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A questão da terra

The land question

RESUMO

Este artigo analisa algumas relações entre o problema agrário e o processo de desenvolvimento capitalista no Brasil. Argumenta que o aumento da produtividade associado ao aprofundamento da divisão social do trabalho altera as relações de produção no setor agrícola. O campesinato inicialmente ligado aos latifúndios feudais torna-se mão-de-obra assalariada contratada sazonalmente para as fazendas capitalistas. Nesse contexto, o problema fundiário surge como uma questão financeira associada basicamente ao preço da terra. Com isso, a reforma agrária baseada na compra de grandes áreas pelo governo não será uma solução para o problema agrário, pois apoiará o aumento do preço da terra.

PALAVRAS-CHAVE:
Terra; propriedade da terra; reforma agrária

ABSTRACT

This paper analyses some relationships between the agrarian problem and the process of capitalist development in Brazil. It argues that the increase in productivity associated with the deepening of the social division of labor changes the relations of production in the agricultural sector. The peasantry firstly linked to the feudal latifundia becomes wage labor hired on seasonal basis for the capitalist farms. In this context, the land problem emerges as a financial issue associated basically with the land price. As a result, the agrarian reform based on the purchase of large areas by the government will not be a solution for the agrarian problem since it will support an increase in land prices.

KEYWORDS:
Land; land ownership; land reform

“Nos países em que a economia de mercado é pouco desenvolvida, a população é quase inteiramente agrícola, o que, aliás, não quer dízer que ela se ocupe apenas de agricultura; significa somente que essa população transforma ela mesma os produtos agrícolas, que a troca e a divisão do trabalho são quase ·inexistentes.”1 1 O desenvolvimento do capitalismo na Rússia.

Lenin

Nosso ponto de partida para a abordagem da questão agrária brasileira não pode ser senão este, isto é, a percepção de que ela é algo que acontece no processo da industrialização, que coroa o processo da divisão social do trabalho. Noutros termos, coisas que tradicionalmente a própria família camponesa - patriarcal ou em condições de servidão de gleba - fazia para o seu próprio consumo, devem ser agora compradas com a renda auferida da venda de produtos agrícolas, dado que ela foi privada das condições para cuidar de atividades não agrícolas.

A divisão do trabalho traz consigo um enérgico aumento da produtividade do trabalho, mas isso não quer dizer que todos os ganhos obtidos através dela e do seu coroamento, isto é, da industrialização, sejam líquidos. Isso somente aconteceria se todos os dias poupados pelo aumento da produtividade do trabalho fossem efetivamente empregados, o que nem sempre acontece.

Com efeito, se a família camponesa é privada das condições para levar a cabo a produção para autoconsumo, o tempo de trabalho poupado tomará a forma de mão-de-obra sazonalmente desempregada, porque a agricultura é, por sua natureza, uma atividade que, contrariamente ao que em geral acontece com a indústria de transformação e a maior parte das atividades não agrícolas, só usa plenamente a mão-de-obra ao seu dispor durante parte do ano; ou tomará a forma de mão-de-obra quase ou inteiramente desempregada, no caso da população que emigra do campo. Assim, de uma forma ou de outra, milhões de dias de trabalho são inteiramente perdidos, o que quer dizer que o aumento do produto social será menor do que se toda a mão-de-obra disponível fosse utilizada.

A esse excedente de mão-de-obra - parte do tempo das famílias que permanecem rurais e potencialmente todo o tempo das que emigram - vai formar o que Marx denominava de “exército industrial de reserva”. Ora, um “exército de reserva” limitado, isto é, algum desemprego, pode ser considerado útil, do ponto de vista do desenvolvimento da produção capitalista, porque serve de instrumento de coação para os trabalhadores livres, fortalecendo assim a disciplina no trabalho. Por muito desumano que nos possa parecer esse instrumento de coerção, ele é incomparavelmente mais humano que os usados pelos regimes que precederam o capitalismo - a escravidão e o feudalismo. O primeiro servia-se da violência pura e simples e o segundo de uma violência amenizada, porque complementada por uma coerção econômica, baseada no monopólio da terra.

Entretanto, se esse “exército de reserva” se torna excessivo, indo além do necessário para sua função de instrumento para impor a disciplina no trabalho, pode converter-se em obstáculo ao desenvolvimento da própria economia capitalista. Ora, aqui está o nosso problema, dado que o “exército industrial de reserva” brasileiro tornou-se teratologicamente grande. Por isso mesmo, a questão agrária, que se exprime precipuamente pela formação desse ‘’exército”, não interessa apenas aos camponeses, mas à sociedade como um todo.

