Open-access Políticas Públicas de Acesso à Terra: uma análise do Programa Nacional de Crédito Fundiário, em Nova Xavantina (MT)

Resumo:

Este artigo se propõe a investigar o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), enquanto política de acesso à terra nos assentamentos rurais Pé da Serra e Beira Rio, no município de Nova Xavantina (MT), buscando analisar se ele tem proporcionado às famílias condições para desenvolver os processos produtivos nos lotes de acordo com suas especificidades. Além da revisão bibliográfica, a pesquisa constou de observações a campo, aplicação de questionários a 43 agricultores e entrevistas com atores externos aos assentamentos. A análise dos resultados permitiu constatar que o PNCF é uma política importante de acesso à terra aos agricultores familiares do município, permitindo, embora com limitações, o desenvolvimento dos processos produtivos nos lotes, a geração de emprego e renda aos assentados. Avaliou-se que, diante da falta de condições desses familiares em comprar a propriedade com recursos próprios, a aquisição via crédito fundiário tem garantido maior agilidade no processo de acesso à terra. Entretanto, o êxito do programa encontra-se parcialmente comprometido devido a equívocos do projeto de Pronaf Investimento e pelo não acompanhamento das ações propostas, por parte das instituições de ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural). Esses fatores, aliados ao elevado nível de inadimplência, dificultam o desenvolvimento das famílias assentadas.

Palavras-chaves: política agrária; PNCF; perfil das famílias; reforma agrária

Abstract:

This work proposes to investigate the PNCF, as an access policy to the land of the Pé da Serra and Beira Rio rural settlements, in Nova Xavantina (MT), trying to analyze if it has been giving to the families the conditions that are necessary to develop the productive processes in the lots according to their specifications. Besides the bibliographic review, the research was made of field observations, application of questionnaires to 43 family farmers of the county, allowing, even with limitations, the development of the productive processes in the lots, the generation of employment and income to the ones settled. It has been evaluated that, due to the lack of conditions of these family farmers in buying the property with their own resources, the purchase via agrarian credit has guaranteed a bigger agility in the process of access to the land. However, the success of the program is partially jeopardized because of the mistakes of the Pronaf Investment project and because of the non-monitoring of the actions proposed on the part of the ATER (Technical Assistance and Rural Extension) institutions. These factors, combined to the high level of non-payment, cause the development of the settled families to be more difficult.

Key-words: agrarian policy; PNCF; family profiles; agrarian reform

1. Introdução

O surgimento das políticas de acesso à terra, por meio da compra e venda, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), como foi o caso da Cédula da Terra (CDT), restrito a alguns estados do Nordeste, e o Banco da Terra (BT), tiveram como objetivos, segundo o Banco Mundial (1997), acelerar a realização da reforma agrária ao eliminar a burocracia e longas disputas judiciais concernentes aos processos de desapropriação por interesse social, permitindo que os trabalhadores rurais pudessem escolher as terras desejadas para aquisição e realizar a negociação dos seus preços, eliminando os confrontos. Além disso, essas políticas teriam custo inferior ao processo de desapropriação, fato esse que facilitaria a sua ampliação.

Estes programas, apoiados pelo Banco Mundial, tiveram forte oposição de vários setores da sociedade, especialmente dos movimentos sociais de luta pela terra que consideravam que a estratégia do governo era substituir a desapropriação por interesse social pela lógica da oferta e demanda de terras, a chamada reforma agrária assistida pelo mercado (PEREIRA e SAUER, 2011). Neste contexto, surgiu o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) com o objetivo de substituí-los.

Herdado da política agrária do governo FHC, o PNCF inspirou-se também nas diretrizes agrárias do Banco Mundial, mas foi propalado pelo governo Lula como um mecanismo complementar à reforma agrária. Passou a contar com o apoio político e operacional de parte do movimento sindical representado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) e a Federação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Fetraf), ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT), cuja participação está prevista no Manual de Operações do referido Programa (MDA, 2002).

De acordo com o MDA (2015), o programa permite a incorporação de áreas que não podem ser desapropriadas e é executado de forma descentralizada, nos estados, tendo como órgão executor as Unidades Técnicas Estaduais (UTEs). Com sua gestão intermediada pela Secretaria de Reordenamento Agrário do MDA (atual Secretaria Especial da agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário), permite também a aquisição e estruturação de imóveis rurais, bem como a implantação de projetos produtivos, voltados ao aumento da renda familiar e da produção de alimentos.

Silva (2012) ressalta a relevância de estudos que permitam uma análise mais apurada a respeito das repercussões do PNCF no cotidiano dos assentados beneficiados. Por outro lado, há dificuldades na obtenção de dados consistentes em relação à situação das famílias assentadas pelo PNCF, que favoreça uma visão mais ampla dos resultados dessa política adotada no Brasil. Este artigo deriva de uma pesquisa, que, diante dos aspectos mencionados, se propõe a investigar o PNCF, como política de acesso à terra, nos assentamentos rurais Pé da Serra e Beira Rio, no município de Nova Xavantina (MT), buscando analisar se o programa tem viabilizado às famílias condições para desenvolver os processos produtivos nos lotes adquiridos, de acordo com suas especificidades. Em face de tal objetivo, este trabalho realiza uma sistematização das experiências de famílias pertencentes a estes assentamentos e estabelece um diálogo com a literatura disponível acerca do PNCF, buscando respaldo, também, na percepção de outros atores sociais atuantes nos assentamentos em questão e/ou envolvidos em processos ligados à política de reforma agrária, em Nova Xavantina (MT); a fim de se analisar, em profundidade, os possíveis avanços e limitações que caracterizam as ações do programa. Este trabalho refere-se a um esforço para a obtenção de subsídios que permitam compreender a repercussão do PNCF na vida das famílias beneficiárias, no município em questão, de modo a ampliar a discussão sobre os resultados desta política pública, marcada por controvérsias.

2. Vertentes da luta pela conquista da terra

2.1 Políticas públicas e acesso à terra

Nas últimas décadas, a análise das políticas públicas alcançou importância como área de conhecimento por algumas razões, entre as quais merecem destaque: 1) a adoção de políticas públicas que restringem os gastos; 2) a nova perspectiva governamental que substituiu as políticas keynesianas5 do pós-guerra e assumiu uma postura de defesa das políticas restritivas de gastos, subordinando as políticas públicas ao cumprimento do ajuste fiscal e do equilíbrio orçamentário entre receita e despesa; 3) devido ao fato de que nos países em desenvolvimento, de democracia recente, no geral, ainda não se formaram coalisões políticas, que sejam minimamente eficazes em criar políticas públicas que possam impulsionar o desenvolvimento econômico e favorecer a inclusão social da maior parte de sua população (SOUZA, 2006).

Souza (2006) pensa que a colaboração das várias vertentes das teorias sobre políticas públicas e, em consequência, sua análise, como acontece com todo referencial teórico, é necessária para ter a percepção adequada sobre quando e como utilizá-las. Isso porque avaliar políticas públicas significa, muitas vezes, estudar o “governo em ação”, razão pela qual nem sempre os pressupostos existentes se adaptam a essa análise.

