No Brasil, as micoses sistêmicas não integram a lista nacional de doenças e agravos de notificação compulsória e não são objeto de vigilância epidemiológica de rotina. Apenas em alguns estados brasileiros a paracoccidioidomicose (PCM) integra o rol das doenças de notificação compulsória, razão por que não se dispõe de dados precisos sobre sua ocorrência em nível nacional. Na ausência do registro regular de dados clínicos e epidemiológicos sobre essas micoses, o conhecimento sobre áreas endêmicas, sua prevalência, incidência e morbidade baseia-se em estudos de séries de casos, estudos de isolados do microrganismo e suas linhagens, e dados do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS).
A PCM é causada por um fungo termodimórfico do gênero Paracoccidioides spp., que engloba duas espécies: Paracoccidioides brasiliensis (P. brasiliensis) e Paracoccidioides lutzii (P. lutzii).1,2 Estudos filogenéticos identificaram no P. brasiliensis cinco clusters que permitem o conhecimento acerca da distribuição das espécies no continente americano; porém, ainda não se consegue determinar a real incidência de cada espécie filogenética e sua relação com as características clínicas.3 Da mesma forma, tem-se observado que a variação antigênica específica no P. lutzii é muito grande. Eis um dos maiores problemas enfrentados no diagnóstico sorológico.4,5,6
O perfil epidemiológico da PCM vem apresentando notáveis alterações em sua frequência, características demográficas e distribuição geográfica. Fatores ambientais, decorrentes da abertura de novas fronteiras agrícolas com a derrubada de florestas, sobretudo na Amazônia, também contribuíram para o atual panorama da micose.7,8,9,10,11 Além disso, a ocorrência de diferentes espécies de Paracoccidioides também pode estar a contribuir para a mudança no padrão epidemiológico.
Em 2016, aconteceu um surto de PCM após a construção de um anel rodoviário na Baixada Fluminense, área metropolitana do Rio de Janeiro, onde houve extensa derrubada de vegetação acompanhada de grande movimentação de terra.12
Existem muitas dificuldades não somente no reconhecimento da doença, mas também no acesso ao diagnóstico e tratamento, o que contribui para sua evolução desfavorável. A paracoccidioidomicose representa importante problema de Saúde Pública pelo acometimento de indivíduos em sua fase mais produtiva, por ser considerada doença profissional, pelo longo tempo de tratamento, frequência de reativações, alto potencial incapacitante e quantidade de mortes prematuras que provoca quando não diagnosticada e tratada.7
Em 2002, o Ministério da Saúde promoveu, em Brasília, a I Reunião Nacional sobre Paracoccidioidomicose, marco inicial para a constituição de um comitê que tinha como objetivos iniciais avaliar a situação epidemiológica da enfermidade em todo o território nacional, bem como definir e apresentar estratégias para implantação de ações de controle e tratamento da paracoccidioidomicose no país.
Somente em 2005, teve início na Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS) a tentativa da implantação da vigilância epidemiológica (VE) das micoses sistêmicas endêmicas no país. As atividades para estruturação desse programa começaram em 2007, com a realização de uma Oficina Técnica sobre a Paracoccidioidomicose, prioritariamente abordada por se constituir na micose endêmica mais importante do país. Naquela oficina foram definidas as estratégias de implantação do programa, entre elas o desenvolvimento de um sistema de vigilância sentinela, manejo clínico, estruturação da rede de diagnóstico, organização da rede de assistência e capacitação de recursos humanos.
A partir daí, realizou-se importante investimento nesses pontos estruturantes. A capacitação de recursos humanos foi o cerne da estratégia: técnicos de todos os Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacen) foram capacitados no diagnóstico micológico e sorológico; médicos e técnicos da VE do país foram capacitados em manejo clínico e epidemiológico das micoses sistêmicas. Essas ações resultaram em 105 profissionais multiplicadores capacitados. Também foram adquiridos medicamentos e reagentes diagnósticos, além do investimento da SVS/MS na produção de antígenos do Paracoccidioides brasiliensis e sua distribuição para os Lacen e outros laboratórios de referência pelo Instituto de Tecnologia do Paraná (TECPAR), com vistas a ofertar a técnica de imunodifusão e testes intradérmicos com a paracoccidioidina.
