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Câmbio, dolarização e competitividade* * Traduzido por Ricardo B. Costa.

Exchange rate, dollarization and competitiveness

RESUMO

Diferentemente de situações anteriores, a inflação no Brasil segue um equilíbrio muito difícil: continua muito alta, mas não explode em hiperinflação. Este processo leva a um produto fraco e distorções persistentes baseadas na inflação. O autor sugere uma solução de inspiração coreana, onde o Estado tem um papel ativo na promoção de indústrias e exportações. Um instrumento importante é a taxa de câmbio.

PALAVRAS-CHAVE:
Câmbio; dolarização; crescimento econômico; inflação

ABSTRACT

Differently from previous situations, inflation in Brazil follows a very difficult equilibrium: it remains very high, but do not explode in a hyperinflation. This process leads to faint output and persistent inflation-based distortions. The author suggests a Korean-inspired solution, where the State has an active role in promoting industries and exports. An important instrument is the exchange rate.

KEYWORDS:
Exchange rate; dollarization; economic growth; inflation

O lugar que o Brasil vai ocupar na economia mundial dependerá de sua capacidade de superar rapidamente uma crise econômica, financeira e social, que é uma das mais graves de sua história.

A característica principal dessa crise é, provavelmente, sua duração. Geralmente qualificamos de não duradouras as situações em que a hiperinflação é iminente. Em níveis muito altos de inflação, o equilíbrio parece precário. A hiperinflação se instala, explode e, visto que a incerteza sobre o futuro cresce e o cálculo econômico se torna muito difícil - senão impossível -, a escalada hiperinflacionária deveria levar a uma paralisação do processo de compra e venda de bens. Assim, a própria hiperinflação se destruiria. Este é o cenário sugerido pelas experiências europeias do entreguerras e do pós-guerra imediato.

Essa concepção de hiperinflação enfatiza a rapidez e a brevidade do processo. Entretanto, não é absolutamente isso o que se observa na América Latina e mais particularmente no Brasil. A inflação, em níveis muito altos, se mantém estável durante períodos de tempo relativamente longos, depois se acelera, em seguida arrefece por um período curto e assim sucessivamente, sem que os atos de compra e venda sejam verdadeiramente afetados. A produção continua a se desenvolver, porém em ritmo mais lento que no decênio precedente e, sobretudo, de modo muito mais irregular. Se nesse caso a competitividade parece levemente afetada, é mais em função de uma política de valorização do câmbio, conduzida pelos sucessivos governos, do que em virtude de uma modernização insuficiente e de custos salariais demasiado elevados. A hiperinflação parece, então, estar iminente: reprimida, mas sempre ameaçadora, manifesta-se em patamares sempre mais elevados, de modo que certas pessoas, sob influência da cultura inflacionária, começam a chamar de inflação a aceleração da inflação.

A bem da verdade, a experiência recente mostra ser necessário que os economistas introduzam o fator tempo nas suas análises e elaborem uma teoria do caos, como fizeram os físicos com o famoso movimento browniano. É preciso pesquisar as leis que regulam a catástrofe e aceitar intelectualmente que o que parece impossível pode acontecer e durar, que a dinâmica das situações e das medidas tomadas pode levar a posições que se poderiam chamar de barrocas, cuja lógica só pode ser encontrada no estudo dos efeitos perversos (porque não previstos pelas correntes dominantes e porque levam a resultados opostos aos procurados). Assim acontece, por exemplo, no caso de conversão de uma dívida externa, que é negociável pelo menos da questão dos prazos e das taxas, e também no caso de uma dívida interna de curtíssimo prazo, de valor equivalente ao da dívida externa, situações estas em que não se percebe bem como introduzir a negociação. O tratamento dado à dívida externa conduziu ao desenvolvimento de uma verdadeira bomba-relógio, não só no Brasil, mas também na Argentina e em muitos outros países, sem que com isso ela tenha sido sensivelmente reduzida, apesar de superávits significativos na balança comercial. Da mesma maneira não obstante as medidas adotadas para reduzir a desigualdade na distribuição da renda (lembremos que a razão entre a renda dos 20% mais ricos e a dos 20% mais pobres é, no Brasil, cinco a seis vezes maior do que a observada na Coréia do Sul), assiste-se ao agravamento de sua má distribuição, com a característica, que é nova, de ser bipolar; e isso graças à evolução das rendas não salariais - financeiras - e ao empobrecimento dos mais pobres.

Nesses longos períodos de instabilidade, as previsões adquirem uma virtude mágica: parecem poder explicar tudo. A solução dos problemas se resumiria, então, à credibilidade de uma política econômica. Desaparecem todos os aspectos estruturais da inflação: as relações de causalidade entre as transferências de capitais a título de serviço da dívida externa, os déficits orçamentários e a aceleração do processo de aumento dos preços deram lugar aos comportamentos e, para certas pessoas, à sabedoria desses comportamentos, que passam a ser qualificados de racionais.

Por um desses retornos surpreendentes que a história nos reserva, ressurge o liberalismo, propondo menos Estado e mais mercado, uma redução dos gastos públicos e uma redução da demanda.

Gostaria de mostrar que a solução da crise exige outros meios. Deve-se fortalecer o papel do Estado e, neste particular, seria bom seguir o exemplo coreano. Deve-se implementar uma política industrial que faça com que os preços relativos adquiram um pouco mais de coerência e estimule a modernização, com vistas a uma abertura maior da economia. E uma política social, cujo objetivo seria reduzir a marginalização, deveria poder dar ao mercado interno um pouco mais de dinamismo, associando-o ao crescimento do mercado externo.

Não se procura aqui discutir todos esses temas. Gostaria de me limitar ao papel do câmbio e dos preços relativos no desenvolvimento da inflação, e discutir, a partir deste estudo, as possibilidades de uma modernização tal, que a própria abertura da economia possa dinamizar a economia.

