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Razão e respons-habilidade

Reason and response-ability

Resumo

Esse artigo foi apresentado inicialmente em uma comunicação oral no congresso Think Global, Act Local, em 2023. Nele, argumento pelo papel radical das artes de mudar o próprio significado e propósito da educação: ao invés da transmissão eficiente de conhecimento dos professores de uma geração aos estudantes da próxima, a educação é vista como uma jornada interminável de descoberta na qual professores e estudantes embarcam juntos, tomados não pelo ideal humanístico da melhora progressiva, mas pela paixão de buscar a verdade do que é real e presente no mundo. Ao invés de educar estudantes na matéria da arte, aqui são as práticas de arte que educam. Nesta jornada para levar os estudantes a estabelecer um diálogo contínuo com o mundo em si mesmo, sustentando a possibilidade de atentar para as coisas ou seres a serem encontrados lá, responder à presença delas e explorar as condições de coexistência com elas, os conceitos de respons-habilidade e sobcomuns são apresentados e seus efeitos para a construção efetiva da democracia e da sustentabilidade destacados.

Palavras-chave:
Respons-habilidade; Sobcomuns; Artes; Sustentabilidade

Abstract

This article was first presented in the Think Global, Act Local Congress in 2023. I argue for the radical role of the arts in changing the very meaning and purpose of education, from the efficient transmission of knowledge from teachers of one generation to students of the next, to an endless journey of discovery on which teachers and students are embarked together, driven not by a humanistic ideal of progressive improvement but by a passion to seek the truth of what is real and present in the world. Instead of educating students in the subjects of art, here it is the practices of art that educate. In this journey students are brought into an ongoing dialogue with the world itself, affording the possibility to attend to the things or beings to be found there, to answer to their presence, and to explore the conditions of coexistence with them. I present the concepts of response-ability and undercommons, and highlight their effects on the effective construction of democracy and sustainability.

Keywords:
Response-ability; Undercommons; Arts; Sustainability

Introdução

Por mais de três séculos, no mundo ocidental, a educação tem sido concebida como o motor do progresso social. Ela tem sido o meio pelo qual os avanços no conhecimento humano, forjados pelo uso dos poderes da razão sobre o material da observação empírica, foram passados de uma geração para outra, permitindo que cada uma delas construa a partir dos resultados das suas predecessoras, e contribua, deste modo, para o avanço da civilização como um todo. Uma educação conformada com este princípio progressivo naturalmente se orgulha dos temas de estudo que são taxados, no linguajar moderno, de acadêmicos. Como local de aprendizado, a academia - seja ela uma escola, colégio ou universidade - está fundada em uma alegação de conhecimento superior de como o mundo funciona, ao menos se comparado com o conhecimento daqueles chamados “leigos” que, por contraste, está tão amarrado à experiência que parece residir fora de alcance da explicação e da análise. Quase por definição, o conhecimento acadêmico situa a si mesmo num plano mais alto, em que seria possível escapar do confuso teatro da prática em que ele seria empregado. É por isso que o estudo acadêmico tipicamente separa o aprendizado da prática, a transmissão do conhecimento de sua aplicação subsequente.

O efeito do modelo acadêmico, entretanto, tem sido o de empurrar para as margens uma quantidade de temas que - como poderíamos dizer no nosso idioma moderno - recorrem mais aos sentidos do que à razão, ou a padrões de perfeições mais estéticos do que lógicos. Não é que esses temas - das artes e artesanatos até a música e dança - não tenham lugar no currículo. Pelo contrário, mesmo em uma sociedade afiançada no ideal de progresso, há amplo reconhecimento da necessidade de complementar a objetividade destacada, a lógica fria e o rigor analítico do estudo acadêmico com algo mais subjetivo, mais sintonizado com os sentimentos, com a empatia e com a compreensão holística. Essa bifurcação é, apesar de tudo, profundamente sedimentada na constituição moderna. Temos até cientistas, atualmente, sustentando que ela está assentada no cérebro humano, conforme a divisão entre os lados esquerdo e direito! Uma educação em termos não acadêmicos, fomos ensinados, deveria então auxiliar o desenvolvimento do lado direito, temperando a dominância do esquerdo e oferecendo aos estudantes uma formação mais completa, que ampliaria suas habilidades para relacioná-las ao seu entorno.

