A partir de meados do século XX, diversas mudanças ocorreram nos padrões demográficos, nutricionais e epidemiológicos globais.1 Os processos de desenvolvimento social e econômico, as melhorias nas condições ambientais e na saúde pública e os avanços na medicina e na assistência de saúde contribuíram para a queda acentuada da taxa de fecundidade, uma marcante redução da mortalidade infantil e na infância, e o aumento da expectativa de vida.2 Com o envelhecimento da população mundial e as mudanças no perfil de morbimortalidade, as doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) passaram a constituir o problema de saúde de maior relevância na maioria dos países.3
Diante do reconhecimento de que o risco de desenvolver uma DCNT pode ser significativamente reduzido pela adoção de políticas públicas que subsidiem melhores condições de vida e saúde, foram estabelecidas algumas estratégias para aumentar a qualidade de vida das pessoas e, com isso, melhorar a saúde das populações.4 Como parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), grande parte das ações de saúde pública têm se concentrado na promoção da saúde, estimulando os comportamentos saudáveis e a redução de fatores de risco.5 Retardar o aparecimento de complicações e incapacidades mediante a detecção precoce e prover uma assistência de qualidade para aliviar a gravidade dos problemas crônicos têm sido consideradas, igualmente, estratégias fundamentais.6
No Brasil, as DCNTs têm respondido por um número elevado de mortes antes dos 70 anos de idade e perda de qualidade de vida ao envelhecer, gerando incapacidades e alto grau de limitação nas atividades de trabalho e lazer. Estudos nacionais com base em dados de 1990 a 2017 apontam que as DCNTs são responsáveis por mais de 70% das mortes e grande proporção de anos de vida não saudáveis.7,8 A expansão da atenção básica em todo o território nacional e a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), introduzida em meados dos anos 2000, foram marcos na implantação de ações relacionadas ao controle da hipertensão arterial e do diabetes e à prevenção das DCNTs, utilizando estratégias dirigidas à promoção da prática de atividade física, alimentação saudável e controle do peso, e à prevenção do tabagismo e uso abusivo de álcool.9
Nesse contexto, é relevante e oportuno discutir a implementação da vigilância de DCNTs no Brasil e em níveis subnacionais.
Vigilância das doenças crônicas não transmissíveis no Brasil
Fundamentada em monitorar a magnitude e a distribuição espaço-temporal das DCNTs, dos fatores de risco e dos cuidados de saúde prestados aos doentes crônicos para subsidiar a gestão, a vigilância das DCNTs é realizada por meio de dados secundários oriundos dos sistemas de informações de saúde e de dados primários coletados em inquéritos de saúde.10
Entre os sistemas de informações, destacam-se o Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS), que contém dados sobre diagnósticos e gastos das internações hospitalares,11 e o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), que coleta informações de óbitos em todos os municípios brasileiros e permite monitorar a mortalidade prematura por DCNTs.12 Um levantamento realizado pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS), no ano de 2018,13 teve como objetivo identificar a estrutura existente, bem como o desenvolvimento das ações de vigilância epidemiológica das DCNTs nas secretarias estaduais e municipais de saúde das capitais (SES e SMS Capitais), e constatou que as principais fontes de informações para a vigilância das DCNTs foram o SIM e o SIH, em consonância com estudo anterior.14 Ambos os sistemas são essenciais para a vigilância das DCNTs, pois fornecem um panorama da situação epidemiológica dos óbitos e internações da população brasileira. Embora existam diferenças na cobertura e qualidade das informações, a análise dos dados provenientes desses sistemas pode subsidiar intervenções em diferentes níveis de desagregação geográfica (federal, estadual e municipal).15
Contudo, para o fortalecimento da vigilância das DCNTs, além da necessidade de se investir na melhoria de cobertura e qualidade dos dados secundários de mortalidade e de morbidade hospitalar, é preciso estimular a condução de inquéritos de saúde frequentes e regulares que possibilitem monitorar a prevalência das DCNTs, a adoção dos comportamentos saudáveis e a redução dos hábitos nocivos à saúde, bem como a adequação da assistência de saúde sob a ótica do usuário.16
Inquéritos nacionais de saúde brasileiros
Entre os inquéritos conduzidos pelo MS no campo da vigilância das DCNTs, que subsidiam o monitoramento do Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das DCNTs no Brasil, 2011-2022, e as respostas aos Planos de enfrentamento Regionais17 e Globais18 e os ODS,19 destacam-se a Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) e a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS).
