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Restrições econômicas e a transição política: Notas para um debate* * Trabalho escrito em setembro/84 para a Reunião do Grupo de Economia e Política da ANPOCS, em Águas de São Pedro.

Economic constraints and political transition: notes for a debate

RESUMO

A transição para um novo regime mais livre no Brasil passará por uma crise econômica, espaço limitado para escolhas de política econômica, desequilíbrio crônico das contas fiscais e inflação muito elevada. Esta breve nota debate essas questões e como superá-las.

PALAVRAS-CHAVE:
Política pública; transição democrática; estabilização

ABSTRACT

The transition to a new, more free regime in Brazil will undergo during an economic crisis, limited space for economic policy choices, chronic imbalance of fiscal accounts, and very high inflation. This short note debates these issues and how to overcome them.

KEYWORDS:
Public policy; democratic transition; stabilization

  • I. Raras vezes na história política recente do país, a transição para um regime político mais aberto far-se-á em condições econômicas tão singulares, senão adversas, quanto a mudança que se prenuncia para março do próximo ano.

Na verdade, esta transição deverá ocorrer dentro de um contexto de graves dificuldades econômicas, algumas das quais estão relacionadas a seguir:

  1. Um cenário econômico que pode ser caracterizado, grosso modo, por uma situação de jogo de soma negativa. Esta condição decorre do fato de que o País continua e deverá continuar realizando um esforço crescente de transferência líquida de recursos econômicos reais para o sistema financeiro internacional privado, em decorrência do programa de ajustamento assinado com o Fundo Monetário Internacional.1 1 Enquanto o déficit em conta-corrente como percentagem do PIB alcançou 3,3% em 1983, o pagamento líquido de fatores ao exterior montou a 5,6% do PIB. As estimativas para 1984 são as seguintes (como percentagem do PIB): déficit em conta-corrente, l,1%; pagamento líquido de fatores: 5,6%. Cálculos preliminares indicam que as transferências líquidas de recursos reais para o exterior alcançaram US$ 4,2 bilhões em 1983 e poderão atingir US$ 6,1 bilhões em 1984. Fonte de dados: Banco Central do Brasil, Brazil, Economic Program, vol. 4, agosto de 1984. Tal transferência realiza-se simultaneamente à queda, pelo quarto ano consecutivo, da renda real per capita. Desta forma, não somente está ocorrendo uma redução no produto real por habitante, mas uma parcela crescente deste produto está sendo enviada ao exterior, sob a forma de pagamento de juros líquidos aos credores privados;

  2. Uma redução acentuada nos graus de liberdade para a formulação de uma política econômica autônoma, como consequência da crescente inserção da economia brasileira na economia internacional. Na verdade, tal inserção dramatiza o descasamento entre o domínio político-geográfico, dentro do qual atuam os instrumentos convencionais de política econômica, e o efetivo domínio econômico, onde estes instrumentos terão impactos significativos. Alternativamente, pode-se analisar a perda de autonomia na política econômica como um aumento no grau de vulnerabilidade da economia nacional a choques decorrentes de fatores externos, como mudanças nos preços internacionais de ativos reais ou financeiros. A experiência dos últimos anos demonstrou de forma bastante eloquente este aumento de vulnerabilidade externa da economia nacional. A relativa perda de autonomia da condução da política econômica tem, na presença constante das missões do FMI, apenas a face mais visível e constrangedora de uma situação que é geral, persistente e inevitável;

  3. Um desequilíbrio crônico do setor público (este tomado em seu sentido amplo, envolvendo o orçamento fiscal da União, o orçamento do setor produtivo estatal federal, o das entidades típicas de governo, o da previdência social, o dos Tesouros estaduais e municipais, assim como o das empresas produtivas estatais estaduais e de seus respectivos bancos estaduais). Na realidade, este desequilíbrio adquiriu um caráter endógeno, independente da fase do ciclo econômico: nas fases de expansão das atividades econômicas, ele foi gerado principalmente pela expansão dos programas de crédito subsidiado e por aumento dos gastos públicos, inclusive transferências às estatais. Na fase recessiva, o desequilíbrio decorreu da elevação da taxa de juros, da queda da arrecadação tributária dos governos estaduais e municipais e da virtual inadimplência dos sistemas previdenciários oficial e financeiro habitacional.2 2 As necessidades nominais de financiamento do setor público como percentagem do PIB subiram de 12,5% em 1981 para 17,9% em 1983. Naquela conta incluem-se as necessidades de recursos dos tesouros federal, estadual e municipal da Autoridade Monetária, das empresas estatais, das agências descentralizadas e do sistema de previdência social. A tentativa de financiar estes desequilíbrios através da expansão da dívida pública interna como já demonstrado por vários autores, somente tem causado elevação na taxa real de juros, contração nos dispêndios do setor privado e aumento na taxa de desemprego.

