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Recusa/ hesitação vacinal - o ponto de vista ético em pandemia de COVID-19

RESUMO

Objetivo:

Refletir e atualizar conhecimentos sobre hesitação vacinal numa perspetiva ética e bioética.

Metodologia:

Estudo reflexivo pela leitura e análise de pesquisa bibliográfica entre Dezembro 2020 a Maio 2021 nas bases de dados SciELO, PubMed Central, Direção Geral da Saúde e da Ordem dos Enfermeiros.

Resultados:

A vacinação visa proteção coletiva. Os efeitos desejáveis no indivíduo não possuem o mesmo valor ético no coletivo, levando a desequilíbrios custo/benefício. A insuficiência da bioética principialista, conduzem-nos ao uso de outros valores morais, como a responsabilidade, solidariedade e justiça social, para a reflexão dos problemas relacionados com a vacinação.

Conclusão:

Em ética não há soluções perfeitas e estas dependem do contexto. A imunidade de grupo é uma das questões mais discutidas em pandemia. A distribuição equitativa e o princípio da justiça, refletem-se diariamente na profissão de enfermagem.

Palavras-chave:
Recusa de vacinação; COVID-19; Ética; Bioética; Justiça social

ABSTRACT

Objective:

To reflect about vaccine hesitancy from ethical and bioethical perspectives.

Methodology:

Reflective study through the analysis of bibliographic research carried out from December 2020 to May 2021 in the data banks SciELO, PubMed, Direção Geral da Saúde, and Ordem dos Enfermeiros.

Results:

Vaccination aims at collective protection. The effects desirable in the individual do not have the same ethical value in the collective, leading to cost-benefit imbalances. The insufficiency of principlist Bioethics leads us to use other moral values, such as responsibility, solidarity, and social justice, to reflect on problems related to vaccination.

Conclusion:

In ethics there are no perfect solutions, and they depend on the context. Group immunity is one of the most discussed issues in a pandemic. Equitable distribution and the principle of justice are reflected daily in the nursing profession.

Keywords:
Vaccination refusal; COVID-19; Ethics; Bioethics; Social justice

RESUMEN

Objetivo:

Reflexionar sobre vacilación vacunal desde una perspectiva ética y bioética.

Metodología:

Estudio reflexivo con análisis de fuentes bibliográficas, realizado desde diciembre 2020 a mayo 2021 en las bases de datos SciELO, PubMed Central, Direção Geral da Saúde y Ordem dos Enfermeiros.

Resultados:

La vacunación visa la protección colectiva. Los efectos deseables en individuos no tienen el mismo valor ético que en el colectivo, generando desequilibrios costo-beneficio. La insuficiencia de la bioética principialista nos lleva a utilizar otros valores morales, como responsabilidad, solidaridad y justicia social, para reflexionar sobre los problemas relacionados con la vacunación.

Conclusión:

En ética no hay soluciones perfectas, pues dependen del contexto. La inmunidad de rebaño es un tema muy discutido en una pandemia. La distribución equitativa y el principio de justicia se reflejan a diario en la profesión de enfermería.

Palabras clave:
Negativa a la vacunación; COVID-19; Ética; Bioética; Justicia social

INTRODUÇÃO

A vacinação é uma das áreas de excelência de enfermagem que, em contexto de pandemia ganhou uma nova centralidade. Neste artigo, procuramos refletir sobre este tema que tem vindo a ganhar eco na sociedade, e que é hoje um enorme desafio para os enfermeiros, na prestação direta de cuidados e na área da gestão. O dilema ético da hesitação/recusa vacinal, levanta questões sobre a obrigatoriedade de vacinação, liberdade individual versus coletiva, equidade, justiça social e direitos humanos. Estas questões ganham relevância na atualidade com a pandemia, pelo facto de surgirem novas vacinas, pelas existentes no Plano Nacional de Vacinação (PNV) em Portugal e, por este dilema ético, ser coexistente desde a descoberta das vacinas. Iremos, contudo, centrar-nos mais na questão relacionada com a vacina COVID-19.

Sobre o estado da arte, é sabido que os fenómenos de hesitação vacinal/recusa vacinal são tão antigos quanto a própria vacinação. Existe abundante literatura científica sobre a hesitação/recusa vacinal na era pré-COVID-19. Apesar da vacinação ser uma das intervenções de saúde pública mais eficazes, os enfermeiros frequentemente encontram crianças que não foram vacinadas. Talvez por essa razão, em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a hesitação à vacinação como uma das 10 principais ameaças à saúde global. Estávamos, nessa altura, longe de imaginar que uma pandemia iria assolar o mundo cerca de 1 ano depois. De facto, a forma mais eficaz e positiva de combater as epidemias é o uso de vacinas11. Muñoz-Cruzado y Barba M. Reflexión ante la vacuna de la COVID-19. Rev Esp Comun Salud. 2020;11(2):175-7. doi: https://doi.org/10.20318/recs.2020/5814
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. Portanto, é inegável admitir o magnífico papel desempenhado pelas diferentes vacinas, porém, apesar de todas serem seguras, não são isentas de riscos. Logo, é também inegável reconhecer o papel crucial dos enfermeiros em Portugal, no sucesso da vacinação da população portuguesa desde 1965. Além das considerações éticas em relação à vacinação que já conhecíamos, surgem agora, com o aparecimento de novas vacinas contra a COVID-19, novas questões éticas. Parte dessas questões estarão relacionadas com o grau de risco das novas vacinas para a comunidade e será avaliado em que medida os direitos individuais poderão ou não ser restringidos. No entanto, relativamente ao grau de risco, deve-se ter em conta que a excecionalidade de um óbito devido a uma vacina, não se verifica na mesma medida, nos casos de morte em indivíduos não vacinados11. Muñoz-Cruzado y Barba M. Reflexión ante la vacuna de la COVID-19. Rev Esp Comun Salud. 2020;11(2):175-7. doi: https://doi.org/10.20318/recs.2020/5814
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. Com o atual contexto da COVID-19, surgiu a questão disparadora da reflexão: quais as consequências da atual campanha de vacinação contra a COVID-19 nas questões éticas sobre a recusa/hesitação vacinal? O objetivo deste artigo é refletir e atualizar conhecimentos sobre hesitação vacinal numa perspetiva ética e bioética, através de um estudo de natureza teórica e reflexiva, que, para a sua execução, exigiu a leitura, análise e reflexão de diferentes fontes bibliográficas, num momento em que se fala mais do que nunca sobre vacinação, implicando as questões éticas inerentes.