O conceito de sazonalidade para a produção agrícola - no sentido lato de rural ou localizada no campo - apenas diz respeito à produção agrícola, no sentido estrito, isto é, de tamanho da terra. É principalmente nos intervalos entre os períodos de semeadura, colheita, preparo da terra etc., que a população camponesa se aplica aos trabalhos não agrícolas, isto é, que constrói ou reconstrói a casa, cuida do vestuário, do mobiliário e das ferramentas, beneficia os produtos agrícolas brutos, pondo-os em condições para o consumo etc.

Compreende-se que essas coisas podem ser feitas nos locais regulares da indústria de construção ou nas fábricas, pelo emprego de muito menos tempo de trabalho, mas também deve ficar claro que essa alternativa não se apresenta para a família camponesa. Para esta, quase sempre cabe optar entre produzir à maneira antiga, ou não produzir. Entretanto, mesmo nos casos em que uma opção verdadeira se apresente - por exemplo, quando o tempo deixado livre ao camponês pode ser empregado na construção civil - somente parte do produto do dia de trabalho toca ao produto direto. O restante é a mais-valia, que se converte em lucro para o empresário capitalista, imposto para o Estado etc., ao passo que todo o produto de autoconsumo é apropriado pelo produtor. Noutros termos, é muito importante para a família camponesa ter condições adequadas para a organização de sua produção de autoconsumo.

O camponês brasileiro tende, cada vez mais, a dividir o tempo útil de sua família entre uma produção propriamente agrícola, em fazendas capitalistas, que dispõem de técnica de vanguarda, consubstanciada em equipamento mecanizado, insumos agrícolas químicos e técnica agronômica, com elevada produtividade por homem/dia e capacidade de utilizar terras sem serventia agrícola para quem dispusesse apenas dos meios tradicionais, e uma produção para autoconsumo, usando o tempo deixado livre pela fazenda capitalista. Noutros termos, o “boia-fria” ou trabalhador volante deixou de ser uma exceção para converter-se no contingente mais dinâmico e cada vez mais numeroso dos trabalhadores agrícolas. Seu problema fundamental ·consiste em que lhe fazem falta condições propícias para a produção de autoconsumo.

O camponês tradicional, geralmente em terra alheia, também dividia o seu tempo entre produção para o mercado e produção para autoconsumo. Sua produção para o mercado apoiava-se numa tecnologia primitiva, do mesmo modo que a produção para autoconsumo, e as duas atividades habitualmente se confundiam numa atividade complexa única. Da perspectiva da família camponesa, seria difícil dizer onde terminava uma e onde começava outra, tanto mais quanto, em ambos os casos, a terra era alheia e servia de base a laços de dependência pessoal entre o “agregado” e o latifundiário. Sobre esses laços se erguia todo o edifício das relações feudais de produção, e podemos estar certos de que se reerguerão, onde quer que eles se estabeleçam.

O desenvolvimento do capitalismo na agricultura - como reflexo do amadurecimento do capitalismo industrial nas atividades não agrícolas - viria introduzir importantes mudanças nesse quadro. Em primeiro lugar, as atividades agrícolas fundamentais passaram a ser campo de interesse imediato para o latifundiário. Este, em vez de distribuir parcelas entre os agregados, para que estes as lavrassem com seus próprios meios rudimentares, assumiu a responsabilidade por aquelas atividades, com o auxílio de uma tecnologia que o desenvolvimento da indústria pesada - notadamente a de construções mecânicas e a química de base - e a nova universidade iam pondo ao seu alcance, mas não ao alcance da família camponesa tradicional.

A mão-de-obra necessária a essas novas fazendas foi recrutada no seio das famílias camponesas. Não as famílias inteiras, porém. Apenas alguns dos seus membros, o que trouxe consigo uma das mais trágicas repercussões do processo, visto como este trazia, a princípio como simples possibilidade, a desagregação da família camponesa, tradicionalmente tão estável.

