RESUMO
Objetivo: Identificar condições que interferem na implantação do modelo de Acesso Avançado em unidades de atenção primária à saúde. Método: Trata-se de uma pesquisa de implementação que utilizou o quadro conceitual do Consolidated Framework for Implementation Research (CFIR). O CFIR fornece uma classificação dos fatores que afetam a implementação de uma tecnologia e compreende cinco domínios: características da intervenção, ambiente externo, ambiente interno, indivíduos e processo. O cenário do estudo foram 13 unidades de saúde na região sul do Município de São Paulo/SP. Participaram 39 profissionais de saúde e 10 gestores. Os dados foram coletados através de entrevistas semiestruturadas. Estas foram gravadas e transcritas, os dados de texto foram codificados com base em códigos pré-estabelecidos derivados dos domínios CFIR.
Resultados: Encontraram-se quatro categorias que interferem na implementação do modelo de AA nos serviços: 1) Características do modelo Acesso Avançado que impactaram na implantação; 2) Organização do setor da saúde e o modelo Acesso Avançado; 3) Características dos indivíduos envolvidos na inovação; e 4) O modelo de planejamento e liderança para a implantação.
Considerações Finais: As condições sociais, estruturais e profissionais existentes no Município de São Paulo dificultaram a implantação do modelo AA. A pesquisa de implementação apoiou o processo de melhoria do acesso nas unidades de saúde estudadas e ofereceu evidências sobre o que ajudou e o que dificultou a reestruturação do modelo de acesso nesses locais.
Descritores: Pesquisa de implementação; Acesso aos serviços de saúde; Atenção Primária à Saúde; Inovação Organizacional; Barreiras ao acesso aos cuidados de saúde
ABSTRACT
Objective: To identify the conditions that interfere with the implementation of the Advanced Access model in primary health care.
Method: This is an implementation research that used the Consolidated Framework for Implementation Research (CFIR). The CFIR provides a classification of factors that affect the implementation of a technology and comprises five domains: characteristics of the intervention, external environment, internal environment, individuals, and process. The study setting included 13 Health Units in the southern region of the city of São Paulo-SP. 39 health professionals and 10 managers participated. Data was collected through semi-structured interviews. These were recorded and transcribed, and the text data was coded based on pre-established codes derived from the CFIR domains.
Results: Four categories were found that impacted the implementation of the AA model in services: 1) Characteristics of the Advanced Access model that impacted implementation; 2) Organization of the health sector and the Advanced Access model; 3) Characteristics of the individuals involved in the innovation; and 4) The planning and leadership model for implementation.
Final Considerations: The social, structural, and professional conditions in the municipality of São Paulo made it difficult to implement the AA model. The implementation research supported the process of improving access in the health units studied and provided evidence of what helped and what hindered the restructuring of the access model in these places.
Descriptors: Implementation Science; Health Services Accessibility; Primary Health Care; Organizational Innovation; Barriers to Access of Health Services.
RESUMEN
Objetivo: Identificar las condiciones que interfieren en la implantación del modelo de Acceso Avanzado en las unidades de atención primaria a la salud. Método: Esta es una investigación de implementación que utilizó el marco conceptual del Marco Consolidado para la Investigación de Implementación (CFIR). El CFIR proporciona una clasificación de factores que afectan la implementación de una tecnología y comprende cinco dominios: características de la intervención, entorno externo, entorno interno, individuos y proceso. El ámbito del estudio fueron 13 Unidades de Salud de la región sur de la ciudad de São Paulo-SP. Participaron 39 profesionales de la salud y 10 directivos. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas semiestructuradas. Estos fueron grabados y transcritos, los datos del texto se codificaron con base en códigos preestablecidos derivados de los dominios CFIR.
Resultados: Se encontraron cuatro categorías que impactaron la implementación del modelo AA en los servicios: 1) Características del modelo de Acceso Avanzado que impactaron la implementación; 2) Organización del sector salud y modelo de Acceso Avanzado; 3) Características de los individuos que participaron en la innovación; y 4) Modelo de planificación y liderazgo para su implementación.
Consideraciones finales: Las condiciones sociales, estructurales y profesionales del municipio de São Paulo dificultaron la implantación del modelo de AA. La investigación de implementación apoyó el proceso de mejora del acceso en las unidades de salud estudiadas y generó pruebas de lo que ayudó y lo que dificultó la reestructuración del modelo de acceso en estos lugares.
Descriptores: Ciencia de la Implementación; Accesibilidad a los Servicios de Salud; Atención Primaria de Salud; Innovación Organizacional; Barreras de Acceso a los Servicios de Salud.