MÉTODOS

Estudo reflexivo pela leitura e análise de pesquisa bibliográfica entre Dezembro 2020 a Maio 2021 nas bases de dados SciELO, PubMed Central, Direção Geral da Saúde e da Ordem dos Enfermeiros (Portugal), acedidos em Portugal Continental, no contexto de Cuidados de Saúde Primários portugueses. O processo adoptado na seleção e leitura dos artigos, foi baseado em artigos de acesso ao texto integral, escritos em português, castelhano, francês ou inglês, o mais recentes possíveis relativos aos descritores: Recusa de vacinação; COVID-19; Ética; Bioética e Justiça social. Foram excluídos artigos sem acesso ao texto integral. A reflexão está organizada em vários tópicos: O princípio da justiça; Limites ténues entre beneficência e não maleficência da vacinação em massa; e, Liberdade individual versus responsabilidade coletiva. Estes tópicos foram analisados tendo por base a análise da vacinação em massa numa perspetiva bioética principialista, permitindo a sua discussão e inferência do autor em considerações sobre a prática clínica para a enfermagem.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A vacinação em massa com uma vacina segura e eficaz contra a COVID-19, trouxe uma extraordinária agitação social e económica em todo o mundo. Cerca de um ano após o início da pandemia, as esperanças de conquistar a COVID-19 dependem em grande parte das vacinas. Surgem assim novos desafios, dos quais dependerá o sucesso desta inédita campanha global de vacinação, muito mais complexa do que qualquer outra que o mundo já viveu na história. Embora as vacinas representem uma solução promissora para a pandemia de COVID-19, o desenvolvimento de vacinas é apenas uma parte da resposta. A aceitação generalizada de vacinas também é necessária e requer mais do que simplesmente disponibilizar vacinas seguras e eficazes. Tornar as vacinas amplamente acessíveis é bastante complexo. As experiências anteriores sugerem que isso é possível com uma meticulosa coordenação, proactiva e uma comunicação clara22. Schoch-Spana M, Brunson EK, Long R, Ruth A, Ravi SJ, Trotochaud M, et al. The public’s role in COVID-19 vaccination: human-centered recommendations to enhance pandemic vaccine awareness, access, and acceptance in the United States. Vaccine. 2021;39(40):6004-12. doi: https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2020.10.059
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. Neste primeiro momento de vacinação prioritária de grupos de risco, como num segundo momento, de vacinação em massa, superados os problemas de produção, a possibilidade de vacinação obrigatória vs. uma vacinação voluntária será uma realidade33. González-Melado FJ, Di Pietro ML. La vacuna frente a la COVID-19 y la confianza institucional. Enfermedades Infecciosas y Microbiología Clínica. 2020;39(10):510-5. doi: https://doi.org/10.1016/j.eimc.2020.08.001
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. Estes novos desafios levantam novas questões éticas sobre as quais iremos refletir neste artigo. A hesitação vacinal refere-se a um atraso na aceitação ou recusa da vacinação, apesar da disponibilidade. De facto, a situação atual centra-se na hesitação/recusa vacinal, com o surgir de vacinas contra a COVID-19, desencadeado pela rápida informação e rápido desenvolvimento de novas vacinas em contexto de emergência global. Ressurgem assim os conceitos de confiança e hesitação vacinal, vacinação em democracia, proteção individual versus proteção coletiva, vacinação em massa. Outros importantes factos para refletirmos, dada a falta de recursos de saúde, neste caso de vacinas, são o princípio da igualdade, porque não pode ser aplicado no acesso a vacinas contra a COVID-19. Surge então o princípio da equidade. Equidade é a justiça distributiva entendida não como a distribuição igualitária de recursos, mas como a justiça em relação às necessidades, especialmente na distribuição de riscos e benefícios na sociedade. Seguindo esse princípio, na relação risco/benefício aparecem pelo menos dois grupos que devem ser os destinatários do primeiro grupo de vacinas disponíveis: profissionais de saúde e usuários do sistema de saúde com mais de 70 anos33. González-Melado FJ, Di Pietro ML. La vacuna frente a la COVID-19 y la confianza institucional. Enfermedades Infecciosas y Microbiología Clínica. 2020;39(10):510-5. doi: https://doi.org/10.1016/j.eimc.2020.08.001
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. A hesitação vacinal ocorre num continuum entre a alta demanda da vacina e a recusa completa da vacina, ou seja, nenhuma demanda por vacinas disponíveis e oferecidas. No entanto, a demanda e a hesitação não são completamente congruentes. Um indivíduo ou comunidade pode aceitar totalmente a vacinação sem hesitação, mas pode não exigir a vacinação ou uma vacina específica22. Schoch-Spana M, Brunson EK, Long R, Ruth A, Ravi SJ, Trotochaud M, et al. The public’s role in COVID-19 vaccination: human-centered recommendations to enhance pandemic vaccine awareness, access, and acceptance in the United States. Vaccine. 2021;39(40):6004-12. doi: https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2020.10.059
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. A hesitação vacinal refere-se ao atraso na aceitação ou recusa da vacinação, apesar da disponibilidade de serviços de vacinação. A hesitação vacinal é complexa e específica ao contexto, variando ao longo do tempo, local e vacinas. É influenciada por fatores como complacência, conveniência e confiança22. Schoch-Spana M, Brunson EK, Long R, Ruth A, Ravi SJ, Trotochaud M, et al. The public’s role in COVID-19 vaccination: human-centered recommendations to enhance pandemic vaccine awareness, access, and acceptance in the United States. Vaccine. 2021;39(40):6004-12. doi: https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2020.10.059
