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A retomada da hegemonia norte-americana

The resumption of North American hegemony

RESUMO

Até 1980/81 não era razoável supor que os EUA pudessem reafirmar sua hegemonia sobre seus concorrentes ocidentais, nem que tivessem tentado passar para uma nova ordem econômica internacional e para uma nova divisão do trabalho que pudessem controlar. Hoje essa probabilidade é muito alta. Caso os EUA mantenham a atual política com o mesmo vigor até 1988, sem provocar um crash financeiro interno ou internacional, então completarão uma década de absorção de liquidez, capital e crédito do resto do mundo. Os EUA também alcançarão um crescimento de cinco anos às custas da relativa estagnação de seus concorrentes capitalistas mais importantes.

PALAVRAS-CHAVE:
Sistema financeiro internacional; economia política; hegemonia americana

ABSTRACT

Until 1980/81 it was not reasonable to suppose that the U.S.A. could be able to reaffirm its hegemony upon their Western competitors, neither they had tried to pass to a new international economic order and to a new labor division which they could control. Today this probability is very high. In case the U.S.A. keep the present policy with the same vigour until 1988, without causing an internal or international financial crash, then they will complete a decade of absorption of liquidity, capital, and credit from the rest of the world. The U.S.A. will also reach a five-year growth at the expense of the relative stagnation of their more important capitalist competitors.

KEYWORDS:
International finance system; political economy; American hegemony

Até 1980/81 não era razoável supor que os EUA conseguissem reafirmar sua hegemonia sobre seus concorrentes ocidentais e muito menos tentar transitar para uma nova ordem econômica internacional e para uma nova divisão de trabalho sob seu comando. Hoje essa probabilidade é bastante alta.

Até o final da década de 70, não era previsível que os EUA fossem capazes de enquadrar dois países que tinham uma importância estratégica na ordem capitalista: o Japão e a Alemanha. Se os EUA não tivessem conseguido submeter a economia privada japonesa ao seu jogo de interesses e se a política inglesa e alemã não fossem tão conservadoras, os EUA teriam enfrentado um bloco com pretensões europeias e asiáticas de independência econômica. Deve-se salientar que, àquela altura, os interesses em jogo eram tão visivelmente contraditórios que as tendências mundiais eram policêntricas e parecia impossível aos EUA conseguirem reafirmar sua hegemonia, embora continuassem a ser potência dominante.

Outras circunstâncias gerais que se tomaram manifestas na década de setenta pareciam colaborar para esta tese. O sistema bancário privado operava totalmente fora de controle dos bancos centrais, em particular do FED. O subsistema de filiais transnacionais operava divisões regionais de trabalho intrafirma, à revelia dos interesses nacionais americanos, e conduzia a um acirramento da concorrência intercapitalista que era desfavorável aos EUA. Em síntese a existência de uma economia mundial sem polo hegemônico estava levando à desestruturação da ordem vigente no pós-guerra e à descentralização dos interesses privados e regionais.

Os desdobramentos da política econômica interna e externa dos EUA, de 1979 para cá, foram no sentido de reverter estas tendências e retomar o controle financeiro internacional através da chamada diplomacia do dólar forte.

Como é do conhecimento geral, na última reunião do FMI em 1979, Mr. Volcker, presidente do FED, retirou-se da reunião, foi para os EUA e de lá declarou ao mundo que estava contra as propostas do FMI e dos demais países-membros, que tendiam a manter o dólar desvalorizado e a implementar um novo padrão monetário internacional. Volcker aduziu que o FMI poderia propor o que desejasse, mas os EUA não permitiriam que o dólar continuasse se desvalorizando tal como vinha ocorrendo desde 1970, em particular depois de 1973 com a ruptura do Smithsonian Agreement. A partir desta reviravolta de Volcker, os EUA declararam que o dólar se manteria como padrão internacional e que a hegemonia de sua moeda ia ser restaurada. Esta restauração do poder financeiro do FED custou aos EUA mergulharem a si mesmos e à economia mundial numa recessão contínua por três anos. Quebraram inclusive várias grandes empresas e alguns bancos americanos, além de submeterem a própria economia americana a uma violenta tensão estrutural. O início da recessão e a violenta elevação da taxa de juros pesaram decisivamente na derrota popular de Carter.

