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Violência, reconhecimento e crítica ao humanismo no prefácio de Jean-Paul Sartre para Os condenados da terra, de Frantz Fanon1 1 Pesquisa vinculada ao Núcleo de Estudos “Violência, Democracia e Direitos Humanos” - CNPq - Processo 409234/2022-2.

Violence, recognition, and critique of humanism in Jean-Paul Sartre's Preface to "The Wretched of the Earth", by Frantz Fanon

Resumo

O artigo analisa os argumentos de Sartre em torno da violência e do reconhecimento de novos sujeitos na política e a sua crítica ao formalismo dos discursos humanistas a partir do “Prefácio” que ele escreveu para Os condenados da terra, de Frantz Fanon. Para isso, o texto se divide em três partes. A primeira, mais histórica, apresenta o trabalho de Sartre como prefaciador e trata das condições que cercam a redação do “Prefácio” para Fanon; a segunda aborda o problema do reconhecimento de outras vozes no contexto político; a última retoma a crítica sartriana às incoerências do humanismo ocidental. A violência atravessa todos os argumentos ao ocupar um papel capital nos trabalhos de Fanon e nas preocupações de Sartre, particularmente entre as décadas de 1950 e 1960.

Palavras-chave:
Sartre; Fanon; Violência; Reconhecimento; Crítica ao humanismo.

Abstract

The article analyzes Sartre’s arguments regarding violence and the recognition of new subjects in politics, as well as his critique of the formalism of humanist discourses, based on the “Preface” he wrote for Frantz Fanon’s The Wretched of the Earth. To achieve this, the text is divided into three parts. The first, more historical, presents Sartre’s work as a preface writer and discusses the conditions surrounding the writing of the “Preface” for Fanon. The second part addresses the problem of recognizing other voices in the political context, while the final part revisits Sartre’s critique of the inconsistencies of Western humanism. Violence permeates all the arguments by playing a pivotal role in Fanon’s work and Sartre’s concerns, particularly during the 1950s and 1960s.

Keywords:
Sartre; Fanon; Violence; Recognition; Criticism of Humanism.

Introdução

Este artigo analisa, a partir do famoso prefácio de Jean-Paul Sartre para o livro Os condenados da terra, de Frantz Fanon, três questões incontornáveis para a compreensão do nosso atual contexto político: a violência, o reconhecimento de novos atores no cenário político e social e a necessária crítica ao formalismo de certos discursos humanistas. Naturalmente, tanto em Sartre quanto em Fanon, esses argumentos são tomados no momento em que se assiste o enterro do sistema colonial1 1 Para uma apresentação do “Prefácio” sartriano, remetemos o leitor aos estudos de Joseph Mornet (2006) e Grégory Cormann (2015). Sobre as relações entre Sartre e Fanon, há já uma extensa bibliografia, contudo, aqui, limitamo-nos a indicar os trabalhos de Rodrigo Diaz de Vivar y Soler e Edelu Kawahala (2014), Deivison Faustino (2020), Edoardo Raimondi (2020) e David Mitchell (2020). .

Para tanto, dividimos o texto em três partes distintas. Na primeira, histórica e, portanto, descritiva, apresentamos em grandes linhas o trabalho de Sartre como prefaciador e, em seguida, tratamos especificamente da formação do “eixo Sartre-Fanon” e das circunstâncias que prepararam a redação do “Prefácio” para Os condenados da terra. Na segunda, que abre uma análise propriamente conceitual, analisamos o problema do reconhecimento, sobretudo a partir da “alegoria” que Sartre dispõe nas primeiras páginas do seu texto. Já na terceira parte, tratamos da crítica sartriana ao humanismo europeu - sem nos furtarmos de rápidas observações à oposição ao discurso da não-violência, defendido, entre outros, por Albert Camus. Por fim, enquanto objeto capital do nosso recorte, a violência atravessa todos os argumentos desenvolvidos, pois, ao fim e ao cabo, é ela precisamente - como experienciada nas relações constitutivas da política colonial racista - que move os trabalhos de Fanon e, em grande medida, as preocupações principais de Sartre entre as décadas de 1950 e 1960.

A relevância do tema goza de uma lamentável atualidade e o nosso “retorno a Sartre”, mais precisamente ao seu “Prefácio”, é animado pela percepção de que as ideias presentes nesse escrito nos dão a oportunidade de uma reflexão absolutamente necessária para o enfretamento de algumas formas hodiernas de violência2 2 Para explicar o que se esconde na expressão “retorno a Sartre” e, ao mesmo tempo, compreender a situação geral que parece cercar o autor de O ser e o nada, podemos nos valer desta passagem do psicanalista italiano Massimo Recalcati (2021, p. VII): “No pensamento filosófico e cultural contemporâneo, Sartre aparece como um ‘cachorro morto’. Se a sua figura intelectual e a sua obra literária e filosófica constituíram nos anos sucessivos à Segunda Guerra mundial uma verdadeira hegemonia cultural, hoje parecem lançadas no esquecimento. A radicalização do pensamento de Heidegger sobre o problema do Ser, de um lado, e a afirmação do estruturalismo, do outro, tiraram o terreno propício à vocação humanista do seu pensamento. Depois do estruturalismo, a cena cultural e filosófica, com exceção significativa de Lacan, deixou para trás o problema do sujeito tão caro ao existencialismo sartriano”. .

A formação do “eixo Fanon-Sartre”

“Futuramente, no dicionário, vai aparecer um verbete: SARTRE, Jean-Paul, célebre prefaciador do século XX” (COHEN-SOLAL, 2008COHEN-SOLAL, A. Sartre. Uma biografia. Porto Alegre: L&PM, 2008., p. 365). Essas palavras, recolhidas daquela que continua como a biografia definitiva de Sartre, transmitem um gracejo reservado aos mais próximos, mas cuja substância manifesta um fato inegável: Sartre se fez um célebre prefaciador do século passado. Para muitos escritores, particularmente para jovens como Louis Dalmas (Le communisme yougoslave, 1950), Juan Hermanos (La fin de l’espoir, 1950) e Roger Stéphane (Portrait de l’aventurieur, 1950), ou mesmo para alguém cujo nome já era bastante conhecido, como é o caso do fotógrafo Henri Cartier-Bresson (D’une Chine à l’autre, 1954), estampar na capa de seus trabalhos as palavras “Prefácio de Jean-Paul Sartre” equivalia com certeza a um tipo de chancela ainda hoje de difícil comparação. Nossa primeira pergunta pode ser, então, o que, afinal, essa atividade de prefaciador significava para o filósofo. Seria apenas um sinal de sua posição na cena cultural francesa? Seria, talvez, a comprovação de sua credibilidade ou ainda mais simplesmente da sua inquestionável influência no terreno intelectual? Embora haja também algo de tudo isso, os prefácios sartrianos são muito mais coerentes do que possam parecer à primeira vista, pois, em praticamente todos os casos, Sartre se serve dessas ocasiões para manifestar as próprias ideias, detalhando-as ou explicando-as a partir de contextos específicos. Isso fica particularmente claro no prefácio de Os condenados da terra, quando o filósofo expõe alguns dos seus argumentos mais polêmicos3 3 Um dos passos mais conhecidos do “Prefácio” demonstra bem o caráter polêmico dos seus argumentos: “Abater um europeu é matar dois coelhos com uma só cajadada, suprimir para sempre um opressor e um oprimido: ficam assim um homem morto e um homem livre; o sobrevivente, pela primeira vez, sente um solo nacional sob a sola dos seus pés” (SARTRE, 2002, p. 29). ao mesmo tempo que radica sua posição definitiva em relação à guerra da Argélia4 4 Não tanto sobre o papel de Sartre na Guerra da Argélia, mas muito mais sobre o papel deste evento na vida do filósofo, é interessante recordar as declarações de Roland Dumas: “A guerra da Argélia foi a guerra dele [...]. No fundo, Sartre não se envolveu na Revolução Espanhola, nem na Frente popular. A resistência? Sim, mas tão pouco... Perdeu, portanto, todos os grandes acontecimentos políticos de seu tempo, menos esse, o da guerra da Argélia. Que foi, de certo modo, o encontro de uma grande causa com uma grande personalidade” (DUMAS apud COHEN-SOLAL, 2008, p. 498). Uma abordagem muito interessante das relações de Sartre com a guerra da Argélia pode ser encontrada no artigo de Ian Birchall (2021). .