Abramovay (1997) enfatiza a importância da adoção de políticas públicas descentralizadas, principalmente no que se refere à gestão dos recursos; no entanto, considera que a descentralização de tais políticas não depende apenas da disposição do governo em adotá-la, mas, também, da capacidade de mobilização das instituições representativas dos agricultores familiares (no caso em que analisava). Para Carneiro (1997) a descentralização deve ser um pressuposto das políticas públicas e utilizada na definição dos tipos de agricultores a serem beneficiados. Sob esse ponto de vista, a autora salienta que, ao se considerar as potencialidades locais, amplia-se a noção de agricultor de modo a incorporar também aqueles que combinam a agricultura com outras atividades. Por outro lado, Arretche (1996) relata que somente a descentralização não garante maior participação e atendimento das demandas sociais.

Em geral, o acesso a políticas públicas é bastante desigual no Brasil, sendo dificultado em áreas rurais, principalmente nas regiões mais carentes do País. Como exemplo destas disparidades, entre população rural e urbana, é o fato de que as políticas públicas e os direitos trabalhistas chegaram tardiamente ao contingente de trabalhadores rurais e em relação às mulheres rurais, esse processo de inclusão/reconhecimento da condição de trabalhadoras, aconteceu ainda mais tarde (BRUMER, 2002).

Quando se trata da agricultura familiar, um aspecto central, em termos de políticas públicas, é o acesso à terra, considerando-se que este pode assumir diferentes significados. Para Linder e Medeiros (2013) a conquista da terra para um assentado simboliza a idealização de um “novo território”, de um espaço de apropriação, ou seja, significa a reterritorialização desse indivíduo e de sua família. Como afirma Lewin (2005), a terra e suas formas de dominação social, historicamente, têm sido responsáveis pelas desigualdades sociais e políticas que caracterizam a sociedade brasileira.

Essa realidade de predomínio dos latifúndios tem gerado concentração de renda e poder, por parte dos grandes proprietários, e o aumento de conflitos, caracterizados, também, pela luta dos trabalhadores rurais pelo acesso à terra e por reivindicações indígenas de recomposição de seus territórios de ocupação tradicional (PACHECO e PACHECO, 2010).

Para Sauer (2010) as lutas dos movimentos sociais em prol da reforma agrária não fazem parte dos resquícios do passado, mas são lutas correntes pela constituição da cidadania no meio rural. As disputas pelo acesso à terra e pela legalização/reconhecimento de territórios tradicionais devem ser consideradas como processos sociais, culturais, econômicos e políticos de progresso da sociedade brasileira.

A terra não deve ser vista meramente como um fator de produção, mas também como um lugar de vida e de moradia. Assim, sua distribuição possibilita o crescimento do poder político e da participação social de uma parcela considerável de famílias, antes desprezada (LEITE e AVILA, 2007). O acesso à terra configura-se, ainda, como um instrumento importante de manutenção da agricultura familiar e da produção agropecuária.

Nesse contexto, a democratização do acesso à terra, mais do que uma simples política social compensatória de combate à pobreza, retrata a resistência dos trabalhadores rurais sem terra aos abusos do grande capital e a predominância política e cultural vigente, em face da perspectiva de construção de identidades e cidadania no campo (AZEVEDO, 2012).

No intuito também de reduzir os conflitos fundiários e os fluxos migratórios campo-cidade, foram repensadas as intervenções governamentais relativas a políticas de acesso à terra, incluindo ações de desapropriação de áreas improdutivas para a criação de assentamentos rurais e incentivos destinados à compra e venda de terras para os trabalhadores rurais, como é o caso do Programa Nacional de Crédito Fundiário (SAUER, 2010).

2.2 O Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF)

No período pós-redemocratização, inicia-se a elaboração da proposta de um novo mecanismo de acesso à terra diferente do processo de reforma agrária, estimulado por um mercado de compra e venda de terra acessível a esse público. Essa nova forma, denominada como Reforma Agrária Negociada (RAN), ou mesmo Reforma Agrária de Mercado, desenvolveu-se ao longo da década de 1990 como uma adequação da reforma agrária tradicional à nova realidade econômica e conjuntural desse período. Implantada desde 1997, no Brasil, a RAN tem contado com recursos provenientes do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) (GALINDO et al., 2015; SPAROVEK, 2008).

Observa-se, portanto, que a criação de um projeto de crédito fundiário estava, há tempos, na pauta de vários setores envolvidos na questão agrária e no desenvolvimento rural. Uma das primeiras iniciativas foi o projeto São José, no estado do Ceará (em 1997), e o projeto Cédula da Terra, implantado em cinco estados, sendo quatro do Nordeste e um do Sudeste (Minas Gerais), que beneficiou cerca de 16.000 famílias em cinco anos (de 1998 a 2002). Estes projetos pilotos testaram uma abordagem baseada na demanda comunitária, em que potenciais grupos de beneficiários negociam diretamente com proprietários interessados na venda de suas terras (VIEIRA, CASTRO e LIMA, 2011).

A Lei Complementar nº 93/98, de 04.02.1998 (BRASIL, 1998), regulamentada pelo Decreto nº 3.027, de 13.04.1999, criou o Fundo de Terras e da Reforma Agrária (chamado de Banco da Terra), objetivando o financiamento de programas de reordenação fundiária e assentamento rural. Por meio do Decreto nº 4.892, de 25.11.2003 (BRASIL, 2003), interrompe-se a contratação de financiamentos via Banco da Terra, criando-se o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) (VIEIRA, CASTRO e LIMA, 2011).

O PNCF consiste em uma política pública do governo federal, criada para que os trabalhadores rurais sem terra, ou com pouca terra, possam adquirir imóveis rurais destinados à exploração em regime de economia familiar. O seu financiamento conta com recursos do Fundo de Terras e da Reforma Agrária e do Subprograma de Combate à Pobreza Rural e pode ser executado em todo o território nacional (MDA, 2009).

De acordo com Vieira, Castro e Lima (2011), durante o primeiro semestre de 2003, para a elaboração deste programa, a Secretaria de Reordenamento Agrário (SRA) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), gestor do Fundo de Terras e da Reforma Agrária, iniciou-se um amplo processo de consulta com as organizações do movimento sindical, a Contag, a Fetraf-Sul, os estados e associações de municípios que chegaram a conviver ou participar dos projetos Cédula da Terra e Combate à Pobreza Rural. Marcada pela participação direta da sociedade civil, essa experiência de elaboração de política pública, apoiada pelo Banco Mundial, deu origem ao Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF).

A base de atuação do PNCF se volta para áreas que não poderiam ser contempladas por mecanismos tradicionais de reforma agrária (propriedades inferiores a 15 módulos fiscais ou produtivas). Os benefi­ciários do PNCF são classificados como integrantes da reforma agrária, e, portanto, recebem também prioridade nos demais programas de acesso às políticas de financiamento/apoio à reforma agrária e à agricultura familiar (MDA, 2015). A organização institucional do PNCF é descentralizada, composta pelo MDA, Unidades Técnicas Estaduais (UTEs), Conselhos de Desenvolvimento Rural Sustentável, Redes de Apoio e Agentes financeiros. A descentralização do programa é um dos principais diferenciais deste em relação ao modelo tradicional de reforma agrária (LIMA, 2011).