Em primeiro lugar o câmbio, porque o governo desempenhou e desempenha um papel ativo na sua determinação, seja desvalorizando a moeda nacional a fim de facilitar as exportações, seja, de maneira inversa, sobrevalorizando-a, para reduzir as taxas de inflação. Se, por um lado, essa política deu certo porque existia um parque industrial capaz de responder ao subsequente aumento da demanda internacional, por outro, ela fracassou: a diferença entre a taxa de câmbio oficial e a paralela foi aumentando e os preços foram sendo mais ou menos indexados de acordo com esta última taxa, contribuindo para uma maior dolarização da economia e para uma exacerbação da inflação. Nesta situação, é grande a tentação de remediar o insucesso por meio da supressão da taxa de câmbio paralelo, da liberalização do câmbio e da busca de uma valorização. A experiência mexicana aparentemente dá razão aos que preconizam este tipo de abertura liberal. Um estudo mais cuidadoso da experiência, porém, mostra que a indústria tem dificuldade em reencontrar um segundo impulso, mesmo que os salários reais tenham sido muito reduzidos e, principalmente, que o superávit comercial tenha quase totalmente desaparecido. Deveria bastar à reflexão sobre as virtudes desta política uma referência ao caso da Argentina de 1978 - quando se instituiu a tablita - ou um pouco depois (um ou dois anos), quando se lançou uma política sistemática de valorização do câmbio: o déficit comercial reapareceu, paralelamente à paralisação da produção e ao achatamento dos salários. Estas duas experiências e as lições que se pode depreender da evolução dos principais agregados dos últimos anos no Brasil induzem a preconizar outras soluções, que aliem forte desvalorização a uma política industrial mais eficaz e a um congelamento de preços com base na indexação inicial dos preços aos salários.

Em segundo lugar, os preços relativos, porque eles parecem ser o resultado dos diferentes comportamentos dos agentes. Mostraremos que a estrutura de preços relativos desempenha um grande papel no desenvolvimento da inflação, não só por causa das modificações de sua dispersão, mas também e principalmente por causa de sua evolução no sentido de uma certa incoerência.

Apresentaremos, rapidamente, os principais ensinamentos dos modelos centrados na abordagem monetarista do balanço de pagamentos ante a relação câmbio/expectativas/preços; depois, mais detalhadamente, nossa abordagem dessa relação a partir das funções da moeda; em seguida, algumas reflexões sobre a competitividade e a modernização.

I.

A relação câmbio/expectativas/preços tem sido frequentemente analisada. Dos casos de hiperinflação, a experiência alemã do período entre guerras tem sido privilegiada, especialmente pelos monetaristas. É dela que trataremos, com base na apresentação geral recentemente feita por J. A. Frenkel.1 1 Frankel J. A. “Monetary and Portfolio Balance Models of Exchange Rate Determination.” In: Economic Interdependence and Flexible Exchange Rates, editado por J. S. Bhandari e B. H. Putnam, MIT Press, 1984. O modelo de referência é sobretudo o de J. Frenkel: “The Forward Exchange Rate, Expectations and the Demand for Money: the German Hyperinflation”. A. E. R., no. 67, 1977.

As hipóteses do modelo de Frenkel são fortes e as aceitaremos, por enquanto. São elas: livre circulação de bens e de capitais, perfeita substitutibilidade entre bens nacionais e estrangeiros, propriedade esta compartilhada pelos títulos. Os preços são perfeitamente flexíveis, tanto para subir como para baixar. Supõe-se também a paridade dos poderes de compra.

Segundo Frenkel, a determinação da taxa de câmbio do país A em relação ao país B depende das variações relativas da oferta de moeda, dos níveis de produção e da modificação relativa nas expectativas de preços. Se considerarmos desprezível o efeito a longo prazo de um aumento da massa monetária sobre a renda e se supusermos então que essa variação é nula, obteremos uma relação direta e indireta entre a taxa de câmbio e a massa monetária: direta porque a taxa de câmbio depende da variação relativa da massa monetária; e indireta porque a variação (relativa) dos preços esperados é, no caso da teoria monetarista, comandada pelas variações (relativas) das massas monetárias em cada um dos países.

A partir desses resultados teóricos, pode-se perguntar o que determina a taxa de câmbio futura. Devem-se considerar duas taxas de câmbio (à vista e a prazo) e fazer uma hipótese suplementar: supõe-se que o mercado seja eficiente. Segundo essa hipótese, o conjunto de informações de que o mercado dispõe é imediatamente utilizado pelos agentes para suas previsões de rendimentos. Esta hipótese significa que todos os agentes atuantes no mercado fazem as mesmas previsões e que estas são racionais em relação ao modelo disponível no momento em que as formulam. Trata-se, evidentemente, de uma hipótese forte.

De acordo com ela, a taxa de câmbio a prazo representa a antecipação da evolução das taxas de câmbio correntes. Mais precisamente, a taxa de câmbio a prazo é igual à esperança matemática da taxa de câmbio à vista no vencimento do prazo.2 2 Esta relação tem sido frequentemente testada, com resultados não muito convincentes. O próprio Frenkel considera que, para os períodos hiperinflacionários, a taxa de câmbio prevista é geralmente inferior à taxa de câmbio realizada (esta “subestimativa” teria como origem o tempo de aprendizagem dos agentes).

Segundo J. Frenkel, a relação entre as taxas de juros e a variação da taxa de câmbio prevista pode ser interpretada da seguinte maneira: o aumento (relativo) da taxa de juros em um país leva a um aumento da diferença existente entre a taxa de câmbio a prazo e a taxa de câmbio corrente. Como a taxa de câmbio a prazo corresponde a uma previsão da evolução da taxa de câmbio, a taxa de câmbio corrente é valorizada. Esta relação entre a taxa de juros e a taxa de câmbio a prazo tem sido igualmente estimada muitas vezes. Segundo Frenkel, essas estimativas seriam convincentes para os períodos hiperinflacionários.

Pode-se deduzir da paridade dos poderes de compra, válida por hipótese, uma relação entre a variação prevista da taxa de câmbio e as variações previstas dos preços em cada um dos países, considerando que as variações previstas da taxa de câmbio refletiriam as variações dos preços. A justificativa para esta nova relação pode ser encontrada na determinação da taxa de juros. Pode-se mesmo considerar que a determinação da taxa de juros é dominada pelas previsões de preços e, como as variações da taxa de juros se refletem na taxa de câmbio a prazo, as variações desta última constituem um bom indicador das expectativas de preços.

Essa relação é muito importante. A taxa de câmbio a prazo - expressão das expectativas em torno da taxa de câmbio à vista - reflete as expectativas de preços. Ela é muito utilizada, explícita ou, com mais frequência, implicitamente pelos teóricos da hiperinflação, que substituem amiúde a taxa de câmbio a prazo pela do mercado paralelo. Teríamos então: variação da taxa de câmbio paralelo - variação dos preços previstos - variação dos preços (se as previsões se realizarem).

