Open-access Notificações de eventos adversos relacionados com a assistência à saúde que levaram a óbitos no Brasil, 2014-2016

Registros de eventos adversos relacionados con la asistencia de salud que resultaron en muertes en Brasil, 2014-2016

Resumo

Objetivo:  descrever os eventos adversos relacionados com a assistência à saúde resultantes em óbito.

Métodos:  estudo descritivo das notificações registradas no Sistema de Notificações para a Vigilância Sanitária (Notivisa) no Brasil, de junho/2014 a junho/2016; notificações registradas como ‘outros’ em ‘tipo de incidente’ foram reclassificadas.

Resultados:  foram registrados 417 óbitos, a maioria em adultos e idosos (85%), sem diferenças entre sexos; os estados de São Paulo (N=92), Paraná (N=75) e Minas Gerais (N=66) foram os maiores notificadores; os hospitais contribuíram com 97% dos registros, com concentração nos setores ‘terapia intensiva’ e ‘internação’; houve investigação pela unidade notificadora em 5% das notificações; na reclassificação do tipo de incidente, recuperaram-se 52 registros; o tipo de incidente mais comum foi ‘falhas durante a assistência à saúde’ (50%).

Conclusão:  notificações resultantes em óbito ocorreram principalmente em hospitais; foram identificadas falhas no registro e necessidade de investigação de grande proporção dos óbitos.

Palavras-chave: Segurança do Paciente; Sistemas de Informação; Óbito; Serviços de Saúde; Epidemiologia Descritiva

Resumen

Objetivo:  describir los eventos adversos relacionados con la asistencia sanitaria que resultaran en muerte.

Métodos:  estudio descriptivo de las notificaciones registradas en el Sistema de Notificaciones para la Vigilancia Sanitaria (Notivisa) en Brasil entre junio/2014-junio/2016; las notificaciones registradas como ‘otros’ en la variable ‘tipo de incidente’ fueron reclasificadas.

Resultados:  se registraron 417 casos, la mayoría en adultos y ancianos (85%), sin predominio de sexo; los estados de São Paulo (N=92), Paraná (N=75) y Minas Gerais (N=66) fueron los mayores notificantes; los hospitales contribuyeron con el 97% de los registros; la investigación por la unidad notificante se produjo en el 5% de los casos; en la reclasificación, se recuperaron 52 registros; el tipo de incidente más común fue ‘fallas durante la asistencia sanitaria’ (50%).

Conclusión:  las notificaciones de eventos resultantes de la muerte son principalmente de hospitales; se identificaron fallas en el registro y necesidad de más investigación de las muertes.

Palabras-clave: Seguridad del Paciente; Sistemas de Información; Muerte; Servicios de Salud; Epidemiología Descriptiva

Abstract

Objective:  to describe the adverse events related to health care resulting in death.

Methods:  a descriptive study of reports recorded in the Brazilian Health Surveillance Notification System (Notivisa) in Brazil from Jun 2014 to Jun 2016; notifications recorded as 'other' in the 'incident type' were recoded.

Results:  417 cases were recorded, mostly in adults and the elderly (85%), with no sex differences; the states of São Paulo (N=92), Paraná (N=75) and Minas Gerais (N=66) were the main reporter; hospitals contributed to 97% of the records, principally in the intensive care and hospitalization sectors; the investigation by the notifying unit occurred in 5% of cases; in the recode of the type of incident, 52 records were recovered; the most common type of incident was 'failures during health care' (50%).

Conclusion:  notifications resulting in death occurred mainly in hospitals; were identified failure to register and need to investigate the large proportion of deaths.

Keywords: Patient Safety; Information Systems; Death; Health Services; Epidemiology, Descriptive

Introdução

Estudos em diversos países alertam sobre a elevada frequência e gravidade dos danos causados pela assistência à saúde.1,2 Esse movimento, corroborado por denúncias de vítimas dos serviços de saúde, resultaram no lançamento em 2004, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), da Aliança Mundial pela Segurança do Paciente, e em 2013, do Programa Nacional de Segurança do Paciente.3 Uma das estratégias desse programa é a vigilância e monitoramento dos incidentes na assistência à saúde.4

No Brasil, com a publicação da Resolução de Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) RDC nº 36, de 25 de julho de 2013,5 foi determinada a criação dos Núcleos de Segurança do Paciente (NSP) nos serviços de saúde. Entre as competências dos NSP está a análise dos dados sobre incidentes decorrentes da prestação do serviço, assim como sua notificação no Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). Define-se incidente como ‘evento ou circunstância que poderia ter resultado, ou resultou, em dano desnecessário à saúde’, sendo ‘evento adverso’ aquele que causou algum dano.6