As operações do PNCF iniciam-se por meio da assinatura de um acordo de parceria e cooperação entre o MDA (atual Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário, vinculada à Casa Civil) e os estados interessados em receber os recursos. O órgão federal é responsável pela elaboração do Plano Operativo do programa que contempla as estratégias, metas globais, bem como as origens e destino dos recursos a serem aplicados. Adicionalmente, tem como atividade a articulação com outras políticas governamentais de Desenvolvimento Agrário, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), entre outras. Finalmente, a fiscalização, o controle, o monitoramento e a avaliação da execução do PNCF também são atribuições da instância federal (PNCF, 2015, p. 61).

As UTEs são responsáveis pela execução do PNCF nos estados. Estas realizam a análise das propostas de financiamento apresentadas pelos candidatos aos recursos do Programa, ou seja, verificam a elegibilidade do beneficiário, a elegibilidade da terra a ser adquirida e os preços acordados entre as partes envolvidas na negociação, a proposta do plano de produção e, posteriormente, realiza o encaminhamento para aprovação nos Conselhos Estaduais de Desenvolvimento rural Sustentável (CEDRS). Adicionalmente, é a instituição que assegura a liberação dos recursos financeiros e supervisiona a aplicação destes pelos beneficiários (MDA, 2015).

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf) é responsável pelo estabelecimento, em âmbito nacional, das diretrizes globais e metas do programa, além de aprovar seu regulamento operativo e o Manual de Operação. Já os Conselhos Estaduais de Desenvolvimento Rural Sustentável (CEDRS) constituem as principais instâncias decisórias do Programa em âmbito Estadual. Aprovam os planos estaduais de implantação do PNCF, as propostas de financiamento encaminhadas pelas UTEs e as transações de compra e venda de propriedades com recursos do PNCF. Outra importante atribuição do CEDRS é avaliar e aprovar as solicitações para cadastro de entidades e empresas prestadoras de assistência técnica no âmbito do PNCF (LIMA, 2011).

Os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CMDRS) são responsáveis por verificar a elegibilidade dos beneficiários e opinam sobre as propostas iniciais de financiamento, antes de encaminhar para os CEDRS. São, portanto, a primeira instância consultiva e de monitoramento. O CMDRS deve assegurar a articulação do programa com outras políticas locais e busca garantir que os beneficiários sejam incluídos nessas políticas (PNCF, 2015, p. 68).

A Rede de Apoio do PNCF é formada por técnicos, instituições e organizações juridicamente constituídas para prestar serviços de capacitação, assessoramento e assistência técnica. Estas instituições devem ser avaliadas e licenciadas pelo CEDRS para prestar tais serviços aos beneficiários do Programa (PNCF, 2015, p. 71). Os Sindicatos de Trabalhadores Rurais também fazem parte da rede de apoio do PNCF. E finalmente, os agentes financeiros fazem a liberação dos recursos do PNCF aos beneficiários e ao(s) proprietário(s) da terra.

O PNCF dispõe de duas linhas básicas de financiamentos, respeitando os critérios de elegibilidade do programa, sendo estas: Combate à Pobreza rural (CPR) e Consolidação da Agricultura Familiar (CAF). A linha CPR beneficia os trabalhadores rurais mais necessitados, enquanto a CAF abrange os agricultores familiares sem-terra ou com pouca terra. Para fortalecer e incentivar a participação de jovens, mulheres e negros no programa, a linha de Combate à Pobreza Rural prevê um adicional (não reembolsável) para implantação de projetos de interesse desses públicos, desde que estejam organizados em associações. Tanto na linha CAF quanto na CPR, as terras financiadas não podem ser consideradas improdutivas e sujeitas à desapropriação e não podem superar 15 módulos fiscais (MDA, 2015).

Os recursos adicionais na linha CPR incluem: a) Nossa Primeira Terra (NPT), destinada a jovens rurais, filhos e filhas de agricultores, estudantes de escolas agrotécnicas e centro familiares de formação por alternância, com idade entre 18 e 29 anos; b) PNCF Mulher: incentiva a participação de mulheres organizadas em associações formadas somente pelo público feminino, como beneficiárias titulares do programa; c) Terra Negra Brasil: atende às demandas dos grupos de trabalhadores rurais negros(as) não quilombolas organizados em associações; d) Meio Ambiente: destinado às famílias organizadas em associações para solucionar problemas ambientais já existentes no lote ou para melhorias ambientais na propriedade (BRASIL, 2015).

3. Metodologia

A primeira etapa da investigação constituiu-se no levantamento bibliográfico acerca de temas de interesse da pesquisa, por meio de uma análise geral das políticas públicas de acesso à terra e das particularidades do PNCF. Já na segunda etapa, realizada a campo, buscou-se aprofundar a compreensão sobre o PNCF no município de Nova Xavantina (MT), tendo como objeto de estudo os assentamentos rurais Pé da Serra e Beira Rio, instalados por meio desta política pública. Foram realizadas visitas específicas para a caracterização dos Assentamentos Pé da Serra e Beira Rio e de seus moradores. Também foram coletados dados oriundos de fonte secundária de diferentes instituições, acerca do universo pesquisado; mencionam-se o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Empresa Matogrossense de Pesquisa e Assistência Técnica e Extensão Rural (Empaer), Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Prefeitura de Nova Xavantina (Secretaria de Agricultura Municipal) e o Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS).

A escolha dos assentamentos citados como objeto do presente estudo, se deve ao fato destes terem sido criados no mesmo período (2009), a partir do Programa Nacional de Crédito Fundiário. Este aspecto auxilia na compreensão de suas características atuais e permite a comparação das ações desenvolvidas pelo PNCF, ao longo dos anos, em ambos os assentamentos.

Com o intuito de captar os aspectos já mencionados, um dos instrumentos de coleta de dados empregado referiu-se a um questionário específico, com perguntas abertas e fechadas (GIL, 2008), direcionado aos agricultores familiares dos assentamentos em questão. De um total de 45 produtores, foram entrevistados 17 do Beira Rio e 26 do Pé da Serra (apenas dois produtores do assentamento Beira Rio não foram contemplados na pesquisa, uma vez que estes não foram encontrados para responder ao questionário).

Os questionários visaram realizar a identificação do agricultor e a coleta de dados referentes à família, de modo a caracterizar aquelas que trabalham no lote; verificar fontes de renda agrícolas e não agrícolas e identificar a ocupação do responsável por tal renda e levantar informações sobre a utilização de mão de obra de terceiros, bem como a sua periodicidade. Buscou-se, ainda, por meio da visão dos agricultores, cotejada com os resultados de outras pesquisas, realizar uma análise geral do PNCF enquanto política pública de acesso à terra.

Em uma segunda fase da pesquisa, foi utilizada a técnica da entrevista (gravada), a partir de um roteiro semiestruturado (GIL, 2008), realizada com cerca de 10% dos agricultores. Os entrevistados foram selecionados entre aqueles agricultores que participaram de todas as etapas de implantação desses assentamentos e, também, em decorrência do grau de diversidade em relação às experiências vivenciadas por estes. O intuito, nesta fase, foi de captar todos os aspectos não explicitados durante a aplicação dos questionários e que poderiam contribuir para o entendimento e a obtenção de informações relevantes para a pesquisa, incluindo a mobilização e os eventos que resultaram na implantação dos assentamentos.