Gostaria de argumentar contra esta complementaridade “esquerda-direita” da educação acadêmica e não acadêmica, com suas divisões implicadas entre o conhecimento objetivo e a experiência subjetiva, e entre a razão e a expressão. Minha contestação é que aquilo que poderíamos mais amplamente chamar de “artes” tem um papel muito mais radical a desempenhar do que apenas oferecer ao currículo acadêmico seu complemento não-acadêmico. Esse papel é o de mudar o próprio significado e propósito da educação, em todo e qualquer campo de estudo, da transmissão eficiente de conhecimento dos professores de uma geração aos estudantes da próxima, para uma jornada interminável de descoberta na qual professores e estudantes embarcam juntos, tomados não pelo ideal humanístico da melhora progressiva, mas pela paixão de buscar a verdade do que é real e presente no mundo. Ao invés de abrir um espaço para o cultivo da auto-expressão subjetiva, ao lado e como um contrabalanço para o espaço da transferência de conhecimento objetivo, isso tem a ver com levar os estudantes a estabelecer um diálogo contínuo com o mundo em si mesmo, sustentando a possibilidade de atentar para as coisas ou seres a serem encontrados lá, responder à presença delas e explorar as condições de coexistência com elas. Ao invés de educar estudantes na matéria da arte, aqui são as práticas de arte que educam. Elas o fazem abrindo uma trilha, mostrando um caminho, guiando a atenção na direção de aspectos do mundo que podem ser dignos de um exame mais minucioso.

A caminho dos sobcomuns

Isto se relaciona a uma atitude que chamarei de respons-habilidade, por meio da qual faço menção à capacidade e à prontidão de juntar-se às coisas e responder a elas. Isso não é uma ideia nova. A meu ver, foi introduzida, em 1957, em uma palestra ministrada pelo compositor John Cage (2011CAGE, John. Silence: Lectures and Writings by John Cage (50th Anniversary Edition). Middletown, CT: Wesleyan University Press, 2011., p. 10). Apenas na presença das coisas, disse Cage, nós podemos senti-las e apenas por meio dos sentimentos podemos responder a elas. Aparentemente desconhecendo esse precedente, a teórica cultural Donna Haraway (2016HARAWAY, Donna. Staying With the Trouble: Making Kin in the Chthulucene, Durham, NC: Duke University Press, 2016.: 105) reinventou recentemente o termo, seguindo o mesmo sentido. Respons-habilidade, diz ela, é ‘a práxis do cuidado e da resposta’. Cage não foi, tampouco, o único precedente. Uma década antes de Haraway ter se aproximado do termo, ele foi também utilizado pelo filósofo da educação Gert Biesta (2006BIESTA, Gert. Beyond Learning: Democratic Education for a Human Future, Boulder, CO: Paradigm, 2006., p. 70). Para Biesta, respons-habilidade se refere a uma certa voz. É uma voz própria de alguém que apenas se manifesta ao solicitar a resposta de outros, em suas vozes. Como uma linha de conversa, ou uma canção polifônica, cada voz emerge continuamente, por meio de sua junção e diferenciação com outras vozes. Eu chamo isso de correspondência - juntar-se e responder a outrem no caminho (Ingold, 2017INGOLD, Tim. ‘On Human Correspondence’. Journal of the Royal Anthropological Institute (N.S.), v. 23, p. 9-27, 2017. Disponível em: https://rai.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1467-9655.12541.
https://rai.onlinelibrary.wiley.com/doi/...
). E a questão é: e se imaginássemos a educação nesses termos, como a prática de correspondência mais do que um engenho do progresso? E se colocássemos o desenvolvimento da respons-habilidade à frente do cultivo da razão?