Olhando os acontecimentos retrospectivamente, pode-se afirmar que a política econômica do governo Reagan (que se seguiu a estes acontecimentos) não resultou absurda para os interesses nacionais americanos - como quase todos os economistas apregoaram quando de sua formulação - embora tenha ocasionado uma pressão verdadeiramente ‘’imperial” sobre o resto do mundo. Na verdade, trata-se de uma política extremamente contraditória que não decorreu de qualquer “conspiração internacional”, nem mesmo de um sólido acordo interno. Aliás não poderia haver acordo, quando o Tesouro americano tem uma política, o FED tem outra, o pessoal da Califórnia tem umas ideias, o pessoal do middle-west e da costa leste têm outras totalmente diferentes. Em resumo, como resultado de um intenso confronto de interesses e de conflitos internos, os EUA fizeram e continuam fazendo uma política de várias faces que implicou iniciar um processo de recuperação econômica cuja natureza peculiar era praticamente inimaginável no início da década de 80.

Com efeito, além do movimento de restauração do prestígio político e ideológico, Reagan resolveu fazer uma coisa nunca vista, a saber uma política Keynesiana bastarda, de cabeça para baixo, combinada com uma política monetária dura. Redistribuir a renda em favor dos mais ricos, aumentar o déficit fiscal e subir a taxa de juros é uma combinação de política econômica explosiva, tanto do ponto de vista interno como internacional. No entanto, esta política contraditória teve como resultado a recuperação econômica americana, na medida em que os EUA conseguiram submeter os seus parceiros a desafiar militar e economicamente os seus adversários.

Por outro lado, ao manter uma política monetária dura e forçar uma supervalorização do dólar, o FED retomou na prática o controle do sistema bancário privado internacional e articulou em seu proveito os interesses do rebanho disperso. De fato, esse sistema, a partir da reviravolta de Volcker, seguida da quebra da Polônia, foi obrigado em primeiro lugar a contrair o crédito quase que instantaneamente, estancando o ritmo das operações no mercado interbancário e sobretudo a expansão de crédito para os países da periferia. A redução dos empréstimos foi ainda mais violenta depois da crise do México, pois nessa ocasião o sistema bancário privado reagiu em pânico e refugiou-se nas grandes praças financeiras. A partir daí o movimento do crédito interbancário se orientou decisivamente para os EUA e o sistema bancário passou a ficar sob o controle do FED. E não apenas sob o controle da política monetária, que dita as regras do jogo, as flutuações da taxa de juros e do câmbio, mas também a serviço da política fiscal americana. A partir do início dos anos 80, todos os grandes bancos internacionais estão em Nova York, não apenas sob a umbrella do FED, mas também financiando obrigatoriamente - porque não há outra alternativa - o déficit fiscal americano.

Tudo isso pode parecer muito estranho. Mas a verdade é que hoje presenciamos a seguinte situação: os EUA apresentam um déficit fiscal de natureza estrutural cuja incompressibilidade decorre da própria política financeira e da política armamentista, ambas agressivas e “imperiais”. O componente financeiro do déficit é crescente graças à mera rolagem da dívida pública que fez com que ela dobrasse em apenas três anos. A dívida pública alcançou em 1984 cerca de um trilhão e 300 bilhões de dólares, cifra próxima à circulação monetária global no mercado interbancário internacional. Esta dívida é o único instrumento que os EUA têm para realizar uma captação forçada da liquidez internacional e para canalizar o movimento do capital bancário japonês e europeu para o mercado monetário americano.

