda e, desse modo, o estudo da migração coloca duas questões relevantes, embora tratadas de modo não muito satisfatório. A primeira delas ‘’diz respeito à direção e à intensidade com que os migrantes reagem aos diferenciais dos rendimentos do trabalho· que prevalecem espacialmente”.2 2 Sjaastad, op. cit., p. 124. Numa outra perspectiva, a “questão é pertinente à conexão existente entre a migração e esses rendimentos”, ou seja, quão efetivo é o fenômeno migratório para equalizar os diferenciais inter-regionais prevalecentes nos rendimentos auferidos por unidades de trabalho comparáveis.3 3 Ibidem, p. 124. E como faz questão de frisar, o último ponto tem recebido escasso tratamento, mesmo porque se apresenta com maior dificuldade.

Conforma-se, assim, a expectativa, evidenciada nos estudos empíricos, de que a migração líquida ocorre na direção “certa”,4 4 Ibidem, p. 125. ou seja, para as áreas de maiores salários (ou rendimentos). Permanece, contudo, na concepção do autor, o problema de saber que magnitude do volume migratório é suficiente para estabelecer uma equalização das taxas salariais.

A sua proposta analítica, nesse sentido, “seria considerar a migração estritamente,5 5 grifo nosso (A. F.). sob o prisma do problema da alocação de recursos. Para isso, deve-se tratar a migração como um investimento que incrementa a produtividade do recurso humano, ou seja, um investimento que apresenta custos mas que também rende retornos”.6 6 Ibidem, p. 126. Grifado no original.

Subsistirão, assim, custos e retornos privados e também sociais. No tocante aos custos privados, Sjaastad divide-os em monetários e não-monetários. Os custos monetários são aqueles advindos do ato de deslocamento com transporte, alimentação, dentre outros dispêndios monetários explícitos; por outro lado, os custos não-monetários dizem respeito tanto aos custos de oportunidade - ou seja, a remuneração que o migrante deixa de perceber durante o deslocamento, o tempo despendido na procura de emprego e/ou em novos treinamentos de trabalho - quanto aos custos ‘’psicológicos’’, que são atinentes ao abandono do local de origem, de grupos familiares, sociais e étnicos.

Sem embargo, como é admitido pelo próprio autor, os custos monetários são passíveis de fácil mensuração, enquanto os não-monetários, notadamente os “psicológicos”, são difíceis, quando não impossíveis, de medição. Daí que propõe a ideia de descartar a consideração dos custos ‘’psicológicos’’ como componente dos custos migratórios, admitindo como hipótese implícita “apenas pessoas cujos custos psicológicos marginais sejam zero”.7 7 Ibidem, p. 130. Essa hipótese, na realidade, é conveniente, do ponto de vista analítico, para reduzir os viés imputado à taxa de retorno decorrente da não-consideração desses últimos custos.

A contrapartida desses custos, ou melhor, os retornos beneficiando os migrantes, do ponto de vista privado, também são de natureza monetária e não-monetária.

Na captação dos retornos monetários, o autor considera ser de crucial importância o fato de que os diferenciais de remuneração interespaciais não expressam desequilíbrio no mercado de trabalho. Portanto, as divergências de uma taxa salarial básica decorrem mais relevantemente da composição ocupacional da mão-de-obra, em outras palavras da natureza da ocupação, que exige adequadamente um nível de treinamento e/ou especialização. Nesse sentido, “pelo fato de que o retorno migratório pode-se elevar com o processo ocupacional, o problema de estimá-lo torna-se muito mais complexo”.8 8 Ibidem, p. 133. Advém, daí, a necessidade de empregar o conceito de capital humano, visualizando “a migração, o treinamento e a experiência como investimentos no agente humano”.9 9 Ibidem, p. 133. Grifado no original.

Quanto aos retornos não-monetários, tais como os custos psicológicos, a discussão do autor caminha no sentido de estabelecer diferenças entre preferências locacionais, que não introduzem vieses no cálculo da “renda pura”, por não se constituírem em custos do emprego, daqueles decorrentes dos aumentos de produtividade.

Na realidade, no quadro de análise exposto, o autor tenta justificar a hipótese de que retornos não-monetários podem ser desprezados, uma vez que podem ser vistos como consumo cujo custo de produção é nulo e, desse modo, não alterando a relação valor da produtividade marginal igual ao custo marginal, promovendo, assim, uma alocação ótima de recursos.

Desse modo, os diferenciais de salários seriam explicados, relevantemente, pelos diferenciais de produtividade e não pela escolha locacional.

A admissão dos custos e retornos sociais da migração deve-se ao fato da existência de externalidades, imperfeições de mercados e certos aspectos institucionais. A problemática, nesse sentido, está afetada em maior proporção aos custos e retornos proporcionados pela migração aos migrantes e não-migrantes, que determinarão diferenças entre os custos privados e sociais. A questão estaria, portanto, em saber até que ponto a migração influenciaria, ou seria influenciada, pela estrutura global da economia no que se refere, principalmente, à estrutura de mercado, à mobilidade dos fatores, bem como certos aspectos institucionais, como as políticas tributárias dos governos em suas várias esferas.10 10 Ibidem, pp. 140-143.

Há que se ressaltar, da formulação de Sjaastad, alguns pontos deveras importantes para a sua compreensão do processo migratório.

Em primeiro lugar, a migração é um fenômeno que se expressa induzida tão-somente por diferenciais de remuneração e funciona, mais ou menos, como um mecanismo de alocação de recursos do fator trabalho. As hipóteses subjacentes de concorrência perfeita reduzem a existência de diferenciais de remuneração ao investimento em capital humano, ademais de que prevalecem as condições gerais de equilíbrio com pleno emprego.

Por outro lado, as questões dos custos e benefícios sociais, por permanecerem no mesmo marco conceituai, escamoteiam a questão social imbricada no processo migratório, tornando-se, portanto, irrelevantes.

Passemos, agora, à formulação de Todaro.11 11 O que denominaremos modelo Todaro abrange as formulações de Todaro e Todaro/Harris. Ver citação bibliográfica na Nota 1. O fundamental a destacarmos, nesse modelo, é a admissão da existência de subemprego e desemprego significativos nas áreas subdesenvolvidas. Ademais, esses são substancialmente agravados pelo processo migratório campo-cidade.

Uma vez que o modelo Todaro tem sua origem na formulação de Lewis,12 12 Cf. Lewis, W. Arthus. “Economic Development with Unlimited Supplies of Labour”. Manchester School of Economic and Social Studies, V. (XXII), n. 2, 1954. Posteriormente na tradição neoclássica, Gustav Ranis e John c. h. Fei, no artigo “A Theory of Econornic Development”, The American Economic Review, V. (LI), n. (4), 1961, intentaram urna generalização formal do modelo Lewis. Desse modo, dada a convergência de certos resultados analíticos no que se refere à transferência de mão-de-obra do setor rural para o setor industrial-urbano, induziu a urna síntese que ficou conhecida na literatura corno Modelo de Desenvolvimento de Lewis-Fei-Ranis. Para urna explicação da mesma ver Todaro, M. Introdução à Economia, uma visão para o Terceiro Mundo. Editora Campus, 1979, tradução de Economics for Developing World, pp. 319-322. faz-se necessária uma pequena digressão sobre este. Lewis considera a existência de uma economia dual formada por um setor de subsistência (tradicional) e um setor capitalista (moderno). O setor de subsistência é composto dos agricultores assalariados ou agregados, dos trabalhadores eventuais, das mulheres ocupadas em tarefas domésticas, dentre outros, cuja produtividade seria desprezível ou nula, e que estariam sujeitos a um salário de subsistência. Por outro lado, o setor capitalista é aquele que emprega o trabalho assalariado e desenvolve-se num esquema de reprodução ampliada do capital, ou seja, revalorizando o capital pela extração de mais-valia, ou excedente, gerado produtivamente.

A consequência mais imediata da estrutura econômica concebida por Lewis é que o produto per capita no setor de subsistência é mais baixo que no setor capitalista. Contudo, a expansão sustentada do setor capitalista induz à transferência de força de trabalho do setor de subsistência para aquele, com a concomitante elevação do produto per capita dessa força de trabalho.

Considerando-se que há uma relativa rigidez no salário de subsistência, dada pelo processo rudimentar de trabalho no setor de subsistência e, ainda mais, dada a extensividade do setor capitalista, resulta uma oferta ilimitada de mão-de-obra para este último.

Esse reservatório de força de trabalho para o setor capitalista funciona, para Lewis, mais ou menos análogo ao exército industrial de reserva para Marx, como um indutor de pressão sobre o salário do setor capitalista, definindo uma certa taxa, contudo, mais alta, para que o mesmo se torne atrativo para a força de trabalho do setor de subsistência.

A visão de Lewis, de certo modo, pode ser considerada como uma explicação das transferências de força de trabalho setorial com maior ênfase na demanda, desde que a impulsão das transferências está atrelada à forma de organização produtiva dual da economia e suas diferenciações de salários. Mesmo assim, a hipótese explícita de acumulação ampliada, sustentada, conduz a um crescimento do setor capitalista até o ponto em que desaparece o excedente de força de trabalho.

Não há, portanto, a consideração dos movimentos cíclicos, que acompanham as flutuações da taxa de acumulação, que têm consequências sobre o nível de absorção de mão-de-obra.

Ademais, o modelo de Lewis não pode ser considerado como um modelo estrito de migrações. Sua análise se desenvolve intentando uma explicação da mobilidade intersetorial que, não necessariamente, se constitui num movimento migratório. Sem embargo, a mobilidade intersetorial, decorrente da migração, está contida no seu modelo; assim podem ser vistos os deslocamentos a partir do setor agrário de subsistência, bem como de força de trabalho excedente nos centros urbanos menos industrializados e/ou estagnados na direção do segmento urbano­industrial.

Feitas essas considerações, passemos ao modelo Todaro.

A hipótese fundamental do modelo é de que a existência de um excedente de força de trabalho ao nível urbano impõe restrição à probabilidade, prospectada pelo migrante, de encontrar emprego no setor moderno. Em outros termos, significa dizer que dada a existência do desemprego e subemprego no meio urbano, o migrante não tem certeza de que de imediato possa se empregar no setor moderno, daí pondera as suas possibilidades diante dessa incerteza.

