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Integração regional, comércio triangular e recomendações de política: o caso da indústria brasileira de química fina

Regional integration, triangular trade and policy recommendations: the case of the Brazilian fine chemical industry

RESUMO

Este artigo examina a ocorrência de “esquemas triangulares de comércio” na exportação de produtos químicos finos para o Brasil de outros países do Mercosul entre 1989 e 1992 e sugere possíveis medidas contrárias do governo. Mostra-se que o aumento repentino das importações brasileiras de produtos químicos finos do Uruguai corresponde a um esquema comercial “triangular” entre os dois países e um terceiro e sugere a adoção de regras de origem mais precisas do que as acordadas nas recentes negociações do Mercosul, permitindo ganhos da integração para acumular principalmente para os países membros.

PALAVRAS-CHAVE:
Mercosul; integração regional; indústria química; comércio internacional

ABSTRACT

This paper examines the occurrence of “triangular trade schemes” in the export of fine chemical products to Brazil from other Mercosur countries between 1989 and 1992 and suggests possible government counter measures. It is shown that the sudden increase in Brazilian imports of fine chemicals from Uruguay corresponds to a “triangular” trade scheme between both countries and a third party and suggests the adoption of more precise origin rules than those agreed during recent Mercosur negotiations, allowing the gains from integration to accrue mainly to the member countries.

KEYWORDS:
Mercosur; regional integration; chemical industry; international trade

1. INTRODUÇÃO

A constituição de uma união aduaneira seria particularmente benéfica para a indústria brasileira de química fina em dois sentidos básicos. A extinção das barreiras ao comércio intra-regional implicaria eliminar, para as firmas dos países envolvidos, os principais obstáculos institucionais ao aumento da concorrência no setor e estimular os ganhos de eficiência tradicionalmente associados a configurações mais expostas à concorrência internacional. Já a expansão do mercado possibilita uma maior racionalização econômica através da fusão e da aquisição de empresas anteriormente atuantes em mercados nacionais protegidos e fragmentados, com impactos imediatos sobre os custos médios unitários (administrativos, de pesquisas e desenvolvimento) dos produtos.1 1 Entre todo o setor manufatureiro europeu, a indústria química foi a que apresentou maior número de fusões na Comunidade Europeia durante o biênio 1987-1988, equivalendo a 22% do total, sendo os segmentos de especialidades químicas e farmacêuticas os mais importantes. Esses segmentos corresponderam a, respectivamente, 17% e 16% das fusões/aquisições que ocorreram na indústria química européia em 1989.

Naturalmente, esses resultados, teoricamente previsíveis, dependem da significância recíproca dos mercados envolvidos e da capacidade das firmas locais se apropriarem dos benefícios gerados. Em muitos casos, a dimensão relativa dos mercados é pouco expressiva e, consequentemente, os efeitos gerados são mais restritos. Um estudo recente sugere que a extensão dos mercados da química fina dos países que compõem o Mercosul seria suficiente para estimular a ocorrência desses efeitos, sobretudo no que se refere aos segmentos de intermediários (fármacos principalmente), medicamentos e defensivos2 2 Esse estudo calcula que os demais países do Mercosul representariam um mercado potencial da ordem de 140% da indústria brasileira nos casos de alguns produtos químico-farmacêuticos como, por exemplo, o ácido acetilsalicílico, a cimetidina e o propanol. Conforme Codetec (1992) apud Queiroz (1993). .

No final de 1993, os governos de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai optaram por excluir os setores de informática, bens de capital e química fina da lista de indústrias submetidas ao sistema de tarifa externa comum. Essas indústrias definiriam uma lista de produtos a serem tratados como “excepcionalidades” ao regime tarifário único até o ano 2001. Nesse contexto, a ausência de regras de origem eficazes para impedir que importações de terceiros países tenham o mesmo tratamento que o concedido para o comércio entre os países que participam da integração, tomaria o Mercosul um espaço privilegiado para comercialização de mercadorias provenientes de países não-membros, dificultando a apropriação dos benefícios da integração por parte das firmas locais.

O objetivo deste trabalho consiste em avaliar, com base na evolução do padrão de comércio vigente entre o Brasil e o Mercosul no período 1989-1992, a ocorrência de exportações triangulares de produtos de química fina para o Brasil. Assim, a próxima seção apresenta as características básicas da indústria de química fina na Argentina, no Brasil e no Uruguai3 3 Não foi possível obter qualquer tipo de informação sobre a indústria de química fina paraguaia. , a terceira seção examina o padrão de comércio vigente, enquanto a quarta discute algumas recomendações de política. A última seção resume os resultados obtidos.

2. DIAGNÓSTICO DAS INDÚSTRIAS DE QUÍMICA FINA4 4 A química fina (QF) é uma denominação genérica que abrange, principalmente, produtos dos segmentos industriais de fármacos, defensivos agrícolas, corantes e pigmentos, aditivos para materiais (plásticos, fibras e elastômeros), detergentes, aditivos para lubrificantes, fragrâncias, aromas etc. A química fina distingue-se da química básica pelo fato de gerar produtos de alto valor agregado. Costuma-se classificar como produto de QF aquele com preço superior a US$ 3,001kg, embora essa classificação nem sempre seja adequada, de modo que a própria definição da indústria costuma ser objeto de amplo debate. Essa delimitação pouco precisa e a heterogeneidade de setores que a compõem fizeram com que este trabalho abordasse basicamente três ramos da química fina, a saber, o de matérias-primas, medicamentos e agroquímicos. Esta opção metodológica deriva da importância quantitativa desses segmentos sobre os demais (principalmente no caso de medicamentos e agroquímicos) e de sua importância como gerador e difusor do progresso técnico na indústria (matérias-primas). A indústria como um todo, naturalmente, abrange outros segmentos, como o de catalisadores; corantes e pigmentos; e de essências e perfumes. DO MERCOSUL

2.1 Argentina5 5 Esta subseção baseia-se em Cesarone (1994), a menos que seja indicado o contrário.

De um modo geral, a indústria de química fina na Argentina caracterizava-se, até 1993, pela concentração das atividades no segmento de especialidades químicas, dependência das importações de matérias-primas, participação expressiva de empresas de capital nacional no setor de produtos finais e especialização dessas empresas na fabricação de “dedicados”, em detrimento de genéricos. Complementarmente, é possível identificar a existência de plantas locais voltadas para a fabricação de matérias-primas, embora essa seja uma situação menos frequente.

Considerado o faturamento do segmento da química fina (matérias-primas e especialidades) das cinquenta maiores empresas da indústria química argentina, em 1992, 80% eram provenientes do segmento de especialidades. Estimava-se que, em 1993, as importações de intermediários correspondessem a um valor entre 57% e 100% da demanda interna por esse tipo de produtos. Quanto à participação de empresas de capital nacional, avaliava-se que, em 1992, elas respondiam a 55% da produção de medicamentos e a 40% da fabricação de agroquímicos.