INTRODUÇÃO
O Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil representa um marco significativo no contexto do acesso à saúde, sendo uma política pública que busca assegurar o direito universal à assistência médica1. O SUS se destaca por sua abrangência, proporcionando atendimento integral e gratuito a toda a população brasileira2. Tem a Atenção Primária à Saúde (APS) como a sua principal estratégia de organização do sistema de saúde3.
Sob o prisma do cuidado em redes, a APS é posicionada como ordenadora do cuidado, possui grande potencial para resolutividade na maioria das necessidades dos usuários, mas depende da ampliação do acesso aos serviços de saúde para alcançar esse objetivo4. O acesso aos serviços de saúde é um atributo da APS e também um enorme desafio no SUS. Na organização dos serviços de saúde brasileiros, o modelo de acesso utilizado se baseia na “agenda programada”, que se trata de um agendamento planejado para realizar os atendimentos necessários. Esse modelo causa tempo de espera prolongado e também, em muitos casos, indisponibilidade do atendimento demandado. As consequências desse modelo são a falta assistência de qualidade e a inibição do acesso universal aos serviços de saúde5. A necessidade de revisão desse modelo de acesso também foi apontada em um estudo6, que indica que as estratégias atualmente em uso ainda tornam precário o acesso aos serviços para uma parcela considerável da população brasileira, principalmente, para os de maior vulnerabilidade.
Em São Paulo a utilização do modelo “agenda programada” relacionava-se a filas de espera de 60 dias ou mais para a realização de um atendimento com a equipe da saúde7. Esse tipo de agendamento também estava associado ao elevado absenteísmo dos usuários, aos atendimentos agendados e à insatisfação dos usuários com a unidade de saúde8. Outra consequência desse modelo de agenda relacionava-se à elevação dos custos para o sistema de saúde, pois o usuário buscava atendimentos hospitalares mais complexos, uma vez que não conseguia acesso à APS9. Essa situação sensibilizou o Município de São Paulo para a necessidade de realizar mudanças organizacionais no modelo de agendamento a fim de melhorar o acesso e o desempenho da APS, e, em 2017, a região sul do Município de São Paulo iniciou um projeto para implantação do modelo de agendamento “Acesso Avançado” (AA) 9;10.
A escolha do modelo AA baseou-se na afirmativa de que, para ampliar o acesso aos atendimentos na APS, as unidades de saúde precisariam desenvolver modelos de organização da assistência que superassem as “agendas programáticas e programadas” e investissem em estratégias como agendas e horários flexíveis, que pudessem ampliar o horário de funcionamento, incorporando tecnologias como contatos por meios eletrônicos e outras 11.
O modelo AA foi desenvolvido há mais de duas décadas nos EUA, por especialistas em sistemas de acesso, fluxos e organização dos cuidados primários, para o gerenciamento das políticas de saúde pública, cabendo lembrar que as políticas públicas referentes à saúde nesse país diferem enormemente do SUS. Além dos EUA, o modelo AA foi expandido para países como Canadá, Inglaterra 12,13. No Brasil esse modelo ainda tem sido utilizado em experiências isoladas, com os primeiros registros de implantação em 2015 9.
O modelo AA pode ser caracterizado como uma tecnologia leve que reorganiza a APS, visando à reconstrução das agendas dos profissionais que atuam nesse âmbito de assistência. Possui como foco a ampliação da oferta de atendimentos e procedimentos à população. O modelo AA parte da premissa “fazer hoje, o que o usuário precisa hoje”, e busca atingir essa proposta oportunizando o contato do usuário com a equipe de saúde para atendimento no mesmo dia em que o usuário procura ou em até 48 horas 12. O modelo AA permite equacionar a relação demanda/oferta de serviços de modo a reduzir o tempo de espera por uma consulta com profissional da equipe de referência, seja o médico, enfermeiro ou qualquer membro da equipe13.
A implantação do modelo AA baseia-se no cumprimento de cinco requisitos essenciais: 1 - Planejamento abrangente que considera necessidades, suprimentos e variações recorrentes; 2 - Ajuste regular da oferta à demanda; 3 - Processos eficazes de marcação e agendamento de consultas; 4 - Integração e otimização da prática colaborativa; 5 - Comunicação clara sobre o acesso avançado e suas funcionalidades14.