É claro que essa importante revolução nas relações de produção na agricultura brasileira não se fez da noite para o dia, nem se fez por igual em todas as regiões, ou em todos os latifúndios da mesma região. Os dois “regimes” - o capitalista e o feudal - coexistiram por vários decênios, a exemplo dos trabalhadores temporários da cana-de-açúcar no Nordeste, cujas famílias continuavam instaladas nas parcelas cedidas pelo latifúndio tradicional. Essa coexistência foi, a princípio, relativamente pacífica, mas a sorte estava lançada, isto é, uma luta de morte entre os dois latifúndios aliados estava travada, e o desfecho dessa luta não deixava margem para dúvidas. Assim como, no século passado, a coexistência de fazendas de feitio feudal, baseadas na agregação livre, conduziu à abolição da escravidão, o latifúndio feudal foi perdendo sua razão de ser e ou converteu-se em fazenda capitalista ou arruinou-se.

Progressivamente, o latifúndio feudal foi expelindo as famílias agregadas cujos membros mais válidos, especialmente os homens, se haviam transformado em volantes, “boias-frias”, isto é, semiproletários assalariados pela fazenda capitalista, e se desinteressavam pelas atividades agrícolas tradicionais, do interesse precípuo do latifundiário, cuidando apenas dos seus próprios interesses, isto é, das atividades de autoconsumo, a começar pela casa e pela agropecuária de quintal. Tudo isso estava na ordem natural das coisas, mas não era menos trágico por isso, visto como a família desagregou-se e, principalmente as mulheres, os velhos e as crianças tomaram o caminho das cidades, sem retorno possível.

A família lutou heroicamente, tentando caminhar inteira para as novas fazendas, mas os resultados dessa luta foram escassos. Os novos fazendeiros estavam em condições de escolher apenas a nota da mão-de-obra, visto como o aumento radical da produtividade do trabalho agrícola, confrontado com a conhecida inelasticidade-renda dos produtos agrícolas, deixava os campos a braços com um forte excedente de mão-de-obra - a princípio relativo e, subsequentemente, absoluto.

A família camponesa, ameaçada de desagregação ou já desagregada, como tem acontecido, ao longo de toda a história, luta por reconquistar o seu “paraíso perdido”, e sua imaginação situa esse paraíso no seu próprio passado, isto é, na parcela que antes explorava, cedida onerosamente pelo latifúndio tradicional. - Ah! Se fosse possível voltar à velha parcela, naturalmente embelezada, isto é, livre das obrigações feudais implícitas na agregação...

Muitas pessoas de boa-fé confirmam a família camponesa nessas ilusões douradas, não percebendo que a exploração agrícola familiar, com ou sem redevances féodales (condição, cambão etc.) é ainda menos viável agora do que antes. Do velho estado de coisas somente se justificaria a ocupação estável de uma pequena parcela - que a experiência paulista parece tender a situar em torno de 1/20 ha - onde situar a casa, as atividades domésticas e a lavoura e criatório de quintal. Noutros termos, trata-se de recriar as condições para a produção natural ou de auto­consumo, naturalmente em terra própria ou do Estado, recebida em comodato ou outras condições adequadas a cada caso. Ficaria naturalmente excluída a propriedade desses pequenos lotes pelo fazendeiro capitalista, porque isso recriaria laços feudais de dependência, de todo indesejáveis.

Compreende-se que, nessas condições, a família “boia-fria”, não apenas terá mais chances de manter-se unida, como não terá por que marchar integrada para o trabalho na fazenda capitalista, visto como os membros jovens, os velhos e parte das mulheres adultas terão aplicação útil para o seu tempo, dentro da casa de família ou no quintal. Por outras palavras, calculando-se por família, a oferta total de mão-de-obra semiproletária tenderá a declinar, o que, para a mesma demanda, comprometerá um número maior de famílias. Essas famílias suplementares serão camponeses que deixarão de migrar para as cidades, ou favelados urbanos desempregados, que eventualmente optarão pelo regresso ao campo.

Assim, mesmo que o salário percebido pelo trabalho “boia-fria” se mantivesse, a renda efetiva da família - inclusive a parcela imputada, correspondente à produção natural ou de autoconsumo - tenderia a crescer. Consequentemente, o salário dos trabalhadores empregados nas atividades não agrícolas tenderia a elevar-se, porque o salário-mínimo desses trabalhadores, que é piso para toda a escala salarial, tenderia para o nível efetivo dos trabalhadores agrícolas (incluindo o sobre salário correspondente à produção obtida na parcela “boia-fria”). Por outras palavras, o problema capital de toda a economia brasileira contemporânea, vale dizer, o esquema de distribuição da renda, tenderia a amenizar-se.

