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Observações preliminares sobre a estratégia econômica do novo governo brasileiro* * Trabalho apresentado em reunião sobre “A Política dos EEUU em relação aos Países Industriais Emergentes”, do Conselho de Política Econômica, da Associação para as Nações Unidas dos Estados Unidos da América, em Nova York, no dia 26.09.1985. * * Tradução do inglês de Marília de Almeida March, revista pelo autor.

Preliminary remarks on the economic strategy of the new Brazilian government

RESUMO

Pela primeira vez em 21 anos, o Brasil tem um governo civil. Este trabalho tem como objetivo analisar os desafios a serem enfrentados pelo Governo Sarney e as estratégias que sua equipe está propondo para enfrentá-los.

PALAVRAS-CHAVE:
Política econômica; ciclo político

ABSTRACT

For the first time in 21 years, Brazil has a civil government. This paper aims to analyze the challenges to be faced by the Sarney Government and the strategies its team is proposing to tackle them.

KEYWORDS:
Economic policy; political cycle

1. INTRODUÇÃO

A ascensão ao poder, no início deste ano, do primeiro governo civil em 21 anos, foi um evento marcante na história política do Brasil. A transição do regime militar para o civil foi surpreenden­temente pacífica. Após o fracasso de uma emenda constitucional para instituir eleições presidenciais diretas, que não obteve no Congresso a maioria de dois terços requerida, dois civis competiram, em janeiro, pelos votos de um Colégio Eleitoral, manipulado para facilitar a vitória do candidato do partido do governo. Na verdade, uma cisão desse partido em três facções - paralelamente a uma cisão semelhante entre os militares - garantiu, por uma margem considerável, a eleição de Tancredo Neves como Presidente (nomeado pelo principal partido da oposição) e José Sarney como Vice-Presidente (nomeado pelo principal grupo resultante da cisão do partido do governo).

Numa reviravolta que surpreenderia ·até mesmo os habitantes de Macondo de Garcia Marques, Tancredo Neves foi hospitalizado na véspera de sua posse e faleceu 40 dias depois. José Sarney passou, então, a presidir o complexo esquema político que havia sido composto por Tancredo Neves, para garantir sua ascensão ao poder - sendo que o problema consistia no fato de que a manutenção desse esquema supunha o comando do político-mestre, representado pela figura de Tancredo Neves.

Como se não bastasse essa delicada situação política, José Sarney herdou dos militares uma situação econômica extremamente difícil: um coeficiente de investimento fixo global ligeiramente acima de 15% PIB, um acordo em suspenso com o FMI, e uma taxa de inflação anualizada de aproximadamente 300% nos primeiros três meses de 1985.

O presente trabalho está organizado da seguinte forma: a seção 2 desenvolve o argumento de que os problemas financeiros internos atuais - isto é, baixos coeficientes de investimento e altas taxas de inflação e déficits do setor público - são, em parte, consequência de um ajustamento bem-sucedido da economia brasileira às crises externas do início da década dos 80; a estratégia econômica do Primeiro Plano de Desenvolvimento Nacional da Nova República, recentemente publicado, é resumida na terceira seção; uma breve exposição das perspectivas para o país no futuro próximo conclui o trabalho.

2. AJUSTAMENTO EXTERNO, DESAJUSTAMENTO INTERNO

É emitida, frequentemente, a opinião de que o Brasil realizou um maravilhoso trabalho de ajustamento de suas contas externas após 1982, mas que fracassou, desventuradamente, na tarefa de colocar a casa em ordem. À primeira vista, as estatísticas disponíveis parecem apoiar essa ideia. Em 1982, o Brasil apresentou um superávit comercial de USS 780 milhões, que chegou a USS 6,5 bilhões em 1983 e a USS 13 bilhões em 1984 (em 1985, o superávit estimado é de USS 12 bilhões). Em consequência disso, um déficit de USS 14,8 bilhões em conta corrente, em 1982, transformou-se num superávit de USS 500 milhões, em 1984. Da mesma forma, as reservas internacionais brutas, que se mantinham em USS 4 bilhões em dezembro de 1982, subiram para USS 11,6 bilhões em junho de 1985.