A voz da razão, evidentemente, não pertence a ninguém. Transcende todas as variações da experiência. É essa voz, tanto autoritária quanto impessoal, que a educação acadêmica busca inculcar nos estudantes, especificamente por dissociar o conhecimento da experiência pessoal e por torná-lo acessível a todos. Na comunidade da razão, como propôs o filósofo Alfonso Lingis (1994LINGIS, Alfonso. The Community of Those Who Have Nothing in Common, Bloomington, Indiana University Press, 1994., p. 165), todos são intercambiáveis. Problemas têm suas respostas certas, sempre as mesmas, para quem quer que se depare com eles. Um teorema matemático, por exemplo, não traz nenhuma dica da vida e da época do matemático; uma lei da natureza, ou mesmo da sociedade, não diz nada delas, ou dos juristas e cientistas que legislam em seu nome. Uma pedagogia da respons-habilidade, entretanto, reverteria as prioridades do modelo acadêmico, estabelecendo a atenção para todas as diferenças emergentes ante as medidas padronizadas de realização. Se na comunidade da razão não importa quem você é, na comunidade da respons-habilidade isso importa mais do que qualquer outra coisa. Pois é precisamente porque toda a voz da comunidade é diferente que as pessoas estão vinculadas. É uma comunidade, como diz Lingis (1994), ‘daqueles que não têm nada em comum’. E porque não tem nada em comum, cada um tem algo a dar, a contribuir, para o desenvolvimento da conversa em andamento.

De fato, a própria palavra comunidade - do latim com (com) munus (dádiva) - implica não apenas ‘viver junto’, mas ‘dar-se junto’ (Esposito, 2012ESPOSITO, Roberto. Terms of the Political: Community, Immunity, Biopolitics. Translated by Rhiannon Noel Welch, New York, NY: Fordham University Press, 2012., p. 49). Viver junto depende de entendimento. Significa encontrar suporte numa fundação compartilhada, uma base sólida sobre a qual todos podem construir. Mas “dar-se junto”, de certa maneira, puxa o tapete debaixo de nossos pés. Sem qualquer garantia em nossa associação, devemos segurar-nos uns nos outros, ou seremos tragados pela corrente, em uma correspondência que é menos consequente do que existencial. Chamo isso de "sobcomuns" (segundo Harney e Moten, 2013HARNEY, Stefano; MOTEN, Fred. The Undercommons: Fugitive Planning and Black Study, Wivenhoe: Minor Compositions, 2013.). Como tal, os sobcomuns são exatamente o oposto de entendimento, não a reversão do que temos todos em comum, para começar, mas um modo de viver junto em diferença, em um mundo em que nada é certo (Ingold, 2018INGOLD, Tim. Anthropology and/as Education, London: Routledge, 2018., p. 38). E se a educação, então, fosse concebida como uma prática dos sobcomuns?

Literalmente ‘educar’ significa ‘guiar para fora’, derivado de ex (fora) e ducere (guiar). A educação nos guia para fora, no mundo, de modo que possamos responder a ele. E como um modo de guiar para fora, é fundamentalmente uma maneira de exposição. Longe de encontrar segurança e proteção em qualquer perspectiva ou posição estabelecida, a educação continuamente nos puxa para fora, arriscando cada passo no desconhecido (Masschelein, 2010MASSCHELEIN, Jan. ‘E-ducating the Gaze: The Idea of a Poor Pedagogy’. Ethics and Education v. 5, n. 1, p. 43-53, 2010. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/17449641003590621.
https://www.tandfonline.com/doi/full/10....
).

O propósito da educação, portanto, não seria o de nos armar com conhecimento, ou de aperfeiçoar nossas defesas para que possamos lidar melhor com a adversidade. Seria muito mais desarmar, expor, e, pela mesma razão, aguçar a atenção para o mundo ao nosso redor, para que possamos responder com habilidade e sensibilidade ao que está acontecendo lá. Assim, professores e alunos seguem juntos na companhia uns dos outros, viajantes parceiros dos sobcomuns. A jornada pode ser difícil, penosa, até desconfortável, sem qualquer garantia de resultado. A tarefa do professor, certamente, não é tornar as coisas fáceis aos estudantes, mas oferecer um exemplo. Servir como um guia generoso, um companheiro constante e um crítico incansável. Os estudantes, seguindo o exemplo de seu professor, não deveriam ter medo de copiar, da mesma forma que um aprendiz copiaria ao aprender um ofício. Isso não é plágio, mas prática. Como um aprendiz, o estudante pratica sob os olhos do professor apenas para, eventualmente, se tornar esses olhos, supervisionando, por sua vez, a próxima geração. É aqui que reside a continuidade da tradição, fundada na segurança de que estudantes, que não podem ser forçados a aprender, estão mesmo assim ansiosos para juntar-se aos esforços de seus professores, e por passar a tocha do aprendizado para a futura geração.