O problema da terra, por sua vez, passaria por uma reformulação radical. A parte da terra destinada à produção para o mercado passará - ou já passou, em grande parte - a ser explorada em altas condições tecnológicas, ao passo que a parte retida para a instalação da família camponesa semiproletária continuará a sê-lo em condições primitivas, tanto no que interessa à pequena produção agrícola para autoconsumo, como no que toca à produção doméstica não agrícola, para o mesmo fim, ou para o pequeno mercado local. Mas já vimos que isso não torna antieconômico essa atividade, já que se fará com mão-de-obra sem emprego alternativo. Ora, o custo de um fator de produção é a produção que com o seu emprego obteríamos numa atividade alternativa. Se esta não existe, seu custo social será nulo.

Tanto no que toca à terra usada para a produção de mercado pela fazenda capitalista, como no tangente à parcela a ser confiada para fins de autoconsumo à família semiproletária rural, mudarão radicalmente as especificações. Vastas extensões de terras não utilizáveis, seja para um fim, seja para outro, nas condições anteriores, serão exploráveis de agora em diante, o que quer dizer que a oferta efetiva de terra aumentará enormemente. Baste considerar o cerrado, cerca de 1/5 do território nacional, que era tradicionalmente considerado como não-terra, no sentido agrícola da expressão, mas está em processo de rápida incorporação. Ora, nenhuma reforma agrária baseada no simples parcelamento do solo poderia conduzir a esse resultado.

A consequência mais importante desse fato será a tendência à queda do preço da terra. O preço como se sabe, é a capitalização da renda territorial e esta, por motivos que seria ocioso discutir aqui, tenderá a declinar, como consequência da mudança da oferta de terra agrícola. Por outro lado, a capitalização resulta da comparação da renda territorial com uma taxa ideal de juros que reflita a eficácia marginal do capital fora do setor agrícola. Uma parcela de terra valerá tanto quanto um capital que, aplicado noutras atividades, produza um lucro igual à renda da mesma parcela.

Ora, a crise agrária não se desenvolve no vazio, mas como parte de uma crise econômica que deverá conduzir a novas condições de intermediação financeira, cujo resultado final deverá ser uma queda importante na taxa de juros, fazendo-a aproximar-se mais daquela taxa ideal, isto é, da eficácia marginal do capital.

Compreende-se que, enquanto essa reforma financeira não tiver lugar, qualquer tentativa de “reforma agrária”, baseada na aquisição pelo Estado de vastas glebas, somente virá complicar o problema, elevando a prumo o preço da terra.

Noutros termos, a questão da terra, no Brasil e no presente estágio do seu desenvolvimento, emergiu essencialmente como uma questão financeira. Por outras palavras, a terra não se redistribui, subdivide-se, porque se tornou proibitivamente cara, e é cara, não pelos motivos convencionais - capitalização da Renda Diferencial I, da Renda Diferencial II e da Renda Absoluta - mas sim pelo que propus que batizássemos de IV Renda, isto é, da expectativa de valorização.

Esta é uma renda peculiar, que os clássicos não estudaram, e que se aplica inclusive à terra que não é utilizada, porque também ela se valoriza. Mais ainda, ela faz do título imobiliário um ativo mobiliário, como as ações e as obrigações. É objetivamente para a capitalização da terra pela via da compra-venda, como exige nosso direito, depende de que se quebre a expectativa de valorização. Donde se infere que qualquer tentativa de “reforma agrária” baseada na desapropriação de terras, por via de compra pelo Estado, será estritamente contraindicada, porque, fortalecendo a expectativa de valorização, elevará o preço da terra.

Mais ainda, o latifundiário tradicional, que ainda permita a ocupação de suas terras por famílias camponesas, em condições de ‘’agregação”, sentir-se-á levado a expulsá-las, para que suas terras se tornem livres para pronta alienação, o que quer dizer que, para cada família que dita “reforma” vier a situar, outras serão desarraigadas, agravando o problema, em vez de resolvê-lo. Boa parte dos atuais conflitos de terra, que tantas vidas estão ceifando, tem esta origem, isto é, não resulta da tentativa de conquista de terras por camponeses sem terra, mas do esforço dos velhos “agregados” por conservar o que já tinham; como tinham seus pais e avós. Aliás, é raro que as massas trabalhadoras se lancem à luta para a conquista de um direito que não tivessem. A regra é que procurem preservar velhos direitos, sendo a conquista de novos, geralmente, um resultado não buscado na origem.

