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Condições e limites da inserção do Brasil no mercado internacional da soja*

Conditions and limits of Brazil’s insertion in the international soybean market

RESUMO

O Brasil vive um grande boom na produção de soja. Desde a década de 1960, o país conseguiu diversificar sua matriz exportadora, incluindo as exportações de soja e seu óleo, suco de laranja e carnes. No entanto, a crise de 1982-3 diminuiu a capacidade do Estado de apoiar o setor agrícola. Este trabalho tem como objetivo analisar o impacto da nova condição financeira nos custos de produção do setor.

PALAVRAS-CHAVE:
Mercado interacional da soja; produção agrícola; financiamento agrícola

ABSTRACT

Brazil has experienced a great boom in the production of soybean. Since the 1960s, the country was capable of diversifying its export matrix, including exports of soybean and its oil, orange juice, and meat. However, the 1982-3 crisis decreased the capacity of the State to support the agricultural sector. This paper aims to analyze the impact of the new financial condition on the production costs of the sector.

KEYWORDS:
International soybean market; agricultural production; agricultural financing

Numerosos trabalhos sublinharam o agravamento do déficit alimentar global nos países do Sul nos anos 70. No entanto, este déficit global do Sul não impediu que alguns países (Ásia do Sudeste, países da Bacia do Prata) participassem de maneira crescente das exportações de produtos agrícolas de base,1 1 Entendidos aqui no sentido restrito do termo: cereais, oleaginosos e produtos de pastagem. concorrendo assim com os países do Norte nos mesmos produtos ou nos produtos que substituem os cereais (mandioca).

O Brasil é, sem dúvida nenhuma, o melhor exemplo. Suas exportações de produtos agrícolas se limitam até o fim dos anos 60 essencialmente aos produtos tropicais tradicionais (café, açúcar e cacau). Desde o início dos anos 70, no entanto, o Brasil desenvolve e diversifica suas exportações agrícolas; torna-se, assim, um dos primeiros exportadores mundiais de torta e de óleo de soja, de carne de aves, de suco de laranja e de carne bovina. Fornecedor da França em produtos agrícolas (torta de soja e café, essencialmente), o Brasil tornou-se ao lado dos Estados Unidos um dos nossos principais concorrentes em certos mercados agrícolas de exportação.

Mas a crise financeira que vive desde 1982-83 compromete essa situação e provoca uma acentuada diminuição da ajuda direta e indireta do Estado ao setor agrícola. Qual é o impacto das novas condições financeiras sobre os custos de produção? O setor modernizado da agricultura pode manter sua competitividade externa apesar da queda dos auxílios governamentais? Nós nos ateremos aqui ao caso da soja, principal “consumidor” dos créditos de produção e comercialização do Estado e produto líder das exportações agrícolas brasileiras.

O BOOM DA SOJA NO BRASIL: UM SUCESSO COMERCIAL INEGÁVEL

Até o início dos anos 60, o Brasil praticou uma política protecionista de substituição de importações que limitou sua participação no mercado mundial.

O golpe militar de 1964 traduziu-se, em contrapartida, em um forte impulso à exportação de produtos industriais e em um crescente apelo aos recursos financeiros estrangeiros. Neste quadro, o Estado favoreceu a modernização rápida de uma parte da agricultura notadamente pelo viés do desenvolvimento do crédito rural com taxas altamente subsidiadas. Sem colocar em xeque a estrutura agrária, esta modernização dinamizou a produção industrial em relação à produção agrícola e permitiu o desenvolvimento e a diversificação das exportações agrícolas brasileiras.

Somente alguns produtos beneficiaram-se desse boom agrícola. A soja, grande consumidor de insumos agrícolas, industrializável e beneficiando-se de um preço internacional vantajoso, recebeu uma grande parte das transferências massivas do Estado para a agricultura e a agroindústria. Desde 1970, a produção de soja multiplicou-se por 10 atingindo 15 milhões de toneladas no início dos anos 80, enquanto a capacidade industrial de trituração de soja atinge, hoje, 22 milhões de toneladas.