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. O novo coronavírus é manchete em todo o mundo e causou uma pandemia, numa altura em que o uso das redes sociais está generalizado, promovendo uma troca rápida e global de informações, desinformação e comparações fáceis. A confiança nas vacinas dependerá de como evoluirão as fake news que fomentam as teorias da conspiração em torno da COVID-19 e das vacinas contra o vírus. Todos esses fatores afetarão os níveis de confiança/desconfiança da população em relação às instituições e às vacinas contra COVID-1933. González-Melado FJ, Di Pietro ML. La vacuna frente a la COVID-19 y la confianza institucional. Enfermedades Infecciosas y Microbiología Clínica. 2020;39(10):510-5. doi: https://doi.org/10.1016/j.eimc.2020.08.001
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. Desde o início da crise sanitária que ouvimos notícias do otimismo numa descoberta de uma vacina, no meio de tantas incertezas. Iniciou-se assim a discussão da obrigatoriedade vacinal. Da pesquisa efetuada, verifico que a maioria das comissões de ética são a favor de manter a vacinação como não obrigatória11. Muñoz-Cruzado y Barba M. Reflexión ante la vacuna de la COVID-19. Rev Esp Comun Salud. 2020;11(2):175-7. doi: https://doi.org/10.20318/recs.2020/5814
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- 33. González-Melado FJ, Di Pietro ML. La vacuna frente a la COVID-19 y la confianza institucional. Enfermedades Infecciosas y Microbiología Clínica. 2020;39(10):510-5. doi: https://doi.org/10.1016/j.eimc.2020.08.001
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, 44. Sanchez-Ramón S, Fernández-Cruz E. Reflexión bioética sobre la Inmunización de masas en Europa. Inmunología. Março de 1987;25(1):67-71. , 55. deNovo Medica [Internet]. Cape Town: deNovo Medica; 2020 [cited 2021 Jan 8]. Ethical considerations of vaccine hesitancy and refusal in clinical pratice - in the era of COVID-19. Available from: https://www.denovomedica.com/modules/ethical-considerations-of-vaccine-hesitancy-and-refusal-in-clinical-practice-in-the-era-of-covid-19/
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. A própria Direção-Geral de Saúde66. República Portuguesa. Serviço Nacional de Saúde. Direção-Geral da Saúde. Norma nº 021/2020 de 23 de dezembro de 2020. Campanha de Vacinação contra a COVID-19, vacina COMIRNATY®. [Internet]. 2020 dez 23 [cited 2021 Jan 10]. Available from: https://www.ordemenfermeiros.pt/media/21036/norma-021-2020-covid-19-campanha-de-vacina%C3%A7%C3%A3o-contra-a-covid-19-vacina-comirnaty-atualizada-a-14012021.pdf
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, refere que a vacina COVID-19 é voluntária e fortemente recomendada, entendendo que, as pessoas maiores de 16 anos, se apresentam para vacinação e que são devidamente informadas, dão o seu consentimento. Mas a hesitação vacinal é um fenómeno complexo e emergente. A vacinação imposta por obrigação poderia até agravar o problema da hesitação/recusa vacinal77. Gérvas Camacho J, Segura Benedicto A, García-Oniver Artazcoz M. Ética y vacunas: más allá del acto clínico. In: Reyes M, Sánchez M (editores). Bioética y pediatría. Proyectos de vida plena. Madrid: Ergon-Sociedad de Pediatría Madrid Castilla-La Mancha. 2010 [cited 2021 Jan 10]. p. 229-36. Available from: http://equipocesca.org/new/wp-content/uploads/2010/07/25-bioetica.pdf
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e constituí uma decisão eticamente controversa porque afeta os direitos individuais, incluindo o direito à autodeterminação do indivíduo em questões de saúde. Os problemas éticos relativos às vacinas são específicos, como a vacinação de indivíduos com limitada capacidade de decisão e que sem as vacinas são evidentes as contradições entre o nível individual e o coletivo. A parte da sustentação dos dilemas éticos sobre vacinas, pode ser a dificuldade em demonstrar metodologicamente a ausência absoluta de causalidade das vacinas como fator de risco de uma doença. Deveremos então colocar-nos perante uma reflexão bioética sobre a estratégia de vacinação universal. No atual contexto, sob a ótica da bioética e considerando a relação enfermeiro versus utente, utilizei a corrente principialista. O principialismo é uma das várias formas mais utilizadas da expressão da bioética88. Falcão HG, Cassimiro MC, Silva CHD. Bioética: limite tênue entre conflitos morais e conflito de interesses nas pesquisas biomédicas com seres humanos. In: Cassimiro MC, Diós-Borges MMP, Almeida RMVR, organizadores. Políticas de integridade científica, Bioética e Biossegurança no século XXI. Porto Alegre: Editora Fi; 2017 [cited 2021 Jan 10]. p. 142-67. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/30946/2/2-48d206_cbdcc1fc2a1441bf86e3eda7eb5f6745.pdf
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. A corrente principialista iniciou-se com o Relatório Belmont (1979)88. Falcão HG, Cassimiro MC, Silva CHD. Bioética: limite tênue entre conflitos morais e conflito de interesses nas pesquisas biomédicas com seres humanos. In: Cassimiro MC, Diós-Borges MMP, Almeida RMVR, organizadores. Políticas de integridade científica, Bioética e Biossegurança no século XXI. Porto Alegre: Editora Fi; 2017 [cited 2021 Jan 10]. p. 142-67. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/30946/2/2-48d206_cbdcc1fc2a1441bf86e3eda7eb5f6745.pdf
