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Resenha

KUHN, T. The Last Writings of Thomas S. Kuhn: Incommensurability in Science. Chicago: University of Chicago Press, 2022

Os escritos reunidos neste livro dividem-se em duas partes. A primeira parte é composta por dois textos ministrados no âmbito de conferências. A segunda parte é o livro inacabado de Thomas Kuhn, A Pluralidade dos Mundos: uma Teoria Evolucionista do Desenvolvimento Científico.

Os textos das conferências são “Scientific Knowledge as Historical Product” e “The Presence of Past Science”. O primeiro texto corresponde à conferência realizada em Tóquio, em 1986. O segundo texto corresponde à conferência Shearman Lectures, realizada em Londres, em 1987. Esta conferência é constituída por três lições: “Regaining the Past”, “Portraying the Past” e “Embodying the Past”. Por sua vez, o livro inacabado de Kuhn, A Pluralidade, é um manuscrito que estava a ser redigido aquando do seu falecimento. Quer a conferência Shearman, quer o livro A Pluralidade, são precedidos de sumários longos.

O sumário longo d’A Pluralidade é um texto extremamente valioso, porque permite obtermos uma noção precisa do projecto editorial d’A Pluralidade e das respectivas lacunas no material agora publicado. Kuhn tinha previsto redigir nove capítulos, um epílogo e um apêndice. O material agora publicado cobre os seis primeiros capítulos, sendo que o capítulo 6 está bastante inacabado. Note-se que A Pluralidade não é um texto fragmentário. Exceptuando o capítulo 6, os textos apresentados estão aparentemente completos.

De acordo com a Introdução do editor ao livro, Bojan Mladenović, os textos das conferências podem ser vistos como material preparatório para A Pluralidade. O capítulo 1 d’A Pluralidade é um desenvolvimento das ideias do texto da conferência “Scientific Knowledge as Historical Product”. Apesar do capítulo ter o mesmo título que a conferência, a sobreposição textual é muito ligeira. O capítulo 2 d’A Pluralidade copia e aumenta ligeiramente a primeira lição da conferência Shearman. A inacabada parte II d’A Pluralidade, constituída pelos capítulos 4 a 6, pretendia ser um desenvolvimento da segunda lição da conferência Shearman. A inexistente parte III d’A Pluralidade, que seria constituída pelos capítulos 7 a 9, acredita-se que seria um desenvolvimento da terceira lição da conferência Shearman. Note-se, no entanto, que era intenção de Kuhn que A Pluralidade apresentasse já um desenvolvimento substancial das ideias expressas na conferência Shearman (KUHN, 1993KUHN, T. Afterwords. In: HORWICH, P. (Ed.). World Changes. Thomas Kuhn and the Nature of Science. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993. p. 311-341., p. 315).

Exceptuando o texto da primeira conferência, que foi originalmente publicado em japonês, todos os restantes escritos reunidos neste livro são publicações inéditas. As publicações são inéditas, mas com as ressalvas seguintes. O texto respeitante à conferência Shearman, de 1987, que Kuhn sempre se recusou a publicar, circulava de forma semi-clandestina por alguns meios filosóficos. Havia mesmo na literatura dois oráculos interpretativos desse texto: um artigo de Ian Hacking (1993HACKING, I. Work in a New World: The Taxonomic Solution. In: HORWICH, P. (Ed.). World Changes. Thomas Kuhn and the Nature of Science. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993. p. 275-310.) que analisa as ideias principais desse texto; e um obituário de Buchwald & Smith (1997BUCHWALD, J.; SMITH, G. Thomas S. Kuhn, 1922-1996. Philosophy of Science, v. 64, n. 2, p. 361-376, 1997.) com algumas passagens do texto da conferência. Por sua vez, A Pluralidade já tinha sido esquematicamente esboçada pelo próprio Kuhn (1993). Resumidamente o material verdadeiramente inédito que aqui se reúne são os capítulos 1, 3, 4, 5 e 6 d’A Pluralidade.