Considerando que: 1) a implantação do modelo AA tem sido objeto de experiências pontuais em diversos municípios e/ou regiões brasileiras e 2) a diversidade territorial, cultural e assistencial do Brasil, este estudo tem a finalidade de contribuir metodológica e organizacionalmente com as mudanças necessárias para a ampliação do acesso na APS, colaborando para a compreensão de “porque” e “como” as inovações funcionam ou não. O objetivo desta pesquisa foi identificar condições que interferem na implantação do modelo de Acesso Avançado em unidades de atenção primária à saúde.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa de implementação que utilizou o quadro conceitual do Consolidated Framework for Implementation Research (CFIR), desenvolvido por Laura J. Damschroder15.
A Pesquisa de Implementação (PI) é uma abordagem científica específica que avalia a eficácia da incorporação de intervenções e políticas baseadas em evidências na rotina do sistema de saúde. A PI foca nos facilitadores da implementação de intervenções baseadas em evidências em sistemas de saúde públicos e privados, bem como nos obstáculos à sua implementação, além de promover a aplicação, o uso e a sustentabilidade dessas intervenções em grande escala15.
A ciência da implementação parte do pressuposto de que uma intervenção só pode produzir os resultados esperados se for efetivamente implantada. Para além do conceito de efetividade da intervenção ou tecnologia, a ciência da implementação busca monitorar a efetividade da implementação, tomando essa última como seu objeto. Reconhecendo que a implementação de intervenções em saúde pode ser afetada por aspectos como as características da intervenção, do contexto, das pessoas envolvidas e do processo, a ciência de da implementação procura também instrumentalizar pesquisadores para identificar barreiras e facilitadores que se relacionem com cada uma dessas dimensões. Essa instrumentalização se dá a partir de mais de 60 teorias, estruturas e modelos de implementação já registrados na literatura 16.
Esta pesquisa, ao escolher o CFIR como modelo, o fez pelo fato de esse modelo estar fundamentado na importância da compreensão dos contextos para a implantação de inovações e apostar que a identificação de barreiras e facilitadores é uma estratégia potente que influencia na eficácia da implementação de uma tecnologia ou programa 16. O CFIR é composto por cinco domínios e seus constructos. Os domínios do CFIR são: a) características da intervenção; b) contexto externo; c) contexto interno; d) características dos indivíduos; e) processo de implementação 16. As etapas do CFIR pressupõem um mapeamento dos contextos referentes à implementação do modelo de AA e, para tanto, alguns instrumentos são oferecidos pelo CFIR17 e utilizados de maneira adaptada neste estudo.
Este estudo teve como cenário/contexto a região sul do Município de São Paulo/SP. A cidade de São Paulo é a mais populosa e a maior capital do Brasil, reunindo hoje mais de 11.451.999 habitantes18. A região sul do Município de São Paulo é composta pelos distritos administrativos de Campo Limpo (218.758 habitantes), Vila Andrade (143.008 habitantes) e Capão Redondo (268.481 habitantes), num total de 641.764 mil habitantes 19.
No âmbito da APS esta região conta com 13 Unidades Básicas de Saúde, com 87 equipes de Saúde da Família (eSF) que prestam assistência à população de Campo Limpo e Vila Andrade, contabilizando um total de 361.766 habitantes. Essas unidades trabalham com o modelo da Estratégia Saúde da Família (ESF) e está fundamentada na abordagem coletiva, interprofissional, centrada na família e na comunidade. É composta por eSFs que envolvem enfermeiros, médicos, técnicos em enfermagem, odontólogos e Agentes Comunitários de Saúde (ACS) 20,21.
Os sujeitos de pesquisa formaram uma amostra de profissionais médicos (as), enfermeiros(as), odontólogos(as) e coordenadores(as) das 13 UBS com ESF. Os profissionais que participaram da pesquisa foram selecionados junto aos coordenadores das UBS, tendo como critério de inclusão possuir experiência com a implantação do modelo AA em sua equipe. Todos os profissionais selecionados foram “convidados” a participar, e informados sobre os detalhes da pesquisa mediante a leitura e aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Realizaram-se 49 entrevistas (39 profissionais e 10 gestores) de um total de 108 profissionais “convidados”.
O processo de implantação do AA teve início em 2018, através de oficinas nas unidades de saúde que tiveram como finalidade preparar os profissionais de saúde para a operacionalização do modelo. Além disso, foram implantados estratégias e protocolos que permitiram a flexibilização das agendas e a resolutividade clínica do primeiro atendimento22.
Durante o processo de implantação a equipe de pesquisa adotou a estratégia de “mentoria de grupo”. Essa estratégia pressupõe um acompanhamento das equipes de trabalho, por profissionais de diferentes especialidades, com a finalidade de ajudar nas reflexões sobre sua prática e acelerar os ciclos de planejamento e ação. A “mentoria de grupo” pode ser considerada uma estratégia para acelerar a translação” de conhecimento, incrementar a escalabilidade de uma tecnologia 23.