O número de empresas que atuam no setor de intermediários é da ordem de 100, ao passo que a quantidade de empresas do segmento de produtos finais chega a um número de, aproximadamente, 400. Essas firmas empregavam, em 1992, um total de 25 mil pessoas, das quais 80% concentradas no ramo de especialidades de química fina.

O segmento mais importante da indústria de química fina argentina é o ramo farmacêutico, que correspondia a 58% do faturamento total, em 1992, equivalendo a uma receita anual de US$ 2,5 bilhões e ao emprego de 15 mil pessoas. A demanda de produtos farmacêuticos encontrava-se dividida, nesse mesmo ano, da seguinte forma:

US$ 300/400 milhões para produtos genéricos e US$ 2,1/2,4 bilhões para especialidades medicinais.

O comércio internacional de produtos de química fina argentinos, entre 1989 e 1992, foi essencialmente deficitário, à exceção do segmento de fertilizantes. As importações de produtos da química fina, em 1992, totalizavam mais de 8% das compras externas da Argentina, estando concentradas em poucos fornecedores, entre os quais se destacam o Brasil (6,8%) e os EUA (22% do total). A concentração geográfica das vendas também é uma característica das exportações. Somente o Mercosul correspondia, em 1992, a 36% das exportações da Argentina, valor que alcança 44%, quando adicionadas as vendas para o Chile e 65% caso agregados México (3,9%) e EUA (13,3%). Os principais produtos vendidos são ácidos carboxílicos, compostos heterocíclicos, hormônios e seus derivados, medicamentos que contenham hormônios, enzimas, herbicidas e inseticidas.

As características da indústria argentina correspondem, em grande parte, às especificidades da intervenção pública do país sobre o setor6 6 A análise subsequente encontra-se fortemente baseada em Katz (1991). , A elevada flexibilidade da emissão de certificados de autorização para lançamento de novos produtos, o não reconhecimento de patentes internacionais e o alto nível de proteção tarifária induziram a entrada de uma série de empresas de capital nacional até 1991. A estratégia dessas empresas baseava-se na cópia de substâncias desenvolvidas pelas empresas líderes e que se encontravam nas fases iniciais do ciclo de vida do produto, no subsequente desenvolvimento local e na posterior comercialização das especialidades derivadas no mercado doméstico a partir da marca própria. Em alguns casos, embora visivelmente minoritários no setor, essas firmas integraram-se verticalmente em direção à fabricação de matérias-primas, constituindo firmas multipropósito de tamanho relativamente reduzido que incorriam em deseconomias estáticas de escala.

Esse marco regulatório permitiu, por exemplo, o desenvolvimento de uma série de laboratórios farmacêuticos de capital nacional e estrutura familiar, como Roemmers e Bago, logrando obter uma taxa de crescimento superior à de empresas multinacionais e elevada rentabilidade. Os laboratórios transnacionais, de um modo geral, reduzi­am sua participação no mercado argentino. Na indústria farmacêutica, por exemplo, entre 1982 e 1991, essas empresas diminuíram de 58% para 42% sua participação na oferta doméstica de medicamentos. No caso das empresas norte-americanas, essa conduta é particularmente relevante: encerraram suas atividades no país a Squibb, Upjohn, Lilly, Smith-Kline, Merck e Searl, entre outras.

Esse marco regulatório, próprio ao objetivo de substituição de importações, seria modificado a partir de 1991. A intervenção pública sobre a indústria de química fina pautou-se em três mecanismos básicos a partir desse momento: no estímulo ao aumento da concorrência, através principalmente da redução das alíquotas de importação; na desregulamentação do setor, expressa principalmente sob a forma de maior liberdade de preços; e na aprovação de uma nova lei de patentes que resguardasse a propriedade intelectual. Naturalmente, as novas diretrizes de política alteraram os pilares básicos do padrão de intervenção anterior e, portanto, tenderam a modificar substancialmente as estratégias das firmas argentinas.

Para enfrentar essa nova situação, as grandes empresas de capital argentino vêm adotando duas estratégias fundamentais: a redução do nível de verticalização da produção e a realização de acordos com empresas estrangeiras. A tendência à diminuição do valor agregado da produção de firmas nacionais de produtos de uso final representava uma tendência desde 1991, quando o nível de utilização do parque produtor de matérias-primas já apresentava níveis elevados de ociosidade, situação oposta à vigente no setor de produtos finais. No caso do segmento farmacêutico, em particular, calcula-se que até a metade da década de 80, auge da produção de farmoquímicos no país, eram produzidas anualmente 300 toneladas de princípios ativos, equivalendo a uma receita de US$ 30 milhões, 50% dos quais concentrados na Laplex-Maprimed, a maior das plantas locais, fabricante desse tipo de produto. Atualmente esse valor representa algo em torno de US$ 20 milhões.

Caberia destacar que, como resultado do novo marco regulatório sobre a indústria farmacêutica, a maior atenção ao mercado de genéricos deve ser, ainda, uma conduta complementar das empresas de capital nacional, uma vez que o estímulo ao consumo desse tipo de medicamento constitui o principal instrumento governamental de regulação dos preços do setor. Nesse sentido, empresas tradicionalmente dedicadas ao mercado institucional de genéricos, como a Argentia e a Microsules, terão suas oportunidades de negócios expandidas, ao passo que firmas usualmente “marquistas”, como a Bago, tenderão a redirecionar suas estratégias.

2.2 Brasil7 7 Esta subseção baseia-se em Correa & Freundt (1994), a menos em caso de indicação contrária.

Em 1990, o parque produtivo da indústria de química fina brasileira possuía uma capacidade instalada da ordem de 500 mil toneladas/ano, representava investimentos de US$ 3,6 bilhões e gerava um volume de 130 mil empregos diretos, equivalentes a 2% dos postos de trabalho da indústria.

A oferta da indústria brasileira de química fina encontra-se basicamente concentrada nos segmentos produtores de fármacos, medicamentos e defensivos. As indústrias farmoquímica e agroquímica totalizavam, em 1990, 91% do faturamento da química fina brasileira, sendo que o segmento de catalisadores (12%) e de corantes e pigmentos (9%) foram os que apresentaram as maiores taxas de crescimento do período.

As informações sobre a evolução da inserção internacional dos principais segmentos da indústria brasileira de química fina, entre 1989 e 1992, revelam o crescimento do volume de trocas internacionais no período, a existência de um padrão de comércio essencialmente deficitário para o país e a sua concentração no segmento de matérias-primas, em detrimento dos ramos de produtos finais (medicamentos e agroquímicos).