Entretanto, as taxas de inflação do final do ano dispararam de 103% em 1982, para 165% em 1983, e para 209% em 1984 (em 1985, a taxa de inflação esperada é de 220%). Da mesma forma, o coeficiente do déficit do setor público em relação ao PIB elevou-se de 15,8% em 1982, a 20,9% em 1983 e a 23,3% em 1984 (espera-se, em 1985, um valor semelhante a esse último).1 1 As taxas de inflação são medidas pelo índice do IBGE de preços ao consumidor amplo (IPCA); os déficits do setor público são medidos pelo conceito de necessidades de financiamento do setor público (NFSP) do FMI - os dados de 1982 podem não ser comparáveis tom os dos últimos anos. Deve-se observar, também, que o coeficiente do NFSP em relação ao PIB é uma função crescente da taxa de inflação, pela simples razão de que o numerador é calculado como a diferença entre os valores, de finais de anos sucessivos, das obrigações não-financeiras do setor público, cuja maior parte é continuamente reavaliada de acordo com as taxas de inflação observadas.

A partir dessas evidências, conclui-se, frequentemente, que o Brasil só realizou a metade do ajustamento necessário, precisando, agora, proceder à outra metade; e que a comunidade internacional podia ajudar, e realmente ajudou, enquanto o problema era o desequilíbrio externo. Segundo este raciocínio, a questão, agora, é puramente interna e deve ser solucionada por meios internos, sem necessidade de apoio externo.

Essa interpretação é apenas parcialmente correta, pois os males internos atuais são, em grande proporção, uma consequência do bem-sucedido ajustamento externo, realizado pela economia brasileira desde 1982.

Consideremos, em primeiro lugar, a questão da inflação. Este é um fenômeno crônico no Brasil, uma parte tão importante de sua atual vida econômica, quanto os grãos de café o foram no passado. O que mais impressiona, em termos de inflação brasileira, não é o fato de ser tão elevada, mas o de não crescer rapidamente, como a curva de Phillips e a hiperinflação alemã nos levariam a acreditar. Na verdade, a maioria dos economistas, hoje, está convencida de que a inflação do país tem uma relação pouco significativa com as teorias de excesso de demanda, tanto do tipo monetarista como do keynesiano. Após uma série de tentativas frustradas, no sentido de controlar a inflação brasileira através de contenção monetária, os relatórios mais recentes sobre o país, elaborados pela equipe do FMI, reconhecem, finalmente, que a contratação da demanda no Brasil é um meio ineficiente para reduzir a inflação, em virtude dos esquemas de indexação retrospectivos, amplamente adotados, que caracterizam a maior parte dos contratos nominais do país.

O que os economistas do FMI ainda não perceberam é que o problema é gerado, não pelas fórmulas de indexação estabelecidas pelo governo, porém, mais significativamente, por uma miríade de esquemas informais de indexação, concebidos, após um longo período de aprendizado, por agentes econômicos racionais, que são obrigados a atuar em um contexto de inflação crônica. Em tal situação, a razão mais importante pela qual a inflação, hoje, é de 200% ao ano, consiste no fato de que, no ano passado, ela foi de 200% ao ano.

A liquidez tem de vir de algum lugar e, habitualmente, vem do déficit orçamentário do governo. Mas este, em geral, tende a se expandir passo-a-passo com a inflação, pela simples razão de que tanto os impostos como as despesas do governo tendem a crescer de maneira uniforme, quando os preços disparam. Assim, a partir de uma situação com déficit positivo, a base monetária tende a acompanhar, passivamente, os altos e baixos da taxa de inflação, determinados pelos choques de oferta e as práticas de indexação.

A experiência nos mostra que a inflação, no Brasil, se eleva gradativamente. De 1968 a 1973, a inflação se estabilizou em 20% ao ano. Como resultado da primeira crise do petróleo, a inflação subiu para 40%, no período 1974/79. A segunda crise do petróleo, juntamente com a maxidesvalorização de dezembro 1979, estabeleceu um novo patamar de inflação de 100% ao ano, no período 1980/82. Por fim, a maxidesvalorização de fevereiro 1983 fez que a inflação atingisse os 200% ao ano, no período 1983/85.