Até 1981 só a política econômica da Inglaterra apoiava declaradamente a moeda americana. Os japoneses mantiveram possibilidades reais de fazer uma política monetária autônoma e resistiram à adoção de políticas neoconservadoras apoiadas no receituário monetarista. Vários outros países como a França, a Áustria, os do norte da Europa e até mesmo o Brasil tentaram resistir ao alinhamento automático da política econômica ortodoxa. Todos tiveram claro, de 1979 a 1981, que não deviam alinhar-se, mas apesar disso todos foram submetidos. Todos os países desenvolvidos do mundo, quaisquer que sejam seus governos - socialistas, socialdemocratas, conservadores etc. - estão praticamente alinhados em termos de política cambial, política de taxas de juro, política monetária e política fiscal. O resultado deste movimento é que o espectro das taxas de crescimento, das taxas de câmbio e das taxas de juro passou a ser concêntrico ao desempenho destas variáveis no âmbito da economia americana.

Todos os países foram obrigados, nestas circunstâncias, a praticar políticas monetárias e fiscais restritivas e superávits comerciais crescentes, que esterilizam o seu potencial de crescimento endógeno e convertem seus déficits públicos em déficits financeiros estruturais, inúteis para uma política de reativação econômica.

Uma experiência impressionante e mesmo dramática de alinhamento da política econômica ocorreu com o Japão. Este país foi durante todo o após-guerra o mais heterodoxo em matéria de política econômica. Fez investimento com crédito de curto prazo e uma política monetária solta, conglomerou o seu sistema empresarial com uma estrutura de risco aparentemente impossível, fez pouco uso do mercado de ações e da dívida pública, enfim, produziu o seu próprio modelo nacional de desenvolvimento. Tentou em 1975 um plano de ajustamento interno condizente com as suas potencialidades, mas foi forçado progressivamente a abrir mão de tudo isso e hoje está inteiramente submetido à dinâmica da economia americana. O Japão não está fazendo política de desenvolvimento autônomo de qualquer espécie, salvo de segurança interna mínima de sua sociedade. O Japão está com a maior parte de seu capital bancário e multinacional atado aos projetos de recuperação americana, com excedentes exportáveis gigantescos, sem possibilidade de retomar sua taxa de investimento e de crescimento histórica. Isso significa que o mercado financeiro japonês está irremediavelmente atrelado ao americano, salvo um acidente de percurso que poderá ocorrer entre 1985 e 1987, desde que o sistema bancário americano entre em turbulência e o dólar desvalorize bruscamente - o único ponto que ainda pode estar sujeito a uma possibilidade de ruptura capaz de desestabilizar a hegemonia americana.

Há algum tempo, tudo levava a crer que os EUA tinham perdido a capacidade de liderar o mundo de uma maneira benéfica. Isso continua a ser verdade. Mas por outro lado os americanos, indiscutivelmente, deram, de 1979 a 1983, uma demonstração de sua capacidade maléfica de exercer sua hegemonia e de ajustar todos os países, através da recessão, ao seu desideratum. E o fizeram, está claro, com uma arrogância e com uma violência sem precedentes.

A partir de 1984, segundo as próprias palavras da sua elite financeira, estão cobrando ao mundo uma nova divisão do trabalho e gabando-se de ser a “trade locomotive” da recuperação mundial.1 1 Ver Morgan Guarantee Trust, World Financial Markets, setembro de 1984.

Um aspecto fundamental desse processo de restauração da posição hegemônica dos EUA fica evidente quando analisamos as suas relações econômicas internacionais. Entre 1982 e 1984, os EUA conseguiram dobrar o seu déficit comercial a cada ano, o que juntamente com o recebimento de juros lhes permitiu absorver transferências reais de poupança do resto do mundo que só em 1983 corresponderam a cem bilhões de dólares, e em 1984 devem ter ultrapassado 150 bilhões. Por outro lado, suas relações de troca melhoraram e os seus custos internos caíram, já que as importações que os EUA estão fazendo são as melhores e as mais baratas do mundo inteiro. Assim, sem fazer qualquer esforço intensivo de poupança e investimento, sem tocar em sua infraestrutura energética, sem tocar na agricultura, sem tocar na velha indústria pesada, os EUA estão modernizando a sua indústria de ponta com equipamentos baratos de último tipo e capitais de risco do Japão, da Alemanha, do resto da Europa e do mundo.