A exemplo do caso argentino, o perfil da oferta da indústria de química fina brasileira também foi fortemente condicionado pela política de substituição de importações. Com o não-reconhecimento de patentes de produtos e processos farmacêuticos em 1969, o Brasil pretendia ingressar no terceiro estágio - o de produtor de matérias-primas. O predomínio de empresas estrangeiras e a ênfase da política setorial resultaram em uma oferta incipiente de fármacos8 8 De um lado, a política de substituição de importações orientou as atividades para um mercado insuficiente, segundo as escalas necessárias adequadas à expansão da produção local de insumos farmacêuticos. De outro, a aquisição de fármacos no exterior constitui um componente dominante da conduta das firmas subsidiárias de laboratórios multinacionais porque possibilita a diluição dos custos médios de produção e de pesquisa incorridos pela matriz, viabiliza escalas ótimas de produção para ambos e possibilita a transferência de lucros para o exterior. .

Ao final da década de 70, a parcela de fármacos produzida no país era pouco significativa, menos de 10% das importações do setor. Entre 1982 e 1987 houve certa expansão da fabricação local de fármacos: a produção cresceu de US$ 268 para US$ 554 milhões, correspondendo a valor superior ao dobro do total de fármacos importados pelo país. Neste mesmo período, entretanto, 73% da oferta doméstica eram provenientes de firmas multinacionais e, em grande parte, destinados ao consumo próprio dessas empresas. O maior peso da oferta de laboratórios multinacionais deriva da participação que detêm na indústria de medicamentos, assim como de sua maior capacitação financeira e tecnológica. Extintos a maior parte dos estímulos vigentes entre 1983 e 1988, a produção local de fármacos voltou a diminuir. Em 1991, o parque industrial brasileiro não supria mais de 20% do total de substâncias registradas no país, somando 421 de um total de 2.100 produtos. Entre 1987 e 1991, as importações de fármacos aumentaram de US$ 350 milhões para US$ 450 milhões, equivalendo a um crescimento de 6,4% a.a.

Apesar da autossuficiência na produção de medicamentos, o país apresenta, atualmente, acentuada dependência externa em relação à produção de matérias-primas farmacêuticas (fármacos), segmento que incorpora maior conteúdo tecnológico na indústria. Não obstante esse resultado global insatisfatório, o período de substituição de importações logrou gerar algumas empresas com elevada capacitação produtiva, boa capacitação tecnológica e algum desempenho exportador.

Entre as principais firmas de capital nacional fabricantes de insumos farmacêuticos destacam-se, por exemplo, a Cibran (antibióticos); a Biobrás (enzimas); a Carbonor (bicarbonato de sódio); a Sulfabrás (sulfaguanidina); Microbiológica (meios de cultura); e Paraquímica (antibióticos). São firmas de médio porte, de estrutura familiar, com reduzida capacidade financeira e altamente dedicadas a nichos de mercado específicos. Essa estratégia de produção deriva da necessidade de explorar a vantagem competitiva alcançada pela empresa (como a fabricação de antibióticos pela via fermentativa, no caso da Cibran), o que lhe possibilita, muitas vezes, deter a exclusividade do fornecimento do produto no mercado brasileiro. Recentemente, a aquisição da Biolab (ex-Searle) pela Norquisa constituiu um novo tipo de configuração empresarial no setor. Além de verticalmente integrada como firma de grande porte da química básica, a Biolab conta, ainda, com aporte tecnológico importante junto a Nortec (empresa dedicada ao desenvolvimento tecnológico do grupo Norquisa). Como expressão da consolidação de algumas empresas nacionais, as exportações de matérias-primas, entre 1987 e 1991, aumentaram de US$ 155 milhões para US$ 200 milhões, representando um crescimento da ordem de 6,5% a.a.

Apesar do incentivo ao desenvolvimento de uma produção nacional, a indústria brasileira de defensivos agrícolas também se manteve fortemente internacionalizada. Mais de 75% do mercado brasileiro é atendido por empresas líderes mundiais. Os 25% restantes são divididos por um número maior de empresas nacionais, sendo que apenas quatro delas detêm parcela superior a 2% do mercado.

Entre as empresas multinacionais, com raras exceções, prevalece um alto grau de verticalização da produção, que inclui pelo menos mais de um segmento da indústria de química fina. Ao contrário, a maior parte das empresas nacionais do setor atua exclusivamente nesse ramo da indústria. Ressalte-se ainda que esta diferenciação não ocorre, por exemplo, com as firmas da indústria farmacêutica, onde a maior diversidade do mercado consumidor possibilita a sobrevivência de um número maior de empresas de porte médio, não-diversificadas. São poucas as empresas de capital nacional que diversificaram sua produção, mesmo dentro do ramo de defensivos, de modo que produzem apenas um dos grupos (herbicida, fungicida etc.) que compõem o ramo de defensivos. Outra especificidade da indústria brasileira refere-se à maior participação do segmento de herbicidas no mercado total. Isso se deve a uma das principais características do herbicida, que é sua utilização como substituto da mão-de-obra, e à natureza da agricultura brasileira, onde predominam as grandes propriedades. Enquanto no mercado mundial a participação dos herbicidas é da ordem de 39%, no Brasil esse valor chega a 53%.

A balança comercial de defensivos se mantém historicamente deficitária. O pequeno significado das exportações brasileiras de produtos de química fina tem sido considerado como um obstáculo para a elevação do coeficiente exportado de defensivos, índice que na indústria brasileira está abaixo de 10%, concentrados basicamente em herbicidas. O consumo aparente de defensivos agrícolas tem sido caracterizado pela relativa estabilidade, embora pequenas reduções cíclicas tenham ocorrido em função da deterioração dos preços de importantes commodities agrícolas. Com a queda da rentabilidade da lavoura e dificuldades creditícias, o agricultor tende a aplicar menor quantidade de defensivos, corretivos, fertilizantes etc. Entre 1989 e 1991, particularmente, o setor agrícola foi bastante afetado pela crise econômico-financeira nacional.

2.3 Uruguai9 9 Esta subseção baseia-se em Berretta e Cibils (1994), a não ser em caso de indicação contrária.

A participação da indústria química uruguaia no produto industrial do país alcançava, em 1990, 15,6%, sendo o peso no valor bruto industrial, nesse mesmo ano, de 14,3%. O principal segmento da indústria é o de medicamentos (CIIU 3522), que correspondia a 4,22% do produto interno bruto da manufatura em 1990, e por 2,95% dos empregos gerados. Como um todo, a indústria de química fina contribuía, em 1990, com 11,1% do emprego industrial do país, dos quais 26,7% concentrados na indústria de produtos farmacêuticos. A maioria das empresas dessa indústria encontram-se localizadas nos departamentos de Montevidéu e Caneloneas.