Foram ainda realizadas entrevistas gravadas com as lideranças do Sindicato de Trabalhadores Rurais do município, Secretaria da Agricultura e instituições de ATER que atuam diretamente nos assentamentos, buscando-se apreender a visão dos atores externos sobre o processo de desenvolvimento dos assentamentos, sobre o PNCF, as possíveis diferenças entre os assentamentos de crédito fundiário e de reforma agrária, as formas de atuação e aspectos que evidenciassem melhorias nas condições de vida das famílias e para a redução da concentração fundiária em Nova Xavantina (MT). As instituições de ATER pesquisadas foram definidas a partir do questionário aplicado aos agricultores, sendo escolhidas as instituições que atuaram diretamente na articulação/mobilização das famílias e no processo de implantação desses assentamentos. Em seguida, os dados dos questionários foram tabulados, e procedeu-se à análise quantitativa e qualitativa das informações de fonte secundária e das entrevistas.

Com base na bibliografia consultada e na sistematização das experiências, foram apresentados os resultados e realizada a discussão da referida pesquisa. Inicialmente, foram tratadas as características dos assentamentos Pé da Serra e Beira Rio, além das características gerais dos agricultores familiares que fizeram parte da pesquisa, destacando, ao mesmo tempo, alguns resultados específicos referentes aos agricultores e lideranças que compõe este universo. Em seguida, foram abordadas questões relativas ao Programa Nacional de Crédito Fundiário, com vistas à análise dos aspectos relacionados ao acesso à terra, à geração de emprego e à renda na área rural.

4. Resultados e discussão

4.1 Caracterização dos assentamentos Pé da Serra e Beira Rio

Os assentamentos Pé da Serra e Beira Rio, objetos da presente pesquisa, localizam-se no município de Nova Xavantina (MT). Foram criados em 2009, a partir da articulação de 45 famílias ligadas à associação Beira Rio e do apoio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município. As fazendas Beira Rio (área total de 200 hectares) e Pé da Serra (370 ha) foram adquiridas com recursos do Programa Nacional de Crédito Fundiário, dando origem, posteriormente, aos dois assentamentos.

A localização estratégica dessas áreas (distante a cerca de 13 km do centro do município) tinha como aspecto principal o potencial para desenvolver o ecoturismo, em razão da prainha do Rio das Mortes, que se forma na sede da fazenda Pé da Serra (atual sede da associação Beira Rio), em períodos de estiagem. A aquisição da área se deu mediante a articulação das famílias com os antigos proprietários; as lideranças da associação Beira Rio foram as responsáveis pelo contato com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais para a efetivação da compra da terra. Após a aprovação do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS) e encaminhamento de toda documentação à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar (Sedraf), foram autorizados o financiamento e a entrada das famílias na área, em agosto de 2009.

No assentamento Beira Rio foram instaladas 19 famílias e no Pé da Serra um total de 26 famílias. A associação Beira Rio está sediada na área comunitária que atende aos dois assentamentos, sendo comum a estes. A fazenda Pé da Serra possuía originalmente uma área total de 620 hectares, com 17,50 hectares de APP (área de preservação permanente) e 60 hectares de área de Reserva Legal; entretanto, ressalta-se que da área total, apenas 370 hectares foram destinados à venda pelo antigo proprietário. Já a fazenda Beira Rio foi adquirida integralmente pelo programa (total de 200 hectares), possui cerca de 70 hectares de área de reserva legal e 18,60 ha de APP, tendo como divisas, o Rio das Mortes e o Córrego Voadeira.

O tamanho dos lotes no Pé da Serra é de aproximadamente 14,5 hectares e, do Beira Rio, 10,5 hectares, incluindo as áreas de preservação permanente e reserva legal, destinadas individualmente para cada beneficiário. Destaca-se que a área dos lotes mostra-se inferior ao módulo fiscal do município de Nova Xavantina (equivalente a 80 hectares, conforme tabela do Incra, 2017). Compartilha-se com Ferreira et al. (2013) a noção de que há uma tendência de “minifundização”, na formação de assentamentos rurais, com um número cada vez maior de lotes e famílias assentadas, em áreas muito pequenas para assegurar a manutenção e sobrevivência das famílias. Ainda conforme inferem os autores, “o tamanho diminuto dos lotes - sem critério técnico convincente - é decorrente da dificuldade na obtenção de terras e motivado pelo objetivo de assentar maior número de famílias” (FERREIRA et al., 2013, p. 78). Esta característica não é uma particularidade da política de reforma agrária tradicional, mas tem se firmado como tendência, também, no âmbito do PNCF, o que amplia as preocupações sobre as condições de reprodução socioeconômicas das famílias contempladas pelas ações do programa.

A critério do PNCF, cada família financiou individualmente a terra, com o valor de crédito disponibilizado de R$ 40 mil, incluso o crédito para moradia, cerca, rede elétrica (programa Luz para Todos) e estradas, por meio da linha de Combate à Pobreza Rural (CPR). O valor foi financiado com prazo de pagamento de 20 anos, contando os três anos de carência, com parcelas anuais no valor de R$ 2.650,00. Conforme consta no Manual Operacional da CPR: “No caso de financiamento de aquisição do imóvel, contratados de forma individual, ou seja, por pessoa física, a garantia do financiamento ficará apenas sobre a parcela do imóvel adquirida que cabe ao beneficiário individualmente” (MANUAL OPERACIONAL DA CPR, 2009, p. 24), sendo exigida apenas a garantia pessoal do proponente quanto à quitação do financiamento/parcelas.

4.2 Caracterização dos agricultores familiares dos assentamentos pesquisados

As famílias do assentamento Pé da Serra e Beira Rio são todas de origem rural e possuíam experiência anterior ligada à atividade agrícola, que é um dos critérios exigidos pelo PNCF (mínimo de 5 anos de experiência com a agricultura).

Ao se analisar o tempo de trabalho na agricultura, verificou-se que a maior parte dos entrevistados possui experiência em termos de desempenho das atividades agrícolas, na faixa entre 11 e 20 anos (38,5% Pé da Serra e 47,1% do Beira Rio). Menos de 20% dos titulares de lotes declararam que trabalham entre 5 e 10 anos como agricultor. Outros 42,3% dos produtores do Pé de Serra e 35,3% do Beira Rio possuem mais de 20 anos de experiência na atividade agropecuária. Como esta pesquisa foi realizada em 2015, nota-se que, na época de criação do assentamento, estes produtores tinham, no mínimo, 14 anos de lida nessa atividade. Foram observados, também, dois casos no assentamento Pé da Serra, em que os agricultores, embora tenham nascido no campo, exerceram, durante certo período, profissões alheias ao meio agrícola e que posteriormente retomaram a condição de agricultor.

De modo geral, a trajetória das famílias se mostrou marcada pela migração e pelo assalariamento (rural ou urbano) e quase todas vivenciaram condições muito semelhantes com o modo de vida das famílias do campo, especialmente no que tangem às suas origens, sendo este o espaço onde nasceram e foram criados como agricultores em terras de terceiros (DUVAL, 2009). Para Abramovay (2005), existe, entre os assentados de maneira geral, um passado na terra, vivido por eles mesmos e também por seus antepassados. O processo de modernização do campo nas décadas de 1970 e 1980 implicou na perda da condição de agricultor familiar e muitos passaram a ser assalariados rurais e/ou urbanos, vivências nas quais seu conhecimento agrícola foi relegado.