Primeiro exportador mundial de torta e de óleo de soja em 1983, o Brasil parece provar que um país do Sul pode atingir uma estratégia de desenvolvimento agrícola fundamentada, de um lado, nas transferências massivas do orçamento do governo para o setor agrícola e, de outro, numa integração crescente ao espaço econômico internacional. A França se coloca, aliás, como o primeiro cliente de torta de soja brasileira: em 1984, importou 2,29 milhões de toneladas.

A NOVA CONJUNTURA FINANCEIRA BRASILEIRA

Este sucesso comercial inegável não deve mascarar a crise com a qual esta estratégia se defrontou desde o final dos anos 70. Este novo período se caracterizou por condições socioeconômicas de produção e de comercialização bem menos favoráveis à soja brasileira.

A deterioração da situação financeira obrigou o Brasil a recorrer ao Fundo Monetário Internacional em novembro de 1982. A análise do FMI que fundamenta a política de ajustamento estrutural imposta ao Brasil repousa sobre uma visão monetarista ortodoxa centrada no déficit da balança de pagamentos: uma visão monetarista ortodoxa centrada no déficit da balança de pagamentos: este provém, segundo o FMI, de um excesso de demanda interna em relação aos recursos disponíveis. As medidas econômicas aplicadas a partir de 1983 visavam, então, diminuir a demanda interna e aumentar as exportações a fim de restabelecer o equilíbrio e diminuir a inflação. Isto se traduziu principalmente em um enquadramento estrito e em uma limitação do volume de crédito, o que atingiu em primeiro lugar a produção de soja, principal “consumidor” do crédito rural subvencionado.

A política econômica imposta pelo FMI e destinada a resolver um problema conjuntural de balança de pagamento provocou, na realidade, pelos meios preconizados, uma mudança estrutural de política agrícola. Passou-se de um sistema de orientação da política agrícola no qual as condições de crédito ocupavam um lugar fundamental a uma política de preços mínimos mais elevados. Esta reorientação da política agrícola brasileira baseou-se na seguinte doutrina econômica: a supressão das subvenções diretas e indiretas da produção, ao consumo e à exportação deve permitir determinar se o país possui uma verdadeira vantagem comparativa nesta produção, servindo o mercado internacional como árbitro para a realocação de recursos.

O aspecto mais controvertido da nova política econômica colocada em prática em 1983 diz respeito ao crédito rural, instrumento chave da modernização nos anos 70. O valor constante dos créditos concedidos pelo Governo ao setor agrícola conheceu uma acentuada queda enquanto as taxas de juros tornaram-se, pela primeira vez desde 1968, superiores à inflação.

A limitação estrita da massa monetária imposta pelo FMI colocou em xeque o financiamento do sistema de crédito rural. Até o início dos anos 80, 75% dos recursos do crédito rural provinham do Banco Central via Banco do Brasil. Os bancos comerciais forneciam os 25% restantes sob a forma de uma porcentagem dos depósitos à vista dos particulares que deveriam ser legalmente destinados ao crédito rural. Ora, com a aceleração do ritmo da inflação e o agravamento da recessão econômica, o volume dos depósitos à vista dos particulares nos bancos comerciais diminuiu rapidamente, o que culminou numa queda dos recursos do sistema de crédito rural (ver Gráfico 1).

Gráfico 1:
empréstimos do sistema financeiro ao setor rural segundo o tipo de financiamento, período 1971-1983

Em 1980 e 1981, o Conselho Monetário Nacional decidiu, então, aumentar a taxa de juro para a maioria dos empréstimos; no entanto, ela continuou nitidamente inferior à inflação, como demonstra o Gráfico 2. Mas o aumento relativo das taxas de juros e a elevação da porcentagem dos depósitos à vista destinados ao crédito rural não foram suficientes para conter a queda do valor do crédito rural.

Gráfico 2:
Comparação da taxa de inflação anual e da taxa de juro do crédito rural oficial para a soja (1973-1985)

Com a aplicação do programa de ajustamento estrutural, as autoridades monetárias encontraram-se diante do seguinte dilema: de um lado, o volume de operações de crédito rural do Banco do Brasil estava limitado pelo FMI ( + 75% em valor corrente de 1983 para uma inflação de 211% ); de outro lado, a rentabilidade dos bancos comerciais corre o risco de ser duramente atingida pela obrigação de destinar um volume crescente de crédito rural a uma taxa de juro claramente inferior ao índice da inflação.