O corolário dessa hipótese é que a oferta de mão-de-obra urbana não é determinada, pelo menos mais relevantemente, pelo diferencial de renda real prevalecente entre o setor rural tradicional e o urbano-industrial moderno, mas sim pelo diferencial “esperado”.

Todaro define o diferencial esperado de renda como o diferencial de renda efetivo ajustado pela probabilidade de o migrante encontrar emprego no setor urbano-industrial.13 13 Ver Todaro, “A Model...” op. cit., p, 152.

À diferença de Sjaastad, no modelo anteriormente tratado, Todaro considera em primeiro lugar a existência de desemprego e subemprego, e como consequência a prevalência não do diferencial efetivo de renda. mas do diferencial esperado, que se enquadra mais numa visão de renda permanente, no conceito de Friedman, como ressalta o próprio autor.

Fazendo uma síntese das concepções tradicionais do desenvolvimento, o autor afirma que o processo migratório é visto como consequência do processo de acumulação de capital, o qual induz transferências de força de trabalho da agricultura para o setor urbano-industrial, sendo que o nível dessas próprias transferências define o nível do desenvolvimento. Mesmo assim, não há nesses modelos a consideração do fator desqualificação como elemento refreador tanto do emprego quanto dos níveis salariais, o que significa impor ao processo migratório um desenrolar em dois estágios, no que se refere ao engajamento setorial da mão-de-obra.14 14 Ibidem, pp. 152-153.

É óbvio que esse problema não é só atinente à desqualificação da mão-de-obra que se desloca do setor agrícola tradicional; deve-se considerar também a limitação imposta pela dinâmica produtiva do setor moderno, ou seja, a sua capacidade de expansão ante a disponibilidade de força de trabalho; e isso diz respeito à divisão intersetorial e inter-regional do trabalho (em sentido amplo) e à natureza da adoção tecnológica como os elementos fundamentais de determinação da magnitude da taxa de absorção de mão-de-obra.

Considerando, portanto, que existem dois estágios na inserção da força de trabalho migrante no processo de trabalho, esses estágios serão concernentes à existência de: a) um setor urbano tradicional que se caracteriza por empregos não-permanentes, de baixa produtividade e baixos salários, e que funciona como setor de entrada; b) um setor moderno com empregos permanentes15 15 O termo permanente, usado por Todaro, merece melhor qualificação. Somente poderemos entendê-lo como decorrência de postos de trabalhos específicos no processo de produção para uma dada divisão de trabalho, e não a vitaliciedade do emprego para o trabalhador. Mesmo assim, esse sentido de permanente é relativo, pois a evolução da divisão do trabalho impõe a destruição e a criação de postos e funções de trabalho. , alta produtividade e altos salários, exigindo certos níveis de especialização da força de trabalho. O problema, então, está afeto às possibilidades de mobilidade da mão-de-obra do setor moderno e, consequentemente, ao seu engajamento num emprego permanente.16 16 Cf. Todaro, ibidem, p. 153.

Nesse sentido, para Todaro, sobrevém a necessidade de analisar questões pertinentes à:

  • a) decisão de migrar;

  • b) dimensão relativa do setor urbano tradicional;

  • c) implicação de um crescimento industrial acelerado e/ou dos diferenciais alternativos rural-urbano de renda real sobre o engajamento de força de trabalho no setor moderno.17 17 Deixamos, aqui, de apresentar o modelo formal desenvolvido por Todaro, uma vez que não é objetivo deste trabalho discuti-lo, mas sim as suas ideias e conclusões fundamentais. O leitor interessado pode consultar o artigo de Todaro supracitado, pp. 156-165.

Embora Todaro, como já antevemos, considere o diferencial de rendas rural-urbana como variável determinante na decisão de migrar, a probabilidade de obtenção de emprego urbano desempenha o papel estratégico nessa decisão. Desse modo, o horizonte do migrante estará definido mais pela renda esperada do que propriamente pela renda efetiva, isso porque o mesmo não se emprega imediatamente, no setor moderno, à taxa salarial vigente.

A decisão de migrar estará correlacionada, desse modo, positivamente à probabilidade de encontrar emprego no setor moderno.18 18 Ibidem, pp. 154-155. Tentando melhor qualificar a introdução dessa variável, o autor introduz dois exemplos históricos que “demonstram” a expectativa do emprego como elemento relevante na decisão de migrar.19 19 Ibidem, pp. 160-162. Um se refere à experiência americana em 1932, documentada por Theodore Schultz, quando na grande depressão se reverteu o processo migratório campo-cidade, mesmo prevalecendo um diferencial significativo (positivo) em favor dos salários urbanos. O outro exemplo nos toca mais de perto, e refere-se a uma experiência vivida no Quênia, sob influência da OIT, que consistia num convênio “tripartite” entre o governo, empregadores e sindicatos trabalhistas, no sentido de eliminar o desemprego existente na área da grande Nairobi. A essência do acordo consistiu num comprometimento dos empregadores (Governo e setor privado) em aumentar imediatamente o emprego em 15%, enquanto os sindicatos trabalhistas abririam mão de quaisquer reivindicações de melhorias salariais. A consequência foi um aumento colossal do desemprego, decorrente da atração gerada pelas possibilidades expansivas da demanda por mão-de-obra.

Esse processo, em certo sentido, é demonstrado formalmente por Todaro que conclui que qualquer tentativa de aumentar a taxa de criação de empregos, através “de aumento na taxa de expansão industrial” e/ou subsídio à mão-de-obra, com critérios de preços-sombra poderá redundar em fracasso se não for, concomitantemente, acompanhada por medidas que tendam a reduzir o diferencial de renda real, obviamente considerando o suposto de que a migração varia diretamente com a probabilidade de obtenção de emprego.20 20 Vale esclarecer que os critérios de “preços-sombra” seriam aqueles que intentariam aproximar o salário efetivo do preço de escassez da força de trabalho.

Esse resultado decorre da dedução formal do modelo que indica o tamanho relativo, de equilíbrio, do setor urbano tradicional como função direta do diferencial de renda real rural-urbano e função inversa da taxa de criação de emprego no setor moderno. Desse modo, são duas forças que atuam em sentido oposto, cuja resultante poderá ser, ao contrário da redução do desemprego, o aumento ou mesmo a manutenção da taxa de desemprego.

Posteriormente, introduzindo o seu modelo de migração num modelo mais amplo de desenvolvimento com dois setores interagindo produtivamente21 21 Cf. Todaro e Harris “Migration ... “ op. cit. , o rural e o urbano-industrial, intenta demonstrar que a fixação institucional de um salário-mínimo urbano mais alto que o salário rural determina a pertinácia dos fluxos migratórios, que, desse modo, podem ser enquadrados numa escolha racional.

Ademais, a restrição à migração, embora envolvendo dificuldades e valorações éticas, poderá contribuir para a melhoria do “bem-estar” das populações tanto rurais quanto urbanas; na perspectiva do modelo, contudo, deveria ocorrer uma compensação ao setor, que diz respeito à magnitude da elasticidade da demanda de bens agrícolas, à proporção da força de trabalho urbana originada do setor rural e ao salário urbano esperado. Para a primeira variável, a elasticidade da demanda, desde que seja menor que a unidade, subsistirá o fato de que a migração adicional irá sempre beneficiar o setor rural. Do mesmo modo, uma fração menor de empregados urbanos originados do setor rural induz a uma melhoria do “bem-estar” rural, pois a migração adicional, ao gerar desemprego, reduz os ganhos dos migrantes que já se encontravam na força de trabalho, exatamente pelo complementar daquela fração.22 22 Algebricamente tem-se que: Wu = Wm , onde Wu, salário esperado no meio urbano; Wm, salário-mínimo vigente; (Nm/Na), taxa de emprego no meio urbano. Se R é a fração de migrantes empregada no meio urbano, a migração adicional reduzirá de (1 - R) os ganhos de todos os migrantes já empregados. Ver Todaro e Harris, op. cit., pp. 198-199. Por fim, tanto maior seja o salário esperado urbano, maior será o benefício, para o setor rural, decorrente da migração.

O modelo Todaro conclui, essencialmente, que nem uma política de subsídio salarial, tentando ajustar o “preço-sombra” da força de trabalho, nem uma política de restrição às migrações implementadas isoladamente é eficaz no sentido de atenuar, ou eliminar, o problema do desemprego. Isso, basicamente, devido a que o nível de salário-mínimo aparece no modelo com duas determinações fundamentais: por um lado, determina o nível de emprego industrial e, por outro, influencia na alocação do emprego entre os setores rural e urbano.23 23 Cf. Todaro e Harris, op. cit., p. 200.

Há a necessidade, assim, de uma combinação desses dois tipos de políticas de modo que culmine com um subsídio salarial permitindo o crescimento do emprego industrial, de tal forma que atingindo o pleno emprego os produtos marginais do trabalho no setor rural e urbano sejam iguais. Ademais, o subsídio ao salário-mínimo deve ser igual à diferença entre este e a produtividade marginal. 24 24 O fato de considerar um equilíbrio com o desemprego não exime a consistência ao instrumental neoclássico do modelo, vez que o conceito de “bem-estar” prevalecente está atrelado aos conceitos básicos de produtividade marginal nas funções de produção dos dois setores.

Uma consideração de ordem prática no modelo Todaro é que o Governo pode não dispor de estrutura tributária que permita, sem distorções, arrecadar o necessário para fazer frente a essas compensações. Daí a sugestão de que uma alteração do salário-mínimo seja o mais adequado para evitar incorrer nos problemas decorrentes de uma tributação distorsiva.

Sem dúvida, o modelo Todaro levanta algumas questões relevantes que devem ser levadas na devida conta. Contudo, pelo próprio fato de seu instrumental analítico estar preso ao esquema neoclássico, perde-se de vista certos elementos estruturais relevantes que induzem a existência do desemprego, nos países subdesenvolvidos.