A passagem das gerações

Pensar a educação desse modo, como um processo de levar a vida na companhia dos outros, de corresponder a eles nos sobcomuns, de seguir junto na diferença, é alinhar a educação não com o progresso mas com a sustentabilidade. Por sustentabilidade não quero dizer a busca de um estado precário de equilíbrio, em que o que tiramos do mundo, para nosso consumo, não deva exceder a capacidade de regeneração futura. Ainda que esse ato de equilíbrio continue a ameaçar a Terra, como uma reserva permanente para o benefício de uma humanidade distribuída, essa concepção está enquadrada, ainda, pelo ideal progressivo da subjugação da natureza pelo ser humano. Eu me refiro mais à continuidade da vida, em um mundo que tem espaço para nós e para todos os demais seres e coisas, tanto agora quanto para sempre. A real sustentabilidade não pode ser para alguns e não para outros. Ela deve ser para tudo, para o tempo todo. Mas isso significa pensar diferentemente as gerações e sua sucessão. Teóricos do progresso tendem a imaginar cada geração como uma camada, cada uma adicionando algo à precedente, construindo uma história em sua sucessão. Para eles, a história se empilha, e a educação é o processo pelo qual cada geração se prepara para o mundo novo que a aguarda. Mas enquanto o o progresso se constrói para cima, a sustentabilidade se leva para frente. O que isso significa para a substituição geracional?

Para responder a essa questão, acho válido comparar a vida com uma corda e pensar nas gerações como as fibras por meio das quais ela é trançada (Ingold, 2024INGOLD, Tim. The Rise and Fall of Generation Now. Cambridge: Polity, 2024.). Nenhuma fibra dura para sempre, e novas fibras são empregadas quando as velhas já não funcionam bem, de modo que a corda pode permanecer entrelaçada indefinidamente. É a fricção resultante do contato, pela sobreposição e torção das fibras, que previne que a corda se desenrole. Isso ocorre também com a vida de diversas vidas. Desse modo, as gerações não são empilhadas verticalmente, mas dispostas longitudinalmente, com novas vidas sendo introduzidas tão rapidamente quanto as velhas vidas falecem. Assim como com a corda, a sobreposição das gerações sustenta o processo da vida, enquanto o atrito entre elas as previne de serem desfeitas. Seguindo a filosofia de Henri Bergson, poderíamos ver cada geração, longe de se resignar ao seu próprio extrato, "debruçando-se sobre a geração que deve prosseguir" (Bergson, 1922, p. 135). Esse debruçar-se, essa sobreposição, é um gesto de cuidado, até de amor. Nós podemos perceber isso nas atividades de caminhada lado a lado, de carregar e sermos carregados, de dar as mãos. Esses, bem como incontáveis outros gestos cotidianos dos sobcomuns, equivalem à práxis ‘do cuidado e da resposta’ o que, nos termos de Haraway (2016HARAWAY, Donna. Staying With the Trouble: Making Kin in the Chthulucene, Durham, NC: Duke University Press, 2016., p. 105), é a essência própria da respons-habilidade.

Cada ser humano, é claro, nasce em um mundo. Este é o fato elementar da natalidade. Significa que os que já estavam ali por algum tempo, que são familiares com as formas deste mundo, têm, como primeira tarefa, introduzir os novos no mundo. Isso, para a filósofa política Hannah Arendt (1961), é a tarefa da educação. É uma relação entre adultos e crianças, na qual os primeiros sustentam a responsabilidade para o desenvolvimento dos últimos. Na maior parte da história humana, Arendt (1961, p. 181) observa, essa relação emergiu normalmente e naturalmente "do fato de que as pessoas de todas as idades estão sempre simultaneamente juntas neste mundo". Graças à coexistência intergeracional, os mais novos cresceram aprendendo as histórias e observando as práticas dos mais velhos, descobrindo os significados dessas histórias e desenvolvendo habilidades práticas na passagem de sua própria experiência, tornando-se, por sua vez, contadores de histórias e artífices. E é aí que reside o próprio significado da tradição - não como um corpo fixo de costumes herdáveis, a serem passados de uma geração para a próxima, mas como um caminho de vida ao longo do qual é possível se mover, em continuidade com os valores do passado, enquanto se estabelece uma trilha para outros seguirem. E é se debruçando amorosamente sobre seus velhos modos que os mais velhos criam as condições para os jovens estabelecerem um caminho de renovação.