Assim, os pesquisadores acompanhavam mensalmente as reuniões das equipes das UBS, monitorando as discussões sobre o modelo AA, e para auxiliar na resolução de problemas oferecendo material teórico e prático para o grupo. O projeto de pesquisa de implementação estava previsto para durar dois anos, mas, com a pandemia de COVID-19, esse prazo se estendeu para quatro anos. Na primeira fase, as entrevistas aconteceram de forma presencial e, na segunda, a distância, em virtude da pandemia da COVID-19. Todas foram gravadas e realizadas por meio de um instrumento semiestruturado com perguntas abertas, que tinham como finalidade captar as percepções dos profissionais sobre o processo de implantação e funcionamento do modelo de AA na sua UBS e/ou equipe de ESF (adaptadas do CFIR) 15,16. As perguntas se referiam ao treinamento que os profissionais receberam, aos protocolos clínicos que estavam implantando, aos modelos de planejamento para (re)dimensionamento da oferta e da demanda, às possibilidades de construir planos de contingência e ao apoio recebido das instâncias superiores para essa implantação.
Houve duas fases para a coleta de dados, a primeira fase ocorreu em 2019 (um ano após as medidas de implementação se iniciarem) e a segunda em 2021 (após dois anos de seguimento). A escolha desse período de tempo segue a estrutura sugerida pelo CFIR (15) mas, especificamente neste estudo, foi opção metodológica dos pesquisadores e se justificou pelo fato de se considerar que um ano seria um tempo adequado para que os ajustes nas práticas de trabalho requeridas pelo modelo AA pudessem ter sido vivenciados pelos envolvidos. A proposta das duas entrevistas tinha como finalidade dimensionar as ações que estavam sendo implantadas, e o quanto elas se aproximavam ou distanciavam do modelo de AA.
Os áudios das entrevistas foram transcritos e analisados com base em categorias pré-estabelecidas, quais sejam: características da intervenção, contexto externo, contexto interno, características dos indivíduos, processo de implementação. Estas categorias são derivadas dos domínios do CFIR 17. Após estas análises e sínteses, os resultados foram agrupados em categorias e analisados conforme Bardin 24. Estas sínteses foram devolvidas no formato de cursos, oficinas e assessorias para profissionais e gestores das UBS, para orientar o processo de implementação das ações e melhorias necessárias. Ou seja, este processo de captar dados, devolver e captar novamente foi uma constante durante o desenvolvimento da pesquisa.
Este estudo é integrante do projeto matriz: “Implementação do acesso avançado em unidades de saúde da família: processos e resultados”, sob parecer ético com CAAE: 10477319.1.0000.5392 e que recebeu financiamento pelo CNPq/DECIT sob o número 440347/2018-1.
RESULTADOS
Os resultados, na pesquisa de implementação, são apresentados sob a forma de desfechos de interesse para o processo de tradução do conhecimento. Assim, os resultados na pesquisa de implementação não se restringem a apresentar as estratégias empregadas no processo de implementação do modelo AA, o que é comum nas pesquisas qualitativas, mas focam nos elementos que precisam ser assegurados a fim de garantir a efetividade da implementação, tais como aceitabilidade, a adequação, a viabilidade e a fidelidade. Dessa forma, os resultados abaixo estão relacionados às sínteses processuais relativas aos facilitadores e às barreiras para a implementação do AA, organizadas nas seguintes dimensões: Características do modelo AA que impactaram na sua implementação; A organização do setor da saúde e o modelo AA; Características dos indivíduos envolvidos na mudança; O processo de planejamento e liderança.
Características do modelo AA que impactaram na sua implementação
Para a pesquisa de implementação é importante iluminar as “características da inovação” que se tentou implantar, para compreender quais dessas características podem estar impactando positiva ou negativamente o processo de implantação. Dentro dessa perspectiva, a análise realizada buscou por construtos como: Origem da intervenção; Força e qualidade da evidência relativa à sua funcionalidade; Vantagem Relativa que essa inovação traria; Adaptabilidade; Testabilidade; Complexidade; Custo entre outros.
A análise dos dados mostrou que, embora o modelo AA tenha muita aceitabilidade entre profissionais, a situação de desequilíbrio entre demanda e oferta por eles vivenciada é um impeditivo para sua implantação. Pois desenvolver esse balanceamento entre oferta e demanda, implica construir uma constante capacidade analítica de compreensão da dinâmica envolvida nessa relação para, a partir disso, optar por ações, seja do lado da oferta, seja do lado da demanda, capazes de promover esse balanceamento.