A determinação exógena apenas do salário, decorrente das pressões sindicais, é uma limitação séria às conclusões obtidas, seja no que se relaciona ao equilíbrio geral ipso facto, seja no que se relaciona ao “bem-estar”. É fato que no atual estágio do capitalismo o setor produtivo da economia mais relevante, ou seja, com maior empuxo dinâmico, opera com uma estrutura de preços administrados, ou de mark-up pricing, de modo que apenas ocasionalmente subsistem condições de pleno emprego, e a taxa de lucros planejada é intentada a ser realizada pela combinação de administração dos preços e remanejamento da capacidade produtiva, no decorrer do ciclo econômico.

Em segundo lugar, a hipótese subjacente de que um menor custo relativo da força de trabalho induz a um crescimento do emprego, pela adoção de tecnologia mais adequada, perde de vista, ou escamoteia, a problemática da inserção tecnológica nos países subdesenvolvidos, cuja industrialização se realiza de forma subordinada aos centros hegemônicos da reprodução do capital.25 25 A argumentação que se segue, nesse sentido, está mais bem fundamentada em Ferreira, A. “A Dinâmica Recente da Expansão Industrial no Nordeste”. Revista Econômica do Nordeste, v. 14, n. 2, 1983, p. 223-230.

A problemática do subemprego e do desemprego não estará afeta tão ou quase somente, como deixa margem de interpretação o modelo, ao processo migratório campo-cidade. É forçoso reconhecer que o processo agrava as condições de subemprego e desemprego no meio urbano.

Ademais, deve-se ter em conta que as estruturas agrárias das áreas subdesenvolvidas induzem, também, no campo, um alto nível de subemprego permanente e, em certas circunstâncias, notadamente nas mudanças tecnológicas e de certas culturas agrícolas, o aparecimento de desemprego aberto.

É digno da nota que, na formulação posterior de modelo Todaro, a parametrização do salário urbano (mínimo), como variável de influência sobre o comportamento do migrante, está na dependência, explícita, da inexistência de excedente de força de trabalho ao nível do setor rural.26 26 Cf. Todaro e Harris, op. cit., pp. 179-180. Deve-se aclarar que os autores fazem essa suposição tendo em conta, mais especialmente, a realidade da África Tropical.

Do ponto de vista da dinâmica econômica, há de se convir que o modelo, ao se utilizar de estática comparativa, perde muito em essência, sendo que as observações feitas anteriormente são também válidas nesse sentido.

Feitas essas ressalvas, deve-se concluir que, diante do modelo de Sjaastad, o modelo Todaro avança substancialmente, contudo permanecendo ainda muito ligado à manifestação do fenômeno, não dando conta dos inter-relacionamentos estruturais determinados pelo processo de acumulação de capital nas economias periféricas, que são responsáveis pelo processo migratório.

O problema então, ao nosso ver, consiste em estabelecer em cada etapa histórica do desenvolvimento, considerando-se o caráter de inserção dessas economias no processo de acumulação ampliada, os fatores que são responsáveis pelo processo migratório. Em outros termos, significa buscar caracterizar que forças são relevantes para determinar a expulsão e a atração da população migrante. Ademais, deve-se verificar o que realmente preponderará: se o inter-relacionamento das forças de expulsão ou das de atração, no contexto de uma forma específica de acumulação de capital.

1.2. A concepção estrutural

Antes de introduzirmos uma análise mais específica sobre esse enfoque, referenciado aos países da América Latina, faz-se mister chamar a atenção para a colocação inicial feita por Myrdal27 27 Myrdal, G. “Teoria Econômica e Regiões Subdesenvolvidas”. Ed. Saga, 1965. Cap. 3 sobre os processos de desequilíbrios auto-alimentadores, decorrentes do crescimento econômico nos países ou áreas subdesenvolvidas. Isso se justifica devido ao fato de que as migrações internas surgem como decorrência desses processos na visão daquele autor.

A hipótese fundamental, de Myrdal, é que existe uma causação circular, de natureza acumulativa, no mecanismo do crescimento econômico, que se aplica às áreas tanto em expansão quanto em regressão ou estagnação.

Nesse sentido, distinguem-se dois efeitos que interagem no sentido de agudizar as desigualdades regionais.

Uma expansão em determinada área via, por exemplo, a acumulação industrial provoca “efeitos regressivos” (backwash effects) em outras, na ausência de mecanismos institucionais compensadores ou mesmo de complementaridade econômica produtiva. Essa expansão por seu turno engendra novas expansões, a nível interno tanto da área quanto das áreas de complementaridade potencial. Desse modo, sedimentam-se “efeitos propulsores” (spread effects) que também têm características de· causação cumulativa circular.

A migração interna verifica-se nesse contexto de exacerbação dos “efeitos regressivos”, numa área, em contraposição aos “efeitos propulsores”, noutras. Como manifesta Myrdal, “as localidades e regiões, onde a atividade econômica se está expandindo, atrairão imigração em massa de outras partes do país.”28 28 Ibidem, p. 53.

Não se pode considerar que Myrdal estabelece uma teoria dos determinantes da migração especificamente, não obstante fazer uma análise bastante útil dos deslocamentos de fatores e da concentração regional das atividades produtivas, notadamente derivada da expansão industrial. Ademais, como ressalta Singer,29 29 Vide Singer, op. cit., p. 39. os “efeitos propulsores” podem em certas circunstâncias possibilitar atração de migrantes para outras áreas que não somente às de seu locus de determinação, desde que as mesmas possam atuar como complementares da expansão produtiva.

O fato mais notável desse processo é que a existência e o aprofundamento das desigualdades regionais determinam e também são determinadas, em parte, pelo processo migratório, na concepção de Myrdal.

Para o caso da América Latina, a postura estruturalista, tal como a estamos concebendo, pode ser dividida, grosso modo, em duas vertentes: a da modernização e a histórico-estruturalista.30 30 Essa classificação foi adotada por Oliveira, O. de. e Stern, C. numa síntese crítica de título: “Notas sobre a Teoria da Migração Interna. Aspectos Sociológicos”. Traduzido e impresso em Moura, H. A. de. (org.), “Migração Interna”, op. cit., p. 251-265. A seguir analisaremos o posicionamento em separado, de cada uma das duas vertentes, sempre que possível intentando conjugar os seus posicionamentos afins ou convergentes.

1.2.1. O enfoque da modernização

O foco de análise dessa corrente diz respeito à transição das regiões para uma economia urbano-industrial, que subentende como modernas. Nesse sentido, quando se trata de analisar as atuais economias do Terceiro Mundo, e mais particularmente a América Latina, a tese consiste em considerar que esse processo de modernização, ou de transição, ocorreu de forma tardia quando comparado ao mesmo processo vivido pelos atuais países desenvolvidos.

Essa condição de transição tardia está afeta ao condicionamento dependente desse processo (e, por isso, periférico). É uma dependência de natureza política, econômica, científica, cultural e militar, daí sobrevindo uma série de características importantes que vão diferenciar os atuais países desenvolvidos dos países periféricos dependentes.

A modernização, tal como concebida por Germani,31 31 Cf. Germani, G. “Sociologia da Modernização” (Tradução de ‘Sociologia de la Modernización’). Ed. Mestre Jou, 1974, p. 8. é um processo global estruturado por subprocessos que devem ser distinguidos uma vez que para cada país a especificidade da transição estará condicionada pela sequência e velocidade em que ocorrem esses subprocessos. Essa especificidade diz respeito às condições históricas internas e externas em que se realiza o desenvolvimento. Assim, “essa variação em taxas e sequências é o que diferencia a transição dos países do Terceiro Mundo da transição dos países atualmente avançados, que se realizou por sua vez em épocas históricas distintas’’.32 32 Ibidem, p. 8.

Não cabe no escopo deste trabalho uma análise aprofundada da teoria da modernização, mesmo porque não é o objetivo do mesmo. O que nos interessa ver é a concepção do processo migratório dentro desse marco analítico. Mesmo assim, faz-se necessário um apontamento breve sobre essa teoria no sentido de deslindar possíveis confusões metodológicas posteriores.

A análise comparativa do desenvolvimento atual dos países periféricos, em certos processos relevantes, com os países desenvolvidos, pode conduzir a uma postura metodológica que concebe o subdesenvolvimento como uma etapa histórica do capitalismo e não como produto do desenvolvimento desigual e subordinante do mesmo. Em outros termos, o subdesenvolvimento não pode ser visto como uma etapa do desenvolvimento capitalista, que será ultrapassado uma vez que se promova o avanço de certos processos, como o industrial, por exemplo; mas, sim, como decorrência de certas inter-relações estruturais entre as formações capitalistas avançadas e periféricas, bem como da permanência de assincronias estruturais relevantes no interior de cada país.

Nesse sentido, como teremos oportunidade de discutir mais adiante, a dependência estrutural que aludimos explicita que, nas palavras de Cardoso e Faletto, “entre as economias desenvolvidas e as subdesenvolvidas não existe uma simples diferença de etapa ou de estágio do sistema produtivo, mas também de função ou posição dentro de uma mesma estrutura econômica internacional de produção e distribuição”. E, mais adiante, continuam: “a noção de dependência alude diretamente às condições de existência e funcionamento do sistema econômico e do sistema político, mostrando a vinculação entre ambos, tanto no que se refere ao plano interno dos países como externo”.33 33 Cardoso, F. H. e Faletto, E. “Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Ensaio de Interpretação Sociológica”. 4ª. ed. Zahar, 1977, p. 26-27.

Feitas essas ressalvas, retomemos a questão das migrações no contexto da perspectiva da modernização. Devemos chamar a atenção para que aqui estaremos baseados exclusivamente no texto de Germani, já citado.

Do mesmo modo como na vertente histórico-estrutural, como teremos oportunidade de verificar, a problemática da migração está afeta à questão da urbanização no contexto das assincronias internas que geram os fatores de expulsão e atração.

É admitido que nos países de transição recente (subdesenvolvidos), existe uma “superurbanização, ou seja, uma urbanização patológica (“sociopática”, na definição de alguns autores), no sentido de que “o nível de urbanização dos países menos desenvolvidos é, na atualidade, bastante mais elevado do que se poderia esperar, tendo-se em vista seu grau de desenvolvimento econômico, quando comparados com o nível de urbanização que tinham os países atualmente mais avançados em correspondência com um grau similar de desenvolvimento”.34 34 Cf. Germani, op. cit., p. 189. A consequência desse processo é uma marginalização (política, social e econômica) crescente de segmentos populacionais urbanos, notadamente dos migrantes internos.