Sustentabilidade contra progresso

Como é, então, que, em nossa época e tempo presente, as gerações tornaram-se tão separadas que já não se encontram mais, mas se amontoam umas sobre as outras? Como poderemos explicar essa mudança, do longitudinal para o vertical? As razões são complexas e tem muito a ver com a erosão capitalista dos modos de produção domésticos e com a redistribuição das funções educacionais da família ao Estado. Para Arendt, escrevendo em 1954ARENDT, Hannah, ‘The Crisis in Education’. In: ARENDT, Hannah, Between Past and Future: Six Exercises in Political Thought, by Hanna Arendt, 173-196, New York: Viking Press, 1954., foi a falência do Estado de tomar a responsabilidade concedida por meio dessa redistribuição, que subsidiou o que ela via como a ‘crise na educação’ hoje. Ao invés de introduzir os jovens em um mundo antigo, o Estado insiste em prepará-los para um novo mundo, cuja estrutura e valores já estão decididos. Tal preparação, pensa Arendt, oferece uma aparência de educação, sendo seu verdadeiro propósito não uma introdução ao mundo, mas a doutrinação. Seus efeitos coercitivos negam aos jovens qualquer oportunidade em fazer o mundo de novo, uma vez que, no momento em que chegam, o futuro já está dado. Uma educação que seja falha na responsabilidade de introduzir jovens nos modos antigos, - e que, pelo contrário, demanda sua conformidade a uma nova ordem, enquanto controla as condições de aceitação a ela - pode levar somente à ruína. Resumindo, o destino da educação evita a questão, posta por Arendt (1961, p. 196), de "se amamos o mundo suficientemente para assumir responsabilidade perante ele". Apenas nesse caso poderia haver esperança na renovação das futuras gerações.

Nos últimos três séculos, nós nos convencemos de que o progresso é imparável, e que a educação, ao rejeitar o antigo em favor da sua própria visão do novo, empilhando cada geração sobre a seguinte, pode levar a civilização humana a patamares cada vez mais altos. Mas o progresso carrega seu preço, em termos de ambientes devastados permanentemente pela extração de recursos, e de desigualdades e injustiças sempre crescentes entre aqueles que tem sido os beneficiários do progresso e aqueles que tem sido dele expropriados. Como bem sabemos, esse preço é agora tão alto que qualquer extensão futura da escada do progresso é manifestadamente insustentável. Resumidamente, progresso e sustentabilidade, como razão e respons-habilidade, puxam em diferentes direções: um para cima, a outra ao longo. Não podemos ter os dois. Embora concordemos que a educação é o modo com que a sociedade garante seu próprio futuro, temos também que admitir que para que haja futuro, ele deve residir no princípio da sustentabilidade ao invés do progresso. Isso significa que a educação, também, tem que mudar suas prioridades da razão para a respons-habilidade. Consecutivamente, devemos pensar na educação como o caminho no qual as gerações, mesmo quando se sobrepõem, podem contribuir para a formação uma das outras.

A corrente acadêmica dominante continua insistindo que a educação é um tipo de elevador que levanta os que prosperam aos níveis mais altos, enquanto permite que os fracassados afundem. Como políticos e criadores de políticas públicas não se cansam de nos dizer, o propósito declarado da educação é garantir aos que a trilham uma vantagem, ou elevá-los na escada de conquistas, em uma meritocracia que dispõe os mais bem educados no alto, nas posições mais poderosas, com os mais altos rendimentos e estilos de vida mais invejados. Nesse sentido, a educação é tomada como um modo de superar as desvantagens e promover a mobilidade social. Palavras como ‘desvantagem’ e ‘mobilidade’ evidenciam, assim, uma sociedade competitiva na qual alguns inevitavelmente apresentarão melhores resultados e outros piores. Quando essas mesmas palavras são utilizadas para enquadrar políticas de educação, elas inevitavelmente irão reproduzir a própria hierarquia que instituições como escolas e universidades são chamadas a superar. A mobilidade ascendente permite que alguns alcancem o topo, mas não faz nada para nivelar a paisagem. Haverá vencedores e perdedores. Não se trata de servir ao bem comum, mas de reservá-lo a alguns, em detrimento de outros. Uma situação recente, em particular, trouxe isso para meu universo próximo.