A VE da paracoccidioidomicose foi implantada nos estados de Minas Gerais (2012), Goiás (2013) e Mato Grosso (2015). Em Rondônia e no Paraná, a vigilância já havia sido implantada em 1999 e 2000, respectivamente, e foi fortalecida em 2012 com a realização de capacitação em todas as regionais de saúde, organização de fluxos de atendimento e de processos de trabalho, e disponibilização de medicamentos antifúngicos.
Não se implantou, porém, a vigilância em nível nacional. Desde 2012, houve apenas - por parte da SVS/MS - a aquisição anual do complexo lipídico de anfotericina B e do itraconazol para tratamento dos pacientes portadores de micoses sistêmicas, traduzindo alto investimento financeiro na área. Cabe ressaltar que os critérios para a disponibilização desses medicamentos resultaram de pactuações na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e na Comissão Intergestores Bipartite (CIB).
Em 2017, a SVS/MS retoma a atenção às micoses sistêmicas. Nesse primeiro momento são priorizadas, entre as endêmicas, a paracoccidioidomicose, a criptococose, a esporotricose e a cromomicose, além da candidíase sistêmica que, atualmente, constitui um sério problema entre as infecções relacionadas com a assistência à saúde (IRAS).
Das atividades previstas, estão a atualização de protocolos clínicos de diagnóstico e tratamento desses agravos de acordo com as normas da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde, além da aquisição e incorporação de novos medicamentos e de insumos diagnósticos, tendo em vista a necessidade de amplo investimento em novas tecnologias que atendam a esse grupo de doenças, visando à estruturação do sistema de Vigilância e Controle da Paracoccidioidomicose.
Futuramente, novos medicamentos, entre eles o voriconazol e o isavuconazol, com indicações bastante específicas, poderão ser adquiridos e incorporados à Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename). Também será discutida a necessidade de aquisição de solução de itraconazol para utilização em crianças.
A identificação da nova espécie Paracoccidioides lutzii13 em território nacional contribui para que se ampliem as pesquisas na área e o diagnóstico sorológico seja harmonizado e implantado no país. Faz-se necessário investimento em novas tecnologias que atendam a esse grupo de doenças - as micoses sistêmicas.
Em 2006, foi publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical o 1º Consenso em PCM, com o objetivo de estabelecer as diretrizes de abordagem clínica, diagnóstica e tratamento da PCM, subsidiando os profissionais da saúde no atendimento primário e secundário da doença.7
Em 2017, foi lançada nova versão do Consenso em PCM, que enfatiza a identificação da nova espécie P. lutzii, além da inclusão das novas drogas para tratamento dos casos e interações medicamentosas de azólicos, inclusive entre os antirretrovirais.11 Nessa segunda versão do Consenso, destacam-se as seguintes recomendações: (i) instituir a notificação compulsória dos casos (prováveis e elucidados laboratorialmente); (ii) criar um sistema de informações; (iii) disponibilizar acesso universal ao itraconazol e ao cotrimoxazol; (iv) estruturar a rede de cuidados básicos, pautados nos aspectos clínico-epidemiológicos e laboratoriais (cultura e sorologia); (v) aprimorar e ampliar a pesquisa de antígenos na rede pública de saúde; (vi) padronizar a técnica de sorologia para diagnóstico e seguimento em nível nacional; bem como (vii) criar um banco de dados de distribuição de diferentes espécies paracoccidioides.11
A publicação do novo Consenso Brasileiro em Paracoccidioidomicose é bastante oportuna. Ela vem ao encontro de uma demanda crescente dos profissionais que atuam nos serviços de saúde, ao prestar as orientações básicas sobre os aspectos epidemiológicos e o manejo clínico da doença, além de fortalecer a necessidade de execução das atividades planejadas para a implantação da Vigilância e Controle da Paracoccidioidomicose.
Referências
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- 11 Shikanai-Yasuda MA, Mendes RP, Colombo AL, Queiroz-Telles, Kono ASG, Paniago AMM, et al. Brazilian guidelines for the clinical management of Paracoccidiodomycosis. Rev Soc Bras Med Trop. 2017 Sep-Oct;50(5):715-40.
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- 13 Carrero LL, Niño-Vega G, Teixeira MM, Carvalho MJ, Soares CM, Pereira M, et al. New Paracoccidioides brasiliensis isolate reveals unexpected genomic variability in this human pathogen. Fungal Genet Biol. 2008 May;45(5):605-12.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2018
Histórico
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Recebido
01 Dez 2017 -
Aceito
19 Jan 2018