A estrutura de comércio americana foi sempre simétrica e fechada. Os EUA exportavam e importavam matérias-primas, alimentos, insumos industriais e bens de capital, enfim, todos os itens importantes do comércio internacional. As relações econômicas dos EUA com o resto do mundo não podiam ser enquadradas dentro do esquema tradicional centro-periferia. Os EUA não precisavam de uma divisão internacional de trabalho que os favorecesse em termos absolutos ou relativos. O fato surpreendente é que agora estão querendo instaurar uma divisão internacional do trabalho em seu benefício exclusivo. Após terem exportado para o mundo, durante mais de duas décadas, o padrão tecnológico do sistema industrial americano através das suas multinacionais, usam o seu poder hegemônico para refazer a sua posição como centro tecnológico dominante. Assim utilizam-se dos seus bancos, do comércio, das finanças e do investimento direto estrangeiro, para fazer o redeployment, apesar de terem perdido a concorrência comercial para as demais economias avançadas e mesmo algumas semi-industrializadas.

Os EUA estão agora investindo fortemente no setor terciário e nas novas indústrias de tecnologia de ponta. Basta olhar a estrutura de investimentos em 1983 e 1984 para notar a concentração extrema de gastos em investimento nas áreas de informática, biotecnologia e serviços sofisticados. Os EUA não estão interessados em sustentar a sua velha estrutura. Sabem também que não têm capacidade de alcançar um enorme boom a partir de reformas nos setores industriais que lideraram o crescimento econômico mundial no pós-guerra. Ao contrário, os EUA estão concentrando esforços no desenvolvimento dos setores de ponta e submetendo a velha indústria à concorrência internacional dos seus parceiros.

Com os seus enormes déficits comerciais e a retomada do crescimento, garantem a solidariedade dos seus sócios exportadores, sobretudo Japão e Alemanha. Com as suas altas taxas de juros reais, garantem a solidariedade dos banqueiros. E, com as joint-ventures dentro dos EUA, garantem sua posição de avanço para o futuro; além de ajudar a recuperar sua economia nacional.

Um fato que deve ser salientado é que a recuperação da economia americana está sendo feita com crédito de curto prazo e com endividamento crescente. Na prática os americanos estão aplicando a mesma técnica que o Brasil e o México aplicaram recentemente e que o Japão utilizou na década dos cinquenta. Finalmente, os EUA descobriram a técnica latino-americana e japonesa de desenvolvimento: financiamento do investimento com base em crédito de curto prazo, endividamento externo e déficit fiscal. E como sua moeda é hegemônica e sobrevalorizada, a economia americana nem inflação tem. Aliás, este é um fato que deixa os economistas espantadíssimos, pois se valesse o que dizem os monetaristas ou os keynesianos, ou qualquer livro-texto tradicional, os EUA já estariam experimentando uma inflação galopante em virtude do fantástico empuxe de demanda promovido por uma técnica heterodoxa de política econômica.

Um exemplo desta heterodoxia diz respeito à política orçamentária. Os EUA praticamente estancaram o gasto em bens e serviços de utilidade pública, aumentaram o dispêndio no setor de armamentos e cortaram compensatoriamente os gastos com o welfare. Em síntese, trocaram as despesas de bem-estar social por armas e fizeram uma redistribuição de rendas em favor dos ricos. Além disso, reduziram a carga tributária sobre a classe média e praticamente eliminaram a incidência de impostos sobre os juros pagos aos bancos para compras de consumo durável. Propiciaram também depreciações aceleradas dos ativos e refinanciamento dos passivos de certas firmas. Nestas circunstâncias, o endividamento das famílias passa a ser um excelente negócio, porque parte da carga financeira da dívida é descontada no imposto de renda. Assim, tomou-se crédito de curto prazo em larga escala para dar suporte à compra de casas e bens duráveis de consumo. Além disso financiaram investimentos, no terciário e na indústria de ponta, que não requerem um período de maturação muito longo e cuja taxa de rentabilidade esperada é muito superior à taxa de juros nominal, em declínio. Este declínio da taxa de juros se deve aparentemente a três motivos interligados: a absorção de liquidez internacional, a posição menos ortodoxa do FED e a queda da inflação. Esta última por sua vez se deve à baixa de custos internos provocada pela sobrevalorização do dólar e pela concorrência das importações, acarretando uma melhora nas relações de troca favorável ao poder de compra dos salários.