Estudo de carga global de doença, realizado entre os anos de 2007 e 2011, a partir de revisão da literatura e utilizando dados de estudos epidemiológicos prévios encomendados pela OMS, revelou que ocorreram cerca de 421 milhões de hospitalizações no mundo a cada ano, com aproximadamente 42,7 milhões de eventos adversos relacionados ao cuidado em saúde, no período analisado pelo estudo.7 Tais eventos levaram a 23 milhões de anos de vida perdidos ajustados por incapacidade por ano. Estima-se que dois terços desses eventos ocorram em países de média e baixa renda.7

Diversos trabalhos têm mostrado a associação entre a ocorrência de eventos adversos em serviços de saúde e óbito.8,9 Pesquisa retrospectiva realizada em 2003, em três hospitais do Rio de Janeiro, sobre 1.103 prontuários selecionados de forma aleatória, evidenciou incidência de eventos adversos de 7,6% e taxa de mortalidade hospitalar de 8,5%. A associação entre óbito e evento adverso foi significativa estatisticamente, com razão de chance de 9,5.10 Um estudo de caso-controle analisou três hospitais brasileiros que atendem exclusivamente a saúde privada de alta complexidade e com mais de uma certificação de qualidade (total de 57.215 altas hospitalares), entre os anos de 2012 e 2014, e encontrou incidência de 4% de eventos adversos. A mortalidade foi 3,3 vezes maior nos pacientes com eventos adversos.11

A incidência de eventos adversos relacionados à assistência à saúde no Brasil é pouco investigada.3 Não obstante, as notificações são obrigatórias desde junho de 2014 e devem ser registradas no Sistema de Notificações para a Vigilância Sanitária (Notivisa) versão 2.0, sob responsabilidade da Anvisa.

O banco de dados de eventos adversos relacionados à assistência à sáude do Notivisa pode se constituir em importante fonte de informações sobre onde e quando o paciente se encontra mais vulnerável e quais medidas de segurança são mais urgentes.

O objetivo deste estudo foi descrever os eventos adversos relacionados com a assistência à saúde e que resultaram em óbito no Brasil.

Métodos

Trata-se de um estudo descritivo dos eventos adversos relacionados à assistência à saúde que resultaram em óbito notificados no Sistema de Notificações para a Vigilância Sanitária (Notivisa), sob responsabilidade da Anvisa.

O sistema Notivisa versão 2.0 foi criado com o propósito de interligar o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) e as informações sobre a ocorrência de eventos adversos relacionados com a assistência à saúde (não infecciosos), geradas pelos NSP nos serviços de saúde.12

Os eventos devem ser notificados até o 15° dia útil do mês seguinte à ocorrência do evento - à exceção dos óbitos, que devem ser notificados em até 72 horas após a ocorrência do evento.12 Segundo a definição da OMS, os óbitos registrados no Notivisa são resultantes do incidente e referem morte causada ou antecipada - pelo incidente - em um curto prazo.13

Todos os serviços de saúde, ao notificarem óbitos ou outros eventos graves que nunca deveriam ocorrer em serviços de saúde - never events -, além de registrarem as dez etapas previstas no sistema Notivisa, devem preencher um formulário específico contendo o relatório da investigação. Esse formulário encontra-se disponível no FormSUS (serviço de criação de formulários na web, oferecido pelo Departamento do Informática do SUS [Datasus]) e pode ser acessado simultaneamente, pelas coordenações de vigilância sanitária do Distrito Federal, estados, municípios e Anvisa, de forma hierarquizada.12

O presente estudo compreendeu todas as notificações com data de registro no Notivisa entre junho de 2014 e junho de 2016 e que resultaram em óbito.

Optou-se por esse período de análise porque o Notivisa versão 2.0 foi implantado em março de 2014 e, em seus primeiros três meses de existência, somou um número de registros reduzido, denotando que o sistema ainda apresentava menor aceitabilidade e estabilidade, justificando a exclusão, nesta pesquisa, do primeiro trimestre de função do Notivisa.

As informações sobre as investigações foram obtidas do banco de dados do FormSUS. Foram incluídas todas as notificações de investigação registradas no banco de dados do FormuSUS que puderam ser relacionadas à respectiva notificação do Notivisa. Para esse relacionamento entre as notificações dos dois bancos de dados, utilizou-se a variável ‘número da notificação’.