Democracia e educação

Alguns anos atrás, no final de outubro de 2017, estava na audiência de um evento anual chamado “A Batalha das Ideias”, sediado no Barbican Centre, em Londres. Era uma sessão lotada, voltada à questão “o que é a democracia?”. Um ano havia se passado desde o referendo Brexit, e os ânimos estavam ainda exaltados. O referendo colocou o funcionamento da democracia em foco, como nunca antes. Para os defensores da permanência (na Comunidade Europeia), como eu, esse resultado obliterou o que restava da democracia representativa, da ideia de que as pessoas deveriam confiar nos seus representantes eleitos para fazerem decisões informadas em seu nome. Contrariamente, para os separatistas, o referendo tinha ao menos restaurado poder às pessoas, recuperado a democracia do patamar da elite política egocêntrica, interessada apenas em preservar suas posições exaltadas de riqueza e poder, enquanto tratava todos os demais com uma indiferença próxima do desprezo. À medida que o debate prosseguiu, tornou-se claro que uma das coisas que mais irritavam aqueles que falavam em nome do povo, era a pretensão dos defensores da permanência de serem mais educados que os demais, e, portanto, em posição melhor para alcançar um julgamento racional, objetivo e balanceado sobre assunto, tido como tão complexo para pessoas comuns entenderem. Mais do que um bem social, que permite a todos viverem vidas mais ricas e satisfatórias, a educação sofreu forte ataque, sendo percebida como o meio pelo qual poucos privilegiados poderiam pleitear todos os benefícios para si mesmos.

Sentado na audiência, fiquei estarrecido com este ataque à educação, e pelo que parecia ser uma interpretação crua e equivocada do espírito e propósito educacional. Levantei-me, então, para falar. Declarei que a educação, longe de ser o inimigo de uma governança democrática, é um pré-requisito essencial para qualquer democracia funcionar. Pois apesar dos poderes legislativos e executivos estarem personificados nos representantes eleitos, a responsabilidade última do exercício desses poderes para o interesse público reside nos cidadãos. Assim, apenas por meio da educação os cidadãos podem ser preparados adequadamente para o exercício dessa responsabilidade. Mais do que atacar a educação, eu disse, deveríamos fazer tudo o que pudessemos para sustentá-la, principalmente garantindo que os benefícios dela decorrentes sejam comuns a todos. A julgar pela resposta, creio que muitos na audiência concordaram com meus argumentos. Outros, entretanto, não estavam convencidos. Ao refletir posteriormente acerca desse incidente, pareceu-me que os críticos da educação tinham fundamento. Não há dúvidas de que a direção das políticas educacionais, especialmente no último quarto de século, foi esmagadoramente orientada pelo ideal meritocrático da seleção dos “mais aptos” para o futuro, e pela preparação para o mercado de trabalho que, com a automatização desenfreada, tem marginalizado as pessoas, vistas como excedentes às exigências, relegadas a aceitarem empregos esdrúxulos, capazes de garantir apenas uma existência precária. Reagindo às demandas da economia global, a educação ajudou a alçar essa desigualdade a níveis obscenos. Não é estranho que tenha sido menosprezada por aqueles deixados para trás na corrida para o topo!

Mesmo que o espírito e propósito da educação tenham sido sequestrados pela meritocracia, também, por outro lado, o espírito e propósito da democracia foi corrompido pela sua redução à ‘a vontade do povo’. O resultado é uma fissura entre educação e democracia que está atualmente fraturando nossas sociedades. Parte essencial do processo de cura, acredito, deve ser reunir democracia e educação novamente. Isso estava, também, na mente do filósofo John Dewey quando, há mais de um século, em meio à violenta guerra na Europa, ele sentou para escrever seu maior livro, Democracia e educação (1966 [1916]). Para Dewey, a educação não concerne a preparação de indivíduos para o emprego ou a elevação deles na escada social. É, antes de tudo e principalmente, sobre garantir a continuidade da vida. Isso é feito não pela inserção direta de conhecimento e informação na cabeça dos alunos, de modo a acelerá-los, mas por reunir professores e estudantes, respectivamente de gerações antigas e novas, na co-criação do conhecimento. De modo crucial, uma educação que entrelace a sabedoria e experiência dos mais velhos com a ampla curiosidade dos jovens é transformadora para as duas partes. Em um processo de levar para fora, educar e ser educado são a mesma coisa.