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, com princípios básicos na solução dos problemas éticos surgidos na pesquisa com seres humanos. No mesmo ano, Beauchamp & Childress88. Falcão HG, Cassimiro MC, Silva CHD. Bioética: limite tênue entre conflitos morais e conflito de interesses nas pesquisas biomédicas com seres humanos. In: Cassimiro MC, Diós-Borges MMP, Almeida RMVR, organizadores. Políticas de integridade científica, Bioética e Biossegurança no século XXI. Porto Alegre: Editora Fi; 2017 [cited 2021 Jan 10]. p. 142-67. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/30946/2/2-48d206_cbdcc1fc2a1441bf86e3eda7eb5f6745.pdf
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, apresentaram a bioética sob o mesmo prisma, baseada nos quatro princípios prima facie (não absolutos): 1) princípio do respeito da autonomia; 2) princípio da não-maleficência; 3) princípio da beneficência; 4) princípio da justiça. Estes autores buscaram aliar princípios que eram consagrados na ética médica na relação com o paciente (beneficência e não-maleficência), a outros dois princípios que não estavam incorporados ainda (autonomia e justiça). O princípio da beneficência possui uma larga tradição na ética médica hipocrática88. Falcão HG, Cassimiro MC, Silva CHD. Bioética: limite tênue entre conflitos morais e conflito de interesses nas pesquisas biomédicas com seres humanos. In: Cassimiro MC, Diós-Borges MMP, Almeida RMVR, organizadores. Políticas de integridade científica, Bioética e Biossegurança no século XXI. Porto Alegre: Editora Fi; 2017 [cited 2021 Jan 10]. p. 142-67. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/30946/2/2-48d206_cbdcc1fc2a1441bf86e3eda7eb5f6745.pdf
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. O princípio da não-maleficência está associado a máxima primum non nocere (acima de tudo, não cause danos)88. Falcão HG, Cassimiro MC, Silva CHD. Bioética: limite tênue entre conflitos morais e conflito de interesses nas pesquisas biomédicas com seres humanos. In: Cassimiro MC, Diós-Borges MMP, Almeida RMVR, organizadores. Políticas de integridade científica, Bioética e Biossegurança no século XXI. Porto Alegre: Editora Fi; 2017 [cited 2021 Jan 10]. p. 142-67. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/30946/2/2-48d206_cbdcc1fc2a1441bf86e3eda7eb5f6745.pdf
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. O princípio da autonomia baseia-se nos pressupostos de que a sociedade democrática e a igualdade de condições entre os indivíduos constituem os pré-requisitos para que as diferenças morais possam coexistir88. Falcão HG, Cassimiro MC, Silva CHD. Bioética: limite tênue entre conflitos morais e conflito de interesses nas pesquisas biomédicas com seres humanos. In: Cassimiro MC, Diós-Borges MMP, Almeida RMVR, organizadores. Políticas de integridade científica, Bioética e Biossegurança no século XXI. Porto Alegre: Editora Fi; 2017 [cited 2021 Jan 10]. p. 142-67. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/30946/2/2-48d206_cbdcc1fc2a1441bf86e3eda7eb5f6745.pdf
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. O princípio da justiça está mais intimamente ligado ao papel dos movimentos sociais organizados da bioética e a atuação das sociedades como formadoras de opinião88. Falcão HG, Cassimiro MC, Silva CHD. Bioética: limite tênue entre conflitos morais e conflito de interesses nas pesquisas biomédicas com seres humanos. In: Cassimiro MC, Diós-Borges MMP, Almeida RMVR, organizadores. Políticas de integridade científica, Bioética e Biossegurança no século XXI. Porto Alegre: Editora Fi; 2017 [cited 2021 Jan 10]. p. 142-67. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/30946/2/2-48d206_cbdcc1fc2a1441bf86e3eda7eb5f6745.pdf
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. Utilizo uma abordagem teórica da bioética mais relacionada com a dimensão social da saúde e que considera, nas suas reflexões morais, a fragilidade e vulnerabilidade de grupos ou segmentos sociais como proposta epistemológica anti hegemónica, ampliada e politizada99. Garrafa V. Expansion and politicization of the international bioethics concept. Rev Bioét. 2012;20(1):9-20. Available from: https://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/711
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. Os aspetos éticos das decisões de saúde coletiva têm grande interesse, uma vez que, em certas situações, os interesses do conjunto da população contrapõem-se aos interesses individuais das pessoas. No contexto coletivo, considera-se que pequenos riscos são equilibrados pelos benefícios da imunização da população, logo um indivíduo carrega ocasionalmente um ónus de ocorrência de um evento adverso pela vacinação para o benefício geral da população. O princípio do respeito pela autonomia do indivíduo, permite ao indivíduo rejeitar um tratamento e, portanto, também rejeitar a vacinação. Fica claro, portanto, que o indivíduo tem o direito de optar por não ser vacinado33. González-Melado FJ, Di Pietro ML. La vacuna frente a la COVID-19 y la confianza institucional. Enfermedades Infecciosas y Microbiología Clínica. 2020;39(10):510-5. doi: https://doi.org/10.1016/j.eimc.2020.08.001
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. O princípio bioético implicado será o do respeito pela autonomia e liberdade individual, no respeito pela capacidade de decisão do indivíduo. Um aspeto de especial interesse é o da análise custo-oportunidade de cada intervenção em saúde55. deNovo Medica [Internet]. Cape Town: deNovo Medica; 2020 [cited 2021 Jan 8]. Ethical considerations of vaccine hesitancy and refusal in clinical pratice - in the era of COVID-19. Available from: https://www.denovomedica.com/modules/ethical-considerations-of-vaccine-hesitancy-and-refusal-in-clinical-practice-in-the-era-of-covid-19/