Germani, reconhecendo a urbanização como um fenômeno complexo, afeto às condições ou situações de dependência, considera vários aspectos, dentre os quais as migrações constituem as mais importantes, “não apenas porque a maior parte do crescimento demográfico urbano é causado por movimentos de população, como também em virtude do fato de que a própria migração, como processo social, é uma expressão de mudanças básicas que estão transformando o mundo, convertendo o planeta de aldeias e desertos em um planeta de cidades e metrópoles”.35 35 Cf. Germani, op. cit., p. 141 (grifo nosso).

Três processos principais são considerados, pelo autor, na análise do fenômeno migratório, e esses se referem à decisão de migrar, a translação efetiva e a aculturação, na sociedade urbana, dos migrantes.

A migração decorrerá, assim, de um balanço entre os fatores de expulsão, existentes no local de origem, e os fatores de atração, do local de destino.

Outrossim, ao ser encarada como uma das formas de um processo de mobilização social, requererá três níveis de determinação.

Em primeiro lugar, subsiste o nível ambiental (objetivo), em que se enquadram os fatores de expulsão e de atração bem como as comunicações e a acessibilidade entre o lugar de origem e o de destino. No que se relaciona aos fatores de expulsão e atração, eles não estão circunscritos somente às áreas rurais e urbanas contrastadas, mas também às áreas somente urbanas, podendo, assim, ocorrer migrações urbana-urbana entre cidades dissimilares. As comunicações e a acessibilidade entre os lugares de origem e destino podem ser estabelecidas tanto por contatos formais e informais, quanto por meio de comunicações de massa, e por sistemas de transportes, distâncias, custos, dentre outros, respectivamente.

Em segundo lugar, o autor destaca o contexto normativo e psicossocial, ao qual os fatores objetivos estão condicionados. O primeiro nível diz respeito às normas, crenças e valores do grupo social de origem e formam a base sociocultural de avaliação das condições objetivas. Por outro lado, o nível psicossocial está afeto à avaliação pessoal dos indivíduos.

A análise caminha no sentido de enfatizar a migração no contexto de um processo de mobilização social, o qual assume formas históricas específicas, no que o autor denomina de sociedades de transição recente, que se caracterizam por estruturas duais (segmentos tradicionais versus segmentos modernos) dependentes. Essa estrutura dual exibe assincronias que induzem a um conjunto de condições objetivas à migração interna, notadamente, entre o setor agrário tradicional e o urbano industrial moderno.

Mesmo assim, existem certos condicionamentos normativos (sociais) e psicossocias (individuais) que determinam em que medida se desenvolvem os fluxos migratórios, ao mesmo tempo em que possibilitam, em parte, a integração desses contingentes nas chamadas estruturas modernizadas. E, ainda mais, esses níveis normativo e psicossocial foram rompidos nos países subdesenvolvidos com maior velocidade que nos países desenvolvidos nos períodos das suas transições, possivelmente devido a uma extensão maior dos meios de comunicação de massa nos primeiros que nos últimos em estágios semelhantes de transição.

É importante ressaltar que para Germani as migrações internas constituem-se, para as sociedades de transição recente, ou subdesenvolvidas, no substituto equivalente das migrações europeias internacionais do século passado.

Como essas migrações se dirigem, em maior escala, das áreas rurais tradicionais para o setor urbano-industrial moderno, gera-se uma situação anômala do processo de urbanização, à diferença dos países hoje desenvolvidos (de transição primária), em que subsiste uma parcela significativa dessas populações urbanas em situação marginal, do ponto de vista econômico, político e social.

Emerge, como contrapartida desse processo, um conjunto de atividades em comércio e serviços de baixas produtividades e baixas remunerações, não-organizadas capitalisticamente, que imprimem maior complexidade ao setor terciário da economia. O avanço das atividades terciárias nos países subdesenvolvidos, sem embargo, não corresponderá, em sua composição estrutural, ao avanço observado nas economias desenvolvidas.

Diante disso, Germani distingue dois segmentos no setor terciário das economias subdesenvolvidas. Um é composto de atividades modernas com alto nível de organização capitalista; o outro, denominado pelo autor de pseudo-terciário, é formado por atividades não-modernas, desenvolvidas acima, por pessoas cujos costumes e formas de vida são relativamente marginais ao polo moderno da sociedade.

A importância das migrações está diretamente relacionada a esse fato, ou seja, à formação de um segmento marginal importante nas sociedades urbanas dos países subdesenvolvidos.

1.2.2. O enfoque histórico-estruturalista

Essa linha de análise assuma como hipótese fundamental a relação existente entre o processo migratório e a expansão industrial e, mais especificamente para o caso latino-americano, as relações de dependências dessa industrialização vis-à-vis o processo de urbanização.

Dois trabalhos, relativamente pioneiros, contendo certas diferenciações podem ser enquadrados nessa perspectiva. São as formulações de Quijano e de Singer.36 36 Quijano, A. “Dependência, Mudança Social e Urbanização na América Latina” (tradução de ‘Dependência, Câmbio Social y Urbanización en Latinoamerica’). Revista Mexicana de Sociologia, v(30), n(3), 1968. Impresso em Almeida, F. L. (org.) A. Questão Urbana na América Latina. Forense Universitaria, pp. 10-59. Singer, P. “Migrações Internas: Considerações Teóricas sobre seu Estado ... “, op. cit.

Cabe ressaltar que o trabalho de Quijano, ao contrário do de Singer, não trata especificamente da migração, mas, sim, desse fenômeno inter-relacionado à urbanização nas nossas economias.

A tese fundamental, defendida por Quijano, é que o processo de urbanização nas economias latino-americanas é condicionado, em essência, pela forma dependente de inserção dessas economias no contexto da reprodução do capital em escala internacional, embora mantenham certas especificidades, ou singularidades autônomas.

A cada modo histórico de dependência corresponderá um modo específico de urbanização. Desse modo, os avanços do capitalismo, que possibilitaram a passagem do mercantilismo ao capitalismo industrial avançado, ao mesmo tempo em que deslocava os centros hegemônicos metropolitanos, estabelecia novas formas de dependência, e.g., as mutações históricas de denominação verificadas na passagem do colonialismo ao imperialismo.

Sem embargo, “tanto do ponto de vista do conjunto dos atuais países da região como do ponto de vista de cada um deles em particular, a história do processo de urbanização não deixou de estar, em nenhum momento, condicionada por essas mudanças’’.37 37 Cf. Quijano, op. cit., p. 21.

No caso do Brasil, podemos verificar, de certo modo, esse processo. As características dos ciclos do modelo primário exportador condicionarão as mutações ecológico-demográficas da urbanização. É o que se constata, no período colonial, com a exploração da cana-de-açúcar no Nordeste e a mineração no Sudeste; e, nos fins do século passado e começo deste, com a expansão cafeeira no Sudeste, a cultura de algodão no Nordeste e a borracha na Amazônia.

A partir dos anos 30, ao se passar da economia primário-exportadora para uma economia urbano-industrial, embora inicialmente mantendo certa autonomia, redefine-se a forma de dependência com a entrada em cena de capitais de risco, através das empresas estrangeiras transnacionais. Verificar-se-ão novas características espaciais e socioculturais mais consolidadas do ponto de vista do padrão de urbanização; ao se interiorizar com mais força, via expansão do mercado e complementaridade produtiva (para algumas áreas mais sujeitas aos efeitos de propulsão), a expansão industrial recriou por sua vez o processo de urbanização para algumas áreas, ao mesmo tempo em que refreou ou impediu noutras.

O problema a ser considerado, em sua maior dimensão, é que o processo de urbanização das economias periféricas, dependentes, esteve sempre condicionado à forma de inserção das mesmas ao processo de acumulação capitalista em suas várias fases, mantendo, contudo, certas singularidades. Desse modo, a tese de Quijano supera a ideia de que a urbanização das áreas subdesenvolvidas foi uma decorrência automática da industrialização.

Na verdade, a industrialização desses países condicionará os novos perfis de urbanização, seja do ponto de vista da concentração, difusão e mudanças nas relações campo-cidade. Sem embargo, o fato de que essa industrialização se tenha consolidado ou se venha consolidando, variando de país para país, sob a égide de um novo caráter de dependência, a expansão urbana consequente assumirá os contornos impostos por essas novas relações de dependência.

Diante do quadro atual das novas relações de dependência e, portanto, das novas características da urbanização, como se insere o processo migratório? Como uma decorrência da tese defendida por Quijano, o movimento migratório estará condicionado por essas novas relações urbano-rurais. Em outros termos, ao se estabelecer o novo processo de dependência, agora mais circunscrito pela extensão do padrão urbano-industrial, com maior ou menos intensidade de acordo com cada país, ocorrerá também ipso facto uma mutação substantiva nas relações campo-cidade, que em última instância definirá, prevalecentemente, o processo migratório.

O conteúdo fundamental dessa determinação se deve ao fato de que “a expansão econômica urbana, que altera profundamente as relações econômicas urbano-rurais, encontra os setores rurais, na maior parte, num desnível gigantesco em relação ao nível de desenvolvimento da economia urbana, pois a tecnologia produtiva das atividades primárias, as formas tradicionais de posse da terra e de organização das relações de trabalho vão mudando só muito lentamente”.38 38 Cf. Quijano, op. cit., p. 52.

Nesse sentido, a expansão urbano-industrial ao penetrar nos setores rurais, seja através da expansão de mercado seja através da necessidade de complementaridade produtiva, exercerá feitos mais ou menos drásticos desarticulando-a, sem que os reajustes possam dar-se de modo conveniente à estrutura e disponibilidade de força de trabalho aí existentes.

Verifica-se, dessa maneira, a exacerbação dos fatores de expulsão ao nível rural, concomitante à intensificação dos fatores de atração ao nível urbano.

A resultante desse processo será uma intensificação dos fluxos migratórios no sentido rural-urbano. Ademais, dado o caráter tecnológico das inversões, tanto substitutivas quanto de expansão, ser de natureza pouco absorvedora de trabalho, relativamente, ao nível urbano, ter-se-á como consequência a formação ou, mais precisamente, o incremento dos extratos marginais urbanos. Esse fenômeno é ainda mais intensificado, ao nível urbano, por um fator demográfico relevante, que é a possibilidade de um decréscimo nas taxas de mortalidade, em todos os níveis, a par da permanência, ou aumento, das altas taxas de natalidade e fecundidade, que exercerão pressões incrementais na taxa de crescimento populacional.