Com excessiva simplificação, é possível descrever, em poucas palavras, os mecanismos subjacentes a esta evolução. A indexação é amplamente praticada, mas não é perfeita. Os salários, em especial, se mantêm regulados pela regra de indexação retrospectiva de 100% a intervalos fixos (atualmente, os salários são reajustados a cada 6 meses, de acordo com os aumentos do custo de vida nos 6 meses anteriores, com uma defasagem de observação de 2 meses; em qualquer mês, cerca de 1/6 da folha de salários do setor privado requer reajuste). Os preços respondem, imediatamente, às pressões internas sobre preços de importação e salários. A taxa de câmbio é desvalorizada diariamente de acordo com a taxa de inflação mensal corrente. Essas minidesvalorizações são, às vezes, substituídas por uma mididesvalorização ou, mais raramente, por uma maxidesvalorização (como em dezembro de 1979 e em fevereiro de 1983). É o ajustamento defasado de salários que faz com que a inflação salte para um novo patamar - em vez de aumentar continuamente - quando ocorre um choque de preços de importação, causado pela OPEP ou por uma maxidesvalorização.

Maxidesvalorizações são inflacionárias, porém funcionam. Os custos sobem, mas a rentabilidade relativa da exportação e da substituição de importações aumentam. O Brasil industrializado reage, como se espera, através da expansão das exportações e da substituição de importações. A balança comercial se recupera às custas de um patamar inflacionário mais elevado. Essa tem sido a experiência do Brasil desde os meados da década dos 60, documentada na literatura econométrica pertinente. Conclui-se que a inflação saltou de 100 para 200% ao ano, em consequência, principalmente, da maxidesvalorização de fevereiro de 1983, que foi imposta ao governo pela necessidade de se produzirem os megassuperávits da balança comercial nos períodos subsequentes.

Consideremos, em segundo lugar, a questão da baixa taxa de investimento fixo do Brasil. O país é moderno, mas não totalmente industrializado. O investimento fixo requer importações complementares. O que não acontece com as despesas de consumo. Quando o investimento se reduz, a demanda interna cai, mas não tanto como quando se cortam as despesas de consumo. Parte da redução da demanda de investimento se traduz em menor importação de bens de capital. Assim, a contratação do investimento é um meio mais eficiente para. restabelecer a balança comercial do que o corte do consumo, por melhor proteger a produção interna e os níveis de emprego. Cortar investimento é, também, politicamente mais fácil do que cortar consumo. Portanto, não há surpresa no fato de que, no Brasil, assim como em outros países da América Latina, foi a demanda de investimento que sofreu o golpe do ajustamento, em resposta à escassez de moeda estrangeira no início da década dos 80. De 1982 a 1985 (estimativa do Banco Central do Brasil), o investimento fixo caiu de 21,2 para 14,4% do PIB.

Consideremos, finalmente, o déficit do setor público, que apresenta várias facetas. O governo brasileiro, sem dúvida, gasta muito e mal, como fazem os governos habitualmente, tanto no Sul como no Norte. Mas a despesa do governo, como tal, vem sendo significativamente reduzida nos últimos anos. Em cruzeiros constantes de 1984, as despesas governamentais federais caíram de 37,7 trilhões em 1982, para 33,8 trilhões em 1984. Excluindo-se o serviço da dívida e as transferências para estados e municípios, os gastos reduziram-se mais ainda: de 27,6 trilhões em 1982, para 20,8 trilhões em 1984. Um quadro semelhante se apresenta em relação às empresas estatais federais. Sua despesa total, em cruzeiros de 1984, caiu de 90 trilhões em 1982, para 87,5 trilhões em 1984. Excluindo-se o serviço da dívida os gastos das empresas estatais decresceram de 82 para 77 trilhões no mesmo período.2 2 Os dados constam das Tabelas 1 e 2 do “Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República”, Brasília, setembro 1985.

Não se dispõe, infelizmente, de uma série uniforme das despesas fiscais que aparecem no. chamado Orçamento Monetário (que é uma agregação das contas do Banco Central e do Banco do Brasil). É nesse orçamento que se lida com a maior parte do serviço da dívida do setor público, tanto a interna como a externa. O total das necessidades de financiamento do setor público, calculadas pelo FMI, também não servem, pois não fornecem uma separação adequada entre serviço da dívida e despesas não-financeiras. Portanto, nesse ponto, o argumento seguinte não poderá ser documentado apropriadamente; mesmo assim, vale a pena mencioná-lo.