É preciso lembrar que essa relação, como apresentada, repousa em hipóteses altamente contestáveis: estabilidade na função de demanda da moeda, paridade dos poderes de compra, mercado eficiente.

É verdade que as variações da taxa de câmbio paralelo alimentam as expectativas inflacionárias. A teorização monetarista, com os encadeamentos que a caracterizam, encontra nas situações hiperinflacionárias uma aparente comparação. Dessa teorização são deduzidos logicamente os remédios - é grande a tentação de dizer o remédio, de tão simples que ele é: basta reduzir a oferta de moeda, suprimindo o déficit orçamentário pela redução das despesas públicas, e retirar-se o Estado da economia.

II.

Rejeitam-se as hipóteses monetaristas. A função de demanda da moeda não é estável, os mercados não são eficientes, a paridade dos poderes de compra não é respeitada e as expectativas não são racionais no sentido de Muth.

Quando a indexação é completa e imediata - caso-limite hipotético - a estrutura de preços relativos se preserva. O índice de referência desempenha seu papel de unidade de conta. Quando a inflação se acelera e a indexação não é nem completa, nem imediata - num caso mais geral - o índice de referência é contestado. É por isso que vários índices coexistem. O dólar tende então a substituir os outros índices. A economia se torna dolarizada: uma das funções essenciais da moeda não é mais desempenhada totalmente pela moeda local. Essa dolarização3 3 Salama, Pierre. Dolarização, São Paulo, Nobel, 1989. , no entanto, não consegue preservar a estrutura de preços relativos. Alimentada por causas estruturais e pelas expectativas sobre a taxa de câmbio, a inflação cresce e a dolarização se estende, comprometendo a função de circulação da moeda local. Esta desmonetização não cria, portanto, a inflação (como mostram matematicamente as equações utilizadas por Bruno ou Dornbusch4 4 ‘Bruno, M. “Econometric and the Design of Economics Reform.” Econométrica, vol. 57, p. 2, março, 1989. Podemos igualmente nos referir a Dornbusch, R. e Fischer, S. “Stoping Hiperinflation, Past and Present”. In: Weltwirtschafliches Archiv, Bd CXXII, 1986; e também a Dornbusch, R. e De Pablo, Deuda Externa y Instabilidad Macroeconomica en la Argentina, Ed. Sudamericano, 1988, para uma apresentação ligeiramente diferente. ). Ela a acompanha. É a substituição da função de unidade de conta que alimenta o processo hiperinflacionário e não a substituição da moeda enquanto meio de circulação. É isso que vamos mostrar.

a) A estrutura de preços relativos e a indexação

1. A estrutura de preços relativos desempenha um papel importante. As suas modificações e incoerência crescente - terminologia que definiremos - alimentam a aceleração da inflação. Esta tese, que nos propomos demonstrar, supõe a existência de uma estrutura de preços relativos que se poderia qualificar de equilíbrio, já que sua modificação alimenta a alta dos preços. A indexação visa a preservar essa estrutura da incoerência e, ao fazê-lo, impede que os aumentos de preços se acelerem. A inflação adquire então um aspecto regular, inercial, vale dizer, repetitivo.

O estudo dos preços relativos e de sua estrutura está pouco desenvolvido em economia,5 5 ‘Existem, por certo, algumas exceções, que encontramos geralmente entre os economistas estruturalistas. A esse propósito, temos o artigo precursor de Oliveira, J. H. G., “On Structural Inflation and Latin American ‘Structuralism ‘?”, Oxford Economic Papers, 1964; e, mais recentemente, os artigos de Alberro, J., “La Dinamica de los Precios Relativos en un Ambiente Inflacionario”, Estudios Economicos, México, 1987; de Tella, Guido de, “El Último Ciclo Inflacionario Argentino: 1979-1985.” In: La Crisi de la Deuda en America Latina, Thorp, R. e Whitehead, L. (Eds.) Siglo 21, 1986, o livro de Ramos, Carlos Alberto: Agricultura e Inflação: a Abordagem Estruturatista, BNDES, 1986, que apresenta uma abordagem interessante sobre a questão; e os dois estudos comparados nas obras da ANPEC (Fortaleza, Brasil, dezembro, 1989): Luque, C. A. e Lopes L. M. “Conflito Distributivo, Déficit Público e Inflação”; Espejo, A. O., “Inflação Residual e Preços Relativos nos Experimentos Heterodoxos”. tendo como ponto de partida o estudo do valor. Nestes últimos anos, esta questão tem sido cada vez menos abordada pelas outras correntes de pensamento, a não ser no contexto da renovação da teoria do equilíbrio geral. Os keynesianos em geral preferem limitar-se ao estudo da determinação dos preços, refinando a análise em termos dos mark ups e de estratégias de preços; os marxistas de um modo geral estão paralisados pelo refluxo do marxismo, que se seguiu às consequências do stalinismo e à falência do socialismo real, e pela dificuldade que têm em superar alguns problemas relativos ao paradoxo da transformação de valores em preços de produção. À parte, então, a análise dos preços relativos em termos de equilíbrio e com as conhecidas dificuldades de integrar a moeda de maneira coerente, os preços relativos não são estudados em nível teórico, com algumas exceções.6 6 Especialmente nas análises que estabelecem uma relação estreita entre o Estado e a economia. Geralmente se demonstra que a ação do Estado sobre os preços provoca e/ou acompanha avanços tecnológicos. Agindo sobre a tendência à distribuição homogênea das taxas de lucro, essa ação facilita a emergência de segmentos industriais completos. Esta análise, baseada na análise do valor e, mais precisamente, na da transformação de valores em preços de produção, mostra que a lei do valor só pode vigorar quando alterada pela intervenção do Estado. A ação do Estado sobre a estrutura de preços relativos coloca-o assim no centro do processo de acumulação e não ao seu lado, como fazem às vezes os keynesianos, mas sobretudo os neoclássicos e, mais especialmente, os monetaristas e novos clássicos. Ainda que dê margem a pesquisas interessantes, esta interpretação é limitada pelas insuficiências atuais da teoria do valor. Ver Matias, G. e Salama, P., L ‘État Surdéveloppé, Paris, La Découverte, 1983. Publicado em português pela Editora Brasiliense, 1984.

Existem muitas análises empíricas, ou teórico-descritivas, sobre preços relativos específicos, como a taxa dos salários em relação à taxa de juros, o preço dos bens de capital em termos dos bens de consumo, os preços do setor industrial em relação aos dos serviços e/ou dos produtos agrícolas, os preços internos em relação aos preços no exterior, mas muito poucos estudos teóricos sobre o preço do bem A em relação ao preço do bem B, C ou N.