O governo aumentou brutalmente a taxa de juro em 1984. Para a safra de 1984/85, a taxa do crédito rural tornou-se superior à inflação. Além disso, a taxa de juro é indexada desde então sobre a correção monetária2 2 A correção monetária representa a variação das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN), que acompanham a evolução da inflação. enquanto era fixado em início de safra até 1982, o que favorecia os agricultores pelo fato de o ritmo da inflação elevar-se rapidamente.

Esta elevação das taxas de juros foi atenuada pela evolução do volume de crédito que foi concedido aos produtores de soja. O governo fixou de fato, a cada ano, o Valor de Base dos Custos de produção (VBC) que serviu de referência para o volume de crédito estatal concedido ao produtor de soja. Mesmo que a estimativa dos custos de produção feita pelo Ministério da Agricultura tenha sido sempre inferior cerca de 30% em relação aos cálculos das cooperativas, o Gráfico 3 ilustra a duplicação do valor real do VBC da soja ao longo das seis últimas safras.

Gráfico 3:
Evolução do vbc da soja e de alguns pontos dos custos de producão de 1979-1986 (em ORTN)

Mas esta transferência aparente de recursos financeiros para a produção de soja deve ser relativizada: o preço dos insumos agrícolas aumenta mais rápido do que os VBC estimados e o Estado reduz a base do crédito. De fato, a “prioridade agrícola” definida em 1979 pelo Presidente Figueiredo concretizou-se em um financiamento de 100% do VBC. Ora, ao longo das cinco últimas safras, a parte financiada do VBC da soja passou de 100% a 60% para os pequenos produtores e de 80% a 40% para os grandes produtores. O produtor dispunha, então, de um volume cada vez menor de crédito oficial em cruzeiros constantes para fazer face a uma elevação rápida dos custos de produção.

Esta deterioração das condições financeiras de produção da soja contrasta com a situação que prevalecia nos anos 70: os produtos de soja beneficiavam-se, na ocasião, de programas governamentais que favoreciam financeiramente a utilização de insumos agrícolas (créditos sem juro para compra de calcário, sementes, produtos de tratamento ou máquinas) e diminuíam significativamente os custos de produção. Estes programas que contribuíram largamente para reforçar a competitividade da soja brasileira foram substituídos pelo sistema de VBC em 1970-1980.

O FIM DO CRÉDITO RURAL SUBVENCIONADO: O IMPACTO SOBRE OS CUSTOS DE PRODUÇÃO

As modificações sucessivas da política de crédito rural desde 1980 não impediram a queda de 55% do valor constante do crédito rural entre 1979 e 1984. A produção de soja que consumia tradicionalmente o volume mais importante de créditos foi, então, a primeira a ser atingida. Quanto à taxa de juro real paga pelo agricultor, foi, na realidade, superior à taxa do crédito oficial (inflação + 8%) pois o Governo financiava somente uma parte dos custos de produção, o que obrigava os produtores a emprestar o complemento do financiamento dentro das taxas do mercado (inflação + 30-35%).

Isto se traduziu em um aumento extremamente rápido das despesas financeiras nos custos de produção: no Estado do Rio Grande do Sul, região tradicional de produção, elas passaram de 7% a 47% entre 1980 e 1985.3 3 Ver Trevisan, Paulo, Considerações sobre a rentabilidade da lavoura da soja no Rio Grande do Sul, Porto Alegre (Brasil), FECOTRIGO, janeiro 1985, p. II. Os custos de produção elaborados pela FECOTRIGO (Federação de Cooperativas de Soja e Trigo do Rio Grande do Sul) devem, entretanto, ser utilizados com precaução. Calculados sobre a base de uma exploração de 180 ha (dos quais 100 ha de soja), eles refletem os interesses econômicos e políticos dos granjeiros, proprietários de grandes explorações modernizadas.