Entrando na conversa

É possível comparar isso com uma conversa. Na conversa, todos participam, mesmo que nenhum possa definir o resultado final, e tampouco pode qualquer resultado ser final, uma vez que o que é importante é que o processo continue e que haja sempre pontas soltas para seguir. O que ocorre nas conversas é que os participantes são desafiados a transmitir sua experiência em frente, em suas imaginações, até um lugar em que eles podem encontrar alguma coisa em comum com os outros que também buscam o mesmo, atingindo um grau daquilo que Dewey (1966DEWEY, John. Democracy and Education: An Introduction to the Philosophy of Education, New York: Free Press, 1966., p. 4) chamaria de mente-comum, que os habilita a continuar e a manter a conversa fluindo. Ainda que Dewey use a palavra comunicação para isso, sinto que o termo não é mais adequado, uma vez que o século que se passou entre o tempo dele e o nosso fez com que o termo adquirisse novos significados, relacionados com a tecnologia da informação, que limitam a comunicação no sentido de transmissão efetiva de conteúdo por meio da mensagem. Comunicação, atualmente, é passar as especificações da sua posição atual para outros à distância, ao invés de alcançar, na companhia dos outros, posições que ainda não haviam sido encontradas (Ingold, 2018INGOLD, Tim. Anthropology and/as Education, London: Routledge, 2018., p. 4). Por essa razão, como já sugeri, prefiro o termo sobcomuns. Recapitulando, a chave para os sobcomuns reside não na reversão para um padrão que todos têm em comum desde o início, mas no movimento para um lugar onde ninguém havia estado antes, um novo lugar, mas que permita, entretanto, um caminho adiante. É sobre aprender a viver juntos na diferença.

Mas isso não poderia ser também o verdadeiro chamado da democracia? Ela não é igualmente uma conversa contínua na qual estão todos envolvidos? Certamente não, como evidenciam os temas atuais, ou como democracia foi compreendida pela maior parte dos participantes no debate "A Batalha das Ideias". De forma grosseira - e certamente na compreensão daqueles que viam a educação, e os educados, como inimigos do povo - democracia significa uma forma de governo autoritário no qual os interesses comuns da maioria numérica são impostos a todos os demais. Isso é exatamente o oposto de viver junto na diferença. Ao contrário, isso divide as pessoas em lados opostos, unidos desde o começo na defesa daquilo que veem como seus interesses comuns. As pessoas são reunidas, aqui, pela identidade, divididas ao longo de linhas de diferença. Cada lado, retornando à base, poderia apenas cavar mais fundo em suas posições estabelecidas, não deixando qualquer possibilidade de se mover para frente. Desse impasse, a educação oferece uma rota de escape possível, mas não uma cura.

Qual é, então, a alternativa? É pensar na democracia, assim como pensamos na educação, como uma conversa, uma correspondência. Em uma correspondência democrática, bem como na comunidade de dar-se juntos, cada participante tem algo a contribuir precisamente porque todos são diferentes. Democracia é, então, uma conquista coletiva potencialmente transformadora para todos os envolvidos. Ela nos guia para outro lugar. Deveríamos sonhar, então, com um futuro no qual as práticas da democracia e da educação tornem-se as mesmas, como experiências de exposição que nos levem à presença dos outros, de modo que possamos melhor responder a eles? Na respons-habilidade, ou correspondência, democracia e educação convergem em seu alinhamento ao princípio da continuidade da vida, assegurando que a corda das gerações que se misturam permaneça sendo trançada. Isso, em uma palavra, é um compromisso não com o progresso, mas com a sustentabilidade. O que nos traz de volta, enfim, às artes e ao seu papel potencial na transformação democrática.