Foram estudadas as seguintes variáveis relacionadas:

  • a) Pessoa

  • - sexo (masculino; feminino);

  • - idade (em faixas etárias: <28 dias; 28 dias a 1 ano; 2-7 anos; 18-25 anos; 26-55 anos; 56-85 anos; >85 anos);

  • - raça/cor da pele (branca; preta; parda; amarela; indígena); e

  • - diagnóstico que levou o/a paciente ao serviço de saúde, baseado nos capítulos da Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) (somente os cinco grupos de diagnóstico mais frequentes entre as notificações, quais sejam, (i) algumas doenças infecciosas e parasitárias, (ii) doenças do aparelho respiratório, (iii) doenças do aparelho digestivo, (iv) doenças do aparelho circulatório e (v) gravidez, parto e puerpério).

  • b) Lugar

  • - local de internação, por Unidade da Federação;

  • c) Tempo

  • - data da internação;

  • - data da ocorrência do evento; e

  • - data da notificação.

  • d) Evento adverso

  • - tipo de incidente (falhas nas atividades administrativas; falhas durante a assistência à saúde; falhas durante procedimento cirúrgico; falhas na administração de dietas; falhas na administração de O2 ou gases medicinais; falhas no cuidado/proteção do paciente; queda do paciente; úlcera por pressão; acidentes do paciente; infecção relacionada com a assistência à saúde; medicação/fluidos intravenosos; sangue/produtos derivados do sangue; artigos médicos/equipamentos; infraestrutura/edifício/instalações; outro).

  • e) Tipo de estabelecimento de saúde

  • - ambulatório;

  • - clínica;

  • - hospital;

  • - radiologia;

  • - serviço de emergência;

  • - serviço de diálise; e

  • - outros.

  • f) Unidade do estabelecimento de saúde onde ocorreu o evento

  • - ambulatório;

  • - centro cirúrgico;

  • - hospital-dia;

  • - radiologia;

  • - ambulância;

  • - setores de internação;

  • - unidade de terapia intensiva (UTI);

  • - urgência/emergência; e

  • - outras.

  • g) Fase da assistência em que ocorreu o evento

  • - durante a prestação do cuidado;

  • - na admissão;

  • - na alta;

  • - na consulta;

  • - na transferência;

  • - não estava internado/a; e

  • - no acompanhamento após a alta.

  • h) Período do dia em que ocorreu o evento (7h-19h; 19h-7h).

Com a finalidade de melhorar a qualidade da análise descritiva sobre o tipo de incidente, procedeu-se à reclassificação do tipo de incidente das notificações em que essa variável estava preenchida com a opção ‘outros’. A ficha de notificação apresenta 14 categorias de tipos de incidentes relacionados com a assistência à saúde, além da opção ‘outros’. Sempre que o usuário seleciona a opção ‘outros’ nessa variável, abre-se a opção de preenchimento da variável ‘descrição do evento adverso’. Para a reclassificação, utilizaram-se as informações constantes da variável ‘descrição do evento adverso’ e/ou das variáveis ‘antecedentes e contexto do evento’ e ‘descrição da primeira estratégia para redução de riscos’, sendo que estas duas últimas constam no formulário do FormSUS. Essas três informações tratam de campos abertos, nos quais o notificador deve descrever informações sobre o evento adverso e sua investigação.

As informações das três variáveis supracitadas foram avaliadas por dois examinadores distintos, com o propósito de estabelecer - quando possível - uma nova classificação do tipo de incidente. Um terceiro examinador foi chamado a participar quando da presença de discordância.

Caso não fosse possível encontrar no sistema uma categoria na qual o evento adverso pudesse ser classificado,12 optou-se pela classificação de tipo de incidente definida pela OMS.13

Foram realizadas análises descritivas, com apresentação de proporções e medidas de tendência central. A oportunidade de notificação no Notivisa foi avaliada pela mediana de intervalo de tempo entre a data de ocorrência do evento adverso resultante em óbito e a data da notificação no sistema. Também foi calculada a mediana de intervalo de tempo entre a data da internação e a data do incidente. Foram calculados os intervalos interquartis dessas medidas.

A análise dos dados ocorreu com o apoio dos programas Epi Info 7.2.0.1 e Microsoft Excel® 2010.