São essas insuficiências que nos conduzem a um certo pragmatismo teórico: a estrutura de “equilíbrio” dos preços relativos seria aquela existente nas fases de expansão recente do capitalismo e a análise dos movimentos no seio desse conjunto de preços se faria segundo essa norma.7 7 É praticamente isto que fazemos quando tratamos da taxa de câmbio: o abandono da teoria da paridade dos poderes de compra, sem a existência de uma teoria substitutiva, leva-nos a considerar as evoluções da taxa de câmbio real efetiva em relação a uma taxa de câmbio de uma certa data. Diríamos, por exemplo, que a taxa de câmbio estava sobrevalorizada em relação ao dólar na maioria dos países do Terceiro Mundo no final dos anos 70, que ela estava subvalorizada de 1982 a 1986, sem poder verdadeiramente dizer se a taxa de câmbio em determinada data correspondia, per se, a uma taxa de equilíbrio. O equilíbrio, fica, assim, reduzido à estabilidade mais pragmática.

2. A estrutura de preços relativos muda. A indexação visa a preservá-la de qualquer mudança. Mas ela não o consegue porque não é nem completa, nem imediata. O nível geral de preços é a média de um conjunto de preços. A evolução deste nível depende da evolução de diferentes preços. Portanto, estes evoluem diferentemente no tempo e, assim, os preços relativos no tempo t não são os mesmos do tempo t-1. Conhecem-se para isso inúmeras razões: há preços administrados e preços que sofrem a concorrência externa e/ou interna; há a influência do progresso técnico, diferente de setor para setor; há os efeitos das crises, mesmo que parciais, sobre a desvalorização-depreciação dos produtos de alguns ramos de atividade; há, enfim, a influência da política industrial e/ou social do governo sobre os preços de certos produtos, seja para favorecer seu consumo, seja para estimular ou frear sua produção. Outras razões são menos conhecidas: trata-se principalmente dos mecanismos de indexação formais (isto é, institucionalizados) e/ou principalmente os de indexação informal dos preços entre si.

Os preços não evoluem independentemente uns dos outros. As interdependências resultam do lugar que as mercadorias ocupam na produção de outras, das estratégias em relação à demanda, da complementaridade - forte ou fraca - de certos produtos entre si. Quando um preço sobe, outros preços, depois de um período de “indiferença” mais ou menos longo, sobem a uma taxa que expressa simultaneamente a deterioração do preço relativo, a necessidade de alcançar os efeitos acumulados dessa deterioração no tempo e de prevenir futuras deteriorações por algum tempo e, finalmente, a possibilidade de fazê-lo, conforme pertençam a um setor competitivo, protegido ou regulamentado.

Um gráfico nos permitirá captar a magnitude dessas evoluções:

Gráfico

Sejam três produtos A, B, C. As estruturas de preços relativos são:

Pa<Pc<Pb,

Pa<Pb<Pc,

Pa<Pc<Pb

e finalmente

Pc<Pb<Pa

A estrutura de preços relativos é diferente em cada caso. Essas evoluções dependem de vários fatores: da indexação, formal (institucionalizada) ou não; do tipo de índice, como veremos e como já tínhamos ressaltado; e dos diferentes prazos que os diversos bens levam para reajustar seus preços. A aceleração da inflação tende a provocar estes movimentos desestabilizantes. O preço de um produto i procura encontrar sua coerência com relação aos outros produtos num contexto de evolução rápida e um pouco desordenado (no começo), e, simultaneamente, recuperar os atrasos resultantes das novas estruturas de preços relativos.

Como a indexação não é nem completa, nem imediata, a estrutura de preços relativos não se estabiliza.

Se movimentos irregulares desse tipo continuassem a se suceder, a estrutura de preços relativos poderia paralisar os atos de compra e venda, impedindo a produção de certos produtos, ao mesmo tempo que favoreceria a produção de outros, graças aos efeitos perversos provocados pelas novas estruturas de preços relativos.Essa estrutura se tornaria então mais ou menos incoerente8 8 A incoerência é assim definida pelo seu contrário e padece das mesmas insuficiências teóricas que as estruturas de equilíbrio correspondentes aos períodos de crescimento rápido. Não é definida em termos conceituais, mas é a que produz a paralisação da produção de um número significativo de bens. (paralelamente à dispersão dos preços relativos9 9 Observe-se que a dispersão dos preços relativos, mesmo que ligeira, geralmente observada em períodos de aceleração inflacionária (mas também, e de modo mais significativo, em períodos de congelamento dos preços, conforme o estudo de Espejo citado), não significa necessariamente uma incoerência desses preços. A incoerência (ou a coerência) introduz de fato a ideia de classificação e não apenas de dispersão. Pode-se ter uma crescente incoerência sem aumento da dispersão. ).

Antes que esta incoerência seja atingida, as modificações da estrutura de preços relativos produzem dois efeitos: o período de estabilidade de um preço - e por outro lado de deterioração de sua posição relativa - se encurta; a indexação tende a se generalizar e, com o questionamento da fidedignidade dos índices, surgem novos indicadores com a função de refletir melhor e sobretudo mais rapidamente a evolução da inflação.

Mais precisamente, assim que a inflação atinge um certo nível e se acelera, o índice de preços é contestado e se torna um mau indicador para efetuar a indexação por várias razões. A primeira é bastante evidente: o nível geral dos preços corresponde ao do mês anterior, no melhor dos casos, de tal maneira que o prazo começa a se mostrar longo. Deseja-se um indicador mais sensível à conjuntura imediata. A segunda é igualmente conhecida: a neutralidade do índice é contestada: ele propicia uma redistribuição da renda em favor de certos grupos sociais e em detrimento de outros.

Os exemplos de questionamento desse índice são numerosos: por ocasião das negociações salariais, novos índices são frequentemente propostos, seja por aqueles mais afetados pela inflação, seja pelos que consideram que é necessária uma redução da participação dos salários no valor adicionado para reduzir a taxa de inflação. Os salários são então indexados por um índice indicativo de qual deveria ser a evolução dos preços, evolução esta avaliada abaixo da inflação real do passado recente.