O resultado de tal combinação de fatores é o fenômeno, hoje conhecido nos países periféricos, da superurbanizução, tal como ressalta Quijano.39 39 Vide Quijano, op. cit., pp. 51-52.

Essa superurbanização, contudo, expressa um conteúdo de excludência política, econômica e social de vastos segmentos populacionais, que se integram num conjunto mais ou menos orgânico internamente dentro do sistema como um todo, porém marginalizado pelo segmento determinante da dinâmica interna da acumulação, e, portanto, reduzido às condições mais severas de pobreza e obscurantismo social.40 40 A questão das chamadas “populações marginais” tem sido alvo de uma polêmica alentada na Sociologica latina-americana. Afora a bibliografia inicial sobre o assunto, como os textos de Nun, Quijano, e Cardoso, um excelente trabalho é o de Kovarick, L. “Capitalismo e Marginalidade na América Latina’’. Ed. Paz e Terra, 1977.

O fato é que a intensificação dos fluxos migratórios, como decorrência da expansão urbano-industrial dependente, terá como efeito uma ampliação das condições de marginalidade ao nível urbano.

A intensificação do fluxo migratório rural-urbano transparece, então, na tese defendida por Quijano, embutida na teia de articulações das novas formas de dependência que se estruturam nas economias periféricas. Ou seja, do ponto de vista predominante, se constitui não como um fenômeno autônomo, mas social e economicamente integrado às determinações do processo de acumulação mundial, resguardadas, obviamente, certas singularidades inerentes a cada região ou país.

A formulação de Singer, como citamos de passagem anteriormente, trata especificamente da questão migratória, e sua hipótese fundamental é que cada padrão, ou formas históricas de expansão industrial, define, também historicamente, tipos de processos migratórios.41 41 Vide Singer, op. cit., pp. 31-33.

Nesse sentido, Singer considera que “o processo de industrialização não consiste apenas numa mudança de técnicas de produção e numa diversificação maior de produtos, mas também numa profunda alteração da divisão social do trabalho”.42 42 Ibidem, p. 32.

Para maior precisão conceituai, devemos ressaltar que essa mudança na divisão social do trabalho se faz, basicamente, em três dimensões com um certo nível de articulação, e complexização maior à medida que se expande o processo de acumulação.

Numa primeira dimensão, essa divisão de trabalho ocorre no interior das próprias unidades econômicas, seja pela introdução, estrito senso, de certos métodos produtivos, seja pela diversificação interna da produção (ou departamentalização da atividade produtiva). Nesse sentido, tanto certas funções de trabalho são criadas, como outras são destruídas e/ou recriadas.

A segunda diz respeito à divisão do trabalho intersetorial, que é determinada em escala mais proeminente pela extensividade horizontal da complementaridade produtiva, implicando uma complexização maior da matriz de relações interindustriais.

Por fim, destaca-se uma terceira que está afeta à divisão interespacial do trabalho e dá-se a nível internacional e intranacional.

Deve ficar claro que o processo de expansão industrial condiciona essa divisão técnica e social do trabalho, ao mesmo tempo em que é condicionada por ela. Visto o problema desse ângulo, resta analisar que dimensão da divisão do trabalho induz maior ênfase no processo migratório.

Singer considera que a industrialização reacomoda, tanto espacial quanto setorialmente, uma gama de atividades econômicas relevantes. Isso se revela mais notavelmente nas transferências de certas atividades do setor agrícola para estabelecimentos especializados no setor urbano-industrial, espacialmente aglomerados. Essa aglomeração espacial decorre da necessidade de utilização, em maior escala, de uma infraestrutura de serviços básicos especializados, como energia, transportes e comunicações dentre outros, bem como da existência de economias externas, decorrentes da complementaridade das atividades econômicas, entre os estabelecimentos industriais.43 43 Ibidem, p. 32.

Uma ligeira ressalva deve ser feita nesse ponto. É óbvio que a complementaridade econômica não ocorre apenas, e estritamente, entre estabelecimentos industriais, como pode deixar pensar a afirmação de Singer. As economias externas, no sentido amplo do termo, ao propiciarem uma desintegração vertical da produção e circulação das mercadorias, reduzem os custos e os riscos referentes a cada massa de capital, em particular, bem como os inerentes ao processo de acumulação de capital, em geral.

O surgimento da cidade industrial, segundo Singer, decorre precisamente dessa necessidade intrínseca de aglomeração espacial.

Esse processo tende a gerar mecanismos de autoalimentação, pois expandindo as necessidades de mão-de-obra expande o mercado, o que atrai novas inversões.

Tais áreas exercerão, assim, forte efeito atrativo de populações, induzindo incrementos significativos na taxa de crescimento demográfico, expandindo a urbanização e, consequentemente, a industrialização. Desse modo, urbanização e industrialização são elementos interativos de um mesmo fenômeno.

Como já verificamos anteriormente, na tese de Quijano reafirmada por Singer, no desenvolvimento, historicamente, ocorreram processos de urbanização muito antes de uma expansão industrial.44 44 Vale dizer que também é um posicionamento assumido por Germani. Vide Germani, op. cit., Cap, 5. Ainda mais, as cidades que se tornaram centros industriais, nos países periféricos, regra geral, já apresentavam um nível relativo de urbanização; a continuidade desta esteve (ou está) condicionada ao nível de suas inserções no novo contexto da reprodução, agora com a proeminência dinâmica do capital industrial.

Esse rearranjo das atividades econômicas, de forma desigual e combinada do ponto de vista da unidade reprodutiva do capital, ao conduzir à concentração do capital induzirá, por outro lado, também uma redistribuição espacial da população, manifestada no processo migratório.45 45 Singer, op. cit., p. 33.

O importante a verificar é que, nesse sentido, não há muita divergência no que concerne à questão da urbanização e da concentração espacial das atividades econômicas, bem como sua indução sobre o processo migratório mais contemporâneo, sob a égide da industrialização.

Não obstante, existem algumas diferenças marcantes no modo de percepção dos determinantes desse processo. Por um lado, o enfoque da modernização procura situar a questão do ponto de vista comparativo, das taxas e processos que determinam o fenômeno, tendo como moldura de referência os atuais países desenvolvidos; nesse sentido, chega à conclusão de que os processos causais da urbanização foram muito mais velozes e consubstanciados que nos países hoje desenvolvidos. Mesmo assim, as migrações internacionais europeias foram a válvula de escape para a pressão demográfica. E que nos países subdesenvolvidos o equivalente a esse processo é a migração urbano-rural.

Por outro lado, mais especialmente Quijano, intenta aprofundar a chamada “superurbanização” como decorrência das novas condições de dependência, que imprimem um processo extremamente acentuado de concentração espacial das atividades - este último sendo mais enfatizado por Singer.46 46 Germani também considera as relações externas/internas induzindo a urbanização, porém não é esse o seu ponto de interesse analítico mais direto.

Feita essa ligeira síntese da corrente estruturalista, no tocante aos elementos causais da urbanização recente versus o processo migratório, retomemos a tese de Singer em sua parte mais atinente ao processo migratório em si.

Tal como Germani, Singer expõe de modo específico os elementos que condicionam a migração urbano-rural. Sua maior ênfase se situa nos fatores objetivos, tal como definidos por Germani, e mais especialmente nos fatores de atração e expulsão.

Os fatores de expulsão, ou seja, os elementos objetivos que induzem à migração, são considerados por Singer como sendo de duas ordens.

Em primeiro lugar, transparecem os fatores de mudança, e estão afetos às condições de modernização de uma dada área, que, no sentido apontado por Singer, “decorrem da introdução de relações de produção capitalistas nestas áreas, a qual acarreta a expropriação de camponeses, a expulsão de parceiros e outros agricultores não-proprietários, tendo por objetivo o aumento da produtividade e a consequente redução do emprego”.47 47 Cf. Singer, op. cit., p. 38.

Em segundo, situam-se os fatores de estagnação, cuja manifestação decorre de uma pressão demográfica crescente sobre a terra, circunscrita, em geral, às áreas de agricultura de subsistência desenvolvidas nas pequenas propriedades com uso extensivo de mão-de-obra familiar; outrossim, de forma análoga, verificam-se também estes fatores quando da existência dos latifúndios improdutivos.48 48 Ibidem, p. 38.

Podemos considerar que em ‘certas circunstâncias podem subsistir concomitantemente esses efeitos e, ainda mais, a existência ou implementação de um deles pode exercer efeitos contrários em outras áreas subjacentes relacionadas. Embora Singer considere que esses efeitos são específicos às áreas rurais,49 49 Ibidem, p. 39. não há nenhum inconveniente, ou perda conceitual, em serem utilizados para análise da migração de tipo urbana-urbana.

A título de exemplificação, consideremos a introdução de uma agroindústria, numa certa área que induza a substituição da policultura estabelecida por uma atividade de monocultura para atender à demanda de matéria-prima exigida por essa indústria, e.g., uma usina de açúcar. Suponhamos, ademais, que a policultura anterior fosse formada de algodão, milho, feijão e arroz.

O algodão produzido dirigia-se à área urbana para usinas de beneficiamento primário e produção de óleos; o milho em parte também era utilizado em beneficiamentos locais, assim como o arroz, enquanto o feijão dirigia-se para consumo direto do mercado local. Ademais, os três produtos alimentares tinham a sua parte destinada ao consumo local e de subsistência nas pequenas propriedades familiares.

O efeito da substituição das culturas, nesse sentido, poderia conduzir a um processo de modernização ao nível do campo, ao mesmo tempo em que conduziria a um processo de estagnação ao nível urbano, notadamente se esse centro urbano considerado fosse pouco diversificado economicamente, e na medida da sua associação articulada às atividades primárias, obedecendo ao seguinte mecanismo:

  • 1. A substituição da policultura romperia com as relações de produção ao nível do campo, no seguinte sentido: substituição das formas de parceria predominantes nas grandes e médias propriedades; ruptura da economia de subsistência por um processo de reconcentração fundiária necessária à implementação da nova cultura em base mais verticalizada, a qual poderia ser incentivada institucionalmente; e, respaldando esse processo, uma extensividade do assalariamento.