Verificou-se que o número de assentados por lote varia de uma (1) a quatro (4) pessoas, em ambos assentamentos, sendo a maioria das famílias constituída apenas pelo marido e a esposa. Cinco famílias do Pé da Serra tinham filhos que residiam com os pais no assentamento e todos ainda eram menores de idade; essas famílias também são aquelas que apresentam membros com menor faixa etária, o que explica o fato da família ter um número maior de integrantes. Em outras famílias, que tinham filhos maiores de idade, geralmente estes não moravam no assentamento, tinham saído em busca de melhores oportunidades na cidade. Este fato reflete uma tendência de queda do número de filhos na agricultura familiar. No assentamento Beira Rio, apenas em dois casos, os filhos moravam junto aos titulares dos lotes e também eram menores de idade.

Resultados semelhantes foram encontrados em outras pesquisas realizadas em assentamentos rurais (SILVA, 2011; SPANEVELLO et al., 2011). Atualmente, devido às maiores facilidades de acesso à escola e à maior valorização atribuída à educação formal, observa-se o aumento da preocupação dos pais no sentido de garantir o estudo dos filhos; o fato de estes deixarem a propriedade apresenta relação, também, com tal preocupação.

Quanto à faixa etária dos titulares e cônjuges (Figura 1) que trabalham nos lotes pesquisados, notou-se que 88,4% dos entrevistados têm entre 33 e 62 anos (assentamento Pé da Serra), concentrando-se a metade (50%) na faixa etária entre 53 e 62 anos, enquanto outros 11,5% apresentam idade superior a 62 anos. No assentamento Beira Rio, a realidade é semelhante; neste, 88,2% dos agricultores têm menos de 62 anos; entretanto, a maior parte é um pouco mais jovem, com 47,1% dos titulares e cônjuges na faixa etária de 43 a 52 anos.

Figura 1
Faixa etária dos titulares e cônjuges dos lotes pesquisados

Ao se comparar os dois assentamentos pesquisados, verifica-se que a maioria dos assentados encontra­-se em faixa etária compatível com as exigências do trabalho que é exercido no estabelecimento, demonstrando que o PNCF tem permitido o acesso à terra um pouco mais cedo para muitas família; entretanto, os dados também revelam que há ainda um encontro tardio do agricultor com a terra, o que traz reflexos diretos na permanência das famílias na área. Coelho (2014) menciona que, entre as diversas experiências de luta pela terra, é preciso refletir no “quanto homens e mulheres são privados da terra de trabalho, ou que teriam a oportunidade de conquistar seu pedaço de chão mesmo que tardiamente” (p. 237).

O trabalho na propriedade é desenvolvido principalmente pelos membros das famílias e, em alguns casos (quatro lotes no Pé da Serra e dois no Beira Rio), utiliza-se mão de obra de terceiros (diaristas) para auxílio nas atividades desenvolvidas nos lotes. Nenhum dos pesquisados declarou contratar mão de obra de forma permanente. Quanto ao número de pessoas pertencentes à família que trabalham nos lotes, observou-se que, no assentamento Pé da Serra, 65,4% dos lotes pesquisados, duas pessoas estão envolvidas nos trabalhos realizados e, no assentamento Beira Rio, isto se repete em 70,6% dos casos.

Geralmente, os membros ligados às atividades correspondem ao casal ou pai/filho. Verificou-se que, em 90% das propriedades pesquisadas, a pessoa responsável pelo estabelecimento é representada pela figura masculina; mesmo em situações, nas quais as mulheres desenvolvem os mesmos trabalhos que os homens. No meio em que vivem, geralmente, o exercício de tais atividades pelas mulheres não é reconhecido como trabalho, sendo considerado como auxílio/ajuda ao marido.

Segundo Schmitz e Santos (2013), as mulheres agricultoras, embora realizem dupla ou tripla jornada (atividades domésticas, agrícolas e não agrícolas), em sua maioria, não recebem nada pelo que fazem e muitas vezes seu trabalho é reconhecido como ajuda.

“O homem é considerado o chefe da família e é ele quem tem poder para tomar as decisões referentes à unidade de produção, tanto em relação à administração, quanto ao gerenciamento do dinheiro” (SCHMITZ e SANTOS, 2013, p. 350).

Quanto ao nível de escolaridade dos assentados do Pé da Serra e Beira Rio (Figura 2), observou-se que 92,4% e 94,1%, respectivamente, não ultrapassaram o Ensino Fundamental. Nos dois assentamentos, quase a metade dos assentados (46,2% no Pé de Serra e 47,1% no Beira Rio) não frequentou a escola; estes são analfabetos ou aprenderam informalmente noções básicas de leitura e escrita. Apenas 7,7% do Pé da Serra e 5,9% do Beira Rio declararam ter frequentado o Ensino Médio.

Figura 2
Escolaridade dos moradores dos assentamentos Pé da Serra e Beira Rio. Nova Xavantina (MT)

Em pesquisa realizada por Bertolini et al. (2008) em Guaraniaçu (PR), no que diz respeito à escolaridade dos agricultores familiares, pode-se verificar que, do total de participantes, 52,38% não concluíram o Ensino Fundamental e apenas 15,38% concluíram o Ensino Médio, demonstrando o baixo grau de escolaridade dos agricultores. Contudo, em estudo realizado por Souza-Esquerdo, Bergamasco e Oliveira (2013), caracterizado por uma análise temporal, constatou-se que a escolaridade dos agricultores assentados vem aumentando ao longo dos anos em todo território nacional e o acesso à escolarização dos filhos está entre as primeiras demandas das famílias ao serem assentadas.

Em relação aos filhos dos agricultores, nenhum, dentre os familiares que moram nos lotes, está incluso entre aqueles que nunca chegaram a frequentar a escola; neste caso, muitos já se encontram no mesmo nível de escolaridade dos pais, outros já ultrapassaram este nível. A inexistência de escolas e de oferta de ensino nos assentamentos ou no seu entorno levam obrigatoriamente os jovens a se deslocarem para os centros urbanos, percorrendo de 5 a até 15 km de distância de suas residências, observando-se que, em épocas de chuvas intensas, a dificuldade de deslocamento dos estudantes aumenta.

Resultados semelhantes foram encontrados por Sant’Ana e Costa (2004), investigando os agricultores familiares de três municípios da mesorregião de São José do Rio Preto (SP). Esses autores verificaram que, embora o grau de escolaridade dos pais seja muito baixo, houve uma evolução na escolaridade dos membros da família; nesta pesquisa, averiguou-se que a maioria dos pais pesquisados frequentou até a quarta série do ensino fundamental e os filhos já apresentavam o ensino médio completo.

Galindo et al. (2015), ao realizarem uma avaliações dos impactos regionais do PNCF, verificaram a importância do fator escolaridade sobre a renda familiar, uma vez que obtiveram resultados que apontam para uma relação positiva e significativa do nível de educação (do titular do estabelecimento) sobre o Valor Bruto da Produção Agropecuária (VBPA); notando que, quanto maior a escolaridade, maior a contribuição para o VBPA.

Em relação à renda monetária recebida pelos agricultores, a maioria das famílias situa-se na faixa de até dois salários mínimos. A principal fonte de renda é proveniente do trabalho externo à propriedade (agrícola e não agrícola) e de benefícios governamentais, como aposentadoria/pensões. Devido à necessidade de complementar a renda familiar, cerca de 60% dos assentados pesquisados desenvolvem atividades ou têm rendas não agrícolas. Essas atividades constituem importante estratégia de manutenção e permanência das famílias nos lotes. Em oito famílias, pelo menos um dos membros desenvolve trabalho externo, com ocupações diversas (prestação de serviços de pedreiro, frentista, diarista etc.), outro tipo de renda não agrícola citada provém de aposentadorias e recebimento de aluguel. Cerca de 40% dos lotes possuíam rendas exclusivamente agrícolas.