Segundo os profissionais entrevistados, o balanceamento entre demanda e oferta envolve ações como: definição do número de atendimentos e de usuários adscritos para cada profissional da equipe da ESF; definição da taxa de atendimento de cada pessoa usuária por profissional e por tipo de atendimento (consulta médica, consulta de enfermagem, atendimento contínuo, atendimento compartilhado, atendimento em grupo, etc.); preencher planilhas com dados por equipe e por profissionais.
Ainda na perspectiva de se balancear demanda e oferta, seria necessário poder transferir usuários para outros profissionais, caso a capacidade de oferta da equipe esteja balanceada com a demanda, mas exista desbalanceamento entre os profissionais. Outra estratégia seria poder atuar na redução da demanda ou no aumento da capacidade de oferta, caso houvesse excesso de pessoas usuárias por equipe ou profissionais, e isso na ESF conflitua com a burocracia do serviço.
Para o modelo AA, o registro diário no prontuário eletrônico da demanda e da capacidade de oferta da UBS e de cada profissional é primordial, mas impossível de ser prontamente realizado na unidade da ESF estudada. Monitorar o atendimento de cada equipe mensalmente, a implantação de horário estendido, definição do terceiro próximo atendimento, entre outras ações, também foram citados como difíceis de serem realizados nas unidades da ESF, e se constituem em ações “core” do modelo de AA.
Em síntese, os sujeitos desta pesquisa consideraram que as ações que garantem a operacionalização do modelo AA não conseguiram ser incorporadas ao trabalho dos profissionais. Segundo eles, nem mesmo o prontuário eletrônico, que é fundamental para a comunicação e autoavaliação das equipes da ESF estava plenamente implantado. Dessa maneira, os pré-requisitos do modelo de AA para balancear demanda e oferta não puderam ser implantados, o que, segundo os entrevistados, representou um fator de inviabilidade e de insucesso na implantação do modelo AA.
A organização do setor da saúde e o modelo AA
Os chamados inner settings (cenário interno) e outer settings (cenário externo) são dimensões de análise importantíssimas dentro de uma pesquisa de implementação. Os construtos mais diretamente relacionados ao cenário externo nos remetem às necessidades e recursos dos usuários tratando de questões como políticas e incentivos externos voltados para a inovação que se quer implantar, pressão pelos pares e urbanidade da proposta. Já os construtos para o cenário interno falam mais especificamente das Características estruturais do contexto; das Redes de relação e comunicações; da Cultura da organização; da Prioridade relativa que a implementação da inovação possui; do Clima de aprendizagem institucional; da Prontidão para implementação; do Compromisso da liderança; dos Recursos disponíveis entre outros.
Em termos de estrutura política e cultural, considerou-se que a sustentabilidade do modelo AA ficou prejudicada devido às dificuldades em se realizar mudanças em termos de quadro de pessoal, nas regras de financiamento ou na distribuição de recursos financeiros, entre outras, que trazem instabilidade e dificuldades para a manutenção de um modelo de assistência tão fortemente dependente de um bom trabalho em equipe.
Os entrevistados apontaram que, entre os fatores que se constituem em barreiras relacionadas aos contextos internos e externos para a implantação do modelo de AA, está um Território muito vulnerável, com uma população muito empobrecida, de baixa escolaridade e com pouca condição de realizar o autocuidado. Isso acarreta uma demanda muito alta por atendimentos, além de favorecer a existência dos chamados “Hiperutilizadores”.
Ainda nas barreiras, foram citadas as Dificuldades nos encaminhamentos para especialistas e exames, ou seja, a falta de uma rede de serviços em sintonia, e uma População médico-centrada. A falta de preparo dos usuários para se posicionarem frente a políticas públicas, financiamento, dentre outros temas relevantes para o SUS, impacta diretamente na assistência à população.
Ao se pensar nos fatores que se constituem em facilitadores para a implantação do modelo de AA, tem-se a cultura institucional e o comprometimento dos gestores das UBS. A parceria desses gestores com os conselhos populares, o comprometimento dos mesmos em instituírem mudanças que melhorem a vida e o acesso das pessoas a serviços básicos de saúde apareceram como um fator facilitador para a implantação do modelo AA. Os profissionais pesquisados citaram o apoio técnico da gestão central como algo muito importante para a implantação desse modelo.
Importante lembrar que uma das medidas fundamentais para implantar o modelo de AA é revisar o balanceamento da demanda e da oferta. Cabe lembrar que essa revisão entre oferta e demanda não se encontra no âmbito da “governabilidade” das equipes da ESF, mas centralizadas na administração do município e do estado. Esse controle da oferta e demanda é realizada através do sistema de “pagamentos por ações”, assim os serviços locais são “remunerados” por “ofertarem” ações pré-determinadas pelo Ministério da Saúde. Esse fato implica em uma rigidez em termos “da escolha” sobre quais ações podem ou não podem ser ofertadas.