São bem conhecidas as circunstâncias que envolvem a redação de Os condenados da terra5 5 Para uma aproximação da “atmosfera” que presidiu a redação de Os condenados da terra, conferir Khalfa (2021). , assim como as condições de saúde do seu autor e a história da sua recepção6 6 Sobre Fanon, cf. o trabalho de Alice Cherki (2000). No que concerne à recepção da obra, vale a síntese de Cohen-Solal (2008, p. 492): “Os condenados da terra é traduzido para dezessete línguas e alcança uma tiragem de mais de um milhão de exemplares. Intervém no debate ideológico numa fase politicamente sensível [...] e se apresenta sob a forma de impressão patética: é, de certo modo, o testamento político de um homem que vai morrer”. . Pensamos, portanto, que seja suficiente nos concentrarmos na formação daquilo que foi, nos termos de Annie Cohen-Solal (2008COHEN-SOLAL, A. Sartre. Uma biografia. Porto Alegre: L&PM, 2008., p. 490), o “eixo Fanon-Sartre”7 7 Ver também o livro de Nilson Gabriel (2021, p. 25-85). .

Para Frantz Fanon, o contato com o pensamento de Sartre se deu primeiramente através dos escritos deste a favor das minorias. Para falar de forma precisa, com a leitura de Considerações sobre a questão judaica8 8 Chega a afirmar o seguinte: “Certas páginas de Reflexões sobre a questão judaica são das mais belas que já lemos. Das mais belas porque o problema que expressam nos agarra pelas entranhas” (FANON, 2020, p. 193). e, sobretudo, do ensaio “Orfeu negro” - outro famosíssimo prefácio sartriano, preparado para o volume organizado por Léopold Sédar Senghor, Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgaxe de la langue française, de 19489 9 Sobre a Anthologie de Senghor, veja-se o artigo de Dominique Ranaivoson (2010, p. 20-27). -, texto fundamental, que Fanon (2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Trad. S. Nascimento. Rio de Janeiro: UBU, 2020., p. 147) reconhece como “marco na intelectualização do existir negro”. Grosso modo, em “Orfeu negro”, Sartre se posiciona a favor da legitimidade histórica do movimento de Négritude diante de séculos de escravidão e racismo, ao mesmo tempo que exalta as suas contribuições para o espírito humano (cf. FAUSTINO, 2020FAUSTINO, D. Sartre, Fanon e a dialética da negritude: diálogos abertos e ainda pertinentes. Entrelinhas, Araguaína, v. 11, n. 2, p. 74-101, mai./ago. 2020., p. 88-89). Já no primeiro parágrafo lemos o seguinte:

O que esperavam quando tiraram a mordaça que calava estas bocas negras? Que elas lhes entoariam louvores? Estas cabeças que nossos pais haviam dobrado pela força até o chão, vocês pensavam que, quando se levantassem, teriam os olhos cheios de adoração? Ei-los em pé, homens que nos olham e faço votos para que vocês sintam como eu a comoção de ser visto. Pois o branco desfrutou durante três mil anos o privilégio de ver sem ser visto; era olhar puro, a luz de seus olhos extraía todas as coisas da sombra natal; a brancura de sua pele era também um olhar, era luz condensada. O homem branco, branco porque era homem, branco como o dia, como a verdade, branco como a virtude, iluminava a criação como uma tocha, sacava a luz a essência secreta e branca dos seres. Porém, hoje, esses homens pretos olham para nós e viram nosso olhar pelo avesso; tochas negras, por sua vez, iluminam o mundo e nossas cabeças brancas não passam de pequenos lampiões balançados pelo vento (SARTRE, 1976SARTRE, J.-P. Orphée Noir. In: SARTRE, J.-P. Situations III. Paris: Gallimard, 1976. p. 229-286., p. 229)10 10 O olhar em “Orfeu negro” é o objeto do artigo de Thiago Rodrigues (2016); para uma consideração do tema no conjunto da obra sartriana, ver o texto de Cléa Gois e Silva (1996). .

A partir daí a aproximação de Fanon com a filosofia sartriana se torna explícita11 11 Ronald Santoni (2003, p. 68) ilustra com muita justiça a proximidade entre os pensamentos de Fanon e de Sartre em torno de um conceito absolutamente fundamental para ambos, a saber, a liberdade: “Fanon, claramente, seguindo Sartre, compreende a realidade humana como liberdade, afirma a liberdade tanto a nível ontológico quanto existencial/social como o valor mais elevado da realidade humana, e considera o racismo, o colonialismo ou qualquer opressão da liberdade humana como violência flagrante - ou seja, como no início de Sartre, a violação da realidade humana como liberdade”. . Um exemplo é a presença do filósofo francês em Pele nega, máscaras brancas, de 1952. Com efeito, nesse livro, o nome de Sartre só não aparece no capítulo “O negro e o reconhecimento”, no qual o autor divide a sua atenção entre Adler e Hegel. No entanto, embora quase sempre as passagens sartrianas sirvam para corroborar com as análises de Fanon, não se trata de mero uso instrumental ou de uma recepção acrítica, o que fica demonstrado justamente nas páginas dedicadas ao “Orfeu negro” (cf. FANON, 2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Trad. S. Nascimento. Rio de Janeiro: UBU, 2020., p. 146-152). Outra amostra dessa relação de proximidade pode ser encontrada na publicação de longos trechos do último capítulo de L’an V de la révolution algérienne na revista Les Temps Modernes12 12 No verão de 1960, Frantz Fanon encontra-se com Claude Lanzmann e Marcel Péju, da equipe de Les Temps Modernes. Estes o descrevem falando de seu sonho “absolutamente visionário e unitário para toda a negritude” (COHEN-SOLAL, 2008, p. 489). No ano seguinte, Fanon publicará nas páginas da revista de Sartre o artigo “De la violence”. Sobre as relações mais recentes do periódico com o pensador martiniquense, lembramos que entre 2005 e 2006, por ocasião dos 80 anos do nascimento de Fanon, Les Temps Modernes dedicou-lhe um dossiê com contribuições de Claude Lazmann, Robert Yung, Jean Khalfa, Albert James Arnold, Azzedine Haddour e Bryan Cheyette. .

Mas só no verão de 1961 os dois se conhecem pessoalmente, em Roma, quando a saúde de Fanon já definhava. No segundo volume de A força das coisas, Simone de Beauvoir registra a própria impressão sobre o martiniquense, uma percepção, podemos facilmente intuir, compartilhada por Sartre: “De uma inteligência aguda, intensamente vivo, mas de humor sombrio, explicava, brincava, interpelava, imitava, descrevia, tornava presente tudo o que evocava” (BEAUVOIR, 1972BEAUVOIR, S. La force des choses II. Paris: Gallimard Education, 1972., p. 421). Antes do encontro, porém, Fanon já havia terminado Os condenados da terra e escrito ao seu editor, François Maspero, em 7 de abril daquele mesmo ano, pedindo-lhe que convidasse Jean-Paul Sartre para prefaciá-lo. Diz a hoje bem conhecida missiva:

Meu estado de saúde tem melhorado um pouco, resolvi assim mesmo escrever alguma coisa. É preciso dizer que fui levado a isso pela insistência dos nossos [correligionários]... Peço-lhe, na certeza de que serei atendido, para apressar a edição deste livro... Peça a Sartre para me prefaciar. Diga-lhe que toda vez que sento à minha mesa, penso nele. Nele, que escreve coisas tão importantes para o nosso futuro, mas não encontra por aí leitores que ainda saibam ler e, por aqui, simplesmente leitores (FANON, 2018FANON, F. Écrits sur l’aliénation et la liberte. Éd. J. Khalfa et R. Young. Paris: La Découverte, 2018., p. 686).