  4. Uma persistente taxa de inflação, mantida em níveis elevados, em decorrência do uso generalizado dos mecanismos formais de indexação da economia. Como se sabe, na presença de choques de oferta (p. ex. perda de safras agrícolas) ou choques de política econômica (p. ex. maxidesvalorização), a indexação contribui para transformar mudanças de preços relativos em variações no nível absoluto de preços. Embora a indexação em si não leve a uma explosão na taxa de inflação, ela certamente contribui para tornar· mais difícil a tarefa de combater a inflação através da utilização dos instrumentos macroeconômicos convencionais.

  • II. No item anterior, foram indicados alguns “passivos” que o atual Governo lega ao seu sucessor. No entanto, uma avaliação com um mínimo de isenção deve reconhecer que alguns ganhos não-triviais poderão fazer parte da herança da Administração Figueiredo para o próximo Governo. Na área externa, estes ganhos são os seguintes: a) acumulou-se um elevado nível de reservas internacionais, que permite ao País “bancar” uma negociação mais dura e prolongada com os banqueiros privados; b) realizou-se um esforço notável de substituição de importações e de aumento de produtividade na indústria nacional, levando a uma compressão jamais vista no coeficiente de importações e e) a agressiva política cambial a partir de 1982 possibilitou a ampliação das exportações de produtos manufaturados.

Na área do controle macroeconômico interno, pelo menos duas decisões devem ser salientadas. Em primeiro lugar, ocorreram os movimentos iniciais no sentido de se implementar uma reforma financeira, há muito necessária, que promova a separação entre o Tesouro Nacional e as Autoridades Monetárias, conferindo maior transparência às operações de dívida pública e de mercado aberto e possibilitando maior controle do Congresso sobre as finanças públicas, em seu sentido amplo. Em segundo lugar, a recente decisão do Conselho Monetário Nacional de proibir os. saques dos depósitos em moeda estrangeira no Banco Central constitui-se em um primeiro passo para se efetivar uma separação gradual entre o mercado financeiro doméstico e o internacional. Isto permitirá maior autonomia na execução de uma política interna de taxas de juro.

  • III. A provável alternância de poder gera uma oportunidade para o reordenamento de instrumentos e objetivos de política econômica, com vistas a assegurar a recuperação das possibilidades de crescimento da economia. Ela também desperta inevitavelmente expectativas de mudanças profundas no cenário econômico. No entanto, obviamente, a transição por si só não poderá eliminar os constrangimentos externos à retomada do crescimento, que continuarão funcionando como a restrição dominante à melhoria dos níveis de renda e emprego.

Obviamente, não se pode pensar em uma recuperação à outrance da atividade econômica, sobretudo se ela se apoiar apenas no crescimento dos setores voltados ao mercado interno. O ritmo de expansão do produto real deverá ser determinado pela velocidade de crescimento dos setores de exportação ou de substituição de importações, pois a dívida estrangeira permanece como o fator mais escasso da economia. Dependendo do tamanho dos “efeitos para frente e para trás” (Forward and backward linkages), os demais setores poderão se beneficiar dos aumentos de atividade e renda nos setores de bens comerciáveis. Obviamente, neste quadro, faz-se necessário dar continuidade à atual política cambial agressiva, procurando manter a competitividade dos manufaturados, de modo a aumentar a participação nas exportações no produto. A presente sistemática de superindexar o cruzeiro em relação ao dólar norte-americano (por superindexação do cruzeiro, entenda-se a prática de desvalorizar a moeda nacional no mesmo ritmo da inflação interna, sem descontar a inflação norte-americana) pode ser substituída por uma indexação efetiva, levando-se em conta uma cesta de moedas dos nossos principais parceiros comerciais, subtraindo-se a inflação internacional. Desta maneira, a política cambial poderia contribuir também para o esforço de combater a inflação. Esta nova regra de minidesvalorizações efetivas poderia conduzir igualmente a uma melhor distribuição por países das nossas vendas externas, hoje perigosamente concentradas no mercado norte-americano.

A restrição cambial seria aliviada através de um esforço de renegociação da dívida externa. Neste sentido, cabe lembrar a proposta sugerida pelo prof. Edmar L. Bacha de negociar com os credores internacionais novas formas de ajustamento tomando-se como base não os atuais critérios de performance impostos pelo FMI, mas sim metas de exportações vinculadas ao crescimento esperado do comércio mundial.3 3 Edmar L. Bacha: “Latin America’s Debt: a reform proposal”, texto para discussão n. 74, ago. 1984, Departamento de Economia, PUC/RJ. O montante anual de transferências financeiras aos bancos privados ajustar-se-ia automaticamente ao volume de exportações, garantindo-se um nível de importações necessário à retomada do ritmo de crescimento da economia. A fragilidade sistêmica dos atuais esquemas de renegociação da dívida externa torna-os insustentáveis a médio e longo prazos. Empobrece os devedores, aumentando, ao mesmo tempo, a vulnerabilidade dos credores privados a crises periódicas de pagamento dos serviços da dívida. As recentes dificuldades financeiras de grandes bancos norte-americanos são exemplos bem marcantes do grau de risco que perdura no sistema financeiro internacional privado devido à crise da dívida.