De acordo com análise realizada por Galindo et al. (2015), a porcentagem da renda total que é proveniente de atividades desenvolvidas nos estabelecimentos é de, em média, 97,7% no caso dos beneficiários do PNCF. Ainda conforme este estudo, estabelecimentos que possuem uma renda social apresentam VBPA menor, o que é justificado principalmente pela menor produção agropecuária e pelo aumento do grau de vulnerabilidade e pobreza das famílias.

Foi verificado em trabalho realizado por Nunes et al. (2006), na Serra do Mel (RN), que a partir do momento em que as atividades não agrícolas se tornam a principal fonte de renda permanente da família, além de alterar a divisão do trabalho, redefine-se, também, uma série de relações intrafamiliares de hierarquia, como o poder patriarcal, a divisão sexual do trabalho e a própria sistemática de reprodução do grupo familiar. Nesta direção, verifica-se a inversão do papel que historicamente desempenharam as atividades não agrícolas em sociedades camponesas: o de ser um rendimento complementar e esporádico (NUNES et al. 2006; SCHNEIDER, 1999).

Quanto ao tempo de moradia na área, do total de famílias pesquisadas (43) trabalham e residem na área há cerca de cinco anos; aqueles que estão há menos tempo nas propriedades são novos beneficiários do PNCF. No assentamento Pé da Serra, há mais casos de desistências do que no assentamento Beira Rio, sendo relatados nove casos no Pé da Serra e quatro no Beira Rio. A desistência nos lotes, segundo depoimentos dos moradores, é motivada principalmente pela falta de investimentos produtivos, que poderiam ter sido adquiridos com a aplicação adequada dos recursos e também em decorrência de problemas de saúde (mais comum em lotes cujos titulares possuem idade avançada para o tipo de trabalho que executam).

4.3 Avaliação geral do PNCF

A avaliação do PNCF por parte das famílias, de modo geral, é boa (93%), sendo apontados como aspectos positivos a possibilidade de escolha da área, a infraestrutura e o menor tempo de espera em relação à desapropriação para reforma agrária, tornando possível o sonho de trabalhar na terra. Entretanto, o alto endividamento, aliado à falta de assistência técnica e de recursos para dar continuidade aos processos produtivos nos lotes, são apontados como entraves para manutenção das famílias nesses assentamentos.

“Aqui as famílias escolheram a área pra comprar... montamos no caminhão pra olhar a área e definir onde ia fazer o assentamento... com o crédito fundiário tem a possibilidade de garantir a terra pra quem não tem condições de comprar... além disso é mais rápido pra conseguir do que enfrentar a vida difícil debaixo da lona” (M.R.S., 58 anos, Assentada Pé da Serra, 2015).

Em relação ao financiamento da terra, há um número significativo de famílias que estão com o pagamento atrasado, sendo que o nível médio de inadimplência é de 42% (no assentamento Pé da Serra é de 50% e, no Beira Rio, de 30%). Nenhum dos entrevistados mencionou renegociação (principalmente em razão da burocracia e documentação exigida) e o restante dos assentados estão com o pagamento da parcela em dia. Quanto às condições para pagamento do financiamento da terra descritos no Manual de Operação do PNCF, todos os entrevistados mencionaram que é boa; entretanto, ainda possuem dificuldades para o pagamento da parcela anual. Entre as dificuldades relatadas para ficar em dia com o banco, foram mencionadas: a baixa renda oriunda do lote e a falta de união entre os assentados, além do projeto do Pronaf, que foi feito sem considerar as especificidades de cada agricultor; conforme descrito nos depoimentos a seguir:

“O cara não tem a noção do que fazer... a primeira coisa é pagar as dívidas, você tinha que ter olhado antes de pegar para não se decepcionar e sair do lote ou não produzir. A pessoa tem que olhar cada local e ver o que dá pra produzir. Teve um técnico que fez o Pronaf da pupunha e não deu certo, mas porque fez pra todo mundo, cada lugar é diferente” (H. O. L., 60 anos, Assentado do Beira Rio, 2015).

“O projeto foi imposto, não houve uma discussão” (J. P., 66 anos, Assentado do Beira Rio, 2015).

Na compreensão apresentada por Ramos Filho (2008), as condições materiais de geração de renda na comunidade se entrelaçam com a obrigatoriedade de pagamento, ao agente financeiro, do financiamento contraído; de modo que a renda do lote passa a ser apropriada pelo capital financeiro, por meio do pagamento das anuidades.

Para o atual presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais, o principal problema do crédito fundiário é a inadimplência, tanto para a parcela do financiamento da terra, quanto para o Pronaf, além da “falta de aptidão das famílias”.

“Projetos produtivos foram pensados conforme os contribuintes que fizeram o assentamento e não de {sic} encontro aos trabalhadores {...} eles assentaram e já adquiriam o Pronaf A, não tem como expedir outra DAP por conta da inadimplência. Não cumpriu o compromisso, apresentou 3% de inadimplência corta para todas as famílias. Além disso, as terras não são adequadas para o tipo de cultura que foi projetada pra desenvolver. Se tivesse desenvolvido coisas pro mercado e terras adequadas... Foi um projeto só pra acontecer e as famílias não tinham aptidão e não conseguem manter a subsistência na área” (M. F. P., Presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais - Nova Xavantina, Gestão 2012-2016).

O discurso do presidente do Sindicato questiona o projeto técnico elaborado, tanto do ponto de vista da adequação agrícola, como em relação à aptidão das famílias. Sem dúvida, um dos grandes gargalos encontrados foi a elaboração de projetos produtivos em desacordo com as experiências e trajetórias dessas famílias, o que foi uma das causas do alto endividamento dos beneficiários. Entretanto, parece-nos que o problema não pode ser atribuído à falta de “aptidão”, mas, sim, à falta de acompanhamento da assistência técnica nas demais fases do trabalho, pois os agricultores poderiam ter adquirido uma formação específica para trabalhar com as atividades propostas no Projeto. A pesquisa mostrou uma experiência média das famílias com produção agrícola acima de 10 anos e todos declararam experiência superior a cinco anos.

Para os agricultores que não tinham nada, os reflexos do programa passam a ser positivos pela possibilidade de permanência no campo e por permitir o resgate da identidade de agricultor, que, em muitos casos, havia sido negligenciada. Há também, efeitos benéficos, decorrentes da possibilidade de maior circulação dos recursos no próprio município. Entretanto, as melhorias poderiam ser mais expressivas se ocorresse um trabalho de ATER efetivo e o acesso a outras políticas públicas integradas ao programa, contribuindo para maiores transformações na realidade em que vivem esses agricultores.

Esses aspectos são visíveis no depoimento do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, quando este avalia o que precisa ser mantido e o que necessita de mudanças no PNCF.

“No PNCF é importante a descentralização, porque as famílias têm maior liberdade para adquirir a área e podem participar mais ativamente do processo de aquisição de terras. Outro ponto que é fundamental é a associação, só que as famílias precisam se unir e compreender melhor o trabalho em grupo. Só que em muitos casos as famílias ficam de mãos atadas, porque não tem com que produzir. Precisa de um acompanhamento maior, um técnico que instrua para que elas consigam manter a subsistência na terra” (M. F. P., Presidente do Sindicato, Gestão 2012-2016).