Os produtores de soja não tiveram um aumento tão acentuado dos custos de produção. De 1974 até a fase posterior ao choque do petróleo o preço dos adubos atingira um nível muito elevado e obrigara o governo a oferecer uma subvenção que cobrisse 40% do preço de compra. Considerando o elevado nível de utilização de insumos agrícolas, a soja é o produto agrícola brasileiro com a correlação mais positiva a longo prazo entre as condições favoráveis de crédito e a produtividade/volume da produção. Ela seria, por isso, o produto mais sensível às modificações das condições de crédito.

Se o risco econômico da produção de soja aumenta acentuadamente a partir de 1983, isto não provocou grandes modificações da parte dos produtores; elas só vão aparecer em 1984, intensificando-se no ano seguinte. Este fato explica-se essencialmente pelo nível médio do preço recebido pelos produtores em 1983 que rompeu a tendência à queda real dos preços desde 1979 (ver Gráfico 4). A maxidesvalorização de 30% do cruzeiro em fevereiro de 1983 facilitou a capitalização dos produtores. É preciso ressaltar. que essa maxidesvalorização traduziu-se rapidamente por um aumento do preço dos insumos agrícolas dos quais alguns componentes são importados (adubos, produtos de tratamento). Paralelamente, a péssima colheita americana agravada pela redução da área cultivada (programa “Payrnent in Kind”) provocou uma forte elevação das cotações em dólar evitando, assim, para os produtores brasileiros uma crise de rentabilidade no período de 1983 a 1984.

Gráfico 4:
comparação dos custos de produção e do preço médio recebido pelos produtores de soja do estado do Rio Grande do Sul.

CRÉDITO RURAL SUBVENCIONADO CONTRA PREÇO MÍNIMO ELEVADO?

A contrapartida lógica da eliminação da subvenção do crédito rural é a alta do preço mínimo garantido. É o que decidiu o Ministério da Agricultura por ocasião da safra de 1984/85.

O Programa de Garantia dos Preços Mínimos (PGPM) criado em 1951 constituiu-se, por excelência, em um instrumento de política agrícola a curto prazo para efetivar o ajustamento da produção. No que diz respeito à soja, o preço mínimo até 1984 teve apenas um pequeno impacto pois ele foi sistematicamente inferior ao preço de mercado alinhado às cotações de Chicago.

Para o ano agrícola de 1984-1985, os preços mínimos de 19 produtos de base foram efetivamente elevados, mas esta medida global esconde profundas disparidades: 361% para a soja contra 248% em média para os cinco produtos destinados ao mercado interno (arroz, feijão preto, trigo, mandioca e sorgo). A política de preços mínimos revaloriza, portanto, o preço dos produtos alimentícios, mas nem por isso desfavorece ao principal produto de exportação, a soja.

Por mais paradoxal que isso seja, a colheita de 1984-1985 bate todos os recordes de produção agrícola: a produção de soja atinge 18 milhões de toneladas enquanto a produção de gêneros alimentícios tradicional conhece uma ligeira alta. Esse boom agrícola em plena crise financeira deve ser relativizado pelas excelentes condições climáticas que o Brasil não conhecia desde 1977.

Este novo recorde da produção de soja seguramente não reflete, como em 1974, a resposta dos produtores a uma alta dos preços no mercado internacional. Ao contrário, os créditos da soja caem a partir do final de 1983. Antes de tudo, esta performance é explicada pelo preço mínimo elevado da soja e pelos preços relativos comparados aos produtos alimentícios.

Apesar da vontade expressa de desprender-se da política de crédito, o Governo foi forçado a intervir massivamente na questão do estoque por ocasião da comercialização da colheita de 1984 - 1985. Ele foi obrigado a comprar 2,7 milhões de toneladas de soja em 1985 nos limites da política de preços mínimos enquanto sua intervenção era, até então, marginal neste nível.

Essa intervenção do governo, pouco identificada com a filosofia liberal do programa de ajustamento estrutural, resulta da queda das cotações internacionais que se mantiveram vários meses a um nível inferior ao do preço mínimo garantido. Ela reflete os limites da reestruturação da política agrícola brasileira: se é indispensável elevar o preço mínimo da soja para compensar o fim do crédito subvencionado, o governo não domina o nível dos preços de mercado alinhado às cotações de Chicago. Então, é pelo nível dos preços de mercado que os produtores de soja devem, de agora em diante, capitalizar-se para financiar os custos de produção da safra seguinte.