Artes e currículo

Acredito que as artes estão unicamente posicionadas para provocar esta convergência, e para curar a fissura entre democracia e educação. Pelo lado da democracia, as artes têm o potencial de abrir espaços de conversação e correspondência baseados - diferentemente das nossas instituições políticas democráticas - em princípios de convivialidade e diferença ao invés de identidade e divisão. Talvez nós pudessemos considerar até mesmo a escola como uma obra de arte coletiva, instalada no coração de sua comunidade, corretamente celebrada devido às ilustres pessoas novas que, através das gerações, ela introduziu no mundo social. Poderíamos falar, então, não de uma educação das artes, mas das artes da educação? Isso significaria, pelo lado da educação, tratar as artes não como uma matéria a ser ensinada, como suplemento não acadêmico para um currículo centrado no modelo acadêmico, mas como modos de ensino de si mesmos (Ingold, 2022INGOLD, Tim. Introduction. In: INGOLD, Tim. Knowing From the Inside: Cross-Disciplinary Experiments With Matters of Pedagogy, edited by Tim Ingold, 1-19, London: Bloomsbury, 2022., p. 15). O que elas oferecem não é nada menos do que um modelo alternativo de educação, fundado na experiência, que faz a distinção entre as matérias acadêmicas e não acadêmicas cair na irrelavância.

Tomemos a matemática como um exemplo, costumeiramente considerada a matéria mais lógica e intelectual de todas, situada no pináculo da razão humana. No modelo acadêmico, a matemática é o padrão de ouro que todas as outras matérias almejam. Mesmo assim, qualquer matemático diria que sua maneira de estudar é fundamentalmente uma artesania do intelecto. Ao fim do dia, como o bioquímico e teórico do caos Otto Rössler (apud Freitas, 2016, p. 188) salientou certa vez, "matemática não é nada mais que cerâmica". Mas ele poderia ter dito que cerâmica não é nada menos do que matemática, ou ainda que essa arte do fazer, como a prática dos sobcomuns, se iguala a qualquer filosofia. Não se trata do fato de que algumas disciplinas são tão teóricas, estão tão envolvidas na linguagem proposicional que elas possam ser aprendidas apenas através da instrução formal, e outras, tão práticas, tão resistentes à lógica ou à expressão verbal, que possam ser aprendidas apenas pelo fazer. É claro que essa ideia está por trás das recorrentes distinções entre o conhecimento explícito e o tácito, e entre a verbalização e a corporização. Tais distinções, que efetivamente negam aos praticantes qualquer voz própria e, portanto, criam um nicho para que o crítico-acadêmico fale em sua voz, são o último bastião do esnobismo acadêmico.

O fato é que os artistas praticantes - no qual incluo os artesãos, músicos, dançarinos, arquitetos, designers, entre diversos outros - são pensadores tanto quanto os chamados estudiosos acadêmicos, e podem ser tão eloquentes na performance de suas disciplinas como qualquer um deles. Contrariamente, os eruditos acadêmicos iriam esgotar-se, não fossem eles animados pela experiência corpórea com materiais vitais. É certamente por restaurar a arte na educação e a educação na arte, ao invés de opor a elas uma linha de demarcação separando disciplinas acadêmicas e não acadêmicas, que nós poderemos finalmente chegar em um curriculum vitae em sentido estrito, isto é, não como um registro das notas concedidas em uma escada de conquistas, mas como o curso de uma vida (Ingold, 2022INGOLD, Tim. Introduction. In: INGOLD, Tim. Knowing From the Inside: Cross-Disciplinary Experiments With Matters of Pedagogy, edited by Tim Ingold, 1-19, London: Bloomsbury, 2022., p. 6). Coloque todo esse currículo junto e o que se obtém? Não um mapa da modernidade, marcado pelos quilômetros de conquistas, mas uma corda de muitos fios que trança a si mesma à medida que a vida segue, nem longe de uma origem nem próxima de um fim, mas sempre sentindo um caminho para um além, na geração contínua do absolutamente novo. É nisto, para concluir, que reside o verdadeiro sentido da sustentabilidade.

Referências

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  • BERGSON, Henri. Creative Evolution, translated by Arthur Mitchell, London: Macmillan, 1922.
  • BIESTA, Gert. Beyond Learning: Democratic Education for a Human Future, Boulder, CO: Paradigm, 2006.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2024
  • Aceito
    05 Maio 2024
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