Para o antigo secretário da Agricultura do município:

“O PNCF precisa ser revisto para permitir que as famílias consigam autonomia pra manter a produção nos lotes. Ainda falta muita coisa pra ser melhorada. Muita gente tem saído pra trabalhar fora e para o assentamento desenvolver é preciso trabalhar nele, produzir. Outra coisa é o endividamento que está alto. Criam-se dívidas e não conseguem pagar, porque às vezes os agricultores não têm condições pra produzir. As políticas que fazem parte do programa demoram um pouco para ter acesso... mas ainda assim ele é uma saída pra quem quer conseguir a terra, sem ter que disputar por ela” (B. B. F., Secretário da Agricultura - Nova Xavantina, 2014-2015).

Esta argumentação está de acordo com o que foi apontado por Guedes (2011) e Ramos Filho (2008). Para esses autores, ainda que os projetos de reforma agrária de mercado proporcionem o acesso à terra aos mutuários, não têm garantido às famílias condições necessárias para pagamento da dívida junto ao banco, bem como para sua sobrevivência/permanência nos lotes. As famílias precisam, ainda, subordinar a força de trabalho da família às demandas de produção capitalista no campo e/ou depender de políticas de combate à pobreza, o que denota a incapacidade do PNCF como uma política eficaz no suprimento deste tipo de relação.

4.4 Programa Nacional de Crédito Fundiário versus Programa Nacional de Reforma Agrária

O PNCF é uma ação complementar à reforma agrária, surgindo no intuito de reduzir/eliminar a burocracia e longas disputas causadas pelos processos de desapropriação. Assim, conhecer o pensamento das famílias assentadas pelo crédito fundiário, que não se envolveram em conflitos abertos, como ocorre nas ocupações de terra, pode significar o caminho para o aprimoramento dos programas de acesso à terra, uma vez que os aspectos positivos e negativos são apontados pelos principais atores envolvidos nesse processo. Quando os produtores foram instigados a avaliar o PNCF em relação à política de reforma agrária, parte considerável dos moradores (35%) não soube opinar a respeito. Outros mencionaram aspectos relacionados ao tempo menor ou à maior agilidade do processo de obtenção da terra (53%) e o acesso a crédito com mais facilidade (12%) pelo PNCF.

“Aqui a gente não teve que enfrentar beira de estrada, polícia e anos pra conseguir a terra... vida de sem-terra é muito sofrida, conheço gente que gastou tudo o que tinha e não tinha pra ficar debaixo do barraco e acabou que a terra não saiu” (J. P, 66 anos, Assentado Beira Rio, 2015).

Para o ex-secretário municipal de Agricultura:

“A criação dos assentamentos de crédito fundiário facilitou o acesso à terra de forma mais rápida para os agricultores sem-terra, além do que as famílias auxiliam a movimentação do comércio local, o que gera um retorno pra economia do município” (B. B. F., Secretário da Agricultura - NX, 2014-2015).

Essa demora na obtenção da terra por meio da reforma agrária mencionada nos relatos pode ser explicada pelo fato de que na grande maioria dos casos as famílias ficam anos acampadas e, mesmo após a desapropriação da terra, é comum ficarem provisoriamente instaladas até a criação do assentamento. A obtenção ocorre no momento em que as famílias passam a ter o acesso legal à terra, esperando somente a regularização do assentamento. Entretanto, há casos, que o período, entre a obtenção e a criação do assentamento, atinge mais de um mandato governamental, e há também situações que as famílias já estão na terra há anos, como nos assentamentos oriundos da regularização fundiária de posseiros, ribeirinhos, populações tradicionais (FERNANDES, 2008).

Para Favareto (2007), os motivos do insucesso da reforma agrária relacionam-se principalmente ao fato de que a maioria das instituições que executam tais políticas e programas encontram-se, integradas a temáticas alusivas a essa nova ótica de desenvolvimento, “onde, sob nova roupagem, velhos valores e práticas continuam a dar os parâmetros para a atuação dos agentes sociais {...}” (FAVARETO, 2007, p. 141).

Ferrante e Barone (2006) criticam as avaliações dos assentamentos baseadas em expressões de sucesso/ fracasso e consideram necessária a utilização de metodologias de análise voltadas à apreensão dos dilemas destas experiências - identificados em sua diversidade, em espaços sociais distintos - na constituição de um novo modo de vida, abrangendo as dimensões cultural, econômica e política dos agentes envolvidos.

Para os agricultores, os pontos positivos da reforma agrária devem-se principalmente ao tamanho das áreas e ao não pagamento da terra anualmente.

“Eu acho que é melhor, porque eles não têm que pagar todo ano e as áreas são maiores” (H. O. L., 60 anos, Assentado do Pé da Serra, 2015).

Em depoimento, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município relata a importância da reforma agrária e pontua alguns aspectos em relação ao PNCF e ao PNRA.

“Não tenho dúvidas que a reforma agrária vem resolver os problemas sociais. Mas, de um lado, há muitas falhas do governo federal. Muitos assentamentos com mais de 30 anos com assentados que não têm a CCU (Contrato de Concessão de Uso) porque ocorreu a transferência para terceiros. Além do comodismo de algumas pessoas. Sou assentado pelo PNRA desde 1982 e tem gente que se acostumou, às vezes desvia recursos e também não busca poder aquisitivo pra cumprir com suas obrigações. Agora, quanto ao PNCF, as famílias podem escolher a área que vão comprar, ficam mais próximos dos familiares, isso ajuda bastante... só que a seleção das famílias em alguns casos é falha, mediante interesse de pessoas que estão envolvidas na aquisição da terra, pode ser rápido para conseguir, mais aí vem o endividamento e gera mais um problema social (M. F. P., Presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais - NX, Gestão 2012-2016).

Para o técnico da Empaer de Nova Xavantina, responsável pela ATER pública nos assentamentos rurais de reforma agrária do município, quando compara-se o PNCF com a reforma agrária, mesmo com todos os problemas desta considera que a reforma agrária é a forma mais viável de acesso à terra, embora tenha uma visão estática sobre a aptidão dos beneficiários.

“A reforma agrária é mais viável, porque não adianta acelerar o processo de acesso à terra se as pessoas não têm aptidão. Muitos têm utilizado o acesso à terra pelo programa para se beneficiar do financiamento e acaba gerando um problema maior para o município, principalmente em relação a inadimplência nesses assentamentos” (A. J. S., Técnico da EMPAER-NX, 2016).

O mesmo posicionamento favorável em relação à reforma agrária também é mencionado pelo técnico responsável pela ATER nos dois assentamentos: “Na reforma agrária a área é maior, os recursos são maiores, mesmo demorando. Já no crédito fundiário o enquadramento das famílias dificulta a seleção e a quantidade de recursos é pouca para fazer tudo proposto no projeto”.

Entre os assentados do Pé da Serra e Beira Rio, 90% consideram que os programas de acesso à terra (reforma agrária e o crédito fundiário) têm alterado a disputa por terras na região e trazido mudanças para o meio rural. Citaram como mudanças o número de pessoas ocupadas no campo, o número de assentamentos no município e a quantidade de pessoas acampadas.