O presente estudo cumpriu com os princípios da ética em pesquisa envolvendo seres humanos, prescritos nas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS) n° 466, de 12 de dezembro de 2012, e n° 510, de 7 de abril de 2016. Por fundamentar-se em dados secundários dos eventos não nominados, disponíveis em bancos de dados do Sistema Único de Saúde (SUS) - que preservam a identidade dos indivíduos-, o estudo foi dispensado de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa. O consentimento institucional foi obtido junto à Gerência-Geral de Tecnologia em Serviços de Saúde (GGTES/Anvisa) por manifestação eletrônica, em 18/07/2017.

Resultados

Foram registrados 63.933 eventos adversos relacionados com a assistência à saúde no período de junho/2014 a junho/2016. Desses eventos, 417 (0,6%) evoluíram para ‘óbito’. Dos 417 registros de óbitos, em 22 (5,3%) casos foi possível encontrar a respectiva investigação registrada no banco de dados do FormSUS. Havia, ainda, outros 392 registros no Formsus de investigações de óbitos não identificados no banco de dados de notificação, e outros never events, os quais não puderam ser quantificados separadamente por não haver essa distinção no banco de dados.

A oportunidade da notificação no Notivisa foi de 63 dias (1º quartil=29; 3º quartil=133 dias). A mediana de intervalo de tempo entre a data da internação e a data do incidente foi de quatro dias (1º quartil=0; 3º quartil=12 dias; dados não apresentados em tabela).

A distribuição das notificações ao longo do tempo, por semana epidemiológica, mostra flutuações no número de notificações, típica de sistemas de vigilância com implantação recente e cuja adesão e permanência dos notificadores pode variar bastante no início de seu processo de implantação (Figura 1).

Figura 1
- Curva epidêmica dos eventos adversos relacionados com a assistência à saúde resultantes em óbito registrados no Sistema de Notificações para a Vigilância Sanitária (Notivisa) versão 2.0, segundo a semana epidemiológica da data da ocorrência do evento, Brasil, junho/2014-junho/2016

A distribuição de casos no país pode ser observada na Figura 2. Das 27 UFs, o estado do Amapá foi o único a não registrar notificação de óbito no período estudado. Cinco estados registraram um óbito (Alagoas, Paraíba, Pernambuco, Rondônia e Roraima), e dois (Bahia e Mato Grosso) registraram dois óbitos. Minas Gerais (N=66), Paraná (N=75) e São Paulo (N=92), juntos, foram responsáveis por 55,9% (N=233) dos registros no Notivisa, sendo que o estado de São Paulo foi responsável por 22,1% do total de notificações.

Figura 2
- Eventos adversos relacionados com a assistência à saúde resultantes em óbito registrados no Sistema de Notificações para a Vigilância Sanitária (Notivisa) versão 2.0, Brasil, junho/2014-junho/2016

Os registros se deram principalmente nas capitais (Figura 2B), responsáveis por 321 registros (77%). Nos estados de Minas Gerais e São Paulo, observou-se maior descentralização de registros, realizados por nove municípios além da capital estadual. Belo Horizonte respondeu por 54,6% e Montes Claros por 21,2% dos registros de Minas Gerais; em São Paulo, a capital respondeu por 69 (75% dos registros) e o segundo município com maior número de registros foi Sorocaba, com oito (8,7%).

Adultos a partir de 26 anos e idosos (60 anos ou mais) representaram a maior parte dos óbitos (85%). Doenças do aparelho circulatório e do aparelho respiratório responderam por 35,5% dos diagnósticos no momento de admissão, entre esses grupos etários (Tabela 1).

Tabela 1
- Características das pessoas que sofreram eventos adversos relacionados com a assistência à saúde resultantes em óbito registrados no Sistema de Notificações para a Vigilância Sanitária (Notivisa) versão 2.0, Brasil, junho/2014-junho/2016

O tipo de incidente foi classificado como ‘outro’ em 133 notificações (31,9%), das quais 52% foram reclassificadas. Tal processo resultou na inclusão dos seguintes tipos de incidentes: ‘infecção relacionada com a assistência à saúde’, ‘medicamento/fluidos intravenosos’, ‘sangue/produtos derivados do sangue’, ‘artigos médicos/equipamentos’ e ‘infraestrutura/edifício/instalações’ (Tabela 2).

Tabela 2
- Características dos eventos adversos relacionados com a assistência à saúde que resultaram em óbito, registrados no Sistema de Notificações para a Vigilância Sanitária (Notivisa) versão 2.0, Brasil, junho/2014-junho/2016

As notificações dos casos provieram, majoritariamente, de hospitais (96,9%) e ocorreram durante a prestação de cuidados (diagnóstico, avaliação, tratamento ou intervenção cirúrgica = 89%), seguida de admissão (3,1%) e da transferência para outra unidade ou para outro serviço de saúde (2,9%).