Um outro exemplo interessante é menos conhecido. Quando os preços são administrados pelo governo e existem simultaneamente uma inflação muito forte e um processo de aceleração inflacionária, a escolha do índice se torna crucial. Assim, os agricultores do Brasil pediam recentemente que seus preços fossem calculados em moeda local e indexados ao dólar no paralelo, por duas razões: a primeira resultava da política de valorização da moeda nacional em relação ao dólar, adotada depois de 1987, que implicava a subestimação de seus preços em moeda nacional; a segunda era a diferença crescente entre o dólar oficial e o dólar paralelo. Este exemplo é interessante porque mostra que, assim que a inflação se acelera, o dólar assume rapidamente o papel de indicador a ser usado na indexação; ele ou qualquer título a ele indexado.

Os dois exemplos mostram que, muito rapidamente, com o desenvolvimento da inflação além de um certo limite, um outro índice é procurado. As qualidades exigidas são maior capacidade de refletir os acontecimentos mais próximos e, quando a situação se deteriora, ser um bom indicador do futuro próximo. A indexação feita com esse novo índice reduz consideravelmente os prazos e deveria permitir uma deterioração menos importante da estrutura de preços relativos.

Mas não são indexados os preços de todos os bens e, quando o são, os índices que servem de referência não são os mesmos, de modo que os problemas anteriormente assinalados se reproduzem, porém a uma outra velocidade. Jamais ocorre, contudo, uma indexação completa e a estrutura de preços relativos evolui ao sabor dos descompassos e do tipo de índice que serve à indexação.

b) A dolarização favorece a aceleração da inflação

Quando a inflação atinge um certo nível e se acelera, a indexação passa a referir-se à cotação do dólar. Este indicador se torna mais confiável que os outros. É certo que nem todas as mercadorias são por ele indexadas, mas a referência à cotação do dólar se torna cada vez mais frequente na determinação dos preços. A moeda perde parcialmente uma das suas funções, a de unidade de conta, em favor do dólar. Essa indexação, que chamamos de dolarização, freia a deterioração dos preços relativos e simultaneamente impulsiona a inflação. Tem, portanto, um duplo efeito, que não é concomitante. É o que passamos a demonstrar.

No centro de nossa abordagem, a dolarização se define em relação à impossibilidade de endogenizar o conjunto das funções da moeda quando a crise se instala. As desvalorizações que aconteceram no início dos anos 80 tinham como objetivo criar fortes superávits comerciais para assegurar o serviço da dívida externa e não para equilibrar a balança comercial. Foram, portanto, extremamente significativas e levaram a uma subvalorização da moeda cujos efeitos nefastos sobre o desenvolvimento da dívida interna já analisamos. O nível da taxa de câmbio não é, portanto, aquele que permitiria o equilíbrio da balança comercial. Ele é determinado por vários fatores: liberação de um superávit comercial significativo, especulação com a moeda e, como veremos, políticas de contenção da inflação.

1. Como sabemos, com a substituição do nível geral de preços por um índice ligado à taxa de câmbio, a moeda nacional tende a perder, para certos produtos, sua função de unidade de conta. Uma norma externa às trocas é procurada, podendo ser o preço de ouro, ou de preferência a taxa de câmbio de uma moeda estrangeira-chave ou os títulos indexados a esta moeda.10 10 Alguns países criaram títulos indexados à cotação do dólar, para evitar a fuga de capitais. Esta moeda é hoje o dólar (amanhã, poderá muito bem ser o iene ou o marco alemão). Esta indexação pode ser direta, com o dólar ou o título indexado ao dólar servindo de unidade de conta, ou indireta, com o título indexado ao nível geral de preços.

Não se trata, neste último caso, de um indexação relativa ao nível geral de preços - já foi mostrado que as próprias limitações dessa indexação induzem a necessidade de buscar um outro indicador - mas de uma indexação com referência a um título financeiro, ele mesmo indexado. A taxa de juros desse título é influenciada pelas expectativas de preços que são por sua vez sensíveis às expectativas sobre o câmbio, quer dizer, sobre o trajeto do dólar. Neste sentido, pode-se dizer que a indexação pelo dólar é indireta. Mas é patente o quanto uma situação assim pode ser precária: basta que a inflação se acelere de novo, que a “cultura inflacionária” se instale, para que se passe diretamente, primeiro, aos títulos indexados ao dólar, depois ao dólar, e que esse movimento se generalize desde os bens de “luxo” - basicamente os imóveis e os bens duráveis - aos bens “salário”, cada vez mais numerosos.11 11 Retorna-se aqui à expressão de Ricardo, que mantém uma certa atualidade na maior parte dos países subdesenvolvidos, em virtude da extrema desigualdade de renda observada.

A indexação ao curso do dólar, direta ou indireta, deveria estabilizar os preços relativos e assegurar-lhes uma certa coerência, que a indexação ao nível geral de preços não poderia mais fornecer. Porém, para toda uma série de produtos, ela é informal, incompleta e com prazos de reajustamento diferentes e variáveis, embora estes se reduzam na medida em que se acelera a inflação. A alteração dos preços relativos se aprofunda, a um ritmo diferente.

É claro que se poderia pensar em uma indexação total pelo dólar. Nesse caso, a indexação preservaria os preços relativos e, se não houvesse modificações, esses preços não mais causariam uma aceleração do aumento de preços. Tal solução é, no entanto, irrealista: supõe que o Estado abandone toda soberania monetária, o que não deixaria de ter consequências graves sobre sua soberania política; não é possível além de um certo tempo, pois o país não pode criar a “moeda dólar”, mas apenas utilizar suas reservas. Assim que estas se esgotam, o país precisa criar uma nova moeda em substituição ao dólar. A relação entre essa moeda e o dólar se baseia em uma taxa de câmbio mais desvalorizada do que estava no momento da dolarização completa da economia.

2. Busca-se uma referência ao dólar, direta ou indireta. Mas há, na maior parte dos países, várias taxas de câmbio: a(s) taxa(s) de câmbio oficial(ais)12 12 Às vezes existem várias taxas de câmbio oficiais, variando com a natureza das operações envolvidas. e a taxa de câmbio paralela, do chamado mercado “negro”. Iremos argumentar que é este último que serve de referência à fixação de novos preços.

Ao se analisar a taxa de câmbio oficial, é necessário distinguir vários casos, conforme a taxa de câmbio seja flexível, flutuante ou fixa, e conforme haja ou não controle do câmbio.