Para numerosos produtores obrigados a vender no momento da colheita para saldar seus créditos, o preço mínimo não cobre os custos de produção (ver Gráfico 4). Esta consideração global não impede que alguns produtores livrem uma margem que dependerá do nível de produtividade, da época em que compraram os insumos agrícolas e da possibilidade de estocagem em relação à produção para esperar uma alta das cotações.

A capitalização, fraca senão nula, dos produtores na época da comercialização da colheita de 1985 culmina com uma queda da taxa de autofinanciamento para a safra de 1985-1986 (ver Quadro abaixo) e ilustra o fracasso da reestruturação do financiamento da produção de soja.

Quadro 1:
Evolução da taxa de autofinanciamento dos produtores de soja entre 1979/1980 e 1985/1986*

Esta fraca rentabilidade da produção de soja em 1984/85 mostra, de um lado, os limites da política pregada pelo FMI; de outro, o peso determinante do nível das cotações internacionais para o sucesso do ajustamento estrutural.

UM MERCADO INTERNACIONAL MENOS FAVORÁVEL

Esta queda das cotações internacionais, mais nítida para a torta do que para o óleo, constitui a pedra fundamental do programa de ajustamento: ela impõe uma adaptação da estratégia agroindustrial brasileira frente ao setor da soja.

Esta estratégia havia sido elaborada no início dos anos 70 em um contexto comercial e financeiro favorável, tanto a nível interno quanto internacional. Nesta época, o Brasil era importador de óleo de soja e exportador de grão. Desde 1974-1975, o governo apoia financeiramente e fiscalmente o desenvolvimento da indústria local de trituração. Esta se desenvolve no mercado interno de óleo de soja e exporta mais de 3/4 da produção de torta. A intensificação da criação de animais sendo limitada a uma parte da avicultura e da produção de suínos, os industriais brasileiros não dispõem, portanto, de um mercado interno significativo para a torta como seus concorrentes americanos.

A conjuntura dos anos 80 revela-se muito menos favorável aos exportadores brasileiros, principalmente do lado da oferta: retomada da concorrência por parte dos Estados Unidos, aparecimento de novos produtores (Argentina e Paraguai) e desenvolvimento dos produtos de substituição (óleo de palmeira, torta de girassol e de colza).

Esta situação é agravada pela nova política monetária americana (valorização do dólar em relação ás moedas europeias e elevação das taxas de juro): ela se traduz por uma alta do preço da soja para os importadores europeus e os incita a diminuir seus estoques.

Se o Brasil conseguiu conquistar alguns mercados tradicionais americanos graças a uma política comercial agressiva sustentada financeiramente pelo governo, ele sofre hoje a concorrência dos créditos subsidiados americanos para o óleo de soja e deve colocar em questão as condições de seus créditos para exportação sob a dupla pressão da crise financeira e do GATT. Portanto, são as cotações elevadas do óleo-de soja que permitem compensar as fracas cotações da torta.

A isto se acrescenta a oferta crescente de soja dos países do cone sul - Argentina e Paraguai - desde o início dos anos 80, o que permite amortizar mais as variações de produção dos Estados Unidos ou do Brasil; paralelamente, o aumento da produção do óleo de palmeira da Malásia, irregular, mas inegável, oferece uma nova alternativa aos compradores tradicionais de óleo de soja. A médio prazo, a produção asiática de óleo de palmeira, menos dependente do mercado das tortas, deverá ocupar um lugar crescente no mercado internacional: ela se beneficia dos avanços biotecnológicos em curso, de uma produtividade elevada e de novas variedades.