  • 2. A restrição imposta à oferta agrícola teria efeito sobre a estrutura manufatureira ao nível urbano, que na hipótese de fechamento de parte desses estabelecimentos poderia induzir a um processo de estagnação, desde que, e o que é mais provável, devido às diferenças nas relações capital/trabalho, sendo mais alta para a nova empresa, a taxa de absorção de mão-de-obra ao nível local seria rebaixada. Nesse caso, ocorrendo um desemprego pela substituição setorial predominante; ou, como afirma Quijano, pela “relativa marginalização de certos ramos da produção dentro do novo esquema de industrialização dependente”.50 50 Cf. Quijano, op. cit., p. 50.

  • 3. Outrossim,, a sazonalidade da cultura implementada poderia conduzir, como no caso da cana-de-açúcar, a uma descontinuidade produtiva ao nível tanto da atividade agrícola quanto da industrial, cujas implicações sobre a consubstanciação do excedente de força de trabalho, ao nível rural e urbano, seriam significativas em certas épocas do ciclo produtivo.

Note-se, daí, que a “modernização”, em vez de enformar efeitos propulsores, poderá, ao contrário, gerar efeitos de estagnação, mais notáveis ao nível urbano. Desse modo, ocorrerá uma intensificação do processo migratório obedecendo ao seguinte comportamento: a) os efeitos de mudança ao nível do campo irão determinar uma mutação qualitativa nos fluxos migratórios anteriores, já que estes se realizavam como decorrência dos fatores de estagnação e agora devem ocorrer devido aos fatores de mudança, implementados; se antes havia certa seletividade na migração, agora esta deve ocorrer de forma menos discriminativa; b) deverá haver uma intensificação da migração de mais curto percurso, em maior parte influenciada pela baixa seletividade dos migrantes, esperando-se que frações desses contingentes se dirijam para o meio urbano que exercia a maior ligação produtiva com o meio rural; c) sem embargo, essas frações do contingente migrante que se deslocam para aquele centro urbano já deverão encontrar um processo de retração dos setores tradicionais da indústria, bem como das atividades de comércio e serviços a eles mais atrelados. Ou seja, a nova formação de excedente de mão-de-obra será engrossada pelo contingente migrante. Desse modo, certas atividades, ao serem retraídas e não compensadas pelas novas, geram um processo de estagnação relativa, transparecendo, também ao nível urbano, fatores de mudança e de estagnação, que induzirão um novo processo migratório no sentido de outras áreas urbanas ou rurais, sendo exigido para o primeiro caso maior nível de seletividade. Não devemos nos esquecer de que o fator sazonalidade da produção adiciona-se a esse quadro, intensificando mais ainda os movimentos de emigração.

Esse raciocínio também poderá ser assinalado ao desenvolvido por Myrdal, quando se trata de áreas distintas em que subsiste o frade off: propulsão para algumas áreas implica consequente estagnação para outras, gerando as desigualdades inter-regionais.

Não é esse, sem dúvida, o caso de que tratamos. Temos um elemento novo de análise, em que a modernização, ao contrário de gerar propulsão, gera estagnação, ou pelo menos não muda o quadro existente no que se refere à absorção de força de trabalho, bem como poderá induzir certa “perversão” nos custos de reprodução da força de trabalho, rural e urbana: a) pela restrição de oferta de alimentos ao nível urbano produzidos na própria área, e b) pela destruição da agricultura de subsistência sem uma contrapartida relevante do emprego e da distribuição da renda ao nível rural.

Em outro sentido, poder-se-ia considerar como exercendo basicamente os mesmos efeitos na absorção de força de trabalho, e consequentemente na emigração, a introdução da pecuária extensiva em áreas produtoras de alimentos.

Tais situações, que se pode demonstrar vêm ocorrendo em algumas áreas do Nordeste brasileiro, deixam claro o fato de que as assincronias da intervenção econômica, favorecendo a reconcentração fundiária e do capital, conflituam com a ideia, muito pouco precisa, de uma política de migração.

Nas palavras de Singer, “os fatores de expulsão definem as áreas de onde se originam os fluxos migratórios, mas são os fatores de atração que determinam a orientação destes fluxos e as áreas às quais se destinam”.51 51 Singer, op. cit., p. 40. Vale acrescentar que no contexto de reprodução das economias subdesenvolvidas os fatores de expulsão não só definem as áreas, mas, também, o volume e a qualidade desses fluxos.

É necessário, antes de mais nada, um pequeno esclarecimento conceituai em vista do conteúdo da afirmação acima. Se definimos uma determinada área não apenas pela sua situação geográfica, mas como um espaço específico de reprodução e, desse modo, caracterizando-se por um conjunto de inter-relacionamentos estruturais que imprimem a dinâmica da acumulação, deduzimos que a área é que define os fatores de estagnação e/ou mudança, e não o contrário, como pode levar a entender a afirmação de Singer. É certo que a caracterização das áreas de expulsão e atração é feita pela predominância, nas suas estruturas econômico-sociais, de fatores de estagnação e mudança, respectivamente. É nesse sentido que devemos aceitar a proposição de Singer.

A discussão pode parecer meramente semântica, porém não se trata disso. Ela diz respeito à forma de conceber o que antecede, ou origina, as assincronias ou desajustes estruturais, evitando tratar os efeitos como causas.

Acrescentemos, ainda, a necessidade de se distinguir os fatores expulsão quanto ao seu caráter conjuntural ou estrutural. A primeira categoria é formada por aqueles que têm um comportamento mais aleatório. Ou seja, podem ser definidos aprioristicamente mas não são exatamente previsíveis quanto às suas manifestações, seja à época de ocorrência, períodos de duração etc. Nesse conjunto, podem ser enquadradas modificações ambientais, tanto físicas, decorrentes de fenômenos extraordinários como secas, enchentes, terremotos, dentre outros, quanto físico-sociais, como as guerras, revoluções etc.

Nessas circunstâncias, os fluxos migratórios daí originados são mais assistemáticos, menos seletivos, em geral, e encerram maiores possibilidades de retorno. A extensão vis-à-vis a capacidade de resistência das populações expostas à efetividade dessas transformações determinará, em última instância, o volume migratório correspondente.

No outro grupo, subsistem fatores de natureza estrutural, como vimos discutindo, que em geral estão afetos às características orgânicas do processo produtivo e da organização social da população exposta ao risco de migrar. As suas configurações assumem um caráter bem definido em cada modo de produção, nuançado, obviamente, em cada situação histórica pelas especificidades que assume esse modo de produção.52 52 Chamamos a atenção para o fato de estarmos tratando, nos dois grupos, de fatores relacionados às condições gerais objetivas. Além desses, devemos relembrar a existência de fatores subjetivos, embora não os tratemos aqui.

As relações entre as migrações e o mercado de trabalho urbano feitas por Singer não diferem, em essência, das análises da corrente que estamos denominando estrutural. A conclusão fundamental é que o processo migratório gera mecanismos de pressão sobre o mercado de trabalho urbano, a par de que a sua relativa incipiência, nos países subdesenvolvidos, engendra um processo excludente de parte da força de trabalho, marginalizando-a política, social e economicamente, sobrevindo daí as formas de trabalho em setores de baixa produtividade, e baixos rendimentos, originando o que vem a ser chamado na literatura atual de “mercado informal” de trabalho.

Mesmo dada essa convergência de caráter geral das consequências do processo migratório, alguns matizes em Singer chamam particularmente a atenção.

Eles dizem respeito à forma e intensidade dos fatores de expulsão e suas relações com a estrutura produtiva em geral. O que deve ter-se em conta de forma relevante, nas palavras do autor, “é que a procura de força de trabalho, na cidade, dadas as mudanças técnicas decorrentes da industrialização, é uma junção do tamanho e da composição do produto gerado pela economia urbana”.53 53 Cf. Singer, op. cit., p. 43.

Assim, “quando as migrações são causadas por fatores de mudança, há um nexo causal, embora indireto, entre o volume de força de trabalho liberado pela agricultura e demanda pelo produto urbano”.54 54 Ibidem, p. 43. Em outros termos, significa dizer que devem operar os efeitos em cadeia sobre o emprego, gerando um nível de emprego superior ao nível de empregos diretos.

Do mesmo modo, pode-se raciocinar, nesse sentido, quando os fluxos migratórios são provocados por fatores de estagnação; o que se verifica é que não há contrapartida de geração de emprego induzida por aumento da demanda a partir dos segmentos que exibem esses fatores.

O primeiro fato merece certa qualificação. Nada assegura que as compensações de emprego, induzidas pela modernização, sejam em nível compatível com a taxa de desemprego resultante da mesma; isso está atrelado, essencialmente, à magnitude da taxa de acumulação da economia urbana, como reconhece o próprio Singer.

Por fim, tal como Germani, Singer sugere algumas proposições para o estudo das migrações internas.

Tais proposições têm como suporte o fato de que as migrações devem ser encaradas como um processo social condicionado por formações históricas específicas. Nesse sentido, o estudo das migrações nas áreas subdesenvolvidas não deve ser realizado com categorias analíticas que não deem conta desse fenômeno, sob pena de não responder às questões fundamentais desse processo, ficando adstrito, quando muito, a superficialidades descritivo-factuais.

Pontos relevantes, como as causas e os motivos da migração, as consequências das migrações internas e migrações versus marginalidade, devem ser estudados, tendo-se em mente a migração como um processo social condicionado a uma dada formação econômico-social, a qual, embora possa ser caracterizada de forma mais ou menos geral, com base em certas leis objetivas de organização das relações produtivas internas e seus inter-relacionamentos no contexto mais amplo da produção, guarda de país para país, e em áreas interiores distintas de cada país, certas especificidades relevantes que não podem ser descartadas numa análise mais profunda do problema.

2. CONCLUSÕES

Da exposição, salta-nos à vista duas questões fundamentais relacionadas ao modo de conceber o processo migratório.