“Depois que foram criados esses dois assentamentos de crédito fundiário, muitas famílias que estavam na rua, sem emprego, tiveram onde ficar e trabalhar na própria terra. Aqui até que tem um número bom de assentamentos, de reforma {agrária} é maior que financiado muita gente deixou de ficar debaixo da lona pra ficar disputando a terra” (A. C., 47 anos, Assentado Beira Rio, 2015).

Somente 10% dos entrevistados relatam que não houve mudanças nas disputas por terras, principalmente por causa do número de sem terras no município.

“Tem um acampamento grande aqui, mais de 100 pessoas e outras famílias que estavam acampadas na beira do córrego Antártico que ocuparam uma fazenda aqui perto. Então acho que não mudou muita coisa” (J. P., 66 anos, Assentado do Beira Rio, 2015).

A importância de ambas as políticas é apontada pelo ex-secretário municipal de Agricultura: “Embora tenha um maior número de assentamentos de reforma agrária no município, as duas políticas são importantes para movimentar a economia local: de um lado tem a demora no processo e de outro tem a agilidade, mas a importância é a mesma”. No município de Nova Xavantina, entre os anos de 1987 a 2003, ocorreu a criação de seis (06) assentamentos rurais, contemplando aproximadamente 1.000 famílias, com área total de mais de 60 mil hectares destinados à reforma agrária. Após 2003 não houve novas desapropriações para fins de reforma agrária, apenas a formação de assentamentos de crédito fundiário. Atualmente no município existem três assentamentos criados com recursos do crédito Fundiário (um do antigo Programa Banco da Terra e dois do PNCF), representando 1.070 hectares de terras adquiridos por essas políticas, com o assentamento de 105 famílias, o que representa, portanto, um número bem inferior ao número de famílias e hectares destinados à reforma agrária nesse município.

A estagnação após 2003 nas desapropriações de terras para fins de reforma agrária em Nova Xavantina não significa que no município os conflitos de luta pela terra não tenham ocorrido; muito pelo contrário, têm surgido outros movimentos sociais, como o Movimento de Luta pela Terra (MLT), que mantém cerca de 120 famílias acampadas na BR-158 e outras 50 famílias próximas às margens do córrego Antártico.

Para o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais não houve grandes mudanças quanto às disputas por terras no município de Nova Xavantina e região:

“Ainda tem muita gente acampado disputando áreas no município e na região {...} não tem onde colocar todos esses trabalhadores. Tem gente ganhando com isso, iludindo os trabalhadores com áreas que dificilmente serão desapropriadas. Vêm surgindo novos movimentos aqui que acabam com o propósito de uma reforma agrária séria e justa para todos. Têm surgido outros movimentos no intuito de aglomerar pessoas” (M. F. P., Presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais - Nova Xavantina, Gestão 2012-2016).

Percebe-se pelo depoimento do presidente do Sindicato certo receio de perder o “protagonismo” para outros movimentos de luta pela terra e ao mencionar que “não tem onde colocar todos esses trabalhadores” desconsidera a estrutura fundiária altamente concentrada na região. Dados do Incra (2009) revelam que 1,8% dos estabelecimentos, todos com mais de 10.000 ha, ocupam 35% do território regional; enquanto que os estabelecimentos com menos de 100 ha (27,3%) ocupam 1,0% da área. No conjunto da MRG de Canarana, a área média dos estabelecimentos é de 1.438,4 ha, enquanto para o total do estado é de 780,5 ha (INCRA, 2009).

Neste contexto, os críticos do PNCF apontam a insuficiência deste modelo para superação do problema fundiário brasileiro:

Mesmo se funcionassem e mesmo se ocorressem transações de mercado a preços razoáveis e os beneficiários pudessem de fato pagar pela terra por meio de sua produção agrícola, tais programas seriam absolutamente insuficientes para absorver a pressão social sobre uma estrutura de propriedade altamente concentrada, ainda mais em sociedades que experimentam há anos uma regressão social e econômica provocada pelas reformas estruturais (PEREIRA, 2004, p. 246).

5. Considerações finais

A análise dos resultados da pesquisa permite identificar que as famílias dos assentamentos Pé da Serra e Beira Rio são de origem rural e possuem experiência anterior na atividade agrícola, com predomínio na faixa entre 11 e 20 anos. A trajetória das famílias, de modo geral, se revelou marcada pela migração, pelo assalariamento, seja ele rural ou urbano. Em ambos os assentamentos há predomínio do trabalho familiar, realizado principalmente pelo casal. A maioria dos beneficiários possui baixa escolaridade, embora tenha ocorrido uma expressiva evolução na escolaridade dos membros da família, quando se compara a escolaridade entre pais e filhos.

A avaliação do PNCF pelas famílias entrevistadas de modo geral é boa (93%), sendo apontados como aspectos positivos a possibilidade de escolha da área, a infraestrutura inicial e o menor tempo de espera para aquisição da terra. Parte considerável dos moradores (35%) não soube opinar a respeito.

Na percepção das famílias, o PNCF é uma política importante de acesso à terra aos agricultores familiares do município de Nova Xavantina (MT), que diante da falta de condições desses agricultores para comprar a terra com recursos próprios, a aquisição da área via crédito fundiário tem garantido maior agilidade na conquista da terra. Entretanto, é preciso considerar que o número de assentamentos rurais e famílias assentadas pela política de reforma agrária, em comparação ao crédito fundiário no município, são expressivamente maiores, o que denota a importância da reforma agrária e da ação dos movimentos de luta pela terra em uma região com predomínio de grandes propriedades rurais.

Ao se considerar os resultados do presente trabalho, apesar das limitações frente à obtenção de recursos pelo PNCF e ainda que os reflexos diretos não sejam mencionados por todos, as famílias que residem na área viram nessa política uma forma de garantir o acesso à terra. É preciso considerar também que, por serem assentamentos relativamente novos, com aproximadamente seis anos de criação (no período em que se deu a pesquisa de campo), seria interessante um estudo quantitativo sobre a renda e investimentos das famílias, para uma análise do retorno dos investimentos e consolidação das estratégias de geração de renda ao longo do tempo; atentando-se para o fato que tais famílias são consideravelmente descapitalizadas e acessaram a uma única linha (Pronaf) de fomento às atividades produtivas, com a necessidade de captação de recursos próprios para a manutenção dos processos produtivos nos lotes.

A análise do crédito fundiário no município evidenciou um quadro de dependência gerada por recursos governamentais que, quando combinados com a falta de assistência técnica, trazem sérios problemas de ordem social. É necessário repensar as ações dessas políticas de acordo com as especificidades da agricultura familiar e que o resultado desse processo de luta pela terra possa de fato assegurar a dinâmica produtiva dos estabelecimentos, criando condições que viabilizem o desenvolvimento dos assentamentos e o alcance de melhorias significativas na qualidade de vida das famílias dos agricultores.

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  • 5
    As políticas keynesianas consistiam em ações do poder público distribuídas em múltiplas áreas de forma a sustentar o investimento, a demanda e o emprego. A teoria do keynesianismo baseava-se nas ideias do economista inglês John Maynard Keynes, que defendia a intervenção do Estado na economia com o objetivo de atingir o pleno emprego (CARVALHO, 1999).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2016
  • Aceito
    22 Out 2017
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