O Vigitel, inquérito de saúde de maior sustentabilidade no país, apresenta a evolução de importantes hábitos de vida dos adultos brasileiros residentes nas capitais, e foi imprescindível no acompanhamento de metas traçadas pelos gestores de diversas áreas do MS e de outros entes federados ao longo das duas últimas décadas.20 A PeNSe, realizada em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), investiga fatores de risco e proteção para DCNTs em escolares de 13 a 17 anos de idade e oportuniza, aos setores da educação e da saúde, a articulação de ações direcionadas a este grupo.21
A PNS, tema desta edição especial da revista Epidemiologia e Serviços de Saúde (RESS), é o maior inquérito de saúde já realizado no Brasil e propicia um retrato das condições de vida e saúde dos residentes no país.22 Seu desenho, especificamente elaborado para fornecer estimativas de indicadores de saúde e análises em vários níveis geográficos e segundo características socioeconômicas e demográficas dos indivíduos, permite estabelecer prioridades de saúde pertinentes para a gestão.23 As informações das duas edições da PNS, realizadas em 2013 e 2019, proveem um panorama das principais DCNTs e dos fatores de risco associados no Brasil e trazem importantes elementos para subsidiar a vigilância das DCNTs.
O acesso aos dados da PNS é público e sem necessidade de autorização prévia para uso das informações. Os indicadores de saúde, selecionados pelo MS como sendo os de maior importância para a gestão, estão disponíveis no site do IBGE (https://bit.ly/38DaRNd), para o Brasil, grandes regiões, Unidades da Federação, municípios das capitais, situação rural/urbana e segundo características sociodemográficas dos brasileiros.24 Adicionalmente, com a finalidade de ampliar o acesso às informações e indicadores de saúde, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por meio do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde e em parceria com a SVS/MS, elaborou um painel com dados oriundos das duas edições da PNS, disponível no site .25 É possível acessar e fazer download das estimativas de diversos indicadores, visualizá-los em tabelas, gráficos ou mapas, por todas as desagregações socioeconômicas e geográficas estabelecidas nas duas PNS.
Entende-se que seria de grande importância que tal estratégia fosse estendida aos demais inquéritos conduzidos pelo MS, de modo a facilitar e expandir o uso das informações disponíveis aos gestores e trabalhadores da saúde para que estas sejam utilizadas em tempo oportuno no (re)direcionamento de ações de enfrentamento às DCNTs.
Um desafio, que ainda precisa ser enfrentado no Brasil, é a obtenção de informações fidedignas sobre as DCNTs e seus fatores de risco no âmbito dos Sistemas de Informação do SUS, acessíveis para gestores e trabalhadores da saúde. Nestes termos, a estratégia e-SUS25 é uma possibilidade, pois abarca dados do Cadastro da Atenção Básica, cuja função, por sua vez, é agregar características socioeconômicas e de saúde da população de um determinado território, incluindo aspectos de interesse para a vigilância das DCNTs,26 principalmente em níveis de desagregação que não serão representados pelos inquéritos nacionais. Entretanto, sabe-se que existem dificuldades, em especial para os trabalhadores da vigilância das DCNTs de SES e SMS, em utilizar apenas as informações deste sistema, já que parte de seu acesso é controlado e restrito.26 De fato, o levantamento realizado pela SVS/MS apontou baixa utilização do e-SUS para a realização da vigilância das DCNTs.13
Contudo, não são apenas as lacunas de informações que interferem na vigilância das DCNTs em níveis subnacionais. Em 2018, mais de 20% das SES ou SMS Capitais não tinham a área de vigilância de DCNTs incorporadas aos respectivos organogramas institucionais; e o número médio de profissionais envolvidos na composição da vigilância era seis para SES e três para SMS Capitais.13 Provavelmente, a situação dos municípios menores deve ser ainda mais precária.