Do lado da demanda, a concentração das exportações brasileiras de soja no MCE (65% das exportações de torta e 80% das de grão) suscita reações protecionistas da parte dos trituradores europeus. Entre 1974 e 1985, as exportações brasileiras de torta de soja com destino ao MCE passam de 0,6 a 6,5 milhões de toneladas enquanto os trituradores europeus vivem uma estagnação de sua produção ao longo dos últimos anos. Estes últimos acreditam que o Brasil conseguiu aumentar sua parte no mercado comum graças às subvenções indiretas e aos abatimentos de preço; nesse sentido, muitas reclamações foram remetidas às autoridades de Bruxelas. Se os conflitos de 1977 e 1984 puderam ser resolvidos graças às concessões feitas pelo governo brasileiro, eles podem rapidamente reproduzir-se neste período de reestruturação da política agrícola comum e da retomada das culturas oleoproteaginosas europeias.

Dessa forma, se ao longo dos últimos 25 anos a demanda mundial de torta cresceu mais rapidamente que a do óleo, parece que esta tendência deveria inverter-se nos anos seguintes (ISTA, 1983Ista Mielke (1983) The past 25 years and the prospects for the next 25 in the market for oilseeds, oils, fats and meals, Hamburgo, Ista Mielke GmbH. ). Face a seu principal concorrente, os Estados Unidos, o Brasil tem duas desvantagens: a concentração de suas exportações em um número restrito de países o torna mais sensível a uma retomada da concorrência; o pequeno porte de seu mercado interno e a estratégia agroindustrial escolhida o obriga a exportar 2/3 de sua produção de torta enquanto os Estados Unidos dispõem de um mercado interno importante e são mais especializados na exportação de grãos.

A conjunção de uma forte queda do valor dos financiamentos governamentais destinados ao setor de soja e de um mercado internacional menos favorável aos exportadores brasileiros poderia deixar prever uma nova definição da política agrícola brasileira mais favorável ao setor de produtos destinados à alimentação.

OPÇÕES OBRIGATÓRIAS

Duas das condições da inserção do Brasil no comércio internacional de soja são hoje colocadas em questão. Isto não significa que estaríamos no fim de um “ciclo da soja” a exemplo do que aconteceu neste país com a cana-de-açúcar ou com o café em séculos anteriores.

A expansão da soja no Brasil introduziu, de fato, uma ruptura na história da agricultura brasileira. A partir de 1967-1968, uma parte da agricultura joga um novo papel no processo de acumulação: de setor tomador de empréstimos, ela se transforma num setor de transferência líquida de recursos da parte do Estado. Esta política permitiu uma inegável internalização do processo de desenvolvimento agrícola tanto ao nível da produção quanto das agroindústrias em larga escala.

Assim, a crise financeira. coloca em xeque o volume das despesas públicas destinadas ao setor rural e implica uma revisão do peso relativo dos diferentes parâmetros da competitividade da soja brasileira.

Os termos clássicos da concorrência entre Estados Unidos e Brasil no mercado internacional da soja podem ser assim resumidos:

  • - os custos de produção são mais baixos no Brasil do que nos Estados Unidos, decorrendo a vantagem brasileira do custo da terra e da mão-de-obra, assim como das condições favoráveis de crédito;

  • - por outro lado, as despesas de transporte e de comercialização são muito mais elevadas no Brasil; o transporte é feito essencialmente por caminhão e a soja é duramente penalizada pelos impostos.

Se a competitividade da soja brasileira manteve-se globalmente em 1985, isto se deveu a uma descapitalização de numerosos produtores.4 4 Ver ETAC Mercados soja e oleaginosas, Curitiba (Brasil), vol. V, n. 203, 24.6.1985. As decisões de política econômica e agrícola tomadas pelo Governo para a safra de 1985/86 e a implantação do Plano Tropical em fevereiro de 19865 5 O Plano Tropical, implantado em 2/86, modificou radicalmente a fisionomia da economia brasileira: criação de uma nova moeda, congelamento de salários e preços. ilustram os diferentes obstáculos em que esbarra a economia da soja;