Ainda que os cinco primeiros capítulos d’A Pluralidade estejam completos, estes capítulos não têm um mesmo nível de legibilidade. Os capítulos 1 a 3 parecem-me textos já bastante revistos. São textos claros e bem redigidos. Textos redigidos no estilo kuhniano, ou seja, recôndito e subtil. Estes capítulos que já estariam muito próximo da sua versão final. No entanto, os capítulos seguintes, o capítulo 4 e, principalmente, o capítulo 5, não têm o mesmo nível de clareza que os anteriores, quer no conteúdo, quer na estrutura. Estes capítulos parecem-me ainda longe do que seria a sua suposta versão final.

O resto desta resenha será em volta dos capítulos d’A Pluralidade, com particular enfoque sobre os capítulos 1 e 3.

No capítulo 1, “Scientific Knowledge as Historical Product”, Kuhn introduz as ideias principais da concepção evolucionista que vai defender ao longo do seu livro. Olhando para a ciência do passado, verifica-se que o desenvolvimento da ciência ocorre num processo de comparação de corpos de crenças científicas, contra testes experimentais. Estes corpos de crenças dependem da própria linguagem em que se formulam e dos contextos culturais. Os corpos de crenças que melhor se adaptam aos testes observacionais são aqueles no qual se verifica uma melhor adequação entre os enunciados observacionais, deduzidos dos corpos de crenças, e os dados observacionais. Ao longo da história da ciência, há uma contínua adaptação entre os corpos de crenças e os dados observacionais, tal como há uma contínua adaptação das espécies ao meio. As teorias científicas que sobrevivem não são as mais fortes, mas aquelas que estão mais conformes aos dados observacionais. Analogamente as espécies que sobrevivem não são as mais fortes, mas aquelas que melhor se adaptam às mudanças do meio. É uma evolução estritamente darwinista. Não há qualquer finalidade teológica nesta evolução.

O historiador da ciência é uma espécie de etnologista que estuda tribos do passado. Neste caso, as tribos são comunidades científicas passadas. Para ser sucedido nesse estudo, ele tem de dominar a linguagem científica do passado, mais precisamente, tem de ser bilingue a respeito da linguagem científica passada e da sua linguagem científica nativa (KUHN, 2022KUHN, T. The Last Writings of Thomas S. Kuhn: Incommensurability in Science. Chicago: University of Chicago Press, 2022., p. 114). O aspecto mais importante a salientar nesta análise de Kuhn é que existem enunciados científicos passados que são simplesmente intraduzíveis com valor de verdade na linguagem científica contemporânea, mas que não são contemporaneamente incompreensíveis.

Para os falantes nativos actuais conseguirem compreender tais enunciados científicos do passado é necessário primeiro esclarecer toda uma série de termos da linguagem científica passada - o léxico que permite a formulação das teorias científicas numa linguagem. Só depois estarão minimamente equipados para compreender o significado de alguns enunciados científicos do passado. O foco de análise do historiador da ciência e do filósofo da ciência passa a ser a linguagem em que se formulam as teorias científicas. Kuhn (2022KUHN, T. The Last Writings of Thomas S. Kuhn: Incommensurability in Science. Chicago: University of Chicago Press, 2022., p. 52, 187) deixa agora cair o termo incomensurabilidade e substitui-o pelo termo intraduzibilidade. Este passo é conhecido na literatura kuhniana como viragem linguística, e Quine (2013QUINE, W. Word and Object. Cambridge, MA: MIT press, 2013.) é a principal influência para esta viragem.

Escusado será dizer que nesta breve resenha está fora de questão proceder a um esclarecimento prévio de termos gregos antigos com vista a compreendermos minimamente o significado de alguns enunciados aristotélicos ou ptolemaicos. Ainda assim importa dar uma breve ideia do que aqui está em jogo. Nos dias de hoje, os enunciados do mundo grego antigo de que “o Sol é um planeta” (KUHN, 2022KUHN, T. The Last Writings of Thomas S. Kuhn: Incommensurability in Science. Chicago: University of Chicago Press, 2022., p. 59-62, 176-177) ou o “vazio não existe” (KUHN, 2022, p. 35-36, 160-166) parecem-nos completamente errados e falsos. Porém, quando colocados no seu contexto linguístico, as questões de falsidade/verdade e correcto/incorrecto deixam simplesmente de ser apropriadas, porque os significados gregos dos termos “planeta” e “vazio” não têm o mesmo significado científico contemporâneo. Além disso, estes termos dependem de outros termos que também não são directamente traduzíveis na linguagem científica contemporânea.