Já há alguns anos, o governo brasileiro vem oferecendo ao setor privado a oportunidade de pagar adiantado suas dívidas externas, através do depósito de uma quantia equivalente em cruzeiros, em uma conta especial no Banco Central. Existem, também, facilidades junto às autoridades monetárias, para fornecer crédito interno a empresas privadas, ansiosas de se livrarem de dívidas em moeda estrangeira. A tendência a usar essas facilidades aumentou enormemente após 1982, uma vez que a desvalorização real do cruzeiro elevou, de forma significativa, o custo da dívida externa. Assim, os depósitos de moeda estrangeira nas autoridades monetárias eram iguais à base monetária, em dezembro de 1982; nos meses subsequentes, o coeficiente entre eles foi-se alterando acentuadamente. Durante o segundo semestre de 1984, os depósitos de moeda estrangeira nas autoridades monetárias tornaram-se quase o triplo da base monetária. Uma vez que uma empresa privada deposita nas autoridades monetárias o equivalente em cruzeiros a sua dívida externa, o governo brasileiro perde a oportunidade de se financiar através do imposto inflacionário. Na verdade, o governo negocia, com o setor privado, um passivo em cruzeiros livre de juros, por um passivo em dólares sujeito a juros. Ao promover crédito interno a juros mais baixos, para substituir a dívida externa privada, o governo perde uma receita futura no montante do diferencial negativo de juros, envolvido nessa operação de intermediação financeira. Em ambos os casos, o orçamento do governo fica sobrecarregado por novas obrigações financeiras dispendiosas, enquanto aumenta, por outro lado, o patrimônio líquido do setor privado. Essa socialização das perdas privadas conseguiu manter, quase intacta, a sanidade financeira do setor privado no Brasil, sendo, entretanto, também responsável por um aumento significativo do déficit do setor público em 1983/85.

Portanto, a maxidesvalorização de fevereiro de 1983 atingiu as contas do setor público, não só por este já possuir a parte do leão da dívida externa do país, mas também por ter nacionalizado uma parcela considerável da dívida externa do setor privado.

Por fim, foi dramática e rápida demais a supressão do acesso do país ao mercado financeiro internacional. Em 1982, a poupança estrangeira representava 5,7% do PIB do Brasil; dois anos depois, era praticamente nula. O governo tentou ajustar sua despesa, como vimos, mas isso não foi suficiente. Além do custo real mais elevado da dívida externa, em cruzeiros, os impostos foram corroídos pela recessão, enquanto os preços do setor público se mantiveram baixos para evitar uma sobrecarga de custos para o setor privado. O emprego no setor privado também caiu; consequentemente, a pressão sobre o emprego no setor público aumentou significativamente. No final das contas, os déficits orçamentários não diminuíram como seria necessário, e não puderam ser financiados pelo exterior. Em vez de jogar sua rede no mar dos mercados financeiros internacionais, o governo se viu forçado a pescar nos pequenos lagos do mercado financeiro interno. As taxas de juros internas explodiram, o setor privado foi deslocado e uma situação financeira insustentável tornou-se evidente, quando o governo se mostrou incapaz, nos três últimos meses de 1984, de continuar arrochando os salários do setor público como um meio de controlar seus déficits,

Estima-se que, em 1985, o governo Federal estará pagando USS 12 bilhões de juros sobre suas dívidas internas e externas. Isso equivale à metade do total de sua receita tributária. O fato de a despesa não-financeira não ser maior que a própria receita tributária é de pouca utilidade, exceto para garantir que o crescimento do valor real das obrigações não-monetárias do governo não ultrapasse a taxa de juros real.3 3 Se as obrigações monetárias se mantiverem constantes, a taxa de crescimento das obrigações não-monetárias será exatamente igual à taxa de juros. A seriedade do problema orçamentário do governo federal resulta do fato de que as taxas de juros internas reais flutuam em torno de 15-20% ao ano. Assim, a taxa de crescimento das obrigações não-monetárias do governo torna-se facilmente mais elevada do que as taxas de crescimento previstas do PIB do país.