A taxa de câmbio é flexível muito raramente e, quando o é, só por períodos curtos. Do mesmo modo, geralmente o câmbio é controlado. É preciso lembrar-se que é muito especial a situação em que se encontram esses países hoje: precisam encontrar meios de financiamento para assegurar o serviço de suas dívidas a partir de uma situação econômica geralmente muito deteriorada, sem poder apelar aos mercados financeiros internacionais. Nessas condições, não podem mais optar por taxas de câmbio flexíveis, pois essas taxas devem ficar em um nível que permita o financiamento do serviço da dívida externa (e nada indica que espontaneamente elas se fixem a esse nível). Por outro lado, a ausência de controle sobre o câmbio facilitaria a fuga de capitais e levaria a uma profunda depreciação da taxa de câmbio, o que certamente geraria um superávit na balança comercial, mas que não seria suficiente para assegurar o serviço da dívida, tendo em vista a existência da fuga. É por isso que se fixa a taxa de câmbio. Ela pode ser flutuante, evoluindo segundo o diferencial de preços existente entre o país em questão e os Estados Unidos. Mas a necessidade de obter superávits suficientes, em condições difíceis, e ao mesmo tempo de se assegurar armas contra a inflação, conduz à busca de um controle sobre as taxas de câmbio e portanto à opção de um câmbio fixo, desvalorizável.

Quando não se tenta o controle do câmbio, não existe a taxa de câmbio paralelo. Cada vez que a moeda recebe pressões muito fortes, a taxa de câmbio é modificada. Caso contrário, se existe controle do câmbio, a política de câmbio seguida pelo governo é mais ou menos confiável. O grau de confiança se mede pela diferença entre a taxa de câmbio oficial e a taxa do paralelo.

A taxa de câmbio tomada como referência será tanto mais a taxa de câmbio paralela, quanto maior a diferença com relação à taxa de câmbio oficial. A indexação informal se efetua então mais frequentemente a partir da primeira. Os preços são expressos em dólar “negro”. Quando este aumenta, os preços em moeda local caem. Tomemos um exemplo: seja o preço do bem A 10 cruzados, ou 2 dólares no câmbio negro. O dólar no câmbio negro vale então 5 cruzados. Suponhamos que ele passe a valer 10 cruzados. O preço do bem A valerá apenas um dólar “negro”, enquanto ele valer 10 cruzados. Se se considera que a taxa do câmbio paralelo é a mais justa, em termos do novo dólar “negro”, o preço do bem A caiu. É por isso que a manutenção de um preço fixo em dólar “negro” leva ao aumento do preço em cruzados. No nosso exemplo, o preço passa de 10 a 20 cruzados.

Na realidade, o novo preço não será exatamente 20 cruzados - como havíamos visto, a indexação não é nem formal, nem completa, nem imediata para todos os produtos -, mas se aproximará mais ou menos desse número, variando com os produtos, e poderá, em certos momentos de crise aberta, ultrapassá-lo: os agentes antecipam com um coeficiente de ajustamento os erros que ultrapassem a unidade. Este comportamento demonstra uma desconfiança dos agentes em relação à taxa do câmbio paralelo. Eles consideram que essa taxa de câmbio está subestimada e se antecipam à sua evolução. Os preços das mercadorias são indexados às expectativas acerca da taxa do câmbio paralelo.

3. A fixação da taxa do câmbio paralelo obedece a regras específicas. A deterioração da situação econômica desvaloriza a taxa do câmbio paralelo, o que leva a uma aceleração da inflação. É o que iremos ver.

A relação “taxa do câmbio paralelo-preços” enfatiza o papel preponderante desta variável na determinação das expectativas e dos preços. Mas, contrariamente às demonstrações dos monetaristas, a paridade dos poderes de compra não foi mantida. A taxa do câmbio negro aparece como a mais justa. Não é essa taxa que assegura a paridade dos poderes de compra. Bem ao contrário, ela é profundamente subestimada. Ela é o reflexo das dificuldades econômicas e financeiras que o país atravessa, dependendo de toda uma série de variáveis: o nível de inflação; a incapacidade, percebida pelos agentes, de o governo controlar a situação; os desacordos sobre a política econômica por parte dos que podem agir sobre o câmbio. Este último caso merece ser ressaltado: a incapacidade de o Estado administrar a dívida interna, suas tentativas de modificar a estrutura fiscal para aumentar as receitas podem levar os exportadores a reter divisas e/ou comprá-las no mercado de câmbio paralelo, uma vez que elas estão agora mais raras. (Foi isto o que aconteceu na Argentina nos últimos meses de presidência de Alfonsín, e se reproduziu no início de 1990, sob a presidência de Menem, precipitando uma grave crise no câmbio.) A cotação do dólar no mercado paralelo aumenta vertiginosamente, gerando expectativas de aumentos de preços. Mas as variações da taxa de câmbio podem ter outras causas. A livre circulação de capitais pode levar a transmissão para o mercado de câmbio de uma especulação na Bolsa, exacerbando-a. Foi visto o que aconteceu no México por ocasião do crash, em outubro de 1987: em seguida à queda da Bolsa e às transferências para os Estados Unidos, o peso foi por duas vezes profundamente desvalorizado. Os exemplos poderiam ser multiplicados. Não o faremos aqui.

Longe de constituir um freio duradouro à inflação, a dolarização a acelera. A indexação, mesmo que parcial, a um índice ligado ao dólar, faz com que a moeda local perca parcialmente sua função de unidade de conta. Ela restitui à estrutura de preços relativos uma coerência maior, que essa estrutura estava perdendo. Mas a referência ao dólar, direta ou indireta, faz os preços dependerem da evolução das taxas de câmbio, em especial das taxas do câmbio paralelo. Ora, estas taxas sofrem evoluções específicas por causa de certos constrangimentos que esses países estão atravessando hoje, conforme ressaltamos. Os preços aumentam com a deterioração das taxas de câmbio (oficial e/ou paralelo) e, longe de frear a aceleração da alta dos preços, a deterioração tende a acelerá-la. Assim sendo, a dolarização se torna uma gangrena para a moeda. A perda cada vez maior da função de unidade de conta da moeda nacional é acompanhada pela perda da função de circulação com relação a certos produtos. O dólar começa a ser utilizado diretamente nas transações dentro do país. Desenvolve-se então uma demanda específica pelo dólar, além da que se destina às transações internacionais e à conversão de capitais em dólar - dentro ou fora do país. Essa demanda alimenta o aumento da cotação do dólar no mercado paralelo e precipita o aumento dos preços.