  • - a taxa de juro do crédito rural permanece positiva para os produtores de qualquer porte ao passo que se tornou negativa para os pequenos produtores de outras culturas destinadas à alimentação. Isto traduz a prioridade dada ao redirecionamento da produção de gêneros alimentícios para que a política de reaquecimento levada pelo novo governo democrático não se transforme em um aumento das importações de produtos para a alimentação. Mas sobretudo o fim da correção monetária e da especulação financeira que essa taxa permitia deveria levar os produtores a investir. As taxas de juros foram baixadas para 8-10% ao ano (contra 240-250% anteriormente) e o mercado monetário não representa mais um atrativo para os detentores de capital;

  • - o nível de VBC que determina o volume de crédito governamental concedido aos produtores de soja cresceu (ver Gráfico 3), o que expressa a retomada da capitalização, fraca senão nula, de numerosos produtores, desde a safra de 1984/85 e deve compensar parcialmente o aumento dos gastos financeiros nos custos de produção. Mas a porcentagem de VBC realmente liberada limitou-se a 50% para os grandes produtores e a 60% para os pequenos dentro dos limites impostos pela massa monetária;

  • - o nível do preço mínimo garantido, por outro lado, sofre uma baixa real (ver Gráfico 5): trata-se aqui de não repetir os erros da comercialização de 1985, quando o nível muito elevado do preço mínimo tinha como base uma intervenção maciça e onerosa do Estado.

Gráfico 5:
Evolução do preço mínimo real da soja entre 1978-1980 e 1985-1986 (em ORTN)

Estas questões nos sugerem duas reflexões. A primeira diz respeito aos gastos financeiros que constituem novamente o primeiro ponto dos gastos de produção: eles impõem uma produtividade elevada (19-20 qx/ha) para que a cultura seja rentável. Isto poderia implicar uma redistribuição a prazo entre os produtores e regiões de produção de soja.

Os pequenos produtores de soja que não obtiveram este nível de produtividade foram talvez obrigados a reorientar sua produção buscando as culturas de gêneros alimentícios e a produção de soja concentrou-se nas explorações mais modernizadas. Paralelamente, as zonas onde a produtividade da cultura de soja é mais baixa, notadamente o Rio Grande do Sul, assistirão a um desenvolvimento da produção de gêneros alimentícios após terem sido o lugar de origem da soja. As novas condições financeiras deverão assim acelerar a redistribuição regional da produção de soja do sul para o centro-oeste do país.6 6 Sobre os fatores econômicos e agronômicos da redistribuição regional da produção de soja no Brasil, ver Leclercq, Vincent, “Crises et perspectives de l’économie du soja au Brésil, 1980-1984”, em Leclercq e Marloie (1985).

A segunda reflexão diz respeito aos diferentes parâmetros da competitividade da soja brasileira no mercado internacional. Manter uma vantagem comparativa brasileira ao nível dos custos de produção parece pouco provável porque está ligada a uma volta do crédito rural subvencionado.

Por outro lado, os ganhos de competitividade podem ser obtidos ao nível das despesas de comercialização. O questionamento sobre os diferentes impostos que pesam sobre o preço da soja para exportação (13% de imposto sobre circulação de mercadorias - ICM - 0,75% de PIS e 2,5% de FINSOClAL) parte dos produtores e dos industriais. Mas ele supõe, de um lado, uma revisão da legislação fiscal nacional pois o ICM representa atualmente uma das principais fontes do orçamento dos Estados da Federação e, de outro lado, uma negociação com o Mercado Comum Europeu pois a elevação da porcentagem do ICM fora obtida pelo MCE em 1977 a fim de limitar a competividade da soja brasileira no mercado europeu.

Paralelamente, ganhos notáveis de competitividade poderiam ser obtidos em nível de estocagem e de transporte interno da soja. Estes dois pontos foram objeto de programas prioritários das despesas públicas: construção de silos no centro-oeste pela CIBRAZEM (Companhia Brasileira de Armazéns), construção de uma ferrovia de 2.500 km ligando o centro-oeste ao litoral, projeto de construção de um corredor de exportação no Paraná. Mas estes projetos dependem frequentemente de um cofinanciamento por parte de investidores estrangeiros ou do Banco Mundial. Os ganhos de competitividade podem, pois, ser obtidos internamente, mas a rentabilidade da produção da soja no Brasil continua fortemente dependente da política de câmbio cruzado/dólar e do nível das cotações internacionais.