Discussão

Os óbitos decorrentes de eventos adversos representaram 0,6% do total dos eventos registrados nos primeiros dois anos de obrigatoriedade da notificação. A maior parte dos óbitos ocorreu em pacientes adultos e idosos que se encontravam internados quando da ocorrência do evento. São Paulo, Paraná e Minas Gerais foram os estados com maior número de notificações. Falhas durante a assistência foram a principal causa dos eventos.

Provavelmente, os eventos adversos assistenciais são subnotificados no Brasil, considerando-se as estimativas nacionais de incidência de eventos.10,11 As notificações de eventos adversos por produtos sujeitos à vigilância sanitária - incluindo medicamentos, produtos para a saúde, sangue e componentes, e transplantes - são captadas pelo Notivisa 1.0 e não entraram nas presentes análises. Também não fazem parte do escopo do Notivisa versão 2.0, sistema que serviu de base ao estudo em tela, os registros das infecções relacionadas com a assistência à saúde, encaminhadas às Anvisa por meio de formulários eletrônicos FormSUS específicos. Tais fatores representam limitações à presente pesquisa e, potencialmente, reduzem a validade externa dos resultados. Contudo, trata-se de uma primeira tentativa nacional com esse delineamento, cujo objetivo foi avaliar tais notificações desde a implantação do Programa Nacional de Segurança do Paciente.

Metade dos incidentes analisados neste estudo constituíram falhas durante a assistência à saúde, o que, por sua generalidade, não permite intervenções e busca por melhorias mais específicas nos serviços.

Para que o sistema Notivisa cumpra sua finalidade, é necessária a avaliação de seus atributos, especialmente quanto à representatividade, qualidade dos dados e complexidade. A infinidade de sistemas para registro de eventos adversos pode causar confusão - como se observa nos casos equivocadamente registrados no Notivisa, embora constassem como categorias descritas no documento de referência da OMS,13 podendo levar à baixa adesão e à desmotivação.14 Mesmo antes do lançamento da versão 2.0 do Notivisa, já se indicava o desafio do aprimoramento do sistema, o qual deve se basear no uso, na crítica e na relação com os usuários, notificadores e interessados.15

A maior parte dos eventos provieram de hospitais. Deve-se considerar que a notificação é realizada pelos Núcleos de Segurança do Paciente (NSP), instituídos há poucos anos e que, por demandarem recursos para seu funcionamento, possivelmente são mais encontrados em hospitais do que em serviços de menor porte. Além disso, é reconhecido que a cultura e a busca de dados sobre segurança do paciente têm se concentrado em hospitais, sendo poucos os estudos realizados na atenção primária e domiciliar.3 Destaca-se, porém, que na atenção primária os incidentes relacionados à segurança do paciente são em sua maioria preveníveis, fazendo com que as medidas adotadas nesse nível de atenção à saúde sejam de grande impacto.16

A significativa quantidade de preenchimentos como ‘outros’ aponta para limitações na descrição e/ou disponibilidade de tipos constantes no formulário. A reclassificação realizada neste estudo sinaliza a necessidade de se orientar melhor o notificador, com a publicação, por exemplo, de manuais técnicos com descrição mais detalhada e citação de exemplos. Estudo realizado em 2015, em hospital público pediátrico na região Sul do país, demonstrou lacunas no conhecimento dos profissionais em relação à segurança do paciente, aos conceitos e exemplos de incidentes e/ou eventos adversos em saúde, prejudicando o processo de notificação.17

Os registros sobre as investigações dos casos que resultaram em óbito, que poderiam complementar as informações, são escassos, sugerindo que essa etapa, tão relevante ao aprendizado institucional, não está sendo realizada ou informada no sistema. Ressalta-se que, conforme definido na Legislação vigente,5 esses dados deveriam ser notificados no SNVS em até 72 horas após sua ocorrência. Ademais, a investigação dos eventos é entendida como um dos pilares da resposta a incidentes em segurança do paciente, cujos achados são a base para a identificação de condições latentes e posterior implementação de melhorias no sistema de cuidado, a fim de se prevenir a repetição do incidente.18