A realização de grandes inquéritos de saúde, como os que foram aqui apresentados sucintamente, é uma tarefa difícil. Leva-se tempo para o planejamento, além do engajamento de diversas áreas do MS para sua execução e financiamento, colaboração de pesquisadores e articulação entre órgãos e instituições acadêmicas. Tendo em vista que as DCNTs continuam sendo as principais causas de mortalidade prematura no país, garantir a sustentabilidade e periodicidade das pesquisas que fomentam a discussão e a revisão de políticas de controle das DCNTs deve ser uma prioridade do SUS. Adicionalmente, para ativar e melhorar a vigilância das DCNTs em distintos níveis geográficos, é preciso que o MS oriente as suas contrapartes SES e SMS Capitais sobre o uso das informações disponíveis, a fim de que a instrumentalização da gestão seja fundamentada em evidências científicas.
-
Errata
No artigo “Vigilância das doenças crônicas não transmissíveis: reflexões sobre o papel dos inquéritos nacionais de saúde do Brasil”, doi: 10.1590/SS2237-9622202200010.especial, publicado no periódico Epidemiologia e Serviços de Saúde, 31(nspe1):e20211048, 2022, na página 1:Onde se lia:10.1590/SS2237-9622202200010.especialLeia-se:
Referências
- 1 Santosa A, Wall S, Fottrell E, Högberg U, Byass P. The development and experience of epidemiological transition theory over four decades: a systematic review. Glob Health Action. 2014 may;15(7): 23574.
- 2 GBD 2019 Demographics Collaborators. Global age-sex-specific fertility, mortality, healthy life expectancy (HALE), and population estimates in 204 countries and territories, 1950-2019: a comprehensive demographic analysis for the Global Burden of Disease Study 2019. Lancet. 2020; 396(10258): 1160-203.
- 3 Saha A, Alleyne G. Recognizing noncommunicable diseases as a global health security threat. Bull World Health Organ. 2018 Nov 1; 96(11): 792-793.
- 4 Atallah N, Adjibade M, Lelong H, Hercberg S, Galan P, Assmann KE, et al. How Healthy Lifestyle Factors at Midlife Relate to Healthy Aging. Nutrients. 2018; 10(7): 854.
- 5 Fortune K, Becerra-Posada F, Buss P, Galvão LAC, Contreras A, Murphy M, et al. Health promotion and the agenda for sustainable development, WHO Region of the Americas. Bull World Health Organ. 2018; 96(9): 621-26.
-
6 Fisher M, Freeman T, Mackean T, Friel S, Baum F. Universal Health Coverage for Non-communicable Diseases and Health Equity: Lessons From Australian Primary Healthcare. Int J Health Policy Manag. 2022; 11(5); 690-700. doi: 10.34172/IJHPM.2020.232
» https://doi.org/10.34172/IJHPM.2020.232 - 7 Azeredo Passos VM de, Champs APS, Teixeira R, Lima-Costa MFF, Kirkwood R, Veras R, et al. The burden of disease among Brazilian older adults and the challenge for health policies: results of the Global Burden of Disease Study 2017. Popul Health Metr. 2020; 18(Suppl 1): 14.
- 8 Malta DC, Duncan BB, Schmidt MI, Teixeira R, Ribeiro ALP, Felisbino-Mendes MS, et al. Trends in mortality due to non-communicable diseases in the Brazilian adult population: national and subnational estimates and projections for 2030. Popul Health Metr. 2020 Sep 30; 18(Suppl 1): 16.