Muitos esperavam que a partir de 1983 os EUA reverteriam a posição superavitária final do balanço de pagamentos, pois desde 1982 as rendas de capitais americanos no exterior não vêm cobrindo o déficit americano em transações correntes. Mas isso não ocorreu porque as entradas de capital estrangeiro se encarregam de fazer amplamente esta cobertura. O investimento em capital de risco também tem aumentado. Somente o Japão, por exemplo, investiu 10 bilhões de dólares no período de recuperação e já projetou investir 40 bilhões até o final da década. A Alemanha, por seu lado, deve ter investido algo em torno de 8 a 9 bilhões, embora não tenhamos os dados precisos sobre seu montante. Em suma, toda a Europa e o Japão estão investindo nos EUA; enquanto estes últimos fizeram retornar parte dos capitais das filiais de multinacionais americanas que não têm capacidade de expansão adicional no resto do mundo. Afinal, enquanto a periferia está estancada e o resto do mundo cresce a 1 ou 2%, os EUA estiveram crescendo à taxa de 7 a 8% no último ano e meio.

Apoiados neste enorme afluxo de capitais, os EUA puderam manter e ampliar uma brecha comercial cujos limites não são ainda visíveis. De 30 bilhões em 1982 passou a 60 bilhões em 1983 e saltou para mais de 120 bilhões em 1984. No ano que vem pode atingir 200 bilhões e poderia continuar aumentando, se não fosse pela desaceleração deliberada da economia americana, simplesmente porque há capital sobrando no mundo. E este excesso de capital e de “poupança externa” se deve a que o resto do mundo obedeceu à política conservadora, fosse qual fosse o tipo de governo. Na verdade, a sincronização das políticas ortodoxas obrigou todos os países a manter em níveis baixos suas taxas de investimento e de crescimento e a forçar as exportações. Como um reflexo do ajuste forçado, todos os países do mundo estão experimentando superávits no balanço comercial. Todos menos um: os EUA.

Eles abrem sua economia e ao fazê-lo provocam uma maciça transferência de renda e de capitais do resto do mundo para os EUA. Um aspecto muito importante é que isto permite fechar o déficit estrutural financeiro do setor público. Tudo se passa como se cada vez que o FED joga títulos de dívida pública no mercado, ele tivesse certeza de que os títulos serão colocados em todas as estruturas bancárias e junto a todos os rentistas do mundo. O fato essencial é que todo o mundo está financiando não apenas o Tesouro americano, especialmente seu componente financeiro, mas também os consumidores e investidores americanos. Desta vez, e ao contrário da década de 70, ocorreu transferência de “poupança real” e não apenas de crédito, liquidez ou capital especulativo.

Outra questão que deve ser esclarecida diz respeito à influência da taxa de juros sobre o investimento. Muita gente afirma que o elevado patamar de taxa de juros real vai acabar, cedo ou tarde, freando o gasto em investimento. Eu quero advertir que os americanos não estão financiando o investimento através do mercado de capitais. Não há mercado de capitais novos; o mercado relevante hoje é o monetário. Os americanos, vale reafirmar, estão substituindo o tradicional endividamento de longo prazo (através da emissão de debêntures, equities etc.) por crédito de curto prazo ou utilizando recursos próprios e capital de risco. Por outro lado, está claro que esta situação põe em risco muitas companhias velhas e o valor de suas ações e debêntures. Se uma grande companhia quiser lançar, como várias tentaram fazer recentemente, alguns bilhões em papéis no mercado de debêntures, em uma semana esta mesma companhia estará obrigada a recomprá-los, pois, caso contrário, o valor das ações certamente irá cair. Vale dizer, o único risco real que os EUA estão correndo é o de sofrer uma desvalorização brutal das velhas empresas cujas ações estão cotadas a um valor distinto do efetivo. Diga-se de passagem, todos os grandes bancos que se envolveram com investimentos nos ramos produtivos ‘’velhos”, ou em energia e agricultura, passaram e ainda passam por sérios problemas. A quebra técnica do Continental Illinois é um exemplo claro disto. De outra parte, todos aqueles que investiram na Califórnia, no Silicon Valley, nos serviços, estão em situação extremamente favorável.