3. O PRIMEIRO PND/NR: ESBOÇO DE UMA ESTRATÉGIA ECONÔMICA

Foi neste contexto crítico que o governo federal submeteu, recentemente, ao Congresso, o Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República (PND/NR). Este documento é bem diferente dos documentos de planejamento tradicionais da América Latina: não planeja o investimento público nem apresenta diretrizes para o investimento privado. Ao contrário, trata-se de um plano de ajustamento das contas governamentais, e de uma mudança radical dos gastos do governo em benefício de programas de erradicação da pobreza.

O Plano parte do pressuposto de que, após anos de substituição de importações, sob a égide do setor público, o setor privado brasileiro, agora, se encontra forte bastante para assumir o comando de uma recuperação econômica sustentável, uma vez que três obstáculos financeiros sejam tratados, a saber, o déficit do setor público, a dívida externa e a taxa de inflação. Reconhece-se, também, uma ligação íntima entre esses três obstáculos, ao longo da seção anterior; propõe-se, portanto, um ataque simultâneo.

O Plano trata, essencialmente, de duas identidades básicas: a restrição orçamentária do governo e o equilíbrio do balanço de pagamentos. Essas duas identidades são projetadas no futuro, pressupondo-se uma taxa de crescimento do PIB de 6% ao ano - um ponto percentual abaixo da taxa de crescimento histórico da economia brasileira após a 2ª Guerra Mundial - considerada como o mínimo necessário para evitar o aumento do desemprego, já que a força de trabalho cresce a 2,6% ao ano.4 4 A taxa de crescimento demográfico é atualmente inferior a essa -2,2% ao ano -com uma projeção de quebra para l,6% ao ano até o final do século.

Em vista dos cenários mundiais mais prováveis e das tendências â importação observadas, nenhum problema relevante está previsto na frente externa. O balanço de pagamento se mantém em equilíbrio, sem necessidade de “dinheiro novo” dos bancos. Espera-se que a dívida externa líquida continue constante em termos de dólares nominais, enquanto superávits comerciais da ordem de USS 12 a 14 bilhões são gerados, não obstante uma crescente ampliação das importações. Esse cenário supõe que uma política cambial realista seja mantida, e que os controles de importação não sejam afrouxados. Nesse contexto, o Plano é surpreendentemente moderado ao estabelecer os objetivos do governo, em relação à renegociação da dívida externa do país. Além de uma revisão das operações internas de reempréstimo, a única novidade, vis-à-vis o recente acordo mexicano, é o compromisso de não cortar a taxa de crescimento do país, caso a situação venha a se tornar pior do que se espera. Isso significa que a resposta do país, caso a situação mundial venha a se tornar pior do que se espera. Isso significa que a resposta do país ao protecionismo adicional, à recessão mundial, ou a outras crises externas, será uma capitalização parcial de pagamentos de juros, em vez de uma redução das importações necessárias.

Mais difícil é a situação na frente interna. O Plano pouco revela sobre a estratégia governamental para tratar o problema da inflação, observando, apenas, que sua erradicação está ligada à eliminação do déficit orçamentário do governo, e que a inflação não será combatida às custas de uma redução da taxa de crescimento do PIB, estabelecida em 6%. As projeções são feitas a partir do pressuposto de que a taxa de inflação se manterá constante em seu atual patamar de 200% ao ano. O crescimento monetário também foi fixado em 200% ao ano, mantendo a arrecadação do imposto inflacionário, portanto, em seus níveis atuais.5 5 Isso não significa que os economistas do governo estejam convencidos de que a inflação possa ser mantida nos níveis atuais. Na verdade, os resultados da estratégia do “choque heterodoxo” para erradicar a inflação, em fase de implementação na Argentina, vêm sendo acompanhados bem de perto, em Brasília; enquanto isso, procede-se, também, a urna avaliação das condições políticas para implantação de um pacto social, destinado a tratar da inflação através de uma nova política de rendas. A natureza experimental desses procedimentos explica a razão pela qual o Plano é tão elíptico no tocante à estratégia anti-inflacionária do governo.