O capítulo 2, “Breaking into the Past”, analisa com detalhe três casos de estudo: a noção de movimento em Aristóteles, a pilha de Volta e o corpo negro de Planck. Estes casos foram inicialmente explorados em “What are Scientific Revolutions?”, na obra The Road Since the Structure (KUHN, 2000KUHN, T. The Road since Structure. Chicago: University of Chicago Press, 2000., p. 13-32), e são recuperados na primeira lição Shearman. As duas últimas secções do capítulo 2 são inéditas e de leitura obrigatória para qualquer futuro historiador de ciência. Nestas secções, um aprendiz pode recolher vários conselhos e recomendações sobre os problemas que se levantam no seu trabalho e de como ultrapassá-los.

O capítulo 3, “Taxonomy and Incomensurability”, é essencialmente um capítulo de filosofia da linguagem. A perspectiva evolucionista kuhniana vai ser fundamentada em aspectos teóricos da linguagem. O termo paradigma é deixado cair e em seu lugar agora surge o termo conjunto estruturado de tipos (KUHN, 2022KUHN, T. The Last Writings of Thomas S. Kuhn: Incommensurability in Science. Chicago: University of Chicago Press, 2022., p. 181). Uma comunidade científica partilha uma mesma estrutura de conjuntos de tipos; comunidades científicas diferentes têm estruturas diferentes de conjuntos de tipos (KUHN, 2022, p. 113). A incomensurabilidade surge agora como uma relação entre estruturas de conjuntos de tipos pertencentes a comunidades diferentes. O bilinguismo é a forma de ultrapassar esta incomensurabilidade.

Kuhn começa por rejeitar a teoria tradicional do significado dos termos para tipos, a respeito das noções de extensão e intensão, porque são inadequadas para análise que ele pretende levar a efeito. Em alternativa, propõe uma reformulação da teoria do significado para os termos para tipos. Divide os termos para tipos em dois géneros: tipos taxonómicos e singletos (i.e., conjuntos unitários). Os tipos taxonómicos são mais comuns na linguagem do dia a dia, mas mais raros em ciência; enquanto os singletos são mais raros na linguagem do dia a dia, mas mais comuns em ciência. Os singletos são categorias fundamentais do pensamento e são inatos no indivíduo. São exemplos de tipos taxonómicos os tipos biológicos, como mamífero e ave, e os tipos sociais, como político e astrónomo. São exemplos de singletos os termos espaço, tempo, movimento, corpo, energia, resistência, etc. Grande parte do capítulo 3 é ocupada a dissecar as características conceptuais dos tipos taxonómicos e singletos.

O significado de um termo taxonómico depende do significado dos outros termos taxonómicos do conjunto a que pertence; e o significado de cada sigleto também resulta de uma relação de interdependência com outros singletos. Os singletos e os termos taxonómicos estão sujeitos ao princípio de não sobreposição, sendo que este princípio de não sobreposição também se aplica à realidade. Ou seja, cada um destes termos para tipos recorta de forma não sobreposta a realidade. Por exemplo, o termo gato não se sobrepõe com o termo cão. O termo gato apenas designa espécimes de gatos; o termo cão apenas designa espécimes de cão; sendo que no mundo não existe qualquer espécime de gato-cão.

Kuhn depois mostra como a noção de conjunto estruturado de tipos intervém no processo de interpretação de textos científicos antigos. O historiador da ciência chega a esses textos antigos com o seu conjunto estruturado de tipos; o autor a ser estudado tem, por sua vez, o seu próprio conjunto estruturado de tipos. A noção de anomalia, por exemplo, passa agora a consistir numa disparidade entre esses dois conjuntos. A anomalia não é respeitante a um termo particular problemático, mas sim ao uso desse termo problemático em frases. Há assim um holismo local.

