Acessibilidade / Reportar erro

Apontamentos para uma história financeira do grupo Light no Brasil, 1899/1939

Notes for a financial history of the Light group in Brazil, 1899/1939

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar e discutir alguns elementos extraídos da bibliografia sobre as origens e evolução inicial do Grupo Light no Brasil com o objetivo de elaborar um estudo sobre a expansão financeira do grupo em seus primeiros 40 anos de existência no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE:
História econômica do Brasil; grupo Light; eletricidade

ABSTRACT

This paper aims to present and discuss some elements extracted from the bibliography towards the origins and initial evolution of the Light Group in Brazil with the goal of elaborating a study of the financial expansion of the group in its first 40 years of existence in Brazil.

KEYWORDS:
Economic history of Brazil; Light Group; electricity

As considerações que seguem têm por objetivo apresentar e discutir alguns elementos extraídos da bibliografia disponível (arrolada no final do texto) sobre as origens e a evolução inicial do grupo Light no Brasil a fim de sugerir a elaboração de um estudo sobre a expansão financeira das suas empresas nos primeiros 40 anos de existência do grupo no País. Esse estudo, que abrangeria um período que se estende do final do século XIX até o início da II Guerra Mundial, apresenta um alto interesse do ponto de vista da história econômica do Brasil, uma vez que permite identificar e caracterizar os mecanismos de penetração e de reprodução ampliada do capital estrangeiro dentro da economia brasileira, em algumas fases mais cruciais do seu desenvolvimento. A perspectiva financeira aqui proposta justifica-se não apenas porque a diversificação e o crescimento das atividades produtivas da companhia já são suficientemente conhecidos, mas também - e principalmente - pelo fato de a Light ter sido muito mais do que uma simples empresa produtora e distribuidora de energia elétrica. Ela foi, acima de tudo, um empreendimento gerador de altos lucros para seus acionistas, e mais particularmente para os grupos capitalistas que detinham o seu controle efetivo. Tais lucros foram-se acumulando e multiplicando através do tempo, até o próprio momento da compra dos ativos da empresa pelo governo brasileiro (em circunstâncias ainda não de todo esclarecidas), compra essa que deu origem a um dos mais sólidos e prósperos conglomerados financeiros do País na atualidade, o grupo Brascan.

Como é bem sabido, a energia elétrica apareceu relativamente cedo no Brasil, e a sua difusão pelo território nacional foi bastante rápida. As primeiras usinas geradoras de eletricidade foram instaladas no Brasil no início da década de 1880, quase na época em que essa modalidade de energia estava sendo introduzida em larga escala nas economias capitalistas mais desenvolvidas. Os últimos anos do século passado e os primeiros do atual foram, na verdade, os de maior crescimento relativo da produção e do consumo de eletricidade no País, alcançando uma taxa de quase 30% ao ano. Esse crescimento foi particularmente intenso no campo da hidroeletricidade, cuja participação no total da capacidade geradora instalada foi aumentando sem cessar, passando de 31% em 1889 para 46% em 1900 e mais de 80% já em 1910 - uma proporção que iria manter-se praticamente inalterada até o início da II Guerra Mundial.

A partir daquele último ano, entretanto, o ritmo de crescimento do setor foi arrefecendo, com as taxas médias anuais evoluindo de 8,4% entre 1910 e 1920, para 7,6% entre 1920 e 1930, e apenas 4,0% entre 1930 e 1940. Essa tendência declinante do ritmo de expansão setorial, a qual só iria inverter-se no pós-guerra através da intervenção direta dos poderes públicos federal e estaduais, não deixa de ser sintomática quando comparada às tendências de crescimento exponencial observáveis em outras economias capitalistas, particularmente nas de maior desenvolvimento. Jean-Marie Martin atribui esse comportamento paradoxal, de um lado, ao caráter cada vez mais dual do setor no Brasil e, do outro, à diminuição, através do tempo, da sua rentabilidade financeira.

Não há dúvidas quanto à ocorrência concreta do primeiro desses fatores. O crescimento que se verifica no setor desde o início do século XX até o término da década dos 30 foi devido, em parte, à ampliação da capacidade instalada de dois grandes grupos estrangeiros - a Light e a AMFORP - e em parte à multiplicação de um sem-número de usinas e empresas de pequeníssimo porte, em sua maioria de âmbito meramente municipal. Isso levou, como não poderia deixar de ser, a uma centralização quase absoluta da oferta de energia elétrica do País pelas empresas de capital estrangeiro, e também a uma crescente estagnação do setor. A questão que se coloca é saber até que ponto essa última tendência pode realmente ser atribuída a uma declinante rentabilidade dos capitais investidos.