Se tudo isso resume parte das condições para o aparecimento do “Prefácio”, resta agora tomá-lo nas mãos e examiná-lo décadas depois de sua redação e, o mais importante, observar os elementos que, nele, nos ajudam a pensar o nosso próprio tempo. É nesse sentido que o nosso recorte aborda diretamente duas questões imprescindíveis para compreender o contexto político atual, a saber, o problema do reconhecimento de diferentes atores em um cenário que se torna cada vez mais complexo e, depois, a crítica ao formalismo de certos discursos que, ao final, se reduzem a meras expressões daquilo que Paul Thibaud (1980)THIBAUD, P. Droit et politique. Ésprit, v. 29, n. 3, p. 3-21, 1980. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/i24267125.
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chamou de “autossatisfação ocidental”13 13 A tendência à “autossatisfação ocidental”, denunciada por Thibaud (1980, p. 9), vem descrita como a seguinte postura: “O dedo apontado para Moscou (eventualmente para Teerã); vejam como eles são feios e bárbaros! É verdade, mas é pouco, isso só pode produzir, em nome do mal menor, uma tendência a silenciar sobre os atentados aos direitos e sobre os crimes do Ocidente”. . Em ambas, o problema da violência assume um lugar central.

“Nessas trevas de onde vai surgir uma outra aurora, os zumbis sois vós”

O contorno imediato dos textos com os quais lidamos é, evidentemente, a guerra pela independência da Argélia. No entanto, mais do que a libertação de um determinado território, tanto Fanon quanto Sartre estão convencidos de que se trata, na verdade, da tarefa de sepultar as relações violentas e racistas constitutivas do colonialismo europeu. Como Sartre faz questão de registrar já no início do “Prefácio”, “Tudo se acabou” (SARTRE, 2002SARTRE, J.-P. Préface. In: FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002. p. 17-36., p. 17), e a cifra definitiva disso está não somente nas vozes “amarelas e negras” que agora se fazem ouvir - pois, de fato, há tempos elas se erguem em expressões de lamento -, trata-se muito mais, para o europeu, de escutar a palavra de um “africano, homem do Terceiro Mundo, ex-colonizado”, que não se limita a apontar a inconsistência dos valores ocidentais diante da situação dos povos colonizados, mas diagnostica a situação de uma Europa que se precipita no abismo que ela mesma criou em sua “falsa ‘aventura espiritual’” (SARTRE, 2002SARTRE, J.-P. Préface. In: FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002. p. 17-36., p. 18)14 14 Sobre o lugar do “Prefácio” no conjunto da obra sartriana, quer por seu tema, quer por seu estilo, Annie Cohen-Solal chega a afirmar que “O prefácio de Sartre para Os condenados da terra de Fanon merece destaque entre seus textos mais furiosamente partidários do Terceiro Mundo. Algumas frases e divisas persistem, nessa linguagem literária, nesse estilo essencialmente escrito que marcam, daí por diante, as novas produções sartrianas” (COHEN-SOLAL, 2008, p. 491). .

O caráter circunscrito do nosso objetivo permite-nos negligenciar alguns aspectos, mesmo importantes, da análise de um prefácio e considerar o texto sartriano como escrito “independente”. E nesse caso, temos de reconhecer, não fazemos nada de novo, pois, como diz Alice Cherki (2002CHERKI, A. Préface à l’édition de 2002. In: FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte/Poche, 2002. p. 5-15., p. 11), “o belo prefácio de Sartre [...] foi, ao que parece, mais lido ao longo dos anos do que o corpo do texto [de Fanon]”. O signo mais nítido dessa “independência” do “Prefácio” em relação ao livro pode ser visto na diferença dos destinatários, pois, enquanto a obra de Fanon é, antes de tudo, uma “conversa” entre “homens colonizados”, o ensaio de Sartre se volta de forma direta e ácida a outro público, como observamos em um dos seus trechos mais lembrados. Vejamos:

Europeus, abri este livro, entrai nele. Depois de alguns passos na noite, vereis estrangeiros reunidos ao pé do fogo, aproximai-vos, escutai, eles discutem a sorte que reservam às vossas feitorias, aos mercenários que as defendem. Eles vos verão talvez, mas continuarão a falar entre si, sem mesmo baixar a voz. Essa indiferença fustiga o coração: os pais, criaturas das sombras, vossas criaturas, eram almas mortas, vós lhes dispensáveis a luz, eles só se dirigem a vós; um fogo os ilumina e aquece, e vós vos sentireis furtivos, noturnos, transidos; a cada um a sua vez; nessas trevas de onde vai surgir uma outra aurora, os zumbis sois vós (SARTRE, 2002SARTRE, J.-P. Préface. In: FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002. p. 17-36., p. 22).

A imagem é de uma eloquência invulgar e descreve um novo cenário. Trata-se, na verdade, do fim de uma época, aquela do colonialismo europeu, e o escrito sartriano propõe, desde o início, uma longa meditação sobre a relação dialética que liga colono e indígena (cf. MORNET, 2006MORNET, J. Sartre et Fanon. Commentaire à la préface de Jean-Paul Sartre pour Les damnés de la terre de Frantz Fanon. Vie Sociale et Traitements, v. 89, n. 1, p. 148-153, 2006. DOI: 10.3917/vst.089.0148. URL: https://www.cairn.info/revue-vie-sociale-et-traitements-2006-1-page-148.htm
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, p. 14). Em outras palavras, Sartre, armado de uma verdade “que ninguém gosta de dizer” (SARTRE, 2002SARTRE, J.-P. Préface. In: FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002. p. 17-36., p. 18), pede aos europeus que percebam a indiferença, que enxerguem as razões pelas quais eles não constituem o público de Frantz Fanon. Judith Butler realçou, com muita perspicácia, o ponto em questão ao mostrar que o “Prefácio” nos põe diante de um paradoxo, porque, exortando aos europeus que lhe deem ouvidos, “Sartre coloca os leitores brancos à distância, a uma distância na qual experimentam de modo imediato o status periférico”, ou seja, “o público branco não pode mais presumir que seja ele o alvo, que ele seja ainda o equivalente de todo leitor anônimo e, implicitamente, universal” (BUTLER, 2014BUTLER, J. Violence, non-violence : Sartre, à propos de Fanon. Actuel Marx, v. 55, p. 13-35, 2014., p. 15). Em suma, o filósofo apresenta ao seu destinatário uma nova constelação na qual o leitor branco e europeu perde seus privilégios. Sartre assume a tarefa de explicitar aquilo que o não endereçamento do livro significa para o colonizador: a desconstrução do privilégio racial15 15 Sobre esse aspecto, é interessante ver o trabalho de Deivison Faustino (2021). . Há outros leitores porque há outros.

Porém, Butler aponta para um argumento ainda mais fundamental, a saber, o fato de que na alegoria sartriana, o diálogo não só envolve os homens, antes, ele os constitui. O fato é que a colonização negou a todos os ancestrais daqueles estrangeiros ao pé da fogueira um tratamento humano. Dito de outro modo, a palavra nunca lhes foi dirigida em função de um certo reconhecimento, eles nunca foram vistos como homens, e, sem isso, quer dizer, sem a possibilidade de entrar no espaço do diálogo, nenhum ser humano pode de fato existir, ao menos não no espaço humano, a não ser como “zumbi”. É preciso, portanto, começar pela observação de que os colonizadores nunca se dirijam aos colonizados diretamente, negando-lhes, dessa forma, qualquer substância a ser reconhecida em uma relação de reciprocidade. Trata-se, então, daquilo que Orlando Patterson (1982)PATTERSON, O. Slavery and Social Death. London: Harvard University Press, 1982., por exemplo, invocando Hegel, chama de “morte social”. Ao colonizado, não restam senão duas possibilidades: “se resiste, os soldados atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um homem; a vergonha e o temor vão quebrar o seu caráter, desintegrar a sua personalidade” (SARTRE, 2002SARTRE, J.-P. Préface. In: FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002. p. 17-36., p. 24).

