Open-access The Lancet: série sobre amamentação

O Prof. Cesar Gomes Victora é um dos mais preeminentes epidemiologistas brasileiros. É Professor Emérito de Epidemiologia na Universidade Federal de Pelotas (UFpel), e Professor Visitante na Universidade de Oxford (Inglaterra) e nas universidades estadunidenses de Harvard e Johns Hopkins, além de Pesquisador Sênior do Wellcome Trust. Foi presidente da Associação Epidemiológica Internacional (IEA), de 2011 a 2014. Recentemente, atuou como editor de uma série especial sobre amamentação publicada na revista britânica The Lancet, em janeiro de 2016.

A série é composta por dois artigos que discorrem sobre as tendências de indicadores de amamentação no mundo, os benefícios da amamentação para mães e filhos, a importância das intervenções para estimular sua realização e duração, bem como os desafios para a promoção deste comportamento saudável. O leite materno é comparado a um "medicamento personalizado", com diversas vantagens nutricionais, imunológicas, econômicas e ambientais. Entre seus impactos, foi estimado que as mortes de 823 mil crianças e 20 mil mães poderiam ser evitadas a cada ano com a universalização da amamentação, tendo como benefício adicional uma economia de 300 bilhões de dólares.1,2

A Epidemiologia e Serviços de Saúde: revista do Sistema Único de Saúde do Brasil (RESS), em parceria com a revista The Lancet, viabilizou a tradução para o português desses artigos, originalmente publicados em inglês. As traduções encontram-se disponíveis na versão eletrônica da RESS.3,4

A seguir, é apresentada uma breve entrevista com o Prof. Cesar, a respeito dos artigos da série.

Qual a importância desta série sobre amamentação publicada na revista The Lancet, nos cenários global e brasileiro?

Prof. Cesar Victora: Acho que a mensagem mais importante é a de que a amamentação é fundamental para crianças e para as mães, tanto em sociedades pobres quanto ricas. Até há alguns anos havia consenso sobre a importância da amamentação para evitar doenças infecciosas, que são particularmente prevalentes em populações pobres. Nos últimos anos, foram acumuladas evidências epidemiológicas e de biologia básica que mostram os benefícios do leite materno para as mulheres, incluindo a redução nos cânceres de mama e ovário, e os efeitos em longo prazo para as crianças, incluindo o aumento da inteligência e uma provável redução nos riscos de obesidade e diabete na idade adulta. O Brasil se encontra em uma fase de transição epidemiológica, e promover o aleitamento continua sendo tão importante quanto no passado.

Nos artigos da série, a amamentação é destacada como um comportamento saudável promotor de equidade. Como a amamentação contribui para a redução das desigualdades sociais e em saúde, especialmente nos países de média e baixa renda, como o Brasil?

Prof. Cesar Victora: Nossos artigos incluem a primeira série de análises sistemáticas, em dezenas de países, sobre desigualdades sociais na duração do aleitamento. Mostramos que a amamentação tem maior duração em países pobres do que em países ricos. Dentro dos países pobres, são as mães mais pobres que tendem a amamentar por maiores períodos de tempo. Portanto, a amamentação é um dos poucos comportamentos de saúde positivos que são mais frequentes na pobreza. Na ausência de amamentação, os diferenciais sociais na mortalidade de crianças seriam ainda mais pronunciados.

Grande parte das evidências sobre os benefícios da amamentação destacados na série são derivadas de estudos epidemiológicos. Qual a contribuição das coortes de nascimentos para a compreensão destes benefícios?

Prof. Cesar Victora: Dispomos hoje de dados que até há alguns anos não existiam, como coortes de nascimentos acompanhadas por várias décadas em países de renda média e baixa. Na coorte de 1982 de Pelotas, por exemplo, foi possível demonstrar um aumento de cerca de 4 pontos no Q.I. (quociente de inteligência) de crianças amamentadas por mais de um ano, comparadas com aquelas que mamaram no peito por menos de um mês. Mostramos também aumentos importantes na escolaridade e na renda mensal associados a maiores durações do aleitamento. Em países ricos, vários estudos sugerem redução no risco de câncer de mama entre mulheres que amamentam por períodos mais prolongados. Este tipo de evidência não existia até há pouco tempo, e seus resultados reforçam a necessidade de promover o aleitamento.

Quais são as suas recomendações para promoção da amamentação no âmbito dos serviços de saúde e da gestão do SUS?

Prof. Cesar Victora: Minha primeira recomendação para o nosso Ministério da Saúde é realizar imediatamente uma pesquisa nacional de demografia e saúde, nos moldes das pesquisas realizadas em 1996 e 2006-2007. Sem dados populacionais de saúde por cerca de 10 anos, o Brasil se encontra em posição pior do que todos os nossos vizinhos, com exceção da Venezuela. O que se passou com o aleitamento em nosso país desde 2007? Não sabemos. Há alguns estudos restritos, mas, sem dados representativos para toda a população, é impossível planejar adequadamente os serviços, e avaliar o impacto de intervenções em saúde.

Nossa série de artigos coloca o Brasil em destaque pelos importantes avanços na amamentação até 2007. Passamos de uma duração mediana de menos de 3 meses nas décadas de 1970-1980 para mais de 12 meses. Mas é essencial continuar a monitorar o progresso através de inquéritos representativos.

Em termos do SUS, embora eu não disponha de dados específicos, tenho observado altos e baixos nas ações de promoção do aleitamento desde o ano 2000. Entre os pontos negativos, destaco a falta de continuidade e seguimento na implantação dos hospitais amigos da criança, assim como nas ações da Rede Amamenta Brasil, que oscilam em termos de intensidade e visibilidade ao longo do tempo. A descentralização de ações de promoção para estados e municípios não tem produzido os resultados esperados. Quanto à fiscalização da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactantes (NBCAL), a sociedade civil tem feito sua parte através da IBFAN (International Baby Food Action Network - Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar), mas eu gostaria de ver a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) mais envolvida e proativa.

Nossa série mostra que amamentar não é importante apenas para a saúde e a nutrição dos indivíduos, mas também para reduzir os gastos assistenciais e para o desenvolvimento social e econômico da nação, através do aumento da inteligência e produtividade. É cada vez mais importante direcionar recursos públicos para promover a amamentação em nosso país.

Finalmente, o aumento na amamentação é uma das histórias de sucesso que temos na área de saúde. Adequar o investimento público nesta área pode contribuir para melhorar a imagem de nosso país no panorama sanitário internacional.

Referências bibliográficas

  • 1 Victora CG, Bahl R, Barros AJ, França GV, Horton S, Krasevec J, et al. Breastfeeding in the 21st century: epidemiology, mechanisms, and lifelong effect. Lancet. 2016 Jan;387(10017):475-90.
  • 2 Rollins NC, Bhandari N, Hajeebhoy N, Horton S, Lutter CK, Martines JC , et al. Why invest, and what it will take to improve breastfeeding practices? Lancet. 2016 Jan;387(10017):491-504.
  • 3 Victora CG, Bahl R, Barros AJD, França GVA, Horton S, Krasevec J, et al. Amamentação no século 21: epidemiologia, mecanismos, e efeitos ao longo da vida. Epidemiol Serv Saude. No prelo 2016
  • 4 Rollins NC, Bhandari N, Hajeebhoy N, Horton S, Lutter CK, Martines JC, et al. Por que investir e o que será necessário para melhorar as práticas de amamentação? Epidemiol serv saude.No prelo 2016

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016
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