No fronte interno, a reorientação dos instrumentos de política econômica deveria contemplar uma mudança nas diretrizes de política monetária, fiscal e de rendimentos. O atual ativismo da política monetária e creditícia, causador de contração real de liquidez e de altas taxas de juro, poderia ser substituído por uma política monetária passiva. Esta procuraria acomodar as necessidades de moeda e de crédito dos setores público e privado, a um nível de taxa real de juros compatível com a recuperação dos investimentos. O controle dos agregados monetários poderia ser substituído por uma política de taxas de juro, a qual apresenta melhores condições de ser viabilizada à medida que o mercado financeiro doméstico se mantenha relativamente separado do mercado financeiro internacional.

De outro lado, à política fiscal deveria caber um papel mais relevante no equacionamento do desequilíbrio financeiro do setor público, em seu sentido amplo. Austeridade nos gastos governamentais, reforma tributária com alargamento da base impositiva, descentralização de receita fiscal, unificação dos orçamentos federais, maior seletividade na tributação parecem ser, dentre outros componentes necessários a uma política de gastos e de impostos que permita, ao mesmo tempo, aumentar o espaço econômico do setor privado e promover uma distribuição de renda menos concentrada. O investimento privado, principalmente aquele voltado aos setores comerciáveis, deve comandar a recuperação, e não mais o gasto público. A política da dívida pública interna seria dirigida no sentido de alongar seu prazo e de estimular a retenção definitiva dos títulos públicos, evitando desta forma a necessidade de girá-los dia a dia no sufoco dos overnight,

Na economia indexada, o combate anti-inflacionário parece ter mais chances de sucesso no contexto de uma política de rendimentos que procure moderar as demandas setoriais, através da negociação de aumentos de preços, salários, juros e outras remunerações de fatores produtivos. Talvez isto se constituísse em uma das possibilidades de tornar menos abstrato e retórico o pacto social que se julga indispensável à consolidação do futuro Governo de transição. De outro lado, a recente aceleração inflacionária na Argentina e em Israel constitui um exemplo da instabilidade potencial que existe em sistemas indexados ou quase indexados.

  • IV. As considerações anteriores são bastante genéricas e apenas pretendem sugerir uma nova configuração para a política econômica de curto prazo, que tem chances de funcionar dentro do atual quadro de restrições externas e internas. Se existem agora condições objetivas para uma recuperação cautelosa da economia, isto não deve significar que se possa embarcar em uma política econômica “frouxa”, entendendo-se como tal decisões que levem a um aumento do déficit público, descontrole monetário, supervalorização cambial e evaporação das reservas cambiais. Sugere-se, ao contrário, uma política econômica inspirada na performance das pequenas economias europeias abertas, sobretudo na experiência bem-sucedida do chamado “keynesianismo austríaco”, uma política de administração de demanda no contexto da social partnership.4 4 Ver, a propósito, W. D. McClam e P. S. Andersen, “Adjustment performance of open economies: some international comparisons”, Bank of International Settlements Economic Papers, n. 10, dez. 1983, Basiléia.

As restrições externas, os desequilíbrios financeiros internos e as demandas sociais reprimidas colocam obstáculos formidáveis à política econômica e certamente afetarão as condições de governabilidade do regime de transição. Lidar com tais questões, em uma economia sujeita a um ambiente externo potencialmente hostil é um dos mais sólidos desafios ao nosso sistema político. A consolidação futura do regime depende de nossa capacidade de enfrentá-los, em condições que assegurem liberdade política, crescimento econômico e justiça social.

  • 1
    Enquanto o déficit em conta-corrente como percentagem do PIB alcançou 3,3% em 1983, o pagamento líquido de fatores ao exterior montou a 5,6% do PIB. As estimativas para 1984 são as seguintes (como percentagem do PIB): déficit em conta-corrente, l,1%; pagamento líquido de fatores: 5,6%. Cálculos preliminares indicam que as transferências líquidas de recursos reais para o exterior alcançaram US$ 4,2 bilhões em 1983 e poderão atingir US$ 6,1 bilhões em 1984. Fonte de dados: Banco Central do Brasil, Brazil, Economic Program, vol. 4, agosto de 1984.
  • 2
    As necessidades nominais de financiamento do setor público como percentagem do PIB subiram de 12,5% em 1981 para 17,9% em 1983. Naquela conta incluem-se as necessidades de recursos dos tesouros federal, estadual e municipal da Autoridade Monetária, das empresas estatais, das agências descentralizadas e do sistema de previdência social.
  • 3
    Edmar L. Bacha: “Latin America’s Debt: a reform proposal”, texto para discussão n. 74, ago. 1984, Departamento de Economia, PUC/RJ.
  • 4
    Ver, a propósito, W. D. McClam e P. S. Andersen, “Adjustment performance of open economies: some international comparisons”, Bank of International Settlements Economic Papers, n. 10, dez. 1983, Basiléia.
  • *
    Trabalho escrito em setembro/84 para a Reunião do Grupo de Economia e Política da ANPOCS, em Águas de São Pedro.
  • JEL Classification: P11; O20.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1985
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