Ao colocar o colonizador diante da “escolha impossível” do colonizado, Sartre ressalta o caráter complexo da sua tarefa: convidar o europeu à leitura de um livro que não foi escrito para ele. O “Prefácio” oferece ao menos dois motivos para isso: em primeiro lugar, dá aos “metropolitanos” uma chance de se compreenderem; depois, porque Fanon “é o primeiro, desde Engels a recolocar em cena a parteira da história”, para alertar logo em seguida, “não creiam que um sangue demasiado ardente ou misérias da infância lhes tenha lhe dado não sei que gosto particular pela violência: ele se faz o intérprete da situação, nada mais” (SARTRE, 2002SARTRE, J.-P. Préface. In: FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002. p. 17-36., p. 23, grifo nosso). A tese que sustenta a argumentação do “Prefácio” reza então que o autoconhecimento oferecido pelo livro ao colonizador e o reconhecimento do papel da violência na colonização estão necessária e essencialmente imbricados, condicionando-se mutuamente.

Nesses dois argumentos complementares, Sartre defende que as feridas e as correntes dos colonizados refletem, na realidade, a imagem dos colonizadores; ao mesmo tempo que são reconhecidas como motores da história, uma vez que mobilizam uma lógica histórica que engendra a decadência do poder colonial. No primeiro caso, como já salientamos, as feridas dos colonizados refletem não só o poder europeu, mas também os limites do liberalismo ocidental, que se opõe à violência na mesma proporção com que apoia um modelo de Estado que a perpetra. No segundo caso, Sartre apontava para os sinais de uma lógica histórica que condiciona a ação dos colonizados quando estes se opõem ao colonialismo.

“O europeu só se fez homem fabricando escravos e monstros”

Sartre põe em relevo aquilo que Marcos Arantes (2011)ARANTES, M. Sartre e o humanismo racista europeu: uma leitura sartriana de Frantz Fanon. Sociologias, v. 13, n. 27, p. 382-409, 2011.DOI: https://doi.org/10.1590/S1517-45222011000200014.
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chamou de “Humanismo racista europeu”16 16 Para uma outra leitura da crítica sartriana ao humanismo, veja-se o artigo de André Yasbeck (2020). . Numa palavra, a contestação do imperialismo no Terceiro Mundo só é completa de fato se espelhar também uma crítica ao humanismo da empresa colonial (cf. SOLER; KAWAHALA, 2014, p. 143). O contrassenso da civilização ocidental finalmente se expõe em sua totalidade: os mesmos democratas, aqueles herdeiros do Esclarecimento e dos ideais da razão e da tolerância, reivindicam a liberdade na Europa e nos Estados Unidos, enquanto praticam a barbárie na Ásia, na África e na América Latina. Por isso, pode-se declarar que os defensores da justiça e da igualdade universal são os mesmos que escravizam os que são diferentes, justamente porque lhes interessa advogar em favor de ideias universais, esquecendo-se das especificidades e dos contornos de diferenças presentes em grupos sociais que não se enquadram sobretudo nos padrões hegemônicos dos paradigmas europeus ou estadunidenses (cf. SOLER; KAWAHALA, 2014, p. 143). A conclusão de Sartre é a descrição de uma situação incontornável: “Encaremos primeiramente este espetáculo inesperado: o strip-tease de nosso humanismo. Ei-lo inteiramente nu e não é nada belo: não era senão uma ideologia mentirosa, a requintada justificação de pilhagem; sua ternura e seu preciosismo caucionaram nossas agressões” (SARTRE, 2002SARTRE, J.-P. Préface. In: FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002. p. 17-36., p. 31)17 17 Vale a recordação das palavras de Raymond Bellour (1966, p. 11), quando sublinha, em Sartre, a condição de um “negador exemplar”, ou seja, de quem “realizou sozinho a viagem até os confins do humanismo” para negá-lo: “Tudo aquilo que acobertara, no fervor hipócrita e velado de sua linguagem, o humanismo clássico, Sartre, com a mais bela das violências e em todos os níveis, soube recusar”. .

Ao fim e ao cabo, entram em jogo os limites, devidamente evidenciados, do humanismo tradicional, que, para Sartre, constitui uma das bases sobre as quais se apoiava o colonialismo ocidental. Com efeito, reduzidos ao seu formalismo, os celebrados discursos humanistas do Ocidente não passam de ilusão enganadora, muitas vezes envoltos em impasses teóricos e, nos casos piores, tornados instrumentos ideológicos de opressão. Como afirmam François Châtelet e Évelyne Pisier-Kouchner (1983CHÂTELET, F.; PISIER-KOUCHNER, E. As concepções políticas do século XX. Trad. C. Coutinho e L. Konder. Rio de Janeiro: Zahar, 1983., p. 106), “quando muito, o humanismo servirá de pretexto para distinguir entre guerras justas e guerras injustas”. Fica claro, finalmente, o chão sobre o qual caminham os argumentos sartrianos. Diante dos sofrimentos causados pelo colonialismo, o ponto de vista do humanismo se revela profundamente ineficaz, pois já não basta considerar o sofrimento mantendo-se aferrado à esfera moral. Para falar de outra forma, as figuras históricas da violência não são superadas por “notas de repúdio” que na quase totalidade dos casos se restringem ao papel de ansiolíticos para as consciências dos signatários. “Sartre se inquieta abertamente com um humanismo liberal cego às condições políticas de um sofrimento condenável, com um humanismo que se opõe ao sofrimento a partir de bases morais deixando inteiramente inalteradas as condições políticas que incessantemente o regeneram” (BUTLER, 2014BUTLER, J. Violence, non-violence : Sartre, à propos de Fanon. Actuel Marx, v. 55, p. 13-35, 2014., p. 20)18 18 “Sartre posiciona-se no terreno não do protesto moral, mas da causa do Terceiro Mundo; ele considera que se abre, finalmente, uma terceira via que permite escapar do mundo binário da guerra fria. Ao lutarem pela própria emancipação, os povos tornam-se, em seu entender, portadores de um horizonte de salvação. Em 1961, ele escreveu seu famoso prefácio para o livro de Frantz Fanon Os condenados da terra: nesse texto, ele julga que a opinião manifestada por Fanon é aquela, saindo da sombra, dos países do Terceiro Mundo, os quais se introduzem na história. Ao terem em comum o dever de lutar contra a tirania colonial, eles encarnam a esperança revolucionária após o desastroso desfecho da Revolução de Outubro. [...] Para Sartre, a guerra contra o colonialismo não admite nenhuma condescendência e, em vez disso, deve apoiar a violência que se encontra inevitavelmente no bojo dessa causa [...]” (DOSSE, 2021, p. 382). .

Trata-se, então, de tomar os sofrimentos provocados pelo colonialismo situando-os politicamente, como fontes para novas ações políticas. É nesse sentido que os gestos de resistência dos colonizados devem ser vistos não apenas como atos criminosos, mas como “motores da história”. No seu conjunto, a violência não é compreendida por Sartre ou por Fanon como mero instrumento posto em movimento pelo processo colonizador, mas, se nos for permitido falar nestes termos, ela é a própria alma da colonização, entendida como aquilo que efetivamente a anima e lhe concede substância. É o que percebemos nas palavras de Fanon:

A violência que presidiu o arranjo do mundo colonial, que ritmou sem piedade a destruição das formas sociais indígenas, demoliu sem restrições os sistemas de referência da economia, os modos de aparência, de vestimenta, será reivindicada e assumida pelo colonizado no momento em que, decidindo ser a história em ato, a massa colonizada se precipitar sobre as cidades proibidas (FANON, 2002FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002., p. 44)19 19 Ao que acrescentará: “O aparecimento do colono significa sincreticamente morte da sociedade autóctone, letargia cultural, petrificação dos indivíduos. Para o colonizado, a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono. Essa é, portanto, a correspondência termo a termo dos dois raciocínios” (FANON, 2002, p. 51). .