Tal foi, ao que tudo indica, o fator preponderante entre as pequenas empresas nacionais de âmbito municipal, cujo tamanho médio foi-se reduzindo através do tempo, fazendo com que elas deixassem de se beneficiar das notórias economias de escala que existem nesse setor. Mas, o mesmo não se aplica necessariamente aos dois grandes grupos de capital estrangeiro, os quais, em 1940, detinham nada menos que 70% da capacidade geradora instalada no País, sendo que só a participação isolada do grupo Light montava a metade do total nacional, contra 20% do grupo AMFORP e 30% pulverizados entre mais de 1300 pequenas empresas regionais e municipais. No caso dos dois grandes grupos estrangeiros, a referida rentabilidade poderia, quando muito, ser constante, mas não declinante, tendo em conta as crescentes economias de escala com os quais eles operavam.

A expansão do grupo Light começou em São Paulo nos últimos anos do século passado, e no Rio de Janeiro cerca de um decênio mais tarde, a partir de 1908, mediante o aproveitamento do potencial hidroelétrico das bacias dos rios Tietê e Paraíba, respectivamente. Essa expansão acompanhou o crescimento e o enriquecimento das duas principais cidades do País, cujas populações, entre 1900 e 1940, passaram de 700 mil a 1,8 milhão de habitantes no caso do Rio de Janeiro, e de 240 mil a 1,3 milhão no de São Paulo, isso sem contar os municípios vizinhos de ambas - como os da Baixada Fluminense e os do ABC, respectivamente. Além de serem extremamente dinâmicos do ponto de vista quantitativo, os mercados atendidos pelo grupo Light eram também muito ricos. Tratava-se, afinal, das duas mais importantes áreas metropolitanas do País, as quais concentravam uma parcela ponderável, e até crescente, da renda nacional.

O rápido desenvolvimento desses dois mercados consumidores de energia possibilitava a realização de novos investimentos de porte cada vez maior, dotados de crescentes economias de escala e, consequentemente, de uma rentabilidade financeira também crescente. Tratava-se de um processo cumulativo, pois a crescente disponibilidade de energia elétrica a preços relativamente constantes dava origem ao surgimento de economias externas, não apenas para a urbanização, mas também para a industrialização. A ocorrência dessa última contribuía para fazer aumentar sem cessar a demanda dos serviços, e consequentemente as receitas, da concessionária. Esta se foi tornando cada vez mais lucrativa, e foi essa sua lucratividade crescente que acabou atraindo para o Brasil o grupo AMFORP, já no final da década dos 20. E isso ocorria porque, numa época em que a capacidade instalada média das pequenas usinas estava diminuindo em todo o País, a da Light crescia de 13 600 kw por usina em 1910 para 76 600 kw em 1940.

Apesar disso, também no caso dessa empresa, acabou havendo uma virtual cessação de novos investimentos no decorrer da década dos 30. Alguns autores, como Villela & Suzigan, atribuem essa paralisação ao xenofobismo do Estado brasileiro a partir da promulgação do Código de Águas de 1934. Por esse diploma legal, como se sabe, o Governo Federal procurou:

  • regulamentar a fixação das tarifas cobradas pelas concessionárias;

  • racionalizar a utilização dos recursos hídricos do País; e

  • reequacionar a política da outorga de concessões para a produção e distribuição de energia elétrica.

Convém ressaltar, entretanto, que esse Código e a legislação subsequente tiveram, acima de tudo, um caráter nitidamente industrialista, ao procurar ajustar os níveis de remuneração do fornecimento de energia à capacidade de pagamento das empresas, particularmente das do setor industrial. Seus preceitos não se destinavam a prejudicar o capital estrangeiro, mas tão-somente proteger a indústria nacional.