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. Fala-se de custo-oportunidade quando nos referimos à introdução de uma nova prestação de saúde, onde se consomem recursos e, em consequência, outras intervenções de saúde serão adiadas, uma vez que os recursos disponíveis são limitados. Alguns autores77. Gérvas Camacho J, Segura Benedicto A, García-Oniver Artazcoz M. Ética y vacunas: más allá del acto clínico. In: Reyes M, Sánchez M (editores). Bioética y pediatría. Proyectos de vida plena. Madrid: Ergon-Sociedad de Pediatría Madrid Castilla-La Mancha. 2010 [cited 2021 Jan 10]. p. 229-36. Available from: http://equipocesca.org/new/wp-content/uploads/2010/07/25-bioetica.pdf
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) referem que para sermos coerentes, as intervenções de saúde financiadas com recursos públicos deveriam ser objeto de análise custo-oportunidade se se pretende satisfazer o princípio ético de justiça e de equidade. Este princípio deveria aplicar-se às novas vacinas, já que são cobertas com financiamento público, em milhões de euros. Esta questão leva-nos a considerar a faceta da equidade porque nem todas os grupos da população têm a mesma probabilidade de contágio, nem de desenvolver complicações como consequência da infeção. De acordo com uma notícia publicada no jornal “Observador” em 13 janeiro 2021, foi reportado um caso de uma mulher idosa num lar em Espanha, que pela sua incapacidade em decidir, a sua filha era opositora a vacinar a mãe, levando o tribunal a pronunciar-se a favor do lar e a vacinar a utente. Segundo o Tribunal, seria urgente vacinar uma mulher idosa na pandemia. De acordo com o juiz, que deu razão ao Lar, os números do contágio indicavam que era notório essa urgência por haver um elevado número de mortes, pelo que a sua proteção era algo urgente. A vacinação em Espanha é voluntária, no entanto, vários lares estão a pedir à justiça que obriguem os utentes com incapacidade em decidir a serem vacinados, apesar de as respetivas famílias se oporem77. Gérvas Camacho J, Segura Benedicto A, García-Oniver Artazcoz M. Ética y vacunas: más allá del acto clínico. In: Reyes M, Sánchez M (editores). Bioética y pediatría. Proyectos de vida plena. Madrid: Ergon-Sociedad de Pediatría Madrid Castilla-La Mancha. 2010 [cited 2021 Jan 10]. p. 229-36. Available from: http://equipocesca.org/new/wp-content/uploads/2010/07/25-bioetica.pdf
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. Do ponto de vista bioético, poderá aqui sobrepor-se o valor coletivo e, sem dúvida, que o contexto da pandemia é aqui o fator fundamental para a decisão do juiz, já que existe consenso entre a própria OMS e a comunidade científica, de que, em contexto de pandemia, o valor coletivo se sobrepõe aos valores individuais, mesmo em países onde a vacinação não é obrigatória. Neste caso concreto, poderia invocar-se ainda o princípio de justiça, porque a filha recusou a vacina à mãe incapacitada, eventualmente ao justificar essa oposição à vacina com base na proteção conferida por estar num grupo vacinado (partindo do princípio que os utentes do lar tenham sido todos vacinados), sem considerar que esta posição poderia colocar em risco a imunidade de grupo (que é um direito de todos), enquanto beneficia dessa situação sem contribuir para ela. A vacinação também não é obrigatória em Portugal88. Falcão HG, Cassimiro MC, Silva CHD. Bioética: limite tênue entre conflitos morais e conflito de interesses nas pesquisas biomédicas com seres humanos. In: Cassimiro MC, Diós-Borges MMP, Almeida RMVR, organizadores. Políticas de integridade científica, Bioética e Biossegurança no século XXI. Porto Alegre: Editora Fi; 2017 [cited 2021 Jan 10]. p. 142-67. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/30946/2/2-48d206_cbdcc1fc2a1441bf86e3eda7eb5f6745.pdf
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, à exceção das vacinas contra o Tétano e Difteria. O Decreto-Lei n. 44.198 de 1962 que ainda não foi revogado, estabelece as condições de obrigatoriedade para estas vacinas. Em Portugal, o Plano Nacional de Vacinação é uma proposta de cumprimento voluntário, já que apenas as vacinas antitetânicas e antidiftérica são obrigatórias nos termos da lei. Sobre a vacinação COVID-19, esta também é voluntária. O mais importante perante uma recusa/hesitação vacinal, é a oportunidade para fazer educação para a saúde, potencializando a literacia em saúde que permita uma mais esclarecida e livre tomada de decisão, num contexto de uma atitude mais inclusiva, que garantirá maiores ganhos em saúde1010. Santos P, Hespanhol A. Recusa vacinal - o ponto de vista ético. Rev Port Med Geral Fam. 2013;29(5):328-33. doi: https://doi.org/10.32385/rpmgf.v29i5.11167
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. Do ponto de vista da análise bioética, levantam-se questões no âmbito de proteções individuais da vacina e na sua viabilidade logística de um programa de vacinação em massa; outros fatores como a duração da proteção conferida, custo, imunidade de grupo, são também abordados77. Gérvas Camacho J, Segura Benedicto A, García-Oniver Artazcoz M. Ética y vacunas: más allá del acto clínico. In: Reyes M, Sánchez M (editores). Bioética y pediatría. Proyectos de vida plena. Madrid: Ergon-Sociedad de Pediatría Madrid Castilla-La Mancha. 2010 [cited 2021 Jan 10]. p. 229-36. Available from: http://equipocesca.org/new/wp-content/uploads/2010/07/25-bioetica.pdf
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. Para minimizar os danos potenciais causados por uma vacina específica, apenas as que se mostrem eficazes e seguras são usadas, respeitando-se assim o princípio da não maleficência. As vacinas não devem apenas proteger as pessoas contra uma doença específica, mas conferir benefícios por meio da imunidade de grupo. Do ponto de vista dos direitos humanos, a vacinação promove e protege a saúde coletiva de forma equitativa.