Kuhn termina o capítulo 3 contrastando a sua visão, sobre a interpretação de textos científicos antigos, com a visão de Quine a respeito da indeterminação da tradução. Quine acreditava que as frases observacionais, em virtude de serem directamente formuladas a partir de dados sensoriais, seriam traduzíveis em qualquer cultura, ou seja, seriam frases transculturais. A indeterminação da tradução apenas ocorreria em frases mais complexas e abstractas e não nas frases observacionais. Pelo contrário, Kuhn considera que a indeterminação da tradução se aplica a todo o tipo de frases. Por exemplo, baseado em John Lyons (1977LYONS, J. Semantics. v. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 1977.), Kuhn defende detalhadamente que a frase inglesa “the cat sits in the mat”, apesar de ser uma frase observacional, esta frase não é apropriadamente traduzível numa única frase francesa.

O capítulo 4, “Biological Prerequisites to Linguistic Descripton”, é o capítulo mais surpreendente d’A Pluralidade. Kuhn vai fundamentar em estudos da psicologia do desenvolvimento cognitivo “a aquisição da linguagem, a incomensurabilidade entre línguas e de como é possível o entendimento entre línguas incomensuráveis” (KUHN, 2022KUHN, T. The Last Writings of Thomas S. Kuhn: Incommensurability in Science. Chicago: University of Chicago Press, 2022., p. 94). Este capítulo procede assim a uma naturalização da filosofia da linguagem. Kuhn relata inúmeras experiências visuais realizadas em recém-nascidos, nomeadamente, qual o comportamento visual dos bebés perante determinadas imagens que lhes são mostradas A exposição de Kuhn é baseada em bibliografia especializada sobre o assunto. Este capítulo é o capítulo menos interessante do ponto de vista filosófico, embora necessário para aqueles que consideram que a Psicologia é o “trabalho para casa” do filósofo.

O capítulo 5, “Natural Kinds: How Their Names Mean”, explica como o fundamento biológico explanado no capítulo 4 se relaciona com a própria linguagem. O capítulo desenvolve uma teoria do significado sobre os tipos naturais. Kuhn analisa exaustivamente como se processa a reidentificação de organismos vivos e matérias físicas. A conclusão relevante a retirar dessa análise é que duas comunidades científicas diferentes podem ter estruturas de tipos diferentes, ou seja, identificam os organismos e as matérias físicas à sua volta de forma diferente. A incomensurabilidade surge na medida em que estruturas de tipos diferentes não podem ser simplesmente enriquecidas com novo vocabulário, sob pena de se violar o princípio de não sobreposição entre tipos. Há uma intraduzibilidade que apenas pode ser superada pelo bilinguismo.

Chegado ao inacabado capítulo 6, “Practices, Theories and Artefectual Kinds”, o leitor toma a consciência fina que o fim do livro lhe foi abruptamente “roubado” e que o melhor ainda estaria para vir. A parte final d’A Pluralidade, capítulos 7 a 9, regressaria aos tópicos da primeira parte, os capítulos 1 a 3.

A Pluralidade é um projecto onde confluem áreas tão diversas como a história da ciência, a filosofia da ciência, a epistemologia, a metafísica, a filosofia da linguagem e a ciência cognitiva. A maestria de Kuhn no estabelecimento de passarelas entre áreas diversas é singular.

Referências

  • BUCHWALD, J.; SMITH, G. Thomas S. Kuhn, 1922-1996. Philosophy of Science, v. 64, n. 2, p. 361-376, 1997.
  • HACKING, I. Work in a New World: The Taxonomic Solution. In: HORWICH, P. (Ed.). World Changes. Thomas Kuhn and the Nature of Science. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993. p. 275-310.
  • KUHN, T. Afterwords. In: HORWICH, P. (Ed.). World Changes. Thomas Kuhn and the Nature of Science. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993. p. 311-341.
  • KUHN, T. The Road since Structure. Chicago: University of Chicago Press, 2000.
  • KUHN, T. The Last Writings of Thomas S. Kuhn: Incommensurability in Science. Chicago: University of Chicago Press, 2022.
  • LYONS, J. Semantics. v. 1. Cambridge: Cambridge University Press, 1977.
  • QUINE, W. Word and Object. Cambridge, MA: MIT press, 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2023
  • Aceito
    26 Jul 2023
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