Antes do Código de Águas, vigorava no país a chamada “cláusula-ouro” das tarifas, com base na qual o preço da energia era reajustado periodicamente - às vezes até mensalmente - de acordo com as flutuações da taxa cambial. Como essas flutuações eram, com frequência, bastante acentuadas e tendiam - ontem como hoje - predominantemente numa só direção - isto é, no sentido da desvalorização da moeda nacional -, pode-se imaginar os efeitos dessa prática em termos do custo da energia elétrica para as empresas, cujo consumo chegava inclusive a ter que baixar drasticamente nas épocas de mais intensa desvalorização cambial. Ora, uma das principais medidas do Código de Águas foi suspender a vigência da referida cláusula, determinando a limitação dos lucros da concessionária ao nível de 10% do capital investido, avaliado segundo o princípio do custo histórico.

Isso, e mais a depressão dos anos 30, seguida pelo início da II Guerra Mundial, teria contribuído decisivamente para arrefecer os ânimos da empresa no que se refere à realização de novos investimentos. Não a impediu, porém, de manter e defender a sua concessão, cuja lucratividade, apesar de formalmente limitada no que se refere as tarifas, continuava a ser plenamente garantida, inclusive por lei. Nunca é demais lembrar que a Light constituía um monopólio de fato e de direito, um empreendimento que, devido a seu próprio porte empresarial e financeiro, teria de possuir formas alternativas para a reprodução ampliada do seu capital. Tais formas, além de existirem concretamente, certamente chegaram a ser acionadas. São elas, em boa parte, que explicam como e porque a sucessora do grupo Light, o conglomerado financeiro Brascan, se tornou quase instantaneamente uma das mais sólidas e mais prósperas empresas do país. Uma das referidas formas alternativas, inerente às próprias atividades da empresa, pode muito bem ter sido a acumulação de um crescente patrimônio imobiliário, seja nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, seja nos arredores de ambas. Trata-se de um patrimônio incorporado a baixo preço, via desapropriações para fins de utilidade pública, e ampliado para muito além do que seria estritamente necessário para a simples produção e distribuição de energia elétrica. Algo disso pode ter realmente ocorrido, por exemplo, quando da constituição do complexo hidroelétrico de Cubatão.

Essas e outras hipóteses só poderão ser formalmente testadas através de sistemática investigação empírica e documental. Antes disso, todavia, é conveniente procurar reconstituir historicamente a trajetória financeira da empresa desde o seu início, verificando quais foram as origens tanto de seus capitais como dos grupos empresariais que assumiram o controle dos mesmos, bem como as articulações de uns e de outros no plano internacional. Começando por essas últimas, cumpre assinalar desde logo que o grupo Light constituiu desde o seu início uma empresa multinacional de grande porte, das mais importantes no mundo capitalista da época. Nominalmente, tratava-se de uma empresa de origem e nacionalidade canadenses, sediada na cidade de Toronto. Ocorre, porém, que, já no início do século XX, a referida empresa tinha subsidiárias equivalentes às do Brasil tanto em Cuba como no México, além de desenvolver atividades correlatas no próprio Canadá. E, nos três primeiros desses países, ela contava entre seus associados mais próximos a figura quase lendária, mas muito sintomática, de Percival Farquhar, de vinculações notórias com grupos empresariais e financeiros dos Estados Unidos e da França.

Na prática, a Light era uma empresa tão pouco canadense como a ALCAN (Aluminium Company of Canada), que fora desmembrada da ALCOA (Aluminium Company of America) por força de exigências da legislação antitruste vigente nos EUA. Sua sede se localizava no Canadá, não porque alguns - ou até a maioria - dos seus fundadores e principais acionistas fossem canadenses, mas basicamente por conveniências fiscais e financeiras. Uma dessas últimas era, sem dúvida, o mais fácil acesso ao mercado financeiro londrino - o principal do mundo capitalista de então -, devido aos vínculos político-administrativos que na época, muito mais do que hoje, ligavam a ex-colônia do Canadá à sua antiga metrópole, a Grã-Bretanha. Ao contrário do que ocorre atualmente, o Canadá constituía naquele tempo um importador líquido de capitais: enquanto seus investimentos externos (basicamente os do grupo Light) passavam de USS 100 para USS 200 milhões entre 1900 e 1914, os capitais britânicos nele investidos aumentaram em USS 2 bilhões, e os norte-americanos em USS 750 milhões.