O princípio da justiça

Em bioética fala-se muito da justiça distributiva, que diz respeito à justa repartição dos encargos e vantagens, ou seja: por um lado, a distribuição equitativa tanto dos custos quanto dos benefícios na sociedade; por outro lado, o justo acesso a esses recursos1111. Oliveira V. Covid-19. Justiça espanhola autoriza lar a vacinar idosa incapacitada, apesar de oposição da filha. Observador [Internet]. 2021 [cited 2021 Jan 13]. Available from: https://observador.pt/2021/01/13/covid-19-justica-espanhola-obriga-idosa-incapacitada-a-tomar-vacina-apesar-de-oposicao-da-filha/
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. No caso de Portugal, paradoxalmente, apesar de haver igualdade no acesso às vacinas, não há equidade na distribuição dos custos da vacinação, em particular na vacinação coletiva é improvável que uma pessoa beneficie mais do que a outra, uma vez que a distribuição dos benefícios não pode ser alocada injustamente. A justiça distributiva requer a alocação justa de recursos escassos. No contexto da vacina COVID-19, existem circunstâncias excecionais e necessidades que superam os recursos disponíveis, a tomada de decisão e o estabelecimento de prioridades tornam-se, do ponto de vista ético, difíceis55. deNovo Medica [Internet]. Cape Town: deNovo Medica; 2020 [cited 2021 Jan 8]. Ethical considerations of vaccine hesitancy and refusal in clinical pratice - in the era of COVID-19. Available from: https://www.denovomedica.com/modules/ethical-considerations-of-vaccine-hesitancy-and-refusal-in-clinical-practice-in-the-era-of-covid-19/
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. Como poderemos distribuir as vacinas de combate ao SARS-CoV-2 de forma equitativa? Priorizar grupos e indivíduos suscetíveis ou aqueles com maior probabilidade de disseminar a doença? É difícil, pois a necessidade supera em larga escala a oferta. Uma espécie de lotaria poderia ser mais igualitária neste caso. Sendo a obtenção da imunidade de grupo um dos objetivos do plano de vacinação, como serão distribuídas as áreas geográficas? No mundo, quem recebe mais cedo ou mais tarde a vacina COVID-19? Em termos de vulnerabilidade, nas situações de emergência, as sociedades mais pobres são mais gravemente atingidas, porque a pobreza mina a resiliência. A utilidade da vacinação costuma ser maior quando se visa os grupos mais desfavorecidos socialmente77. Gérvas Camacho J, Segura Benedicto A, García-Oniver Artazcoz M. Ética y vacunas: más allá del acto clínico. In: Reyes M, Sánchez M (editores). Bioética y pediatría. Proyectos de vida plena. Madrid: Ergon-Sociedad de Pediatría Madrid Castilla-La Mancha. 2010 [cited 2021 Jan 10]. p. 229-36. Available from: http://equipocesca.org/new/wp-content/uploads/2010/07/25-bioetica.pdf
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. As populações refugiadas ou deslocadas não devem ser tratadas separadamente da comunidade anfitriã, e os planos de vacinação devem apoiar todos dentro de uma mesma área geográfica. É importante ressalvar que os profissionais de saúde, beneficiarão indiretamente, ao serem vacinados, pois, para além do aumento do risco de infeção a que estão sujeitos, têm a obrigação moral de se vacinar para evitar colocar os doentes em risco de infeção. A corrente bioética principialista centra-se nalguns princípios morais cuja aplicação supostamente leva à solução dos dilemas éticos na saúde: respeito pela autonomia, beneficência, não maleficência e justiça.