Retomando o argumento principal, não há mais mercado de capitais stricto sensu nos EUA. O mercado relevante tem sido o de dinheiro. O open market e overnight deles não é menos louco do que o nosso embora seja uma loucura controlada pelo FED e não a loucura ‘’invertida” brasileira. A dívida pública deles não é menos louca do que a nossa, mas é “proveitosa” já que está sendo financiada através da corrida de todos os capitais bancários do mundo para os EUA, o que obviamente já não ocorre com a nossa dívida pública. Assim, enquanto nós estamos obrigados a resolver o problema interno do financiamento público à custa da inflação e da elevação dramática dos juros internos, os EUA já não sofrem qualquer pressão neste sentido. Os seus juros podem baixar desde que mantenham um ligeiro diferencial com os países europeus. Pode-se assim dizer, à luz dos acontecimentos no início deste ano, que a “confiança” no dólar advinda da vitória de Reagan e da “solidariedade forçada dos banqueiros internacionais” é difícil de sofrer abalos. Assim, a desvalorização do dólar, mesmo com uma política monetária mais frouxa do FED e com o aumento do déficit americano, não ocorreu. Pelo contrário são os bancos centrais europeus que se dedicam desde fins de 1984 a tentar evitar a desvalorização das suas próprias moedas. A Inglaterra acaba de pagar os seus serviços prestados aos EUA, sofrendo a maior desvalorização da libra em uma semana.

Os EUA não precisam resolver seu problema de financiamento interno enquanto a taxa de crescimento dos países europeus for inferior à taxa de crescimento americano, pois não há a menor possibilidade de os capitais do resto do mundo resolverem investir preferencialmente nos seus países de origem enquanto estes não retomarem taxas de crescimento sustentada. Até agora estão investindo preferencialmente nos EUA, enquanto as políticas nacionais destinam-se exclusivamente a segurar as estruturas produtivas industriais e, no caso do Mercado Comum Europeu, também as estruturas produtivas de alimentos. Os países da Europa não formularam, desde o ajuste recessivo, qualquer plano para restaurar solidamente o seu crescimento econômico global. Apenas jogaram individualmente e tentaram proteger-se para que o Japão não invadisse mais os seus mercados. Mas ao mesmo tempo em que a concorrência intercapitalista se acentua no resto do mundo, opera-se um fantástico aumento de eficiência das indústrias modernas no Japão e em alguns países da Europa. E, como já vimos anteriormente, os EUA estão aproveitando esta situação para modernizar sua estrutura produtiva às custas do resto do mundo, inclusive da periferia latino-americana que já transferiu nos últimos anos quase 100 bilhões de dólares entre juros e perda das relações de troca.

A resposta europeia e japonesa tem sido forçosamente de “aliança” com os EUA; mas o seu destino de longo prazo como “periferia” do “centro” está por ver-se.

A arrogância com que o relatório Morgan considera como área privilegiada de interesse americano e sua “base ampliada no Pacífico”, que inclui Canadá, México, Japão e os NIC’s asiáticos, está preocupando seriamente a Europa. Esta continua paralisada, por razões de segurança, pelas relações estratégicas de alinhamento automático com os EUA e por razões econômicas devidas à sua própria incapacidade de fazer uma política econômica comum, a começar pela monetária. A Inglaterra e a Alemanha, cada uma a sua maneira, jogaram um papel decisivo na derrota dos projetos da socialdemocracia europeia e a França socialista sucumbiu melancolicamente em seus projetos nacionais.

Esperamos que quando reagirem politicamente não seja tarde e não estejam condenados ao papel de segunda periferia dos EUA.