Surge a desmonetização, porém não por causa da aceleração da inflação, como querem os modelos monetaristas. Ela exprime a crise inflacionária, acompanha-a. Pode influir indiretamente sobre o ritmo da inflação, pela modificação das expectativas por ela suscitadas, mas os mecanismos são diferentes dos descritos pelos autores que analisamos.

A modificação da estrutura de preços relativos desempenha um papel da mais alta importância na aceleração da inflação. A dolarização, tornando mais coerente esta estrutura, freia esta aceleração. A depreciação das taxas de câmbio reais faz com que a inflação aumente novamente. Estamos na presença de dois fatores de alta acelerada dos preços: de um lado, a modificação dos preços relativos resultante da indexação incompleta e das diferenças nos prazos de ajustamento e, de outro, a desvalorização da taxa do câmbio paralelo.

III.

A valorização da taxa de câmbio deveria conduzir a uma queda da taxa de inflação, porém o que se observa é o inverso. A taxa do câmbio paralelo se distanciou cada vez mais da taxa de câmbio oficial, alimentando as expectativas inflacionárias.

A taxa do câmbio paralelo não é uma taxa de câmbio de equilíbrio. Seu nível e a diferença que ela mantém com relação à taxa de câmbio oficial exprimem a confiança que as empresas e os demais agentes depositam na política econômica do governo. O dólar é mais procurado não só com vistas às transações internacionais, mas também como investimento financeiro. Quando se instala a crise inflacionária, ele se torna a base das transações locais. Esse conjunto de fatores pesa sobre a cotação do dólar paralelo. A moeda local, expressa nessa taxa, fica desvalorizada. A dolarização, referindo-se ao câmbio paralelo, favorece a desvalorização da moeda nacional. Estamos na presença do seguinte paradoxo: a moeda pode estar sobrevalorizada no câmbio oficial, mas subvalorizada no câmbio paralelo.

A saída do paradoxo poderia ser tanto o nivelamento da taxa de câmbio paralelo pela taxa de câmbio oficial, quanto o inverso. O meio utilizado poderia ser a liberação do câmbio. Esta saída não é eficaz e não atende aos objetivos aos quais se propõe.

Se a taxa de câmbio oficial é mantida, o desaparecimento do câmbio paralelo, graças à liberação do câmbio, e a manutenção da taxa de câmbio neste nível só podem acontecer mediante um forte aumento das taxas de juros. De fato, a arbitragem efetuada em favor do dólar contra a moeda nacional deveria conduzir a uma depreciação da moeda, a menos que ela se tornasse mais atraente devido a uma elevação substancial das taxas de juros. Mas o estímulo às importações, agora menos caras, acrescido da redução das exportações, provocam uma redução do superávit comercial, tornando difícil a manutenção de uma tal política de câmbio. A moeda é desvalorizada.

No segundo caso hipotético - o alinhamento da taxa de câmbio oficial pela taxa do câmbio paralelo - a liberdade do câmbio pode tornar muito instável a situação. A deterioração da situação econômica abre margem à especulação. Ameaçadora, ela pode se materializar novamente e, na ausência de um controle do câmbio, seus efeitos são imediatos, provocando um movimento cumulativo de subvalorização.

É grande então a tentação de recorrer à dolarização completa da economia. O abandono da moeda nacional, porém, alija a soberania política e limita qualquer possibilidade de pôr em prática uma política econômica autônoma. Além disso, esta solução não atrai efeitos positivos, pois o governo não pode gerar dólares. Quando estes começam a escassear, em virtude da demanda crescente, aumenta seu valor em moeda local, voltando-se ao caso anteriormente descrito. Portanto, a dolarização só pode ser parcial e, como a taxa de câmbio oficial não pode ser indefinidamente depreciada, reaparece a tentação de controlá-la, o que provoca o aparecimento de uma taxa de câmbio paralela. Volta-se à situação inicial, porém em condições mais difíceis.

Quando não se mantém a opção de liberdade do câmbio e o governo se reserva o direito de intervir sobre ele, por exemplo para executar uma política anti-inflacionária, a valorização da taxa de câmbio oficial torna mais problemática a competitividade das empresas.

Por dificultar as exportações, essa valorização mina a competitividade da indústria. Um contexto de predomínio da inflação e de falta de coerência dos preços relativos por ela suscitada não é favorável ao incremento da taxa de investimento, uma vez que as operações financeiras se apresentam mais lucrativas. O comportamento de espera, ou de espera relativa, pesa mais na decisão de investir e, na ausência de investimento suficiente no setor industrial, é provável que ocorra uma redução na taxa de crescimento das exportações.

O quadro a seguir mostra a valorização da taxa de câmbio desde 1988 e seus efeitos sobre a competitividade.

Apesar da adoção de uma política salarial totalmente restritiva, degrada-se a relação “câmbio/salário”, como se pode constatar. O resultado dessa política de câmbio é a redução, primeiro leve, mas potencialmente significativa, do superávit comercial. (Este foi de 18 bilhões de dólares em 1988 a 16 bilhões em 1989 e a provavelmente 10 bilhões em 1990, se não for tomada nenhuma medida sobre o câmbio.)

É claro que se poderia esperar que, com a degradação da razão “câmbio/salário”, o superávit comercial deveria reduzir-se ainda mais. Isso não aconteceu, mas os últimos resultados do comércio exterior de 1989 já indicam uma redução mais substancial do superávit. O indicador “câmbio/preços” é um fator que pesa sobre a competitividade, embora não seja um indicador dela. A ligeira redução da taxa de investimento pesou de forma negativa sobre a competitividade. É provável que o aumento da eficácia do capital não tenha sido suficiente para reerguer a competitividade “estrutural” da indústria, uma vez que não foram suficientes os investimentos na racionalização. Nestas condições, com a degradação da relação “câmbio-salário”, a redução da competitividade “monetária” levou a melhor sobre o aumento da competitividade “estrutural”.


Taxa de câmbio e relação/salário

Por essas razões, pode-se considerar desejável uma forte desvalorização. Esta tem efeitos inflacionários imediatos, mas a política de valorização também suscita pressões inflacionárias. Aumenta o peso dos encargos do serviço da dívida externa em moeda nacional, afetando o déficit orçamentário. Provoca também um ligeiro aumento do serviço da dívida interna, porém menor do que em anos passados - quando grande parte dela estava indexada à cotação do dólar - e sobretudo menor que a manutenção de uma política de valorização da taxa de câmbio, que levava à indexação da taxa de juros pela diferença entre as taxas de câmbio oficial e paralelo. Finalmente, tem efeitos positivos sobre o valor em dólar das exportações.