- 9 Buss PM, Hartz ZMA, Pinto LF, Rocha CMF. Health promotion and quality of life: a historical perspective of the last two 40 years (1980-2020). Cien Saude Colet. 2020; 25(12): 4723-35.
- 10 Malta DC, Silva MMAD, Moura L, Morais OL Neto. The implantation of the Surveillance System for Non-communicable Diseases in Brazil, 2003 to 2015: successes and challenges. Rev Bras Epidemiol. 2017 Oct-Dec; 20(4): 661-675.
- 11 Santos MAS, Oliveira MM, Andrade SSCA, Nunes ML, Malta DC, Moura L. Tendências da morbidade hospitalar por doenças crônicas não transmissíveis no Brasil, 2002 a 2012. Epidem. Serv. Saude, 2015; 24(3), 389-398.
- 12 Cardoso LSM, Teixeira RA, Ribeiro ALP, Malta DC. Premature mortality due to non-communicable diseases in Brazilian municipalities estimated for the three-year periods of 2010 to 2012 and 2015 to 2017. Rev Bras Epidemiol. 2021; 24(suppl 1): e210005.
- 13 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Panorama da vigilância das doenças crônicas no Brasil, 2018. Boletim Epidemiológico. 2019 Dez; 50(40).
- 14 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. A vigilância, o controle e a prevenção das doenças crônicas não transmissíveis: DCNTs no contexto do Sistema Único de Saúde brasileiro. Brasília: Ministério da Saúde; 2005.
- 15 Ministério da Saúde (BR). A experiência brasileira em sistemas de informação em saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.
- 16 Szwarcwald CL, Malta DC, Pereira CA, Vieira ML, Conde WL, Souza Júnior PR, et al. Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil: concepção e metodologia de aplicação [National Health Survey in Brazil: design and methodology of application]. Cien Saude Colet. 2014 Feb; 19(2): 333-42.
- 17 Organización Panamericana de la Salud. Enfermedades no transmisibles en las Américas: construyamos un futuro más saludable. Washington, DC: OPS; 2011.
- 18 World Health Organization (WHO). Global action plan for the prevention and control of noncommunicable diseases 2013-2020.Geneva: WHO; 2013.
-
19 Organização das Nações Unidas. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável [Internet]. 2021. Brasília: Organização das Nações Unidas. [acesso em 19 out 2021]. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs
» https://brasil.un.org/pt-br/sdgs - 20 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças Não Transmissíveis. Vigitel Brasil 2019: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília: Ministério da Saúde; 2020.
- 22 21. Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar 2015. Rio de Janeiro: IBGE; 2016.
- 23 22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde 2019: Percepção do estado de saúde, estilos de vida, doenças crônicas e saúde bucal. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.
- 24 23. Stopa SR, Szwarcwald CL, Oliveira MM, Gouvea ECDP, Vieira MLFP, Freitas MPS, et al. National Health Survey 2019: history, methods and perspectives. Epidemiol Serv Saude. 2020 Oct 5; 29(5): e2020315.
-
25 24. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde [Internet]. 2021. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. [acesso em 27 out 2021]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/9160-pesquisa-nacional-de-saude.html?=&t=o-que-e
» https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/9160-pesquisa-nacional-de-saude.html?=&t=o-que-e -
26 25. Fundação Oswaldo Cruz. Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde. Pesquisa Nacional de Saúde [Internet]. 2021. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz. [acesso em 16 de outubro de 2021]. Disponível em: https://www.pns.icict.fiocruz.br/painel-de-indicadores-mobile-desktop/
» https://www.pns.icict.fiocruz.br/painel-de-indicadores-mobile-desktop/ - 27 26. Ministério da Saúde (BR). e-SUS Atenção Primária à Saúde (e-SUS APS). Brasília: Ministério da Saúde, 2021.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Jul 2022 -
Data do Fascículo
2022