O volume da produção cresceu decisivamente na última década. Entre 1982 e 1992, o setor de fertilizantes e defensivos (CIIU 3512) cresceu 123% enquanto o de substâncias químicas (CIIU 3511) expandiu 91%. Entre 1990 e 1992, contudo, a indústria de química fina apresentou desempenho negativo, sendo que os setores que representaram maiores quedas foram os de fertilizantes (-47,4%) e tintas (-4,8%). A partir de 1990, o crescimento que todos os segmentos químicos vinham experimentando se dissocia. Por um lado, a indústria de química básica mantém seu nível de produção, com base em uma expansão na fabricação de substâncias químicas que compensa a retração ocorrida no subsetor de adubos e fertilizantes. De outro lado, as demais indústrias contraem-se em 5,5% em 1992, em virtude da queda de fabricação de medicamentos.

A produção química concentra-se em firmas de porte relativamente maior, guardadas as especificidades do setor (empresas com 100 ou mais empregados). Esse é o caso, por exemplo, do setor de defensivos e fertilizantes, cujas empresas desse porte respondiam por 72% do valor bruto da produção; e do segmento de produtos químicos básicos, caso em que este valor era de 55%. A exceção, nessa avaliação, é o setor de medicamentos, onde a produção encontrava-se razoavelmente distribuída entre as diversas modalidades de empresas consideradas.

A maior parte das firmas de química fina é de capital nacional. As empresas de capital majoritariamente estrangeiro correspondiam a um total de 31 e somavam aproximadamente 34% do valor bruto da produção, em 1988. A indústria de medicamentos mais uma vez apresenta certa nuance, comportando uma relativamente maior incidência de firmas estrangeiras: essas significavam 44% do total de estabelecimentos existentes e, aproximadamente, 50% do valor bruto da produção.

Em termos gerais, o setor químico uruguaio se caracteriza por ter se desenvolvido no âmbito do processo de substituição de importações, como um setor voltado à produção para o mercado interno. A partir dos anos 70, entretanto, com o início da promoção de exportações no país, e com a realização de acordos bilaterais com Argentina e Brasil, muitas empresas começam a expandir suas vendas externas em direção a esses países, em particular para o último.

As informações disponíveis a respeito das aquisições externas de matérias-primas revelam que o peso das importações de insumos nos setores de defensivos e fertilizantes (96% do total das compras) e de medicamentos (90%) são os mais elevados, em relação ao patamar médio da indústria de química fina no país. Excetuando o segmento de produtos de limpeza e higiene, todos os setores da química fina adquiriam pelo menos 70% de seus insumos no exterior, em 1988.

No tocante aos regimes comerciais vigentes (Admissão Temporária, Lei de Promoção, CAUCE, PEC e outros), em 1988, 41,8% do total de importações diretas, realizadas sob o regime de admissão temporária, eram provenientes dos setores 351 e 352 da indústria química. Mais de 60% das importações dos segmentos de substâncias químicas e matérias plásticas se realizaram sob o regime de admissão temporária, com o propósito de realizar exportações.

No contexto desse novo marco regulatório, as exportações químicas foram as que mais cresceram, ao longo da última década. Em 1992 o valor das exportações de química fina foi de US$ 43,6 milhões, correspondendo a 42% das exportações totais dos segmentos 351 e 352, representados por 43 produtos. Desses, 33 são intensivos em insumos importados e 10 em insumos nacionais. As exportações intensivas em insumos nacionais representam aproximadamente 25% das exportações de química fina e são produtos cárnicos, azeites essenciais, caceínas e seus derivados e destinam-se predominantemente aos países industrializados. Esses produtos, cuja origem dos insumos é a agropecuária, são também aqueles que apresentam maior peso nas importações de produtos da química fina uruguaia por países centrais. Entre as exportações concentradas em produtos químicos intensivos em importados, 85% estão dirigidas para o Mercosul.

Em 1992, 75% das exportações de química fina do Uruguai se dirigiam aos países do Mercosul, sendo 45% adquiridas pelo Brasil. Os produtos de maior importância para as exportações do Mercosul são os do segmento 3522 (medicamentos) e os do segmento 3523 (produtos de limpeza e essências), que totalizam mais de 55% das vendas para o Mercosul.

A indústria de química fina no Uruguai é composta de dois segmentos básicos, de acordo com a procedência da matéria-prima: os intensivos em insumos de origem agropecuária e os intensivos em produtos importados. Os primeiros são exportados a mercados desenvolvidos, onde sua competitividade decorre de vantagens comparativas naturais (clássicas). Os segundos puderam expandir seu comércio em nível intra-regional, em virtude dos acordos com países vizinhos e dos regimes especiais (principalmente de admissão temporária) que lhes permitiram chegar aos mercados exte­nos em condições artificialmente vantajosas.

3. EVOLUÇÃO DO PADRÃO DE COMÉRCIO BRASILEIRO DE QUÍMICA FINA NO MERCOSUL (1989-1992)

A evolução do padrão de comércio da indústria de química fina10 10 Para efeito desse levantamento empírico, definiu-se como química fina os segmentos compostos por matérias-primas, incluindo defensivos e outros segmentos derivados da química fina encontrados entre as posições 291822 e 294150 do sistema NBM-SH; a indústria farmacêutica (30) e de fertilizantes e adubos (31). A opção por incorporar esse último subsetor decorre da intenção de tornar a amostra mais representativa dos produtos agroquímicos. Na avaliação da indústria brasileira, agroquímico e farmoquímico e medicamentos constituiriam os ramos mais representativos da química fina. no Mercosul, entre 1989 e 1992, encontra-se expressa nas Tabelas 3.1 a 3.3. Embora as vendas brasileiras sejam significativas do ponto de vista das exportações do setor, as aquisições feitas pelo Brasil junto aos demais países da região são relativamente baixas.

Tabela 3.1:
Fluxo de comércio de química fina no Mercosul: 1989-1992 (US$)
Tabela 3.2:
Comércio brasileiro no Mercosul 1992: principais produtos
Tabela 3.3:
Padrão de comércio entre Brasil-Argentina e Brasil-Uruguai na indústria de química fina”: 1989-1992 - Comércio bilateral Brasil-Argentina

A Tabela 3.1 apresenta o fluxo comercial do Brasil com os demais países que participam da integração e revela, em primeiro lugar, a predominância de fluxos de trocas entre Brasil, Argentina e Uruguai. Entre 1989 e 1992, as exportações brasileiras aumentaram um pouco, passando de US$ 98,89 milhões para US$132,16 milhões, concentrados no segmento de matérias-primas (inclusive fármacos e defensivos), mantendo-se praticamente inalterada a participação da região nas vendas externas do setor nesse período (entre 27% e 28%). Já as importações sofreram sensível redução, saindo do patamar de US$ 66,69 milhões para US$ 37,15 milhões, igualmente concentrados no segmento de matérias-primas. As importações provenientes do Uruguai foram as que mais cresceram no período, atingindo o patamar de US$ 14,11 milhões em 1992, contra US$ 11,79 milhões em 1989, o que equivale a uma variação superior a 6% a.a. nesse período. As importações provenientes do Uruguai encontram-se bem distribuídas entre matérias-primas, medicamentos e defensivos, embora seja ligeiramente predominante o item medicamentos.