Em primeiro lugar, análises de natureza mais demográficas, ao pretenderem formular certas leis gerais da migração, terminam por responder ao problema de forma meramente descritiva, sem, contudo, deixarem de constituir-se em orientações úteis para uma visão do fenômeno em suas manifestações. Esse caráter descritivo da formulação diz respeito ao fato de que não aprofundam as causas que determinam a existência da migração, ou seja, esta é tomada como um dado em sua existência mais transparecente. Desse modo, certas relações são estabelecidas como as que estão afetas à relatividade, distância e orientação dos fluxos, permanecendo, não obstante, o caráter de categorias analíticas anistóricas. É neste sentido que podemos afirmar que a análise perde a noção de conteúdo do fenômeno para se ater apenas à sua forma. Não queremos dizer com isso que a forma de manifestação do fenômeno não tenha significado. Ao contrário, contudo, uma vez que o conteúdo determina a forma, esta se transmuda em função da natureza histórica do seu conteúdo.

Consideremos, por exemplo, a seletividade da migração. Vemos que ela assume formas distintas, do ponto de vista qualitativo, quando se considera as migrações campo-cidade atualmente realizadas nos países de industrialização madura, desenvolvidos, e nos países dependentes, do terceiro mundo. Deixando de lado as próprias diferenças internas existentes dentro de cada país, o que esperamos é uma menor seletividade nos últimos, decorrente do modo distinto como se organizam as suas forças produtivas, bem como as consequências do processo migratório, afeto a essa seletividade, serão de natureza também diferente. Essa distinção de forma diz respeito a uma distinção de conteúdo, que obviamente, no seu desenvolvimento estrutural, modifica a forma, a qual, por sua vez, é necessária, em suas modificações, ao avanço e transmudação do conteúdo.

O caráter histórico do processo, enquanto processo social, é determinado pelo conteúdo estrutural que o origina e não pela sua forma.

As formulações de Sjaastad e Todaro/Harris podem; de certo modo, ser enquadradas na perspectiva anterior, embora guardem algumas dissimilitudes, tanto entre si quanto em relação às formulações de natureza meramente demográficas. Primeiro, a hipótese de trabalho daqueles autores repousa na perspectiva do estabelecimento de certos elementos indutores de natureza econômica no processo migratório. O processo migratório, segundo os mesmos, é uma manifestação racional do indivíduo diante de um estímulo do mercado de trabalho refletido na taxa salarial das áreas de destino. Para Todaro: a taxa salarial vigente condicionada à expectativa de obtenção de emprego no local de destino.

O importante a assinalar, nesse ponto, é o fato de que a migração transparece como uma manifestação subjetiva, ou psicologizante, do indivíduo, prevalecendo aquilo que Germani denominou de aspectos psicossociais da migração. Sem dúvida, ao não considerarem as condições objetivas, de forma explícita, determinadas historicamente, caem no mesmo erro de substituir, na explicação do fenômeno, o conteúdo pela forma.

É digno de nota que entre os dois modelos há uma diferença de enfoque importante. Ela diz respeito à forma assumida pelas migrações como fenômeno que expressa a mobilidade do fator trabalho em seu sentido realocativo. Embora, na essência, o problema permaneça o mesmo para os dois autores, uma vez que o raciocínio se desenvolve pressupondo condições de equilíbrio no mercado de trabalho e as consequências da migração na mudança dessa situação de equilíbrio.

Para Sjaastad, os movimentos ocorrem na “direção certa”, contudo a permanência das disparidades de renda, em condições de pleno emprego, é explicada pela diferença do investimento em capital humano. Desse modo, o nível de mobilidade, bem como as diferenciações de remunerações inter e intra-ocupações, em termos espaciais, estará adstrito ao volume de recursos empregados, vistos como custos, na formação do recurso humano.

Todaro, ao contrário, considera que as migrações têm como efeito agravar as condições do desemprego e subemprego prevalecentes nos países subdesenvolvidos, ao nível urbano. Ademais, considera que a fixação institucional de uma taxa salarial mínima, ao nível urbano, por não refletir o salário de equilíbrio do mercado, gera um agravamento da situação do desemprego/subemprego urbano.

Apenas, em termos de ressalva, pode-se verificar, do mesmo modo, que a fixação de um salário-mínimo superior ao preço-sombra da mão-de-obra determina as condições de desemprego no contexto da teoria do capital humano de Sjaastad.

O raciocínio, grosso modo, é feito no sentido de admitir que, diante de um salário institucionalmente fixado superior ao preço-sombra, ocorrerá uma determinada hierarquização no emprego da mão-de-obra, hierarquização feita de modo que os postos de trabalho vão sendo ocupados no sentido da maior para a menor qualificação atinente e de forma restritiva pelas empresas, restando aos menos qualificados a condição de desemprego. Sem entrar em maiores discussões sobre o assunto, esse argumento é de natureza estática e não considera os requisitos do nível de acumulação setorial do sistema versus a estrutura e expansão setorial da demanda efetiva, ou seja, a dinâmica da acumulação, bem como a formação dos mercados internos ao nível das próprias firmas.

Assentado esse ponto, retomemos a tese de Todaro no que se relaciona às políticas destinadas a restringir o processo migratório e, desse modo, atingir um nível de equilíbrio no mercado de trabalho urbano de pleno emprego. A sua conclusão fundamental é de que nenhuma política de caráter unilateral, seja subsidiando o salário urbano, visando atingir para as firmas o salário-sombra do fator trabalho, seja a indução incentivada da expansão industrial, ou mesmo de restrições institucionais à migração, conduzirá, necessariamente, ao objetivo de redução do desemprego urbano em escala compatível à melhoria das condições de bem-estar.

O fato é que deve ser implementado um “pacote” de políticas, ou uma combinação de políticas, que traga no seu bojo compensações para o setor agrário em função da sua estrutura tecnológica e da demanda por seus produtos.

Há, nesse sentido, certa convergência de resultados entre a análise de Todaro e a da corrente estruturalista. Do mesmo modo é fácil deduzir, de acordo com a postura da última corrente, que desde que não haja uma política global de intervenção, a nível rural e urbano, permanecerão as condições de desemprego/subemprego nas economias periféricas dependentes. Ainda mais, em si, uma expansão industrial induzida ao contrário de se constituir melhoria das condições do mercado de trabalho redundará, pelos mecanismos reconcentradores, setorial e espacialmente, em novas assincronias e desequilíbrios regionais, consubstanciando fluxos migratórios, que culminará num agravamento das condições de desemprego/subemprego vigentes.

No caso brasileiro, o exemplo mais notável desse fato é a expansão industrial induzida, realizada na Região Nordeste. O que se tem observado, ao contrário, é um recrudescimento do nível do subemprego nas áreas urbanas, principalmente nos grandes centros, a par de uma relativa estagnação nas áreas não-sujeitas aos efeitos de propulsão, notadamente no setor rural.55 55 Para um estudo mais detalhado dessa questão, ver nosso trabalho denominado “Elementos Estruturais do Subemprego no Nordeste”. Revista Econômica do Nordeste, v. 12, n. 4, 1982.

Embora com alguma diferenciação, que é mais de ênfase, no papel de uma ou outra variável, verificamos que a corrente estruturalista, mais particularmente o segmento histórico-estruturalista, mantém uma unidade notável tanto do ponto de vista do conteúdo quanto da forma da análise do problema migratório.

Isso se deve a um aprofundamento do fenômeno em sua essência, buscando desse modo os seus inter-relacionamentos estruturais na perspectiva do processo de acumulação em geral, e não como um elemento em si. Ou seja, a migração é concebida como um processo social, uma manifestação cujas especificidades dizem respeito ao caráter histórico da acumulação do capital.

O ponto de partida fundamental são as relações de dependência prevalecentes entre os países desenvolvidos e periféricos, como explicação da forma que assumem as atividades econômicas nos últimos. Mais particularmente, as relações funcionais entre o caráter da industrialização dependente realizada nos países periféricos e o processo específico de urbanização dão a tônica do desemprego e subemprego crônicos, tanto nas áreas rurais quanto nas urbanas. Ademais, nesse contexto, impõe-se do mesmo modo a própria organização específica econômico-social interna de cada país, notadamente no que diz respeito às assincronias entre a estrutura agrária e a estrutura urbano-industrial. O processo migratório transparece, desse modo, como uma manifestação desses inter-relacionamentos estruturais, e culmina num agravamento das condições de desemprego/subemprego urbano e, consequentemente, numa expansão da marginalidade urbana.

Portanto, as desigualdades internas, do ponto de vista setorial e espacial, são agudizadas pela expansão industrial dependente. A realimentação assincrônica do processo de acumulação induzirá a uma hiper urbanização excludente (social, política e economicamente), a qual potencializa uma extensão específica do terciário (terciarização), que contém ao mesmo tempo: um segmento pseudo-terciário, para usar a expressão de Germani, com ocupações de baixa produtividade, baixos rendimentos e pouca organização capitalística, e um segmento terciário moderno, com razoável nível de organização e diversificação capitalística, no qual se verifica um processo de oligopolização crescente.

A exacerbação das desigualdades setoriais e regionais que transparecem, decorrente do modo específico da reprodução dependente, resulta num agravamento do problema migratório e, consequentemente, da marginalização urbana.

Nesse ponto, cabe uma ressalva no que diz respeito às origens dos fluxos migratórios. Notemos que há uma tendência à consideração por parte dos autores, na explicação do processo de hiper urbanização, a acentuar mais enfaticamente a migração do tipo rural-urbano. Isso é concebível, por um lado, uma vez que se considera a desarticulação da economia agrária tradicional, decorrente do avanço industrial que impõe um processo de modernização ao nível daquele setor. Por outro lado, a permanência das atividades tradicionais também induz, condicionada pelos fatores de estagnação, correntes migratórias rural-urbana. Mesmo assim, conceitualmente, não cabe uma generalização sem que sejam feitas algumas qualificações.

Em primeiro lugar, há que se considerar o fato de que a concentração industrial, levada a cabo em certas áreas urbanas, poderá ter o efeito, e geralmente o tem, de gerar um processo de estagnação relativa nas áreas urbanas não-sujeitas à difusão dos efeitos de propulsão. Essa tendência à regressão engendra os fatores de expulsão atinentes à mesma, verificando-se então um processo migratório urbano-urbano cuja orientação obedece a uma hierarquia urbana bem definida, com as cidades maiores expressando maior função receptora na mesma.