As fórmulas de Fanon e Sartre diferem muito pouco, porquanto ambos advogam que a violência da insurreição colonial decorre da primazia da violência do Estado, fazendo da violência revolucionária um efeito secundário, circunscrito, de uma forma primeira de opressão violenta. Essa mesma ideia ecoa em Cahiers pour une morale, quando Sartre registra que “a primeira violência é sempre o outro a cometê-la” (SARTRE, 1983SARTRE, J.-P. Cahiers pour une morale. Paris: Editions NRF Gallimard, 1983., p. 192). Já, para Fanon, ela se dá ao mesmo tempo como necessidade psicossomática e condição incontornável das lutas de libertação. Na síntese de Renate Zahar (1970ZAHAR, R. L’oeuvre de Frantz Fanon. Paris: Maspero, 1970., p. 93), a violência aparece em Fanon como “realidade derivada e mediatizada pelo processo de exploração do colonialismo”20 20 Veja-se a respeito o texto de Jean Khalfa (2018). .

Nós tocamos aqui em um ponto particularmente complexo da argumentação do “Prefácio”. Grosso modo, o tema aparece nas palavras sartrianas à imagem de Jano, com uma face indicando a violência como condição para o humano no colonizado, e outra individuando o colonizador como principal sujeito da violência. De toda forma, a preocupação de Sartre parece ser a de sugerir uma explicação para a resistência violenta por parte dos colonizados, o que em certas passagens atravessa a teoria da absorção psicológica ou do mimetismo. É o que encontramos em trechos como o seguinte: “Que instintos? Os que compelem os escravos a massacrar o senhor? Como não reconhecer nisto a sua própria crueldade retornando contra ele?” (SARTRE, 2002SARTRE, J.-P. Préface. In: FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002. p. 17-36., p. 25). Conforme essa lógica, os colonizados simplesmente absorvem e recriam a violência sofrida, mas sem se tornarem aquilo que os colonos fizeram deles. Há, portanto, uma contradição que os colonizados são obrigados a viver, isto é, outra forma da “escolha impossível”, retomada agora em um nível diferente.

Explicita-se finalmente a natureza do problema: a realização do homem. Em mais de uma passagem Sartre desenvolve a ideia de que o “Europeu só se fez homem fabricando escravos e monstros” (SARTRE, 2002SARTRE, J.-P. Préface. In: FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002. p. 17-36., p. 32). Parece, desse modo, querer opor, ao tratar da violência, duas concepções diferentes do humano. De um lado, está o colonizado que esquece que é homem quando se torna violento, mas o tipo particular de homem que ele se torna depende dessa violência; de outro lado, temos o colono que por medo de perder seus privilégios, esquece que é homem, transforma-se em chicote e avança contra os que não considera humanos. A radicalidade de Sartre, porém, se mostra em toda a sua potência quando inverte totalmente a lógica dos humanistas, afirmando, sem meios termos, que, porquanto os colonizados só se fazem homens contra os europeus, estes devem ser vistos, em última instância, como verdadeiros inimigos do gênero humano.

Em movimento contíguo, Sartre critica também as grandes intuições em torno da não violência, o que não se dá sem o descrédito que lança sobre os argumentos de Camus, expostos, por exemplo, em textos como “Le socialisme des potences” e “Le pari de notre génération21 21 Dois importantes escritos de Camus publicados em Demain. “Le socialisme des potences” aparece no n. 63, (p. 21-27, fev. 1957), em resposta a uma pesquisa da revista italiana Tempo presente, de Ignazio Silone. Esse exercício oferece a Camus a ocasião para voltar ao papel do intelectual em tempos de crise, à sua concepção do engajamento, bem como às posições do Partido Comunista Francês diante dos movimentos no Leste Europeu. Esse artigo, lançado primeiro em italiano e logo em seguida em francês e inglês, traz para Camus algumas polêmicas. Já “Le pari de notre génération” apresenta uma entrevista para Jean Bloch-Michel no momento da recepção de Stockholm (n. 98, p. 24-30, out. 1957) e desenvolve as concepções camusianas sobre o papel do artista, abrindo espaço para algumas reflexões sobre a literatura pós-colonial: “Quero apenas lembrar que construímos, pela única virtude de um intercâmbio generoso e de uma verdadeira solidariedade, uma comunidade de escritores argelinos, franceses e árabes. Essa comunidade está, provisoriamente, dividida em duas. Mas homens como Feraoun, Mameri, Chraïbi, Dib e tantos outros, tomaram lugar entre os escritores europeus. Qualquer que seja o futuro, e por mais desesperador que ele me pareça, estou certo de que isso não pode ser esquecido”. Antes de precisar com muita clareza como ele mesmo concebe a sua posição quanto à guerra da Argélia: “Meu papel na Argélia nunca foi e nunca será o de dividir, mas o de reunir de acordo com meus meios. Sinto-me solidário com todos aqueles, franceses ou árabes, que hoje sofrem na desgraça do meu país. Mas não posso, sozinho, refazer o que tantos homens estão se esforçando para destruir. Eu fiz o que pude. Recomeçarei quando houver de novo uma chance de ajudar a reconstituição de uma Argélia livre de todo ódio e de todo racismo”. Por último, Herbert Lottman (2013, p. 917) traz anotações de Albert Camus, registradas em fevereiro de 1957, nas quais o pensador franco-argelino expõe a medida definitiva do próprio mal-estar: “Decidi calar-me no que diz respeito à Argélia, a fim de não aumentar seu infortúnio, nem as sandices que se escrevem a seu respeito [...]. Minha posição não mudou sobre esse ponto, e se posso entender e admirar o combatente pela liberdade, nada tenho além de nojo diante do assassino de mulheres e crianças”. . É o que vemos, por exemplo, nestas afirmações:

Eles têm boa cara, os não violentos: nem vítimas, nem verdugos! Vamos! Se vocês não são vítimas, quando o governo que aceitaram em plebiscito, quando o exército em que serviram os vossos irmãos, sem hesitação nem remorso, empreenderam um “genocídio”, vocês são indubitavelmente os seus verdugos. [...] Compreendam isto de uma vez: se a violência tivesse começado essa noite, se a exploração e a opressão não tivessem existido nunca sobre a terra, talvez a apregoada “não-violência” pudesse pôr termo à querela. Mas se o regime inteiro e até as suas ideias sobre a não violência estão condicionados por uma opressão milenária, a sua passividade não serve senão para os alienar do lado dos opressores (SARTRE, 2002SARTRE, J.-P. Préface. In: FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002. p. 17-36., p. 31-32).

Considerações finais

Nossa leitura quis levantar alguns aspectos fundamentais à compreensão do contexto político atual a partir do “Prefácio” de Sartre para Os condenados da terra.

Em primeiro lugar, apontamos para o valor fundamental do reconhecimento de novos atores num cenário cada vez mais complexo. O livro de Fanon e o prefácio de Sartre são textos circunscritos aos eventos e às repercussões políticas da guerra da Argélia, o que não significa que o que dizem a respeito do reconhecimento de sujeitos diferentes tenha perdido sua atualidade, antes o contrário.