A distribuição do comércio brasileiro no Mercosul em termos dos principais produtos trocados em 1992 encontra-se expressa na Tabela 3.2. Os dez principais produtos correspondem a aproximadamente 52% das respectivas pautas de comércio, sendo que entre os cinco produtos mais exportados pelo Brasil três são adubos ou fertilizantes e os demais matérias-primas (inclusive fármacos, defensivos e corantes). Entre os principais produtos adquiridos pelo Brasil na região, predominam as matérias-primas, sendo que entre os produtos provenientes do Uruguai a matéria-prima importada correspondia ao item 2932190100 da NBM-SH (ranitidina e seus sais).

O padrão de comércio do Brasil com o Mercosul entre 1989 e 1992 encontra-se expresso na Tabela 3.3. Os dados revelam uma inserção essencialmente deficitária do setor, embora a existência de um comércio predominante intra-industrial entre Brasil e Argentina e Brasil e Uruguai no setor de matérias-primas seja um indicador a respeito das potencialidades de especialização da produção em linhas de produto específicas, com ganhos em termos de economia de escala e maior variedade dos produtos ofertados. Quanto à evolução das trocas com o Uruguai, no período examinado, percebe-se o predomínio das importações uruguaias sobre as exportações brasileiras, de modo que o comércio intra-industrial que correspondia a 89% do total da química fina, em 1989, diminuiria a 71% em 1991. O segmento de medicamentos apresenta uma situação particular: nesse setor, não apenas predominam trocas Inter setoriais como, desde 1991, percebe-se a existência de superávit em favor da indústria uruguaia. Entre 1990 e 1991, o volume de comércio entre Brasil e Uruguai aumentou em 98%, ao mesmo tempo que o superávit brasileiro verificado em 1990 se transforma em déficit de US$ 5,75 milhões. O aumento do fluxo comercial Inter setorial entre Brasil e Uruguai pode ser expressão de dois fenômenos não-excludentes a esse nível de análise. De um lado, as exportações uruguaias podem, naturalmente, refletir a maior competitividade das indústrias desse país. De outro, esta corrente de comércio pode expressar a simples ocorrência de “comércio triangular”, isto é, da aquisição do produto mais barato no exterior para posterior comercialização na região.

Há seis razões para se admitir que o crescimento das importações provenientes do Uruguai seja indício da existência de comércio “triangular” no setor11 11 Um comércio desse tipo ocorre quando determinada mercadoria de países não-membros é comercializada no Mercosul com os mesmos beneficias concedidos aos produtos fabricados na região em virtude de diferenças dos regimes de comércio exterior dos países e da inexistência de uma tarifa externa comum. . Em primeiro lugar, as exportações para o Mercosul são compostas de mercadorias distintas daquelas que compõem as vendas uruguaias para a CEE e para o Nafta, conforme atesta a Tabela 3.4, que ilustra, por exemplo, a existência de quatro produtos que somente são vendidos para o Mercosul. Em segundo lugar, para as regiões mais desenvolvidas, predominam produtos intensivos em insumos de origem (agro)pecuária, nos quais o país detém vantagens comparativas evidentes, tais como os extratos de fígados, fração I em pasta, fração II de fígado em pó (hepatoprotetores); ácidos biliares (hepatoprotetor); e a heparina (anticoagulante que provém do pulmão de bois ou suínos), enquanto para o Mercosul, e principalmente para o Brasil, predominam vendas de medicamentos que são intensivos em insumos importados. Em terceiro lugar, vigoram regimes comerciais distintos entre os países: principalmente entre Brasil e Uruguai, caso em que além do acordo de promoção comercial (PEC) entre ambos, o Brasil mantém tarifas externas elevadas e o Uruguai, alíquotas mais reduzidas. Em quarto lugar, os produtos vendidos para a CEE e para o Nafta figuram entre as mercadorias que são comercializadas com o exterior regularmente, por empresas como a Química TEC do Uruguay, a Syntex Uruguaya e a Derol S.A.12 12 As informações acerca da regularidade das exportações de cada produto foram obtidas a partir de Berretta & Cibils (1994). , enquanto os demais apresentam exportação eventual, sugerindo o aproveitamento de oportunidades pontuais para escoamento de produção excedente. Em quinto lugar, caberia ressaltar que, embora faltem indicadores quantitativos mais precisos, conforme discutido na seção 2, as indústrias brasileira e uruguaia de medicamentos apresentam graus de verticalização diametralmente opostos em função da história recente das políticas de promoção. Um indício a esse respeito poderia ser o número de empregados no setor (100 ou mais): esse número é compatível ao patamar de operação de laboratórios multinacionais (predominantemente desverticalizados) atuando no Brasil, mas não corresponde à quantidade de empregados em firmas verticalmente integradas de capital nacional. Por fim, conforme igualmente apontado na seção 2, a ampla maioria das exportações uruguaias é intensiva em insumos importados

Tabela 3.4:
Distribuição das exportações uruguaias de química fina: produtos selecionados (% sobre total do produto - 1992)

Esses aspectos explicariam o crescimento abrupto das exportações uruguaias entre 1990 e 1992 e implicam a discussão a respeito da definição de uma regra de origem eficaz que coiba esse tipo de conduta por parte de algumas empresas.

4. RECOMENDAÇÕES DE POLÍTICA: CRITÉRIOS PARA A ADOÇÃO DE REGRAS DE ORIGEM NA INDÚSTRIA DE QUÍMICA FINA

As regras de origem procuram estabelecer critérios para avaliar se o país de onde a mercadoria provém teria realizado a última operação significativa de transformação do produto. Para ser significativa, a última atividade de transformação não precisa, necessariamente, representar a maior parte do valor do produto, mas apenas alcançar os requisitos estabelecidos pelo país de destino.

As regras de origem podem adotar quatro procedimentos principais e não excludentes13 13 Conforme Morici (1992-1993) e USITC (1987). . O critério de transformação substantiva discrimina algumas etapas do processo produtivo referente a determinado segmento industrial, exigindo que sejam realizadas no país de origem. Esse procedimento é adotado pelos EUA, por exemplo, para a aplicação da cláusula de nação mais favorecida; para a aplicação de restrições quantitativas ao comércio internacional e para as compras públicas. Já o critério de valor adicionado impõe que determinada parcela do valor final do produto exportado tenha sido gerada em seu país de origem, sendo, por exemplo, uma das regras aplicada pelos EUA para o North American Free Trade Agreement (Nafta). Por seu turno, o critério de teste de processo determina a origem de uma mercadoria a partir da distinção feita entre produto final e insumos, fixada por uma classificação de produtos pré-estabelecida. O progresso tecnológico e a alteração permanente das relações técnicas de produção introduzem sérias dificuldades para a aplicação desse critério. Por último, a quarta modalidade constitui uma aproximação ao teste anterior e refere-se ao uso do Sistema Harmonizado de Tarifas empregado pelos países-membro do GATT. O critério consiste em exigir uma modificação na classificação do produto examinado com relação a seu insumo principal, que pode ser tanto em nível de capítulo, quanto de suas subdivisões14 14 Como se sabe, o Sistema Harmonizado de Tarifas é composto de 21 seções, numeradas a partir de algarismos romanos, que se subdividem em 99 capítulos (1 a 99), que por sua vez são divididos em grupos e subgrupos de acordo com o número de dígitos (4, 6, 8, 10 etc). . As principais vantagens desse procedimento residem em sua transparência, agilidade e fácil administração pública. Transparência, em particular, apresenta-se como atributo importante porque explicita facilmente a direção da proteção comercial concedida através da exigência de conteúdo local mínimo e, logo, revela o sentido da promoção industrial implícito na regra de origem.