Caso os EUA consigam manter a atual política com o mesmo vigor até 1988, sem provocar um crash financeiro interno ou internacional (possibilidade que se torna cada vez mais remota), terão então completado uma década - de 1978 a 1988 - de absorção de liquidez, capitais e crédito do resto do mundo. Terão alcançado também um quinquênio de crescimento à custa da estagnação relativa dos seus competidores capitalistas mais importantes. Terão financiado a modernização do terciário e a remodelação do seu parque industrial aproveitando as “economias externas” do resto do mundo. Assim a retomada da hegemonia terminou convertendo finalmente a economia americana numa economia cêntrica e não apenas dominante. Qualquer semelhança com a Inglaterra do século XIX é mera analogia sem fundamento, dado o peso continental dos EUA e a existência da União Soviética.

Os problemas estruturais que os EUA têm ainda por resolver dizem respeito ao reajuste da sua infraestrutura básica, que não pode ser efetuado com dívidas e capital de curto prazo. Isso requer um processo prévio de consolidação bancária e de reestruturação da dívida interna americana. Ao lado do volume da dívida americana e do seu déficit fiscal, as dívidas do 3º. Mundo são uma gota d’água.2 2 Aliás uma das possíveis explicações para a mudança de Solomon e Volcker em relação à capitalização dos juros dos países devedores da periferia (com a qual pareciam estar de acordo até julho do ano passado) pode dever-se ao medo de uma mudança nas regras do jogo que termine rebatendo fortemente em casa. Perdemos a iniciativa e a capacidade de “chantagem” sobre os bancos americanos em 1982. Caso a reciclagem da estrutura financeira venha a ocorrer, e somente então, os EUA poderão deixar o dólar deslizar outra vez. Se o dólar desvalorizar antes que isso ocorra, haverá obviamente uma fuga maciça de capitais e, em consequência, o sistema financeiro americano poderá quebrar. Por isso é que, a menos que não o possam evitar, os EUA não devem permitir que o dólar desvalorize substantivamente pelo menos até 1988.

Se forem confirmadas estas hipóteses, e os EUA não mudarem as relações do FED e do Tesouro com os bancos, o Brasil e os demais países latino-americanos estarão condenados a renegociar a dívida externa ano após ano, se não tomarem providências individuais e coletivas de cooperação para enfrentar este estado de coisas. Em qualquer hipótese o Brasil se verá forçado a pagar pelo menos em parte os juros devidos aos banqueiros internacionais e a tentar capitalizar a outra parte. O esforço exportador que vem acontecendo nos anos recentes não é novidade, mas está seguindo um padrão inteiramente distinto daquele que prevaleceu até 1978.

Com efeito, na década de 1970, especialmente no período de endividamento caótico, que se iniciou em 1977, o Brasil fez um enorme esforço de exportação, tendo diversificado sua estrutura de comércio exterior. Neste período, a balança comercial brasileira era superavitária com relação à América Latina, África e área socialista, e deficitária unicamente com os países do Oriente Médio. Com relação aos EUA e Europa, a posição comercial brasileira era relativamente equilibrada até 1978. Deste ano para cá, começamos a enfrentar uma violenta desestabilização nos mercados internacionais de moedas não conversíveis que nos obrigou, especialmente a partir de 82, a mudar inteiramente a estrutura de comércio. Passamos à condição de superavitários em escala crescente com os EUA e com a Europa, e estamos mais ou menos com a balança comercial equilibrada com o resto das áreas para as quais exportamos, além de estarmos fazendo um violento esforço de substituição de petróleo.

Se os EUA querem que paguemos a conta de juros, devem deixar que o Brasil acumule um superávit comercial equivalente ao montante de juros devidos. Na verdade, isto não está ocorrendo, pois nós estamos mantendo um superávit com os EUA superior à remessa de juros aos banqueiros americanos, embora inferior aos pagos ao conjunto do sistema bancário internacional. Isto é evidentemente uma situação insustentável, tanto para nós quanto para os banqueiros europeus. Quando o nosso superávit com os EUA deixar de crescer por força da desaceleração da economia americana e o crescimento do superávit com a Europa e o Japão não acompanhar compensatoriamente (dadas as suas baixas taxas de crescimento, protecionismo e a valorização contínua do dólar), só restará ao Brasil a alternativa de negociar duro. Mesmo uma política conservadora e recessiva será inútil dados os baixos nível e coeficiente de importações já alcançados.