Limites tênues entre beneficência e não maleficência da vacinação em massa

A vacinação implica algum grau de risco para os cidadãos. No contexto da bioética principialista, torna-se necessário que esteja assegurado que os profissionais de saúde possuam o princípio ético de não provocar danos aos seus doentes (primum non nocere). As atividades preventivas visam a proteção das pessoas contra doenças infeciosas, partindo do princípio de que o procedimento de vacinação também cumpre o princípio de beneficência. Considerando que é moralmente indesejável causar danos às pessoas, quer pela exposição aos riscos dos efeitos adversos da vacinação quer pela exposição às doenças pela falta de imunização, que princípio moral deve ser considerado quando os riscos e os benefícios da vacinação são distribuídos de forma desigual entre a população? Deste modo, surgem conflitos entre princípios, o que nos deverá levar a refletir mais sobre estas questões.

Liberdade individual versus responsabilidade coletiva

Ao contrário da prática clínica, cuja noção de autonomia é invocada para exprimir a liberdade do sujeito de consentir ou recusar um tratamento proposto por um profissional de saúde, no âmbito da saúde pública, particularmente nos casos de vacinação em massa nas situações de epidemias, a autonomia do sujeito está em conflito com o interesse da proteção coletiva, pois a não violação da autonomia individual implicaria um risco real para toda a comunidade. No contexto dos programas de vacinação em massa, o direito à autonomia é baseado no reconhecimento social do respeito a esse princípio. Considerando que as vacinas não são totalmente seguras, o respeito à autonomia conduz a que os riscos não devem ser impostos aos indivíduos sem o seu consentimento. Há uma razão crítica para avaliar os argumentos pró e contra no contexto do direito de consentir ou recusar a vacinação. Pois ao recusar, pode afetar-se seriamente a saúde das pessoas. As restrições aos direitos individuais no âmbito dos planos de vacinação, são justificados por duas razões: em função do benefício ao próprio indivíduo ou em função do benefício ao coletivo. Quanto maior a cobertura vacinal, menor é a probabilidade de propagação do agente infecioso, principalmente nos grupos vulneráveis. Neste contexto, a não vacinação individual é indesejável, pois aqueles indivíduos que decidiram não se vacinar possuem maior risco do que aqueles que optaram pela vacinação. Neste caso, em que há uma tensão entre o interesse individual e o coletivo, a autonomia perde valor frente aos interesses de imunidade do coletivo. Na ótica principialista, atender ao princípio da autonomia, que faculta ao indivíduo tomar ou não a vacina, opõe-se ao princípio da não maleficência de pôr em risco todo o coletivo. No entanto, opõe-se apenas se o indivíduo tomar uma decisão contrária e, ainda, assim, isso pode ser discutido, pois mesmo que o indivíduo não tome a vacina, não quer dizer, necessariamente, que ele vá causar um dano, mas que existe a possibilidade de tal fato ocorrer.