Em segundo lugar, veio à tona a reflexão sobre o “humanismo” e as insuficiências do discurso humanista racista da tradição europeia. Porquanto o próprio Sartre, em O existencialismo é um humanismo, associa-se, de certa forma, ao termo humanismo, é importante notar sua crítica ao modelo sustentado pelas “belas almas racistas” dos partidários da política colonialista22 22 Como salienta Yasbek (2020, p. 89): “se para Sartre o ‘existencialismo é um humanismo’ [...] resta que uma tal posição é conquistada ao cabo de uma tarefa crítica que, sob o impacto da violência organizada da guerra, se opõe ao edificante discurso da ‘humanidade do homem’ [...] contrapondo ‘humanismo’ a ‘humanismo’: se não escapa às críticas que lhe serão endereçadas por Foucault [...], de outra parte encontra na recusa e na negação determinada da idealidade clássica do ‘homem’, com suas mistificações de direito, a chave de inteligibilidade de suas exigências práticas”. . Para Sartre, está em jogo o enfrentamento de tudo o que impede a realização do humano, não da busca de uma imagem ou de uma suposta natureza, mas da efetiva construção das condições nas quais o homem, “condenado a ser livre”, possa determinar a própria liberdade23 23 Sobre a liberdade em Sartre a bibliografia é extensíssima, aqui, nós nos limitamos à bela elaboração de Katherine Morris (2009, p. 177): “Dizer que a palavra ‘liberdade’ é ambígua no uso de Sartre não é, em minha opinião, totalmente correto. A ambiguidade importante em questão é existencial, e não semântica, e reside na ambiguidade da própria realidade humana, a qual ‘é o que não é e não é o que é’, ou seja, é tanto facticidade quanto transcendência em uma relação inextrincável”. .

Em terceiro lugar, enquanto a colonização, entendida como processo de desumanização, se dá no terreno da história, isto é, da ação - portanto, da política -, é neste mesmo domínio que ela deve ser confrontada. Todos os trabalhos de Fanon são profundamente marcados por essa convicção.

Por fim, a violência é tomada em sua complexidade. No quadro imposto pelo colonialismo, ela não apenas muda de sentido, mas chega mesmo a tornar-se a única capaz de cicatrizar as feridas que abriu (cf. SARTRE, 2002SARTRE, J.-P. Préface. In: FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002. p. 17-36., p. 34-36). Em outros termos, aquela que pode devolver a humanidade àqueles que desumanizou.

Com certeza, no Prefácio, Sartre parece estar ciente do niilismo, da intenção de destruição humana, das consequências anticoexistenciais, das “reciprocidades desfeitas”, dos efeitos cortantes, das internalizações da violência na consciência do Outro, que ele viu antes como parte da matriz da violência. Mas fica claro no Prefácio, como na Critique, que para o nativo oprimido, colonizado, é a contraviolência que “coloca as coisas”: a violência é a afirmação de sua liberdade ontológica contra a degradação, a alienação, a “necessidade” e a sub-humanidade (SANTONI, 2003SANTONI, R. Sartre on violence. Curiously ambivalent. Pennsylvania: Pennsylvania University Press, 2003., p. 74).

Passadas décadas da publicação do livro, é fácil reconhecer que a composição geopolítica que emoldura alguns dos argumentos de Fanon foi profundamente transformada, haja vista, limitando-nos a exemplos inquestionáveis, a superação do cenário da Guerra Fria e da política colonial. No entanto, e isso aparece claro tanto em Pele negra, máscaras brancas quanto em Os condenados da terra, a visão de Fanon atravessa o racismo e o colonialismo, e isso porque um e outro se mostram não como fenômenos opacos, rígidos, mas diáfanos, dinâmicos, ao mesmo tempo mascarando e revelando as formas de relação social nas quais não é possível surgir o humano.

A interpretação de Fanon repousa sobre as contradições constitutivas do colonialismo, isto é, o fato de que a violência da política colonialista engendra a sua superação (cf. FANON, 2021FANON, F. Escritos políticos. Trad. M. Stahel. São Paulo: Boitempo, 2021., p. 116). A nosso ver, é precisamente aqui que o pensamento de Fanon e os argumentos de Sartre adquirem uma “infeliz” atualidade, pois o período pós-colonial não foi capaz de se desfazer de alguns dos traços mais desumanos do colonialismo e do racismo ou, de forma mais simples, do racismo colonial24 24 Sobre a presença do pensamento de Fanon no contexto pós-colonial, ver, por exemplo, os trabalhos de María José (2001), Nigel Gibson (2003), Pramod K. Nayar (2011) e Azzedine Haddour (2006). . Nessa altura, vale retomar as palavras de Aimé Césaire, citadas de memória por Fanon em Pele negra, máscaras brancas (2020, p. 104-105):

Quando giro o botão de meu rádio e escuto que nos Estados Unidos os negros são linchados, digo que mentiram para nós: Hitler não está morto; quando giro o botão de meu rádio e fico sabendo que os judeus são insultados, desprezados, pogromizados, digo que mentiram para nós: Hitler não está morto; quando giro, enfim, o botão do meu rádio e ouço dizerem que, na África, o trabalho forçado está instituído, legalizado, digo que, verdadeiramente, mentiram para nós: Hitler não está morto.

Trata-se de um discurso proferido em 1945 e anotado por Fanon em 1952, o que explica a necessidade de atualização dos meios, infelizmente não das notícias. Desgraçadamente, todos os exemplos postos por Césaire ainda desfrutam de muita relevância, isto é, nos remetem a tantas outras situações igualmente dramáticas.

Enfim, se, no ocaso do século passado, alguém como Francis Fukuyama pôde saudar o fim da história na figura da democracia liberal, os primeiros decênios do século XXI mostram que, na história, toda vitória é precária, que direitos até bem pouco tempo tidos como definitivamente assegurados tornaram-se de novo objeto de luta. Logo, neste mundo “pós-colonial”, os reclames sartrianos se revestem de urgência, porque novamente se mostra em sua nudez a insuficiência do humanismo tradicional diante da dramaticidade da história humana, e ainda, o que é particularmente incômodo, o fato de que diante da barbárie, sob qualquer forma, inclusive legalizada, ou se é vítima ou se é cúmplice.