Outra variável apontada refere-se ao fato de que implantar o modelo AA invariavelmente “interfere” com questões como o aumento da produtividade dos profissionais de saúde por meio da racionalização dos fluxos assistenciais e de redução de desperdícios, redundâncias e retrabalhos, o que nem sempre é bem “aceito” pelos sindicatos e outros órgãos de representação profissional.
Outra fragilidade encontrada foi a falta de indicadores de qualidade para o acesso aos serviços de saúde. Os profissionais ressaltaram a necessidade de construir e testar indicadores de monitoramento da qualidade para o acesso aos serviços de saúde. Alguns indicadores selecionados foram uma agenda de demanda programada alcançando 30% e a agenda de demanda espontânea 70%, e garantia da longitudinalidade e da resolutividade do cuidado. Contudo, os entrevistados apontaram que, para se conseguir esses indicadores, seria necessário que as eSFs tenham uma população adscrita entre 2000 e 3500 pessoas conforme, descrito pela PNAB25, levando em consideração a vulnerabilidade desta população, condição que nem todas possuem.
Características dos indivíduos envolvidos na mudança
Nesta dimensão de resultados, os construtos que devem ser tomados referem-se principalmente ao Conhecimento e crenças sobre a inovação que se quer implantar; à Autoeficácia dos envolvidos para operar a inovação; ao Estágio Individual de Mudança e Outros atributos pessoais que possam surgir e apresentar impacto na implantação do modelo AA.
Os profissionais assumiram que não compreenderam muito bem o que é o modelo de AA, pois não conseguiram participar dos treinamentos que as unidades de saúde ofereceram sobre o modelo. O discurso dos profissionais mostrou que eles não conseguiram introduzir inovações tais como teleatendimento, contato com WhatsApp®, protocolos e fluxos de atendimento capazes de autonomizar e articular o cuidado longitudinal no seu processo de trabalho.
Os profissionais consideraram que, sem essas inovações, a sustentabilidade do modelo de AA ficou prejudicado. Os médicos e enfermeiros consideraram que o modelo de AA aumentou a possibilidade dos usuários de acessarem os serviços de saúde, pois permite atender “quem precisa no momento em que mais precisa”. Ainda segundo os profissionais, o modelo AA organiza o fluxo, evita longo tempo de espera e possibilita que o usuário seja atendido por profissionais da equipe de saúde à qual ele se encontra adscrito.
Os entrevistados também reconheceram que o modelo AA possibilita o protagonismo da prática clínica, principalmente, por parte dos enfermeiros.
Como barreiras para a implantação do modelo de AA, os profissionais médicos apontaram: a sobrecarga desse modelo para as equipes menores; a falta de estrutura física das unidades de saúde; o número de usuários cadastrados muito acima do preconizado; o atendimento exclusivamente presencial; a rotatividade e a baixa qualificação clínica dos profissionais que atuam na ESF.
O outro indicador de implantação do AA relacionado às características dos profissionais de saúde referiu-se à resolutividade do enfermeiro. E apontaram que a implantação do modelo de AA exige maior resolutividades dos enfermeiros. Apesar desses dados, a autonomia clínica do enfermeiro ainda é muito reduzida na ESF, e sua possibilidade resolutiva é restrita para alguns agravos. Dessa maneira, apesar de o enfermeiro ter potencial para alta resolutividade, sua baixa autonomia clínica dificulta sua inserção como protagonista no balanceamento da demanda e da oferta, impedindo, assim, a estruturação de diferentes perfis de oferta para responder com efetividade e eficiência aos diferentes perfis de demanda ocasionados pelo modelo AA.
O processo de planejamento e liderança
Este âmbito de resultados trata de constructos mais diretamente ligados às estratégias operacionais adotadas para a implantação do modelo AA. Assim, nesta dimensão busca-se caracterizar a planificação adotada; o engajamento dos atores envolvidos no processo de implementação; a identificação dos líderes de opinião e dos líderes formalmente designados internamente para a implementação; a presença de apoiadores ou de agentes externos da mudança.
Os dados mostraram que os Resultados da implementação do modelo de AA no âmbito da gestão do serviço enfrentou mais barreiras do que facilitadores. Os gestores utilizaram a matriz SWOT para conduzir a análise e estratégias de implantação do modelo e, com base nessa matriz, foi possível verificar que as fortalezas para a implantação do modelo de AA ficaram menos evidentes e as fraquezas aumentaram. Os gestores apontaram que ocorreu uma diminuição do apoio institucional durante o processo de implantação do AA.