De um modo geral, todos esses procedimentos procuram apresentar como características a fácil administração, a uniformidade entre os setores, a simplicidade de entendimento, a previsibilidade, a transparência e a eficiência, esta última referida à necessidade de desviar minimamente a indústria protegida da alocação de recursos mais eficiente. A aplicação desses critérios comporta uma certa margem para erro, e a ênfase em determinado aspecto normalmente ocorre às expensas dos demais. Por isso, usualmente, os países desenvolvidos aplicam uma combinação de dois desses mecanismos.15 15 Por exemplo, a exigência de um índice de 50% de valor adicionado pode ser alta no caso de uma indústria excessivamente internacionalizada e baixa em caso oposto, enquanto o critério de transformação substantiva torna muitas vezes a aplicação da regra inconsistente e arbitrária.

Atualmente, existe certa convergência para o uso do teste de valor adicionado e do teste de processo em função da aparentemente superior objetividade desses critérios. No âmbito do Nafta, as regras de origem foram baseadas tanto na exigência de patamar mínimo de agregação local (60% quando calculado a partir do preço FOB de transação ou 50% do custo líquido) do produto quanto na mudança de classificação do produto com relação a seu insumo principal, cujas exigências variam desde alterações a oito dígitos a até modificações em nível de capítulo.16 16 O conceito de “custo líquido” é mais restrito que a noção de “preço de transação” porque exclui os custos associados a pagamentos de royalties, promoção de vendas, embalagem e embarque. As metas com custo líquido são menos frequentes e se aplicam a casos especiais como, por exemplo, o de produtos mais sensíveis à integração. No setor automobilístico, o conceito é predominante e, dependendo do produto, o requerimento é de 60% ou 62,5%. O mesmo vale para a indústria de calçados, caso em que o valor adicionado mínimo é de 55%. Para uma discussão detalhada a respeito, ver Morici (1993).

No Mercosul, conforme estabelecido pelo Tratado de Assunção, somente serão considerados produtos locais, as mercadorias que forem classificadas em posição tarifária diferente de seus insumos e que tiverem 70% de seu valor agregado na região, guardando simetria com as tendências internacionais e, mais notadamente, com o Nafta. Não obstante esse mérito, essa metodologia concentra algumas dificuldades. No caso da indústria de química fina, as principais nuances encontram-se vinculadas às incompatibilidades metodológicas remanescentes entre os níveis mais desagregados das estruturas tarifárias da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai; e, principalmente, às limitações referentes ao critério de valor adicionado quando aplicado ao setor de química fina.

Na indústria de química fina, o preço final do produto é composto em aproximadamente 60% de custos não-operacionais (vinculados a promoção de vendas, embalagens, custos financeiros, margem da rede de distribuição etc.). Teoricamente, portanto, esse critério de origem admitiria tratar, como produto local, mercadorias provenientes de terceiros países que fossem submetidas a algum tipo de tratamento não estritamente industrial na região.

Para a indústria brasileira, essa situação configura um risco não desprezível. A química fina nacional representa um segmento do complexo químico em que o país não logrou completar o processo de substituição de importações. A dimensão do mercado brasileiro de medicamentos e de fertilizantes, entretanto, aliada ao volume das compras governamentais de remédios no Brasil e ao nível de consumo dos demais países do Mercosul criam novas oportunidades para alguns segmentos da indústria de química fina nacional, desde que protegidos de importações triangulares. Para coibir esse tipo de comércio seria indicado, em tese, adicionar, às atuais exigências, que o produto comercializado livremente na região fosse proveniente de uma transformação química que o classificasse em uma posição, a quatro dígitos, distinta do insumo principal17 17 Para que o processo produtivo contenha uma transformação química, é necessário que ocorra uma alteração molecular que dê origem a uma nova entidade química. Essa posição foi defendida também pela própria entidade de classe do setor (ABIFTNA) junto à Secretaria de Comércio Exterior (SECEX)/ Ministério da Ciência e da Tecnologia (MCT). .

Há duas ponderações importantes quanto ao uso desse tipo de critério para definição da origem do produto importado na indústria de química fina no Mercosul. A primeira delas refere-se ao fato de que, diferentemente do que ocorre no setor têxtil, por exemplo, a relação entre base técnica e produto final é relativamente estreita na indústria de química fina, posto que o acréscimo de uma única reação química pode gerar um novo elemento18 18 Uma indicação a esse respeito pode ser obtida a partir da comparação da estrutura dos capítulos referentes às indústrias de química fina e têxtil na NBM-SH brasileira. Mesmo sendo composta por um número de subdivisões menores em nível de capítulos e a 4 dígitos -enquanto a indústria têxtil encontra-se subdividida em 11 capítulos (2 dígitos) e 92 posições (4 dígitos), a indústria de química fina, considerando apenas os segmentos tratados no trabalho, estaria subdividida em 3 capítulos incompletos (parte do 29, além dos capítulos 30 e 31) e 44 posições (a 4 dígitos)- a diversidade de produtos fabricados obriga a existência de uma quantidade de classificações a 10 dígitos na indústria de química fina que é muito superior à da indústria têxtil. . Nesse caso, a diversidade de reações existentes elevaria sensivelmente o trabalho de classificação dos produtos importados, aumentando também as dificuldades que o poder público enfrentaria de administrar o uso desse critério. Outro aspecto importante no manuseio desse tipo de critério particular é ser seletivo em sua aplicação, restringindo sua abrangência a segmentos da indústria local efetivamente ameaçados por importações triangulares. Em se tratando de uma medida de política industrial, essas regras de origem deveriam evitar promover segmentos até então inexistentes, concentrando-se na proteção às linhas de produtos efetivamente fabricadas no Brasil19 19 Uma primeira amostra desses produtos pode ser obtida a partir do pleito da ABIFINA junto ao governo brasileiro de inclusão de certos fármacos na condição de exceções tarifárias (“ex”), após o rebaixamento de alíquotas promovido em março de 1994. Embora não-exaustiva, essa lista incluiria grande parte dos fármacos produzidos no Brasil nesta data. .