Segue-se uma descrição de como se fecha a restrição orçamentária do governo. A base monetária cresce pari passu com a inflação, enquanto a dívida externa é constante em termos de dólares nominais e o crescimento real da dívida interna é fixado como equivalente â taxa de crescimento do PIB, de 6%. Nessas circunstâncias, o Plano pressupõe que as taxas de juros reais internas se estabilizem em 16% ao ano. As despesas sociais constituem outra limitação na equação orçamentária do governo. Para atender ao compromisso, assumido pelo Presidente José Sarney, de dobrar seu valor, supõe-se que as despesas sociais aumentem em 100%, em termos reais, em 1986, e depois se mantenham constantes. As despesas não-sociais, finalmente, se mantêm constantes em seus níveis de 1986, ao longo do período.

Nesse cenário básico, o equilíbrio do orçamento exigirá um “esforço fiscal” significativo, tanto em 1986 como em 1987. Taxas tarifárias e tributárias teriam que aumentar em cerca de 8,4% em 1986, e mais 5,4% em 1987, o que o Plano considera justo, tendo em vista a erosão que sofreram, especialmente após 1980. Em vez de um aumento da carga fiscal, o objetivo do “esforço fiscal” seria uma compensação pelas perdas do setor público nos últimos anos.

O “dinheiro novo” estrangeiro reduziria, obviamente, a dimensão desse esforço interno, permitindo que prevalecessem controles de importação menos rigorosos. Além disso, poderia contribuir para diminuir as taxas de juros internas, se fosse usado para reduzir o endividamento do governo nos mercados financeiros internos. Entretanto, essas alternativas, no Plano, foram apenas consideradas como exercício de simulação.

4. PERSPECTIVAS

O calendário político brasileiro nos próximos anos está marcado por uma série de importantes eleições diretas. Em novembro de 1985 serão escolhidos os prefeitos de todas as capitais estaduais. Em novembro de 1986, uma Assembleia Constituinte será instalada. Em princípio, uma eleição presidencial terá lugar em novembro de 1988. Após vários anos de repressão política, mais de 20 partidos políticos estão competindo nessas eleições incluindo dois partidos comunistas.6 6 A data precisa da eleição presidencial será determinada pela Assembleia Constituinte.

Os sindicatos trabalhistas foram reprimidos durante 20 anos. Em seu renascimento estão sendo crescentemente dominados por uma liderança mais jovem e mais afirmativa, enquanto estendem sua influência, dos enclaves industriais tradicionais, aos serviços e ao setor público. As demandas salariais incluem aumentos imediatos consideráveis para compensar os trabalhadores por anos de contenção salarial.

A reforma agrária estava na letra da lei durante todo o regime militar, porém jamais foi realizada. O compromisso do novo regime civil em relação a essa reforma é marcado pela criação de um novo Ministério, exclusivamente em função desse objetivo.

Trata-se de um novo jogo para as classes mais ricas no Brasil. Em 1964, enfrentando desafios semelhantes, elas escolheram apoiar um golpe militar conservador. Entretanto, após 1974, ajudaram a promover uma abertura progressiva do regime militar e, finalmente, apoiaram, com grande empenho, a mudança para o regime civil, que ocorreu no início do corrente ano. Os proprietários de terras estão obviamente amedrontados, mas os empresários urbanos, até agora, se mostram apenas confusos. Eles percebem que mudanças sociais rápidas se fazem necessárias; porém, temem as novas realidades políticas e suas possíveis consequências radicais.

A democracia é uma estrutura frágil no Brasil. Os problemas econômicos atuais complicam, consideravelmente, a tarefa de fortalecer suas bases. A curto prazo, os grandes desafios são a inflação e o déficit do setor público. Após uma greve nacional de dois dias no início de setembro, os sindicatos do setor bancário ganharam um considerável aumento salarial, além de uma redução mascarada do intervalo de reajuste salarial, de 6 para 3 meses. O governo, agora, terá dificuldades de resistir à generalização dos reajustes salariais trimestrais no país. Disso deverá resultar um novo e mais elevado patamar de inflação. As demandas salariais estão causando, também, um aumento considerável na folha de salários do governo, em parte como consequência de uma série de concessões, feitas nos últimos meses da administração do General Figueiredo. Nos primeiros quatro meses da nova administração, a prática de taxas de juros reais muito altas, conjugada a preços do setor público quase congelados, contribuiu, também, para os problemas financeiros do governo. As condições iniciais do déficit do setor público podem ser piores do que as previstas no plano de desenvolvimento.