Para termos uma ideia da magnitude do problema, de acordo com o Censo Demográfico de 1970: a) nas Regiões Metropolitanas brasileiras a participação de migrantes urbanos na população migrante total, em cada, girava em torno de 90%, sendo que nos núcleos metropolitanos, propriamente ditos, essa proporção situava-se em torno de 98%, com pouquíssimas variações; b) considerando-se outros 17 grandes núcleos urbanos não-metropolitanos, a situação é mais ou menos assemelhada.56 56 FIBGE - “Indicadores Sociais para Áreas Urbanas”. 1970, pp. 11 e 79. Mesmo com todas as limitações que possamos impor à definição de urbano, esta é uma situação não-desprezível.

Essas estatísticas merecem uma qualificação. Se a informação se refere ao último local de origem com relação ao local de destino captado na pesquisa, é necessário ter-se em conta que o passo original do migrante pode ter sido dado no sentido do campo para a cidade menor e, posteriormente, para cidade maior. Não obstante esse ser um fator importante que possibilita melhor compreensão da problemática, o fato é que em cada situação específica faz-se mister a avaliação do seu peso nos fluxos migratórios com destino urbano, não cabendo decididamente a generalização.

Mesmo assim, há um ponto que deve ser objeto de averiguação empírica e analítica, que diz respeito aos inter-relacionamentos existentes entre os setores rurais e os urbanos estagnados relativamente e, portanto, expulsores de população. Se a estagnação desses centros urbanos decorre de uma estagnação ou modernização no setor rural ao qual eles se circunscrevem funcionalmente, devido às suas atividades e organização econômico-social estarem diretamente associadas àquelas atividades agrícolas, verifica-se então que de forma indireta a determinação do processo migratório urbano-urbano, ou rural-urbano, se consolida a partir das mudanças ocorridas no setor agrário.

Por fim, o importante a ser destacado é a necessidade de aprofundar a questão migratória em seus aspectos essenciais, buscando as suas determinações e consequências econômico-sociais, descartando a modelística que considera o problema apenas em suas manifestações mais transparentes.

  • 1
    Sjaastad, Larry A. “The Costs and Returns of Human Migration”. Journal of Political Economy, 70(5); 80-93, oct. 1962. Suplement. Tradução impressa em Moura, H. A. (org.) Migrações Internas. BNB-ETENE, 1980, pp. 117-143. Todaro, Michael P. “A Model of Labor Migration in Less Developed Countries. The American Economic Review, 59(1) 138-148, mar. 1969. Tradução impressa em Moura, H. A. (org.) op. cit., 147-171. Todaro, Michael P. e Harris, John R. “Migration, Unemployment and Development: Two-Sector Analysis”. The American Economic Review, 15.126-142, mar. 1970. Tradução impressa em Moura, H. A. (org.), op. cit., 175-209.
  • 2
    Sjaastad, op. cit., p. 124.
  • 3
    Ibidem, p. 124.
  • 4
    Ibidem, p. 125.
  • 5
    grifo nosso (A. F.).
  • 6
    Ibidem, p. 126. Grifado no original.
  • 7
    Ibidem, p. 130.
  • 8
    Ibidem, p. 133.
  • 9
    Ibidem, p. 133. Grifado no original.
  • 10
    Ibidem, pp. 140-143.
  • 11
    O que denominaremos modelo Todaro abrange as formulações de Todaro e Todaro/Harris. Ver citação bibliográfica na Nota 1.
  • 12
    Cf. Lewis, W. Arthus. “Economic Development with Unlimited Supplies of Labour”. Manchester School of Economic and Social Studies, V. (XXII), n. 2, 1954. Posteriormente na tradição neoclássica, Gustav Ranis e John c. h. Fei, no artigo “A Theory of Econornic Development”, The American Economic Review, V. (LI), n. (4), 1961, intentaram urna generalização formal do modelo Lewis. Desse modo, dada a convergência de certos resultados analíticos no que se refere à transferência de mão-de-obra do setor rural para o setor industrial-urbano, induziu a urna síntese que ficou conhecida na literatura corno Modelo de Desenvolvimento de Lewis-Fei-Ranis. Para urna explicação da mesma ver Todaro, M. Introdução à Economia, uma visão para o Terceiro Mundo. Editora Campus, 1979, tradução de Economics for Developing World, pp. 319-322.
  • 13
    Ver Todaro, “A Model...” op. cit., p, 152.
  • 14
    Ibidem, pp. 152-153.
  • 15
    O termo permanente, usado por Todaro, merece melhor qualificação. Somente poderemos entendê-lo como decorrência de postos de trabalhos específicos no processo de produção para uma dada divisão de trabalho, e não a vitaliciedade do emprego para o trabalhador. Mesmo assim, esse sentido de permanente é relativo, pois a evolução da divisão do trabalho impõe a destruição e a criação de postos e funções de trabalho.
  • 16
    Cf. Todaro, ibidem, p. 153.
  • 17
    Deixamos, aqui, de apresentar o modelo formal desenvolvido por Todaro, uma vez que não é objetivo deste trabalho discuti-lo, mas sim as suas ideias e conclusões fundamentais. O leitor interessado pode consultar o artigo de Todaro supracitado, pp. 156-165.
  • 18
    Ibidem, pp. 154-155.
  • 19
    Ibidem, pp. 160-162.
  • 20
    Vale esclarecer que os critérios de “preços-sombra” seriam aqueles que intentariam aproximar o salário efetivo do preço de escassez da força de trabalho.
  • 21
    Cf. Todaro e Harris “Migration ... “ op. cit.
  • 22
    Algebricamente tem-se que: Wu = Wm , onde Wu, salário esperado no meio urbano; Wm, salário-mínimo vigente; (Nm/Na), taxa de emprego no meio urbano. Se R é a fração de migrantes empregada no meio urbano, a migração adicional reduzirá de (1 - R) os ganhos de todos os migrantes já empregados. Ver Todaro e Harris, op. cit., pp. 198-199.
  • 23
    Cf. Todaro e Harris, op. cit., p. 200.
  • 24
    O fato de considerar um equilíbrio com o desemprego não exime a consistência ao instrumental neoclássico do modelo, vez que o conceito de “bem-estar” prevalecente está atrelado aos conceitos básicos de produtividade marginal nas funções de produção dos dois setores.
  • 25
    A argumentação que se segue, nesse sentido, está mais bem fundamentada em Ferreira, A. “A Dinâmica Recente da Expansão Industrial no Nordeste”. Revista Econômica do Nordeste, v. 14, n. 2, 1983, p. 223-230.
  • 26
    Cf. Todaro e Harris, op. cit., pp. 179-180. Deve-se aclarar que os autores fazem essa suposição tendo em conta, mais especialmente, a realidade da África Tropical.
  • 27
    Myrdal, G. “Teoria Econômica e Regiões Subdesenvolvidas”. Ed. Saga, 1965. Cap. 3
  • 28
    Ibidem, p. 53.
  • 29
    Vide Singer, op. cit., p. 39.
  • 30
    Essa classificação foi adotada por Oliveira, O. de. e Stern, C. numa síntese crítica de título: “Notas sobre a Teoria da Migração Interna. Aspectos Sociológicos”. Traduzido e impresso em Moura, H. A. de. (org.), “Migração Interna”, op. cit., p. 251-265.
  • 31
    Cf. Germani, G. “Sociologia da Modernização” (Tradução de ‘Sociologia de la Modernización’). Ed. Mestre Jou, 1974, p. 8.
  • 32
    Ibidem, p. 8.
  • 33
    Cardoso, F. H. e Faletto, E. “Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Ensaio de Interpretação Sociológica”. 4ª. ed. Zahar, 1977, p. 26-27.
  • 34
    Cf. Germani, op. cit., p. 189.
  • 35
    Cf. Germani, op. cit., p. 141 (grifo nosso).
  • 36
    Quijano, A. “Dependência, Mudança Social e Urbanização na América Latina” (tradução de ‘Dependência, Câmbio Social y Urbanización en Latinoamerica’). Revista Mexicana de Sociologia, v(30), n(3), 1968. Impresso em Almeida, F. L. (org.) A. Questão Urbana na América Latina. Forense Universitaria, pp. 10-59. Singer, P. “Migrações Internas: Considerações Teóricas sobre seu Estado ... “, op. cit.
  • 37
    Cf. Quijano, op. cit., p. 21.
  • 38
    Cf. Quijano, op. cit., p. 52.
  • 39
    Vide Quijano, op. cit., pp. 51-52.
  • 40
    A questão das chamadas “populações marginais” tem sido alvo de uma polêmica alentada na Sociologica latina-americana. Afora a bibliografia inicial sobre o assunto, como os textos de Nun, Quijano, e Cardoso, um excelente trabalho é o de Kovarick, L. “Capitalismo e Marginalidade na América Latina’’. Ed. Paz e Terra, 1977.
  • 41
    Vide Singer, op. cit., pp. 31-33.
  • 42
    Ibidem, p. 32.
  • 43
    Ibidem, p. 32.
  • 44
    Vale dizer que também é um posicionamento assumido por Germani. Vide Germani, op. cit., Cap, 5.
  • 45
    Singer, op. cit., p. 33.
  • 46
    Germani também considera as relações externas/internas induzindo a urbanização, porém não é esse o seu ponto de interesse analítico mais direto.
  • 47
    Cf. Singer, op. cit., p. 38.
  • 48
    Ibidem, p. 38.
  • 49
    Ibidem, p. 39.
  • 50
    Cf. Quijano, op. cit., p. 50.
  • 51
    Singer, op. cit., p. 40.
  • 52
    Chamamos a atenção para o fato de estarmos tratando, nos dois grupos, de fatores relacionados às condições gerais objetivas. Além desses, devemos relembrar a existência de fatores subjetivos, embora não os tratemos aqui.
  • 53
    Cf. Singer, op. cit., p. 43.
  • 54
    Ibidem, p. 43.
  • 55
    Para um estudo mais detalhado dessa questão, ver nosso trabalho denominado “Elementos Estruturais do Subemprego no Nordeste”. Revista Econômica do Nordeste, v. 12, n. 4, 1982.
  • 56
    FIBGE - “Indicadores Sociais para Áreas Urbanas”. 1970, pp. 11 e 79.
  • JEL Classification: B29; J61; J10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1986
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br