  • 1 Pesquisa vinculada ao Núcleo de Estudos “Violência, Democracia e Direitos Humanos” - CNPq - Processo 409234/2022-2.
  • 1 Para uma apresentação do “Prefácio” sartriano, remetemos o leitor aos estudos de Joseph Mornet (2006)MORNET, J. Sartre et Fanon. Commentaire à la préface de Jean-Paul Sartre pour Les damnés de la terre de Frantz Fanon. Vie Sociale et Traitements, v. 89, n. 1, p. 148-153, 2006. DOI: 10.3917/vst.089.0148. URL: https://www.cairn.info/revue-vie-sociale-et-traitements-2006-1-page-148.htm
    https://www.cairn.info/revue-vie-sociale...
    e Grégory Cormann (2015)CORMANN, G. Se récapituler au futur: Sartre e Fanon, l’enjeu d’une préface. Les Temps modernes, n. 686, p. 105-134, 2015.. Sobre as relações entre Sartre e Fanon, há já uma extensa bibliografia, contudo, aqui, limitamo-nos a indicar os trabalhos de Rodrigo Diaz de Vivar y Soler e Edelu Kawahala (2014VIVAR Y SOLER, R.; KAWAHALA, E. Sartre leitor de Fanon: implicações éticas e políticas das lutas pós-coloniais. Pesquisas e Princípios Psicossociais, v. 9, n. 1, p. 142-146, 2014. Disponível em: http://www.seer.ufsj.edu.br/revista_ppp/article/view/840.
    http://www.seer.ufsj.edu.br/revista_ppp/...
    ), Deivison Faustino (2020)FAUSTINO, D. Sartre, Fanon e a dialética da negritude: diálogos abertos e ainda pertinentes. Entrelinhas, Araguaína, v. 11, n. 2, p. 74-101, mai./ago. 2020., Edoardo Raimondi (2020)RAIMONDI, E. (Ri)leggere I danatti della terra: Jean-Paul Sartre e Franz Fanon 58 anni dopo. In: GRIMALDI, G.; LUCCHETTA, G. A. (ed.). Itinerari 1. Lo sguardo di Calibano. Studi per una semiotica post-coloniale. Milano: Mimesis, 2020. p. 233-246. e David Mitchell (2020)MITCHELL, D. Sartre and Fanon: The Phenomenological Problem of Shame and the Experience of Race. Journal of the British Society for Phenomenology, v. 51, n. 4, p. 352-365, 2020. DOI: https://doi.org/10.1080/00071773.2020.1732577.
    https://doi.org/10.1080/00071773.2020.17...
    .
  • 2 Para explicar o que se esconde na expressão “retorno a Sartre” e, ao mesmo tempo, compreender a situação geral que parece cercar o autor de O ser e o nada, podemos nos valer desta passagem do psicanalista italiano Massimo Recalcati (2021RECALCATI, M. Ritorno a Jean-Paul Sartre. Esistenza, infanzia e Desiderio. Torino: Einaudi, 2021., p. VII): “No pensamento filosófico e cultural contemporâneo, Sartre aparece como um ‘cachorro morto’. Se a sua figura intelectual e a sua obra literária e filosófica constituíram nos anos sucessivos à Segunda Guerra mundial uma verdadeira hegemonia cultural, hoje parecem lançadas no esquecimento. A radicalização do pensamento de Heidegger sobre o problema do Ser, de um lado, e a afirmação do estruturalismo, do outro, tiraram o terreno propício à vocação humanista do seu pensamento. Depois do estruturalismo, a cena cultural e filosófica, com exceção significativa de Lacan, deixou para trás o problema do sujeito tão caro ao existencialismo sartriano”.
  • 3 Um dos passos mais conhecidos do “Prefácio” demonstra bem o caráter polêmico dos seus argumentos: “Abater um europeu é matar dois coelhos com uma só cajadada, suprimir para sempre um opressor e um oprimido: ficam assim um homem morto e um homem livre; o sobrevivente, pela primeira vez, sente um solo nacional sob a sola dos seus pés” (SARTRE, 2002SARTRE, J.-P. Préface. In: FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002. p. 17-36., p. 29).
  • 4 Não tanto sobre o papel de Sartre na Guerra da Argélia, mas muito mais sobre o papel deste evento na vida do filósofo, é interessante recordar as declarações de Roland Dumas: “A guerra da Argélia foi a guerra dele [...]. No fundo, Sartre não se envolveu na Revolução Espanhola, nem na Frente popular. A resistência? Sim, mas tão pouco... Perdeu, portanto, todos os grandes acontecimentos políticos de seu tempo, menos esse, o da guerra da Argélia. Que foi, de certo modo, o encontro de uma grande causa com uma grande personalidade” (DUMAS apud COHEN-SOLAL, 2008COHEN-SOLAL, A. Sartre. Uma biografia. Porto Alegre: L&PM, 2008., p. 498). Uma abordagem muito interessante das relações de Sartre com a guerra da Argélia pode ser encontrada no artigo de Ian Birchall (2021)BIRCHALL, I. How Jean-Paul Sartre and Les Temps Modernes Supported Algeria’s Struggle for Freedom. Jacobin, 25 de março de 2021. Disponível em: https://jacobinmag.com/2021/03/jean-paul-sartre-algerian-war-les-temps-modernes-journal/. Acesso em: 7 nov. 2021.
    https://jacobinmag.com/2021/03/jean-paul...
    .
  • 5 Para uma aproximação da “atmosfera” que presidiu a redação de Os condenados da terra, conferir Khalfa (2021)KHALFA, J. Introdução. In: FANON, F. Escritos políticos. Trad. M. Stahel. São Paulo: Boitempo, 2021. p. 24-28..
  • 6 Sobre Fanon, cf. o trabalho de Alice Cherki (2000)CHERKI, A. Frantz Fanon, portrait. Paris: Seuil, 2000.. No que concerne à recepção da obra, vale a síntese de Cohen-Solal (2008COHEN-SOLAL, A. Sartre. Uma biografia. Porto Alegre: L&PM, 2008., p. 492): “Os condenados da terra é traduzido para dezessete línguas e alcança uma tiragem de mais de um milhão de exemplares. Intervém no debate ideológico numa fase politicamente sensível [...] e se apresenta sob a forma de impressão patética: é, de certo modo, o testamento político de um homem que vai morrer”.
  • 7 Ver também o livro de Nilson Gabriel (2021GABRIEL, N. L. D. A liberdade em Frantz Fanon: a existência aos olhos dos condenados. Guarapuava: Apolodoro, 2021., p. 25-85).
  • 8 Chega a afirmar o seguinte: “Certas páginas de Reflexões sobre a questão judaica são das mais belas que já lemos. Das mais belas porque o problema que expressam nos agarra pelas entranhas” (FANON, 2020FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Trad. S. Nascimento. Rio de Janeiro: UBU, 2020., p. 193).
  • 9 Sobre a Anthologie de Senghor, veja-se o artigo de Dominique Ranaivoson (2010RANAIVOSON, D. L’Anthologie de Senghor comme manifeste. Études littéraires Africaines, n. 29, p. 20-27, 2010. DOI: https://doi.org/10.7202/1027492ar.
    https://doi.org/10.7202/1027492ar...
    , p. 20-27).
  • 10 O olhar em “Orfeu negro” é o objeto do artigo de Thiago Rodrigues (2016)RODRIGUES, T. O outro me olha: uma apresentação ao ensaio “Orfeu negro” de Jean-Paul Sartre. Revista Da Associação Brasileira De Pesquisadores/as Negros/As (ABPN), v. 8, n. 18, p. 371-381, 2016. Disponível em: https://abpnrevista.org.br/site/article/view/56.
    https://abpnrevista.org.br/site/article/...
    ; para uma consideração do tema no conjunto da obra sartriana, ver o texto de Cléa Gois e Silva (1996)GOIS E SILVA, C. Sartre: a questão do outro: o olhar. Revista Brasileira de Filosofia, v. 184, p. 469-474, 1996..
  • 11 Ronald Santoni (2003SANTONI, R. Sartre on violence. Curiously ambivalent. Pennsylvania: Pennsylvania University Press, 2003., p. 68) ilustra com muita justiça a proximidade entre os pensamentos de Fanon e de Sartre em torno de um conceito absolutamente fundamental para ambos, a saber, a liberdade: “Fanon, claramente, seguindo Sartre, compreende a realidade humana como liberdade, afirma a liberdade tanto a nível ontológico quanto existencial/social como o valor mais elevado da realidade humana, e considera o racismo, o colonialismo ou qualquer opressão da liberdade humana como violência flagrante - ou seja, como no início de Sartre, a violação da realidade humana como liberdade”.
  • 12 No verão de 1960, Frantz Fanon encontra-se com Claude Lanzmann e Marcel Péju, da equipe de Les Temps Modernes. Estes o descrevem falando de seu sonho “absolutamente visionário e unitário para toda a negritude” (COHEN-SOLAL, 2008COHEN-SOLAL, A. Sartre. Uma biografia. Porto Alegre: L&PM, 2008., p. 489). No ano seguinte, Fanon publicará nas páginas da revista de Sartre o artigo “De la violence”. Sobre as relações mais recentes do periódico com o pensador martiniquense, lembramos que entre 2005 e 2006, por ocasião dos 80 anos do nascimento de Fanon, Les Temps Modernes dedicou-lhe um dossiê com contribuições de Claude Lazmann, Robert Yung, Jean Khalfa, Albert James Arnold, Azzedine Haddour e Bryan Cheyette.
  • 13 A tendência à “autossatisfação ocidental”, denunciada por Thibaud (1980THIBAUD, P. Droit et politique. Ésprit, v. 29, n. 3, p. 3-21, 1980. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/i24267125.