No entanto, tomada isoladamente, tal política é insuficiente. Ela deveria ser acompanhada de uma política de consolidação da dívida interna, liberando recursos para o desenvolvimento de uma política industrial mais firme, como a Coréia, e de uma política social mais consequente. Deveria ser acompanhada também por uma renegociação da dívida externa e de seu serviço. E, uma vez que a dolarização não constitui fator capaz de limitar a inflação, deveria ser considerado um congelamento de preços, acompanhado de uma negociação em torno dos preços relativos, a fim de dar-lhes um pouco mais de coerência, e uma indexação dos preços pelos salários. Medidas duras, porém necessárias, se não se quiser permitir que a dolarização continue a arruinar a economia e, mais tarde, a política.

  • 1
    Frankel J. A. “Monetary and Portfolio Balance Models of Exchange Rate Determination.” In: Economic Interdependence and Flexible Exchange Rates, editado por J. S. Bhandari e B. H. Putnam, MIT Press, 1984. O modelo de referência é sobretudo o de J. Frenkel: “The Forward Exchange Rate, Expectations and the Demand for Money: the German Hyperinflation”. A. E. R., no. 67, 1977.
  • 2
    Esta relação tem sido frequentemente testada, com resultados não muito convincentes. O próprio Frenkel considera que, para os períodos hiperinflacionários, a taxa de câmbio prevista é geralmente inferior à taxa de câmbio realizada (esta “subestimativa” teria como origem o tempo de aprendizagem dos agentes).
  • 3
    Salama, Pierre. Dolarização, São Paulo, Nobel, 1989.
  • 4
    ‘Bruno, M. “Econometric and the Design of Economics Reform.” Econométrica, vol. 57, p. 2, março, 1989. Podemos igualmente nos referir a Dornbusch, R. e Fischer, S. “Stoping Hiperinflation, Past and Present”. In: Weltwirtschafliches Archiv, Bd CXXII, 1986; e também a Dornbusch, R. e De Pablo, Deuda Externa y Instabilidad Macroeconomica en la Argentina, Ed. Sudamericano, 1988, para uma apresentação ligeiramente diferente.
  • 5
    ‘Existem, por certo, algumas exceções, que encontramos geralmente entre os economistas estruturalistas. A esse propósito, temos o artigo precursor de Oliveira, J. H. G., “On Structural Inflation and Latin American ‘Structuralism ‘?”, Oxford Economic Papers, 1964; e, mais recentemente, os artigos de Alberro, J., “La Dinamica de los Precios Relativos en un Ambiente Inflacionario”, Estudios Economicos, México, 1987; de Tella, Guido de, “El Último Ciclo Inflacionario Argentino: 1979-1985.” In: La Crisi de la Deuda en America Latina, Thorp, R. e Whitehead, L. (Eds.) Siglo 21, 1986, o livro de Ramos, Carlos Alberto: Agricultura e Inflação: a Abordagem Estruturatista, BNDES, 1986, que apresenta uma abordagem interessante sobre a questão; e os dois estudos comparados nas obras da ANPEC (Fortaleza, Brasil, dezembro, 1989): Luque, C. A. e Lopes L. M. “Conflito Distributivo, Déficit Público e Inflação”; Espejo, A. O., “Inflação Residual e Preços Relativos nos Experimentos Heterodoxos”.
  • 6
    Especialmente nas análises que estabelecem uma relação estreita entre o Estado e a economia. Geralmente se demonstra que a ação do Estado sobre os preços provoca e/ou acompanha avanços tecnológicos. Agindo sobre a tendência à distribuição homogênea das taxas de lucro, essa ação facilita a emergência de segmentos industriais completos. Esta análise, baseada na análise do valor e, mais precisamente, na da transformação de valores em preços de produção, mostra que a lei do valor só pode vigorar quando alterada pela intervenção do Estado. A ação do Estado sobre a estrutura de preços relativos coloca-o assim no centro do processo de acumulação e não ao seu lado, como fazem às vezes os keynesianos, mas sobretudo os neoclássicos e, mais especialmente, os monetaristas e novos clássicos. Ainda que dê margem a pesquisas interessantes, esta interpretação é limitada pelas insuficiências atuais da teoria do valor. Ver Matias, G. e Salama, P., L ‘État Surdéveloppé, Paris, La Découverte, 1983. Publicado em português pela Editora Brasiliense, 1984.
  • 7
    É praticamente isto que fazemos quando tratamos da taxa de câmbio: o abandono da teoria da paridade dos poderes de compra, sem a existência de uma teoria substitutiva, leva-nos a considerar as evoluções da taxa de câmbio real efetiva em relação a uma taxa de câmbio de uma certa data. Diríamos, por exemplo, que a taxa de câmbio estava sobrevalorizada em relação ao dólar na maioria dos países do Terceiro Mundo no final dos anos 70, que ela estava subvalorizada de 1982 a 1986, sem poder verdadeiramente dizer se a taxa de câmbio em determinada data correspondia, per se, a uma taxa de equilíbrio. O equilíbrio, fica, assim, reduzido à estabilidade mais pragmática.
  • 8
    A incoerência é assim definida pelo seu contrário e padece das mesmas insuficiências teóricas que as estruturas de equilíbrio correspondentes aos períodos de crescimento rápido. Não é definida em termos conceituais, mas é a que produz a paralisação da produção de um número significativo de bens.
  • 9
    Observe-se que a dispersão dos preços relativos, mesmo que ligeira, geralmente observada em períodos de aceleração inflacionária (mas também, e de modo mais significativo, em períodos de congelamento dos preços, conforme o estudo de Espejo citado), não significa necessariamente uma incoerência desses preços. A incoerência (ou a coerência) introduz de fato a ideia de classificação e não apenas de dispersão. Pode-se ter uma crescente incoerência sem aumento da dispersão.
  • 10
    Alguns países criaram títulos indexados à cotação do dólar, para evitar a fuga de capitais.
  • 11
    Retorna-se aqui à expressão de Ricardo, que mantém uma certa atualidade na maior parte dos países subdesenvolvidos, em virtude da extrema desigualdade de renda observada.
  • 12
    Às vezes existem várias taxas de câmbio oficiais, variando com a natureza das operações envolvidas.
  • *
    Traduzido por Ricardo B. Costa.
  • 14
    JEL Classification: E31; L52; F31

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1991
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