As potencialidades e vantagens do mercado financeiro londrino foram completamente aproveitadas em 1912, quando da criação da empresa holding Brazilian Traction, à qual se subordinaram tanto a Light de São Paulo como a do Rio de Janeiro. As ações da referida empresa holding foram vendidas ao público em Londres com grandes lucros financeiros - verdadeiros “lucros de fundador”, na terminologia consagrada por Hilferding -, fazendo com que os capitais das subsidiárias brasileiras do grupo Light fossem em boa parte britânicos, da mesma forma, aliás, que os do grupo como um todo. Assim, a maioria dos acionistas da companhia passaram a ser britânicos, mas os acionistas majoritários continuavam sendo, em parte canadenses e em parte norte-americanos. Ao mesmo tempo, os procedimentos comerciais e os métodos de gestão do grupo Light sempre foram tipicamente norte-americanos.

Isso se devia, provavelmente, ao fato de um dos seus fundadores e principais acionistas ter sido o engenheiro e financista norte-americano Fred S. Pearson, cuja fortuna - como a de outros sócios fundadores do grupo - se originara da construção de ferrovias nos EUA, no Canadá e no México. Um dos melhores amigos de Pearson era o já citado Percival Farquhar. Essas relações, assim como os arrojados e heterodoxos procedimentos iniciais da empresa, não eram bem-vistas, quer pelos capitais ingleses já estabelecidos no Brasil - notadamente os vinculados à San Paulo Railway (EF Santos a Jundiai, ora pertencente à Rede Ferroviária Federal) - quer pelo próprio mercado financeiro londrino.

Nesse último, o grupo Light só se tornou mais “respeitável” após a I Guerra Mundial, numa época em que já havia completado o seu processo de acumulação inicial, passando a auferir maiores lucros financeiros do que propriamente operacionais. Isso lhe permitia adotar um comportamento mais ajustado aos padrões ortodoxos do mercado. Outros fatores que contribuíram para a crescente respeitabilidade da Light nos círculos financeiros internacionais foram, de um lado, o malogro dos empreendimentos ferroviários de Farquhar em 1914 e, do outro, a morte, pouco depois, do seu amigo e associado Fred S. Pearson, com o que cessaram de vez as “ligações perigosas” que havia entre ambos e, por extensão, do primeiro com o grupo Light.

Pode-se desprender, dessas rápidas considerações, que existe toda uma problemática a ser investigada empiricamente no âmbito de uma história financeira da atuação do grupo Light no Brasil. Essa problemática é importante, não apenas do ponto de vista da história econômica do país - por causa· do peso relativo dos investimentos da Light, e principalmente das áreas geográficas em que ela desenvolveu suas atividades, mas também em termos do estudo da internacionalização do capital, da penetração dos investimentos estrangeiros na periferia do sistema capitalista, no chamado mundo subdesenvolvido. Nesse caso, talvez ainda mais do que em outros, a devida compreensão do que aconteceu no passado pode ser indispensável para o entendimento do presente, e para a preparação do futuro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Alexander, R. J. & Singer, W. (1951) “Canadian investments in Latin America”, Inter-American Affairs, vol. 4, pp. 73-82.
  • Castro, Ana Célia (1976) As Empresas Estrangeiras no Brasil, 1860-1913 (Campinas, DEPE/ UNICAMP) - dissertação de mestrado mime.
  • Martin, Jean-Marie (1966) Industrialisation et Développement Énergétique du Brésil. Paris, Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine.
  • Malqueen, F. J. (1953) “A Canadian enterprise abroad”; Candian Banker, Winter, pp. 34-55.
  • Saes, Flávio A. M. (1979) A Grande Empresa de Serviços Públicos na Economia Cafeeira (Um estudo sobre o desenvolvimento do grande capital em São Paulo), 1850-1930. São Paulo, 1979, FFLCH/USP - tese de doutoramento mime.
  • Singer, Paul. (1975) “O Brasil no contexto do capitalismo internacional, 1889-1930” in Boris Fausto (org.), O Brasil Republicano: Estrutura de Poder e Economia 1889-1930, tomo III vol. 1 da História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo, Difel, pp. 345-390.
  • Stone, Irving. (1977) “British direct and portfolio investment in Latin America before 1914”, Journal of Economic History, XXXVII (3), September, pp. 690-722.
  • Villela, A. V. & Suzigan, W. (1973) Política do Governo e Crescimento da Economia Brasileira, 1889- 1945. Rio de Janeiro, IPEA/INPES.
  • JEL Classification: N76; L94.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1986
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br