    https://www.jstor.org/stable/i24267125...
    , p. 9), vem descrita como a seguinte postura: “O dedo apontado para Moscou (eventualmente para Teerã); vejam como eles são feios e bárbaros! É verdade, mas é pouco, isso só pode produzir, em nome do mal menor, uma tendência a silenciar sobre os atentados aos direitos e sobre os crimes do Ocidente”.
  • 14 Sobre o lugar do “Prefácio” no conjunto da obra sartriana, quer por seu tema, quer por seu estilo, Annie Cohen-Solal chega a afirmar que “O prefácio de Sartre para Os condenados da terra de Fanon merece destaque entre seus textos mais furiosamente partidários do Terceiro Mundo. Algumas frases e divisas persistem, nessa linguagem literária, nesse estilo essencialmente escrito que marcam, daí por diante, as novas produções sartrianas” (COHEN-SOLAL, 2008COHEN-SOLAL, A. Sartre. Uma biografia. Porto Alegre: L&PM, 2008., p. 491).
  • 15 Sobre esse aspecto, é interessante ver o trabalho de Deivison Faustino (2021)FAUSTINO, D. A “interdição do reconhecimento” em Frantz Fanon: a negação colonial, a dialética hegeliana e a apropriação calibanizada dos cânones ocidentais. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba: Editora PUCPRESS, v. 33, n. 59, p. 455-481, 2021. DOI: https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.059.DS07.
    https://doi.org/10.7213/1980-5934.33.059...
    .
  • 16 Para uma outra leitura da crítica sartriana ao humanismo, veja-se o artigo de André Yasbeck (2020YAZBEK, A. Sartre contra o humanismo: negatividade e violência. Kalagatos, v. 17, n. 2, 2020, 86-101. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/kalagatos/article/view/7158.
    https://revistas.uece.br/index.php/kalag...
    ).
  • 17 Vale a recordação das palavras de Raymond Bellour (1966BELLOUR, R. Homme pour homme. Jean-Paul Sartre. L’arc, n. 30, p. 10-14, 1966., p. 11), quando sublinha, em Sartre, a condição de um “negador exemplar”, ou seja, de quem “realizou sozinho a viagem até os confins do humanismo” para negá-lo: “Tudo aquilo que acobertara, no fervor hipócrita e velado de sua linguagem, o humanismo clássico, Sartre, com a mais bela das violências e em todos os níveis, soube recusar”.
  • 18 “Sartre posiciona-se no terreno não do protesto moral, mas da causa do Terceiro Mundo; ele considera que se abre, finalmente, uma terceira via que permite escapar do mundo binário da guerra fria. Ao lutarem pela própria emancipação, os povos tornam-se, em seu entender, portadores de um horizonte de salvação. Em 1961, ele escreveu seu famoso prefácio para o livro de Frantz Fanon Os condenados da terra: nesse texto, ele julga que a opinião manifestada por Fanon é aquela, saindo da sombra, dos países do Terceiro Mundo, os quais se introduzem na história. Ao terem em comum o dever de lutar contra a tirania colonial, eles encarnam a esperança revolucionária após o desastroso desfecho da Revolução de Outubro. [...] Para Sartre, a guerra contra o colonialismo não admite nenhuma condescendência e, em vez disso, deve apoiar a violência que se encontra inevitavelmente no bojo dessa causa [...]” (DOSSE, 2021DOSSE, F. A saga dos intelectuais franceses. Vol. 1. A prova da história (1944-1968). Trad. J. Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2021., p. 382).
  • 19 Ao que acrescentará: “O aparecimento do colono significa sincreticamente morte da sociedade autóctone, letargia cultural, petrificação dos indivíduos. Para o colonizado, a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono. Essa é, portanto, a correspondência termo a termo dos dois raciocínios” (FANON, 2002FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002., p. 51).
  • 20 Veja-se a respeito o texto de Jean Khalfa (2018)KHALFA, J. Éthique et violence chez Frantz Fanon. Les Temps Modernes, n. 698, 2, p. 51-69, 2018..
  • 21 Dois importantes escritos de Camus publicados em Demain. “Le socialisme des potences” aparece no n. 63, (p. 21-27, fev. 1957), em resposta a uma pesquisa da revista italiana Tempo presente, de Ignazio Silone. Esse exercício oferece a Camus a ocasião para voltar ao papel do intelectual em tempos de crise, à sua concepção do engajamento, bem como às posições do Partido Comunista Francês diante dos movimentos no Leste Europeu. Esse artigo, lançado primeiro em italiano e logo em seguida em francês e inglês, traz para Camus algumas polêmicas. Já “Le pari de notre génération” apresenta uma entrevista para Jean Bloch-Michel no momento da recepção de Stockholm (n. 98, p. 24-30, out. 1957) e desenvolve as concepções camusianas sobre o papel do artista, abrindo espaço para algumas reflexões sobre a literatura pós-colonial: “Quero apenas lembrar que construímos, pela única virtude de um intercâmbio generoso e de uma verdadeira solidariedade, uma comunidade de escritores argelinos, franceses e árabes. Essa comunidade está, provisoriamente, dividida em duas. Mas homens como Feraoun, Mameri, Chraïbi, Dib e tantos outros, tomaram lugar entre os escritores europeus. Qualquer que seja o futuro, e por mais desesperador que ele me pareça, estou certo de que isso não pode ser esquecido”. Antes de precisar com muita clareza como ele mesmo concebe a sua posição quanto à guerra da Argélia: “Meu papel na Argélia nunca foi e nunca será o de dividir, mas o de reunir de acordo com meus meios. Sinto-me solidário com todos aqueles, franceses ou árabes, que hoje sofrem na desgraça do meu país. Mas não posso, sozinho, refazer o que tantos homens estão se esforçando para destruir. Eu fiz o que pude. Recomeçarei quando houver de novo uma chance de ajudar a reconstituição de uma Argélia livre de todo ódio e de todo racismo”. Por último, Herbert Lottman (2013LOTTMAN, H. Camus. Paris: Cherche Midi, 2013., p. 917) traz anotações de Albert Camus, registradas em fevereiro de 1957, nas quais o pensador franco-argelino expõe a medida definitiva do próprio mal-estar: “Decidi calar-me no que diz respeito à Argélia, a fim de não aumentar seu infortúnio, nem as sandices que se escrevem a seu respeito [...]. Minha posição não mudou sobre esse ponto, e se posso entender e admirar o combatente pela liberdade, nada tenho além de nojo diante do assassino de mulheres e crianças”.
  • 22 Como salienta Yasbek (2020YAZBEK, A. Sartre contra o humanismo: negatividade e violência. Kalagatos, v. 17, n. 2, 2020, 86-101. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/kalagatos/article/view/7158.
    https://revistas.uece.br/index.php/kalag...
    , p. 89): “se para Sartre o ‘existencialismo é um humanismo’ [...] resta que uma tal posição é conquistada ao cabo de uma tarefa crítica que, sob o impacto da violência organizada da guerra, se opõe ao edificante discurso da ‘humanidade do homem’ [...] contrapondo ‘humanismo’ a ‘humanismo’: se não escapa às críticas que lhe serão endereçadas por Foucault [...], de outra parte encontra na recusa e na negação determinada da idealidade clássica do ‘homem’, com suas mistificações de direito, a chave de inteligibilidade de suas exigências práticas”.
  • 23 Sobre a liberdade em Sartre a bibliografia é extensíssima, aqui, nós nos limitamos à bela elaboração de Katherine Morris (2009MORRIS, K. Sartre. Trad. E. Marques. Porto Alegre: Artmed, 2009., p. 177): “Dizer que a palavra ‘liberdade’ é ambígua no uso de Sartre não é, em minha opinião, totalmente correto. A ambiguidade importante em questão é existencial, e não semântica, e reside na ambiguidade da própria realidade humana, a qual ‘é o que não é e não é o que é’, ou seja, é tanto facticidade quanto transcendência em uma relação inextrincável”.
  • 24 Sobre a presença do pensamento de Fanon no contexto pós-colonial, ver, por exemplo, os trabalhos de María José (2001), Nigel Gibson (2003)NIGEL, G. Fanon: The Postcolonial Imagination. Polity: London, 2003., Pramod K. Nayar (2011)NAYAR, P. Frantz Fanon: Toward a Postcolonial Humanism. The IUP Journal of Commonwealth Literature, v. III, n. 1, p. 21-35, 2011. Disponível em: https://iupindia.in/111/IJCwlit_Frantz_Fanon_21.html.
    https://iupindia.in/111/IJCwlit_Frantz_F...
    e Azzedine Haddour (2006)HADDOUR, A. Fanon dans la théorie postcoloniale. Les Temps Modernes, n. 635-636, p. 136-158, 2006..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2022
  • Aceito
    17 Mar 2023
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