Evidentemente que o problema do protecionismo permanece como uma fonte importante de conflito, mas os EUA estarão dispostos a ceder até o limite do que precisemos pagar em juros devidos aos seus banqueiros. Ainda assim dificilmente conseguiremos manter um superávit com os EUA superior ao montante global de juros. Se renegociarmos a dívida e a quantidade de juros a ser paga for menor, então, automaticamente, o superávit deverá também ser menor. Quer dizer, as perspectivas de crescimento das exportações dependem de uma tenaz: as condições de renegociação da dívida e o protecionismo americano e europeu. Em suma, temos estado inteiramente submetidos à política econômica americana em matéria de política de exportação, política cambial e política de dívida especificamente.

Por este motivo a política cambial tem sido feita nos últimos dois anos desconsiderando inteiramente a estrutura dos preços das exportações e o seu efeito sobre a inflação e as relações de troca. O Brasil tem feito desvalorizações cambiais além do que precisa, em termos das suas estruturas de preços internos, exclusivamente para concorrer. Ao contrário do que se tem dito, nós estamos, em termos da estrutura interna de custos das exportações, desvalorizando excessivamente e por isso perdendo nas relações de troca. Ou seja, estamos uma vez mais sendo forçados a fazer o contrário dos Estados Unidos.

Os EUA não vão (nem podem) abrir mão da relação especial que mantêm com o Japão, Alemanha, Canadá e México, pois trata-se de espaços econômicos e políticos que precisam controlar de alguma maneira. Na minha opinião os países do Cone Sul não são importantes para a estratégia de crescimento e de comércio americano. No caso do Brasil, em alguns mercados somos supridores de segunda linha de produtos agrícolas, nos espaços abertos pelas flutuações cíclicas da oferta americana. É aí que a concorrência será mais acirrada e originadora de conflitos, se pretendermos manter nossa posição no mercado internacional a longo prazo. Têxtil, calçados, metalurgia e máquinas são setores nos quais teremos de enfrentar a disputa dos demais países pelo mercado americano. Do ponto de vista do investimento direto americano, os setores “cobiçados” já foram pública e reiteradamente anunciados. Eles têm interesse prioritário nos setores de informática, bancos e armas que são os setores sobre os quais querem manter uma hegemonia incontestável e os que apresentam maiores possibilidades de expansão a longo prazo, para os capitais americanos já sediados no país.

Fora estas áreas “contenciosas”, que podem continuar a ser levadas com competência pelo Itamarati, o que resta é saber se o Brasil é capaz de comportar-se como um “devedor soberano” e renegociar a sua dívida externa sem ceder nos seus interesses e sem criar falsas “chantagens” psicológicas, irrealizáveis na prática, e que deixariam ainda mais frustrada a nossa população. O que é intolerável, porém, é não reconhecer o nosso direito à sobrevivência e a nossa capacidade de autodeterminação, a pretexto de “alinhamentos automáticos”, falsas hipóteses sobre a importância do Brasil e sua relação preferencial com os EUA.

A chamada “arrogância ingênua do nacionalismo caboclo” está desaparecendo, apesar dos esforços dos conservadores para reavivá-la como espantalho. País soberano é aquele que reconhece a realidade mundial, mas não se deixa intimidar por ela, fazendo escolhas corretas e negociando com seriedade e responsabilidade, tentando superar os limites do Presente para abrir espaço ao Futuro.

  • 1
    Ver Morgan Guarantee Trust, World Financial Markets, setembro de 1984.
  • 2
    Aliás uma das possíveis explicações para a mudança de Solomon e Volcker em relação à capitalização dos juros dos países devedores da periferia (com a qual pareciam estar de acordo até julho do ano passado) pode dever-se ao medo de uma mudança nas regras do jogo que termine rebatendo fortemente em casa.
  • JEL Classification: F34; P10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1985
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