Nesse contexto, uma alternativa que poderia ser examinada consiste em adicionar, aos critérios vigentes, o requisito de valor agregado (por exemplo, 80%) calculado a partir do custo líquido do produto. De fato, no caso da indústria de defensivos, por exemplo, o Nafta estabeleceu exigência de 80% do valor adicionado baseado no custo líquido, ou 70% se o produto contiver mais de um ingrediente ativo. Embora consista em um instrumento de promoção industrial, esse tipo de critério evitaria os problemas associados às dificuldades de gerenciamento da exigência e ao efeito-demonstração possivelmente decorrente da adoção da metodologia alternativa.

Em se tratando de um pleito essencialmente de política industrial parece natural que mesmo uma medida desse tipo encontre resistência entre parceiros da integração cujos setores apresentem desníveis de competitividade muito elevados. Para os países menos eficientes, a atitude mais racional é a oposição a essas medidas, que implicaria em desvio de comércio e, logo, em um custo do processo de integração. Para o Brasil, entretanto, a adoção de critérios eficientes quanto à origem dos produtos implica criação de comércio, sendo, portanto, um benefício da integração. É igualmente razoável que governo e empresários brasileiros pleiteiem a fixação desse tipo de medida. Essa aparente incompatibilidade entre objetivos de países-membros seria solucionada no âmbito de uma discussão acerca do padrão de inserção internacional do Mercosul. A menos que se objetive uma inserção baseada em vantagens comparativas naturais, a definição de uma política industrial comum, que não obstaculize o processo de unificação comercial e que promova vantagens comparativas dinâmicas na região, a exemplo do que ocorre na Europa, parece imprescindível para o Mercosul.20 20 Um documento exemplar da política industrial europeia foi editado em 1990 sob o título “Industrial policy in an open and competitive environment”, pela Comunidade Econômica Europeia.

5. CONCLUSÃO

Esse trabalho procurou levantar evidências acerca da existência de comércio “triangular” de produtos de química fina no Mercosul e propor medidas complementares às existentes para coibir esse tipo de prática.

O crescimento abrupto das importações brasileiras provenientes do Uruguai, entre 1989 e 1992, constituiu-se no principal indício a respeito da existência de trocas “triangulares” por três motivos principais: o uso intensivo de insumos importados; as exportações serem realizadas por empresas de porte relativamente reduzido e capital nacional; e a irregularidade da atividade ao longo do tempo. Todos esses fatores se expressam em um outro fato estilizado que merece destaque, a saber, o fato de os produtos exportados pelo Uruguai para o Mercosul serem completamente distintos dos comercializados com o resto do mundo.

O principal estímulo à prática de comércio “triangular”, no caso examinado, reside na existência, entre parceiros de liberalização de comércio, de regimes diferenciados de proteção, com relação ao resto do mundo. Mesmo antes do Mercosul extinguir os obstáculos ao comércio entre Brasil e Uruguai, a vigência de acordos de preferência comercial entre ambos (PEC) possibilita esse tipo de prática, à medida que esses países, refletindo concepções industriais distintas, concedem diferentes níveis de proteção comercial a suas indústrias, com relação às importações provenientes de terceiros países.

O risco maior não seria de o Mercosul criar um problema de comércio triangular, mas de consolidar uma situação tendencial e potencialmente existente na química fina. Tampouco parece pertinente atribuir exclusivamente à indústria uruguaia a possibilidade de ameaçar, com esse tipo de comércio, a contraparte brasileira. Em um primeiro momento, o tipo de produto ofertado (genéricos) e a velocidade da abertura comercial do setor tomaram as exportações uruguaias mais evidentes. Com a sequência da liberalização comercial argentina, a supressão de entraves fitossanitários para a comercialização de especialidades argentinas no país e o desenvolvimento da produção local de genéricos, é possível admitir o crescimento também das importações provenientes da Argentina.