Houve também um aumento das dificuldades para se reduzir o backlog e estabilizar a agenda em vagas livres. Segundo os gestores, algumas fraquezas foram superadas, como, por exemplo, a falta de conhecimento teórico-prático para a implantação do modelo de AA. Mas outras se mantiveram, citando aqui, principalmente, os problemas com a infraestrutura física e operacional, como a falta de equipamentos e tecnologias digitais (tipo prontuário eletrônico e computadores) para garantir agilidade e intercomunicação entre as equipes da ESF.
Quanto às “oportunidades”, os gestores também consideraram ter encontrado barreiras, tais como dificuldades em utilizar os instrumentos de planejamento (como a matriz de PDSA e o PLANIFICA) para organizar o modelo de AA. As “ameaças” listadas na matriz SWOT para a implantação do AA referiram-se a questões relativas à resolutividade e à longitudinalidade do cuidado, que, segundo eles, foram muito prejudicadas pelo modelo AA.
Outras ameaças eram a ausência de protocolos clínicos para os enfermeiros, fluxogramas de atendimento incipientes, estratégias de monitoramento pouco qualificadas, etc. Dentro da análise dos gestores, as estratégias de “equipes irmãs” e “interconsultas” foram estratégias que funcionaram como facilitadores da implantação do modelo AA.
DISCUSSÃO
O acompanhamento e análise do processo de implementação do modelo de AA em unidades de APS mostrou que mudanças inovadoras nos processos de trabalho em saúde são operações complexas, pois envolvem novos modelos de gestão e a qualificação de recursos humanos23, gestão e reorganização de estrutura física24, formação dos atores sociais envolvidos com a inovação25, mudança de fluxos operacionais, investimento em infraestrutura tecnológica, criação de espaços de conversa para envolver toda a equipe multidisciplinar26, a saber: os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), Médicos, Enfermeiros, Auxiliares de Enfermagem, Técnicos Administrativos, Coordenadores e Conselheiros Gestores27.
Para implantar o modelo de AA na APS, a Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba editou a cartilha “Novas possibilidades de organizar o Acesso e a Agenda na Atenção Primária à Saúde” 28, numa tentativa de instrumentalizar gestores e profissionais sobre o passo a passo para essa nova maneira de ampliar o acesso. Contudo, essa estratégia se mostrou ineficaz, pois se sustentou na crença de que, a partir do momento em que as pessoas tiverem conhecimento sobre o que precisa ser feito, como em um passe de mágica elas mudarão toda uma prática que por vezes está cristalizada há anos em um serviço ou instituição29.
O caminho para as mudanças efetivas precisa ser “pavimentado”, e começa por se revisar a cultura institucional, para depois se chegar a atitudes, valores e, finalmente, em novos “comportamentos”30. Existem diferentes tipos de processos de mudanças, mas quase todos trazem em si a necessidade de envolvimento dos atores e gestores em um processo de compreensão da necessidade da mudança, o descongelamento do instituído; a transição que move os atores para um estado de planejamento; e a institucionalização do novo, o recongelamento6. É imprescindível, para estas mudanças, que haja o fortalecimento das equipes de saúde com educação permanente, partilha de responsabilidades, disposição, ética e comprometimento profissional para a qualidade dos serviços de saúde31.
Dessa forma, implantar o modelo de AA exige mudança de uma cultura hegemônica de trabalho em territórios adscritos, de independência e de fragmentação, para uma cultura centrada em um enfoque de trabalho integrado em redes em que se envolvam profissionais, usuários e família na produção da saúde. Logo, a implantação do AA exige mudanças profundas nas organizações 13.
Cabe lembrar que os dados mais importantes para a organização do acesso são: experiência de cuidado e satisfação das pessoas e famílias; práticas de agendamento; tempos de espera; ciclos de tempo nos atendimentos; e experiências com modelos de atenção alternativos como teleassistência 4. Este autor4 salienta a importância de definir métricas para esses indicadores e estabelecer padrões não são práticas comuns para medir o acesso aos serviços de saúde. Todavia, uma vez estabelecidos alguns indicadores, eles devem ser monitorados periodicamente 26.
A maior dificuldade apontada no modelo do AA é a necessidade premente de se realizar ações de racionalização do lado da demanda, tais como: o ajuste do tamanho do painel de pessoas, a elaboração e implantação de diretrizes clínicas baseadas em evidência, a classificação de risco das pessoas com eventos agudos, a estratificação de risco das pessoas com condições crônicas não agudizadas, a implantação da prevenção quaternária, a identificação e manejo adequado das pessoas hiperutilizadoras e a redução do absenteísmo5.