Se é difícil prever a política de câmbio que será adotada após o Plano Tropical, por outro lado pode-se observar que, em 1986, salvo algum acidente climático, não há condições para uma elevação das cotações internacionais da soja, que continuam muito ligadas a uma oferta mundial abundante.

O peso determinante das exigências financeira e comercial na reestruturação atual da política agrícola brasileira não deve, entretanto, mascarar a situação social crítica em que se encontra uma parte da sociedade brasileira.

Quinze anos de modernização agrícola com base na cultura da soja modificaram profundamente a sociedade rural do sul do Brasil. O ritmo e as modalidades desta modernização provocaram um êxodo rural muito importante e uma concentração rápida da terra. Mas há vários anos, as duas “válvulas sociais” desta política, a criação de empregos urbanos e a colonização agrícola do centro e do leste do país, não têm mais a mesma importância. Além disso, o boom da soja, deslocando as culturas de gêneros alimentícios das melhores terras, contribuiu para a estagnação destas culturas desde 1977.

Dentro deste quadro vemos delinear-se duas tendências opostas para a reestruturação do setor da soja. De um lado, os grandes proprietários e a agroindústria procuram obter concessões fiscais e financeiras para manter a rentabilidade e a competitividade do setor.7 7 Ver o relatório do I Congresso Brasileiro da Agricultura de Grãos (COBRAG), Alimentos: um desafio para o Brasil, São Paulo: Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais, novembro de 1984, p. 78. A organização deste congresso pela Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais reflete bem a nova estratégia oficialmente “pró” cultura de gêneros alimentícios do lobby agroindustrial. De outro, os excluídos do processo de modernização questionam o modelo tecnológico e a organização das cooperativas e apoiam a retomada da produção de gêneros alimentícios e o lançamento de uma reforma agrária. Neste período da acentuada queda das despesas públicas destinadas ao setor agrícola, o governo Sarney poderia, como anuncia publicamente, conciliar a retomada da produção de gêneros alimentícios e a manutenção da competitividade da soja brasileira?

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  • 1
    Entendidos aqui no sentido restrito do termo: cereais, oleaginosos e produtos de pastagem.
  • 2
    A correção monetária representa a variação das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN), que acompanham a evolução da inflação.
  • 3
    Ver Trevisan, Paulo, Considerações sobre a rentabilidade da lavoura da soja no Rio Grande do Sul, Porto Alegre (Brasil), FECOTRIGO, janeiro 1985, p. II. Os custos de produção elaborados pela FECOTRIGO (Federação de Cooperativas de Soja e Trigo do Rio Grande do Sul) devem, entretanto, ser utilizados com precaução. Calculados sobre a base de uma exploração de 180 ha (dos quais 100 ha de soja), eles refletem os interesses econômicos e políticos dos granjeiros, proprietários de grandes explorações modernizadas.
  • 4
    Ver ETAC Mercados soja e oleaginosas, Curitiba (Brasil), vol. V, n. 203, 24.6.1985.
  • 5
    O Plano Tropical, implantado em 2/86, modificou radicalmente a fisionomia da economia brasileira: criação de uma nova moeda, congelamento de salários e preços.
  • 6
    Sobre os fatores econômicos e agronômicos da redistribuição regional da produção de soja no Brasil, ver Leclercq, Vincent, “Crises et perspectives de l’économie du soja au Brésil, 1980-1984”, em Leclercq e Marloie (1985Leclercq, Vincent, e Marloie, Marcel, coords. (1985), CEEI Brasil: Crises de l’économie du soja, atas do Seminário Franco-Brasileiro LEI-INRA/ FIDENE-UNIJUI - Montpellier: LEI-INRA/ ESR, março. ).
  • 7
    Ver o relatório do I Congresso Brasileiro da Agricultura de Grãos (COBRAG), Alimentos: um desafio para o Brasil, São Paulo: Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais, novembro de 1984, p. 78. A organização deste congresso pela Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais reflete bem a nova estratégia oficialmente “pró” cultura de gêneros alimentícios do lobby agroindustrial.
  • 8
    JEL Classification: Q11; Q14; Q17.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1987
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