No Brasil, a notificação é feita por incidente e não por indivíduo, o que limita a comparação com os resultados dos grandes estudos internacionais baseados em prontuários, incluindo estudos que citam eventos adversos múltiplos sofridos pela mesma pessoa durante sua internação.9,19 Importante pesquisa conduzida nos Estados Unidos, sobre a incidência de eventos adversos entre a população hospitalizada no nordeste daquele país, demonstrou letalidade em 13,6% dos casos nos quais ocorreram eventos adversos.20 Outra pesquisa, realizada em dois hospitais britânicos, encontrou incidência de 10,8% de eventos adversos, dos quais 8% dos indivíduos vieram a óbito.19 Estudo canadense de 2004 demonstrou que 20,8% dos eventos adversos analisados resultaram em morte.8 E mais uma pesquisa, conduzida na Holanda em 2009, encontrou que 12,8% dos eventos adversos resultaram em incapacidade permanente ou contribuíram para a morte do paciente.9 Uma revisão sistemática, incluindo oito estudos sobre eventos adversos em pacientes hospitalizados, classificou 7,4% dos eventos adversos encontrados como letais.21

Uma investigação conduzida no Brasil, sobre estimativas de óbitos extrapoladas para o número de internações no SUS e na saúde privada, concluiu que, no ano de 2015, ocorreram entre 104.187 e 434.112 possíveis óbitos associados a eventos adversos hospitalares. Caso fosse um grupo de causa de óbito, esse fator estaria entre as cinco principais causas de óbitos no país.22 Esse resultado chama a atenção sobre a necessidade de melhor compreender o contexto em que pessoas são lesadas durante a atenção à saúde, para direcionar as políticas públicas voltadas à qualidade dos serviços.

Os achados desse estudo evidenciam, também, a falta de oportunidade na notificação. A vigilância dos eventos adversos relacionados com a assistência à saúde é recente no Brasil. Acredita-se, pois, que sua incorporação na rotina de trabalho dos serviços de saúde deva levar algum tempo, conduzindo a um aumento progressivo do número de notificações. No entanto, em 2016, quando se esperava a manutenção ou aumento das notificações, nota-se redução, o que pode assinalar para a necessidade de investimentos na manutenção da sensibilidade dos atuais notificadores e na maior adesão de novos serviços.

Os resultados apresentados apontam para a baixa quantidade ou mesmo ausência de registros no sistema em algumas localidades, especialmente fora do eixo Sul-Sudeste brasileiro e das capitais estaduais. Tal fato, certamente, é reforçado pela maior disponibilidade de serviços hospitalares nesses municípios. É por demais importante que o SNVS atente para essa situação e promova ações pela adesão dos serviços de saúde ao sistema de vigilância nas localidades silentes.

As características das pessoas que sofreram os eventos adversos resultantes em óbito mostram semelhanças com outros estudos, como a distribuição similar entre os sexos8 e percentual importante de idosos - o que corrobora sua proporção maior entre a população hospitalizada.9

Nos cuidados intensivos, que requerem maior utilização de tecnologias e procedimentos, há maior predisposição à incidência maior de eventos adversos.23 Eventos adversos que resultaram em óbito foram mais frequentes em unidades de terapia intensiva. Cabe mencionar que a complexidade do setor pode predispor a uma maior vigilância dos casos por parte dos profissionais. Estudo observacional realizado em 2002 e 2003, em unidade de terapia intensiva e unidade coronariana de Boston, Estados Unidos, encontrou elevada incidência de eventos adversos (20%). Entre esses eventos adversos encontrados, 13% foram ameaçadores à vida ou fatais.23

Os sistemas de notificação de incidentes em segurança do paciente são reconhecidamente úteis nos casos de eventos graves, os quais demandam decisões de Estado.24 É primordial o empenho nacional em gerenciar dados sobre eventos que levaram a óbito, seja para responder aos familiares e amigos das vítimas, seja para promover melhorias nos serviços, tornando o cuidado em saúde mais seguro. Pelo alcance desses objetivos, a qualidade e a oportunidade da investigação são essenciais e merecem investimentos por parte do SNVS. A promoção da cultura de segurança, motivando aprendizado a partir das notificações, deve ser outra importante ferramenta para a vigilância sanitária e a gestão dos serviços de saúde.

A predominância de hospitais como notificadores e a escassez de dados sobre investigações, somadas à baixa oportunidade do registro, chamam a atenção para a importância de ações do SNVS junto a esses serviços, visando garantir abordagens mais efetivas e rápidas em casos que levem a óbito.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2017
  • Aceito
    26 Dez 2017
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