As complicações não param por aqui. O “esforço fiscal”, considerado no Plano, vem sofrendo forte resistência por parte das classes mais altas que, através da grande imprensa, estão insistindo em cortes adicionais dos gastos governamentais para controlar o déficit. Por outro lado, a burocracia estatal vem agindo contra o papel secundário a eles reservado no Plano de desenvolvimento, e insistindo na definição de um novo bloco de investimentos do setor público, como um meio de trazer de volta a economia à trilha do crescimento.

Entretanto, ainda existe esperança no horizonte. Todos os grupos sociais parecem estar convencidos de que o regime militar levou apenas ao autoritarismo e à corrupção. Hoje, ao contrário do que aconteceu em 1964, politizar os militares é um problema e não uma solução para a elite brasileira. Assim, há um sólido compromisso generalizado em relação à democracia. Os problemas econômicos a curto prazo são sérios, mas a economia é fundamentalmente saudável. A força industrial do país é uma realidade; a agricultura brasileira tem mostrado, frequentemente, capacidade de responder ao estímulo dos preços; os espaços vazios do Amazonas e do Oeste apenas começam a ser conquistados. O crescimento não é um problema para a economia brasileira. Mesmo sob as limitações atuais, o PIB do país, este ano, deverá sofrer uma expansão de cerca de 7%, enquanto o desemprego urbano já vem caindo há mais de um ano.

A questão social é difícil de ser solucionada. Centenas de anos de desequilíbrio social foram temporariamente reprimidos pelo regime militar. Para tratar, sem radicalização, dos problemas sociais do país, será preciso estender, aos limites máximos, a capacidade histórica dos brasileiros de negociarem de modo ordenado e pacífico. Uma forte liderança política se fará necessária.

  • 1
    As taxas de inflação são medidas pelo índice do IBGE de preços ao consumidor amplo (IPCA); os déficits do setor público são medidos pelo conceito de necessidades de financiamento do setor público (NFSP) do FMI - os dados de 1982 podem não ser comparáveis tom os dos últimos anos. Deve-se observar, também, que o coeficiente do NFSP em relação ao PIB é uma função crescente da taxa de inflação, pela simples razão de que o numerador é calculado como a diferença entre os valores, de finais de anos sucessivos, das obrigações não-financeiras do setor público, cuja maior parte é continuamente reavaliada de acordo com as taxas de inflação observadas.
  • 2
    Os dados constam das Tabelas 1 e 2 do “Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República”, Brasília, setembro 1985.
  • 3
    Se as obrigações monetárias se mantiverem constantes, a taxa de crescimento das obrigações não-monetárias será exatamente igual à taxa de juros.
  • 4
    A taxa de crescimento demográfico é atualmente inferior a essa -2,2% ao ano -com uma projeção de quebra para l,6% ao ano até o final do século.
  • 5
    Isso não significa que os economistas do governo estejam convencidos de que a inflação possa ser mantida nos níveis atuais. Na verdade, os resultados da estratégia do “choque heterodoxo” para erradicar a inflação, em fase de implementação na Argentina, vêm sendo acompanhados bem de perto, em Brasília; enquanto isso, procede-se, também, a urna avaliação das condições políticas para implantação de um pacto social, destinado a tratar da inflação através de uma nova política de rendas. A natureza experimental desses procedimentos explica a razão pela qual o Plano é tão elíptico no tocante à estratégia anti-inflacionária do governo.
  • 6
    A data precisa da eleição presidencial será determinada pela Assembleia Constituinte.
  • *
    Trabalho apresentado em reunião sobre “A Política dos EEUU em relação aos Países Industriais Emergentes”, do Conselho de Política Econômica, da Associação para as Nações Unidas dos Estados Unidos da América, em Nova York, no dia 26.09.1985.
  • JEL Classification: D72; E60.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1986
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