Outra questão a ser lembrada refere-se à necessidade de se aumentar a autonomia clínica e a resolutividade dos enfermeiros no modelo AA. Um estudo 31, em sua pesquisa, mostrou que, no ano de 2016 (quando o modelo de AA ainda não estava implantado), foram realizados 127.550 atendimentos por enfermeiros e, em 2019 (com o modelo de AA implantado), foram registrados 182.001 atendimentos. No ano de 2016 (sem modelo de AA), o percentual de resolutividade das consultas de enfermagem foi 38,2%, ao passo que, em 2019 (com modelo de AA), esse percentual foi de 52,8%, sendo estatisticamente significativo, resultando em incremento de proporção de 11,9% de resolutividade.
Essa percepção dos profissionais se alinha com um estudo 3, que afirma que, dentre os fatores que levam ao fracasso na implementação do modelo de AA, podem ser citados a ocorrência de choques abruptos na relação oferta/demanda; dificuldades de eliminar o backlog; a dificuldade em racionalizar a demanda; os diferentes tipos de demandas por populações vulneráveis; a resistência à mudança; a falta de liderança de profissionais de saúde; entre outros.
As considerações trazidas pelos gerentes, quando apontaram como fraqueza a “falta de conhecimento teórico sobre o modelo de AA”, mostra um desconhecimento sobre as mudanças que precisam ser realizadas no processo de trabalho, referentes aos ajustes na oferta e na demanda dos serviços no âmbito da APS, para implantar o modelo de AA.
Vale ressaltar que, como todo estudo científico, esta pesquisa enfrentou dificuldades e limitações. Uma das dificuldades refere-se ao fato de, logo em seu início, ter sofrido alterações na coleta de dados que, no período da pandemia, foi feito remotamente, o que pode prejudicar a qualidade da informação trazida. Outra limitação foi a impossibilidade de realizar todas as ações de capacitação dos profissionais que estavam previstas, o que pode ter influenciado nas mudanças necessárias no processo de trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os contextos social, estrutural e profissional do setor da saúde no Município de São Paulo operaram como condições intervenientes que atuaram como barreiras na implementação do modelo de AA. Em termos do contexto social, a preferência dos usuários por Atendimento exclusivamente presencial dificulta a implementação de estratégias como Teleatendimento ou Telemonitoramento, que são importantes para a ampliação do acesso. Ainda no contexto social, podem-se citar um sistema de saúde médico-centrado, perfis de usuários hiperutilizadores e a burocracia das redes de assistência no município. Dentro do contexto estrutural, podem-se citar as condições relativas à falta de estrutura física nas unidades de saúde para ações como interconsulta ou prontuários eletrônicos interligados e o número de usuários cadastrados muito acima do preconizado. No âmbito do contexto profissional, tem-se a enorme Rotatividade de profissionais de maneira geral, a falta de qualificação clínica e resolutiva das equipes de saúde.
Outra condição que interfere no formato de barreira para a implementação se refere às características teórico-operacionais do modelo de AA, que exige autonomia “local” para “planejamento das necessidades” e “Ajuste regular da oferta à demanda”. Embora a região onde este estudo foi realizado tivesse uma equipe bastante organizada em termos de sistema de informação em saúde, os municípios seguem as proposições do Ministério da Saúde, considerando que temos um SUS.
Outra barreira para esse modelo refere-se à “Prática colaborativa e integrada” das equipes de saúde, pois, embora tenhamos uma equipe trabalhando na APS, a autonomia e a resolutividade clínica dos enfermeiros e dos outros membros das equipes são reduzidas, por pactos sociais e de formação profissional que conferem aos médicos todo o protagonismo clínico na saúde.
A pesquisa de implementação se mostrou uma estratégia bastante promissora para monitorar e compreender as questões relativas à incorporação de evidências e inovações na prática dos serviços e saúde. A proposta dessa metodologia pressupõe que academia e serviço trabalhem juntos em um ciclo que parte da identificação de lacunas e/ou situações problema na prática dos serviços. Esta parceira acompanhou a implantação do modelo de AA, ajudou a conhecer e compreender o contexto onde a inovação foi implantada, as estratégias de planejamento, os procedimentos utilizados para a implantação, bem como as barreiras e facilitadores.
Agradecimentos
Os autores agradecem ao CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Código de Financiamento 001, pelo apoio fornecido ao longo deste trabalho.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
24 Mar 2024 -
Aceito
31 Jul 2024