Enquanto o regime de comércio e a estratégia de desenvolvimento industrial permanecerem orientados para a expansão da produção local de fármacos no Brasil, as possibilidades das firmas nacionais se apropriarem dos benefícios provenientes do Mercosul estarão fortemente condicionadas à definição de uma regra de origem eficaz ou, em nível mais abrangente, de uma política industrial comum para a região. Em caso contrário, será inevitável que agentes econômicos em outros países do Mercosul expandam suas exportações para o Brasil, aproveitando vantagens artificialmente constituídas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • CORREA, P. G. & FREUNDT, B. (1994). “Mercosul, padrões de comércio e política industrial: o caso da indústria brasileira de química fina”. Relatório do Projeto de Competitividade Industrial BID-Mercosul. Mimeo. Rio de Janeiro.
  • KATZ, J. (1991). “Competitividad en la industria de farmoquimica”. Mimeo.
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  • MORICI, P. (1993). “Nafta Rules of origin and automotive contents requirements”. In S. Globerman and M. Walker: “Assessing Nafta: a Trinational analysis”. Fraser Institute. Vancouver.
  • QUEIROZ, Sérgio R. R. (1993). “A indústria brasileira de fármacos”. Estudo da Competitividade da Indústria Brasileira. Mimeo. IEI/UFRJ.
  • UNITED STATES INTERNATIONAL TRADE COMMISSION (1987): “Standardization of Rules of origin”. USITC Publication nº 1976. Washington D.C.
  • 1
    Entre todo o setor manufatureiro europeu, a indústria química foi a que apresentou maior número de fusões na Comunidade Europeia durante o biênio 1987-1988, equivalendo a 22% do total, sendo os segmentos de especialidades químicas e farmacêuticas os mais importantes. Esses segmentos corresponderam a, respectivamente, 17% e 16% das fusões/aquisições que ocorreram na indústria química européia em 1989.
  • 2
    Esse estudo calcula que os demais países do Mercosul representariam um mercado potencial da ordem de 140% da indústria brasileira nos casos de alguns produtos químico-farmacêuticos como, por exemplo, o ácido acetilsalicílico, a cimetidina e o propanol. Conforme Codetec (1992) apud Queiroz (1993QUEIROZ, Sérgio R. R. (1993). “A indústria brasileira de fármacos”. Estudo da Competitividade da Indústria Brasileira. Mimeo. IEI/UFRJ. ).
  • 3
    Não foi possível obter qualquer tipo de informação sobre a indústria de química fina paraguaia.
  • 4
    A química fina (QF) é uma denominação genérica que abrange, principalmente, produtos dos segmentos industriais de fármacos, defensivos agrícolas, corantes e pigmentos, aditivos para materiais (plásticos, fibras e elastômeros), detergentes, aditivos para lubrificantes, fragrâncias, aromas etc. A química fina distingue-se da química básica pelo fato de gerar produtos de alto valor agregado. Costuma-se classificar como produto de QF aquele com preço superior a US$ 3,001kg, embora essa classificação nem sempre seja adequada, de modo que a própria definição da indústria costuma ser objeto de amplo debate. Essa delimitação pouco precisa e a heterogeneidade de setores que a compõem fizeram com que este trabalho abordasse basicamente três ramos da química fina, a saber, o de matérias-primas, medicamentos e agroquímicos. Esta opção metodológica deriva da importância quantitativa desses segmentos sobre os demais (principalmente no caso de medicamentos e agroquímicos) e de sua importância como gerador e difusor do progresso técnico na indústria (matérias-primas). A indústria como um todo, naturalmente, abrange outros segmentos, como o de catalisadores; corantes e pigmentos; e de essências e perfumes.
  • 5
    Esta subseção baseia-se em Cesarone (1994CESARONE, E. C. (1994). “Química Fina-Argentina”. Relatório do Projeto de Competitividade Industrial BID-Mercosul. Mimeo. ), a menos que seja indicado o contrário.
  • 6
    A análise subsequente encontra-se fortemente baseada em Katz (1991KATZ, J. (1991). “Competitividad en la industria de farmoquimica”. Mimeo. ).
  • 7
    Esta subseção baseia-se em Correa & Freundt (1994CORREA, P. G. & FREUNDT, B. (1994). “Mercosul, padrões de comércio e política industrial: o caso da indústria brasileira de química fina”. Relatório do Projeto de Competitividade Industrial BID-Mercosul. Mimeo. Rio de Janeiro. ), a menos em caso de indicação contrária.
  • 8
    De um lado, a política de substituição de importações orientou as atividades para um mercado insuficiente, segundo as escalas necessárias adequadas à expansão da produção local de insumos farmacêuticos. De outro, a aquisição de fármacos no exterior constitui um componente dominante da conduta das firmas subsidiárias de laboratórios multinacionais porque possibilita a diluição dos custos médios de produção e de pesquisa incorridos pela matriz, viabiliza escalas ótimas de produção para ambos e possibilita a transferência de lucros para o exterior.
  • 9
    Esta subseção baseia-se em Berretta e Cibils (1994), a não ser em caso de indicação contrária.
  • 10
    Para efeito desse levantamento empírico, definiu-se como química fina os segmentos compostos por matérias-primas, incluindo defensivos e outros segmentos derivados da química fina encontrados entre as posições 291822 e 294150 do sistema NBM-SH; a indústria farmacêutica (30) e de fertilizantes e adubos (31). A opção por incorporar esse último subsetor decorre da intenção de tornar a amostra mais representativa dos produtos agroquímicos. Na avaliação da indústria brasileira, agroquímico e farmoquímico e medicamentos constituiriam os ramos mais representativos da química fina.
  • 11
    Um comércio desse tipo ocorre quando determinada mercadoria de países não-membros é comercializada no Mercosul com os mesmos beneficias concedidos aos produtos fabricados na região em virtude de diferenças dos regimes de comércio exterior dos países e da inexistência de uma tarifa externa comum.
  • 12
    As informações acerca da regularidade das exportações de cada produto foram obtidas a partir de Berretta & Cibils (1994).
  • 13
    Conforme Morici (1992MORICI, P. (1992). “Rules of origin for a North-American Free Trade Accord”. The Fraser Institute. Vancouver. -1993MORICI, P. (1993). “Nafta Rules of origin and automotive contents requirements”. In S. Globerman and M. Walker: “Assessing Nafta: a Trinational analysis”. Fraser Institute. Vancouver. ) e USITC (1987UNITED STATES INTERNATIONAL TRADE COMMISSION (1987): “Standardization of Rules of origin”. USITC Publication nº 1976. Washington D.C.).
  • 14
    Como se sabe, o Sistema Harmonizado de Tarifas é composto de 21 seções, numeradas a partir de algarismos romanos, que se subdividem em 99 capítulos (1 a 99), que por sua vez são divididos em grupos e subgrupos de acordo com o número de dígitos (4, 6, 8, 10 etc).
  • 15
    Por exemplo, a exigência de um índice de 50% de valor adicionado pode ser alta no caso de uma indústria excessivamente internacionalizada e baixa em caso oposto, enquanto o critério de transformação substantiva torna muitas vezes a aplicação da regra inconsistente e arbitrária.
  • 16
    O conceito de “custo líquido” é mais restrito que a noção de “preço de transação” porque exclui os custos associados a pagamentos de royalties, promoção de vendas, embalagem e embarque. As metas com custo líquido são menos frequentes e se aplicam a casos especiais como, por exemplo, o de produtos mais sensíveis à integração. No setor automobilístico, o conceito é predominante e, dependendo do produto, o requerimento é de 60% ou 62,5%. O mesmo vale para a indústria de calçados, caso em que o valor adicionado mínimo é de 55%. Para uma discussão detalhada a respeito, ver Morici (1993MORICI, P. (1993). “Nafta Rules of origin and automotive contents requirements”. In S. Globerman and M. Walker: “Assessing Nafta: a Trinational analysis”. Fraser Institute. Vancouver. ).
  • 17
    Para que o processo produtivo contenha uma transformação química, é necessário que ocorra uma alteração molecular que dê origem a uma nova entidade química. Essa posição foi defendida também pela própria entidade de classe do setor (ABIFTNA) junto à Secretaria de Comércio Exterior (SECEX)/ Ministério da Ciência e da Tecnologia (MCT).
  • 18
    Uma indicação a esse respeito pode ser obtida a partir da comparação da estrutura dos capítulos referentes às indústrias de química fina e têxtil na NBM-SH brasileira. Mesmo sendo composta por um número de subdivisões menores em nível de capítulos e a 4 dígitos -enquanto a indústria têxtil encontra-se subdividida em 11 capítulos (2 dígitos) e 92 posições (4 dígitos), a indústria de química fina, considerando apenas os segmentos tratados no trabalho, estaria subdividida em 3 capítulos incompletos (parte do 29, além dos capítulos 30 e 31) e 44 posições (a 4 dígitos)- a diversidade de produtos fabricados obriga a existência de uma quantidade de classificações a 10 dígitos na indústria de química fina que é muito superior à da indústria têxtil.
  • 19
    Uma primeira amostra desses produtos pode ser obtida a partir do pleito da ABIFINA junto ao governo brasileiro de inclusão de certos fármacos na condição de exceções tarifárias (“ex”), após o rebaixamento de alíquotas promovido em março de 1994. Embora não-exaustiva, essa lista incluiria grande parte dos fármacos produzidos no Brasil nesta data.
  • 20
    Um documento exemplar da política industrial europeia foi editado em 1990 sob o título “Industrial policy in an open and competitive environment”, pela Comunidade Econômica Europeia.
  • 21
    JEL Classification: F15; F13; L65.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1995
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