A solução do problema da terra, portanto, na decisiva medida em que dependa do preço, terá que esperar pela mudança nas condições financeiras da economia nacional, isto é, de algo que deverá acontecer fora do setor agrícola.

Isto, porém, não quer dizer que nada haja que fazer imediatamente. Milhões de famílias “boias-frias” aplicam, como já foi discutido, parte variável de seu tempo de trabalho em condições de alta produtividade - com a circunstância muito feliz de que isso pode ser feito em terras que a agricultura tradicional não podia utilizar - em fazendas capitalistas, baseadas em mecanização, em quimificação e em alta técnica agronômica. É dessas fazendas que depende a futura produção agrícola brasileira, tanto para os fins de exportação, como de suprimento do mercado interno.

Com efeito, não há nenhuma fatalidade em que a produção para o mercado interno continue a depender de pequenas explorações agrícolas. Como já discuti, há mais de vinte anos, em meu livro A inflação brasileira, isto é algo que tem que ver com o mecanismo de comercialização dos produtos agrícolas.

O caso é que a comercialização dos produtos agrícolas é feita pela intermediação de um vigoroso oligopsônio - que funciona, na prática, como um quase monopsônio. Ora, este oligopsônio, administrando seus preços de compra ao produtor, regula a oferta primária de bens agrícolas, e é aqui que começa o problema, porque é natural que o faça de acordo com seus interesses, visando a maximizar seus lucros, que se definem com um diferencial entre o preço pago ao produtor e o cobrado ao mercado.

Ora, por muito poderoso que seja esse oligopsônio, mesmo no caso extremo do café, qualquer tentativa de forçar a alta dos preços finais, via limitação da oferta, ou nem sequer é tentada ou se revela ruinosa, porque implica abrir um guarda-chuva, sob o qual se abrigam os produtos de outros países, que se beneficiam dos altos preços de venda acaso obtidos, sem qualquer custo próprio. Noutros termos, nosso oligopsônio, com ou sem o apoio do Estado, será levado a maximizar a produção e, portanto, dado o preço da venda, que não depende dele, a maximizar sua receita.

O caso muda de aspecto, tratando-se de mercado interno. Uma virtual, mas efetiva reserva de mercado limita a oferta de produtos destinados ao consumo interno ao que os agricultores brasileiros produzirem. Somente em condições muito especiais, como agora, quando, sob o Plano Cruzado, estamos importando um suplemento de bens tradicionalmente não importados, quebra-se essa regra, mas é claro que esse expediente não pode ser levado muito longe, por consabidos problemas de balanço de pagamentos, e também porque isso implica em dumping da economia nacional, política que se pode revelar ruinosa.

A solução do problema não pode ser esta, mas a intervenção do Estado nas relações entre o oligopsônio - virtual oligopólio, no caso de produtos destinados ao mercado interno - e o produtor, seja este grande, médio ou pequeno. O preço mínimo ao produtor agrícola é o instrumento eficaz e provado dessa intervenção, porque limitará o poder do oligopsônio-oligopólio para administrar, via preço de compra, a oferta agrícola.

Resta, assim, como problema suscetível de solução por via de política fundiária, a questão do oferecimento, à família “boia-fria”, de um lote de algumas centenas de metros quadrados, onde ela possa implantar sua casa e fazer uma pequena agricultura e criatório para autoconsumo ou para o mercado comarcano. Se o governo tem recursos para a reforma agrária, pois que os utilize na implantação dos serviços de infraestrutura das aldeias de “boias-frias” - a que os mexicanos, mutatis mutandis, denominam ejidos - o suprimento de água, o posto de saúde, a escola, a estrada que os aproxime das fazendas capitalistas.

Deve-se ter o cuidado de não criar uma relação de dependência entre a aldeia “boia-fria” e uma fazenda específica. É absolutamente necessário que o semiproletário agrícola não seja um agregado de nenhuma fazenda, porque as relações de salariato são incompatíveis com as de servidão de gleba ou “agregação”. Como bem observava Milton Campos, as relações de salariato são, por sua natureza, instáveis, isto é, devem durar enquanto convier a ambas as partes, ao passo que a ocupação de um lote familiar, para ser eficaz, deve ser estável.

Essa diferença - instabilidade, num caso, e estabilidade, no outro - reflete juridicamente a diferença social e econômica dos dois institutos: a fazenda capitalista e o lote familiar.

  • 1
    O desenvolvimento do capitalismo na Rússia.
  • 2
    JEL Classification: Q15; Q18.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1986
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