Surgem questões como, se é suficientemente adequado adaptar ao contexto coletivo, o modelo dos quatro princípios da bioética principialista como ferramenta para entender e discutir os conflitos morais que ocorrem nas ações coletivas. Neste caso poderia ser mais adequado analisar à luz da Teoria Utilitarista, onde há uma prioridade dos fins da ação em relação aos meios. Torna-se necessário definir quais as ferramentas conceptuais que poderiam ser utilizadas na abordagem desses problemas para proporcionar impactos positivos nos grupos mais vulneráveis e excluídos. Nos planos de vacinação em massa, que visam em última instância a proteção coletiva, os efeitos desejáveis no indivíduo não possuem o mesmo valor ético dos efeitos no coletivo, levando a um desequilíbrio entre o custo-benefício individual em relação ao custo-benefício coletivo. Considerando os conflitos morais entre o individual e o coletivo, o desequilíbrio entre o custo-benefício e a incapacidade ou insuficiência da bioética principialista, torna-se necessário o uso de outros valores e princípios morais, como a responsabilidade, solidariedade e justiça social, como ferramenta para a reflexão dos problemas éticos relacionados com planos de vacinação. A bioética teve uma grande modificação conceptual quando a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) publicou em 2005, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Não esqueçamos também que o princípio moral de proteção está implícito nas obrigações do Estado, que deve proteger os seus cidadãos contra calamidades, uma vez que todos os cidadãos não se conseguem proteger sozinhos contra tudo e contra todos, podendo tornar-se suscetíveis e até vulneráveis em determinadas circunstâncias. Alguns países têm isenção legal da obrigatoriedade de vacinar ao abrigo ético da liberdade e autonomia. Há, no entanto, vários exemplos a nível mundial onde algumas vacinas deixaram de ser obrigatórias e o número de vacinados até aumentou. A informação parece ser fulcral para sustentar a fundamentação ética e consentida para a vacinação. Sabemos que muitas pessoas procuram informações na internet. Um outro argumento que aqui analisamos tem a ver com o aumento do número de vacinas disponíveis, em particular com a nova vacina da COVID-19. De realçar também que os profissionais de saúde se encontram numa posição privilegiada e ideal para proporcionarem informações fidedignas sobre a vacinação e para influenciarem positivamente a sua adesão. Uma reflexão bioética profunda contribuiria para uma melhor política universal de imunização e permitiria a aproximação de todos os grupos que intervêm nessa atividade, ou seja, a sociedade em geral, para que cada cidadão tenha as informações necessárias que lhe permitam fazer uma escolha individual solidária1212. Ordem dos Enfermeiros (PT). Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Infantil e Pediátrica. Parecer nº 11/2011. Informações sobre vacinação... [Internet]. Lisboa: Ordem dos Enfermeiros; 2011[cited 2021 Jan 13]. Available from: https://www.ordemenfermeiros.pt/arquivo/documentos/Documents/Parecer%2011_MCEESIP.pdf
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. A vacinação deve ser voluntária, a menos que se torne crítica para prevenir danos sérios e concretos e a hesitação vacinal é um fenómeno comportamental, influenciado por muitos fatores99. Garrafa V. Expansion and politicization of the international bioethics concept. Rev Bioét. 2012;20(1):9-20. Available from: https://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/711
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. As razões para um declínio na confiança de vacinas para COVID-19 são, assim, também complexos77. Gérvas Camacho J, Segura Benedicto A, García-Oniver Artazcoz M. Ética y vacunas: más allá del acto clínico. In: Reyes M, Sánchez M (editores). Bioética y pediatría. Proyectos de vida plena. Madrid: Ergon-Sociedad de Pediatría Madrid Castilla-La Mancha. 2010 [cited 2021 Jan 10]. p. 229-36. Available from: http://equipocesca.org/new/wp-content/uploads/2010/07/25-bioetica.pdf
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. O futuro da imunização está estritamente relacionado com a credibilidade das vacinas. Neste sentido, a bioética pode contribuir para a reflexão e debate no sentido de ajudar a entender a complexidade e a conflituosidade da realidade, no respeito pelos direitos dos cidadãos. De todas as formas, a não adesão às vacinas é tão antiga como a própria vacinação, e os profissionais envolvidos devem encarar cada acontecimento como uma oportunidade de fazer educação para a saúde, com o objetivo de aumentar a capacitação da população, contribuindo para a melhoria do seu nível de saúde99. Garrafa V. Expansion and politicization of the international bioethics concept. Rev Bioét. 2012;20(1):9-20. Available from: https://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/711
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CONCLUSÃO

A vacinação levanta questões éticas, uma das mais pertinentes, em contexto de pandemia, é a da imunidade de grupo, quando individualmente se decide ou não vacinar, uma vez que se coloca a saúde pública em causa. Os dilemas éticos podem causar posturas extremas, que, por um lado, lesionam a autonomia e liberdade individual e, por outro lado, prejudicam a preservação da saúde coletiva. Ambas as situações de extremos são de evitar, e a procura de soluções intermédias será o melhor procedimento. É necessário, da parte do enfermeiro, que explore os motivos da oposição à vacinação para fazer a necessária Educação para a Saúde. A distribuição equitativa das vacinas e o princípio da justiça são importantes, já que o desafio à escala global da sua produção e distribuição irá ainda demorar muitos meses. Não há soluções perfeitas para os dilemas éticos analisados e as soluções dependem do contexto. A ética ganha hoje uma nova centralidade na prática clínica devido às campanhas de vacinação COVID-19. A ética é uma das bases da enfermagem e a sua análise visa aumentar a qualidade dos cuidados de enfermagem e contribuir para a construção de uma sociedade mais justa. Ao refletir sobre questões éticas, quero contribuir para a valorização social da profissão de enfermagem e para o avanço do conhecimento de enfermagem e saúde. Em situações de emergência, as sociedades mais pobres são afetadas de forma mais severa, porque a pobreza mina a resiliência. A utilidade das vacinas é, assim, maior quando dirigida aos grupos mais desfavorecidos socialmente. Os planos de vacinação devem apoiar todos numa mesma área geográfica. A enfermagem tem a responsabilidade ética de reivindicar mais justiça social e equidade em níveis globais para os planos de vacinação. Analisamos um tema com um poderoso destaque ao nível mundial e que está diretamente relacionado com os enfermeiros, seja na prestação direta de cuidados seja no campo da gestão. Como contribuição para a prática e para melhorar o bem-estar das populações, é necessário que os enfermeiros abordem determinantes sociais de saúde nas suas práticas diárias, para que possam ser parte integrante do desenvolvimento de políticas e estratégias nacionais que promovam a saúde, como nas estratégias de campanhas de vacinação em massa contra a COVID-19. No plano científico, a reflecção sobre questões de ética, bioética e liberdade é sempre difícil, mas deve ser alvo de mais estudo para trazer benefício para a sociedade em geral.

REFERENCES

Editado por

Editor associado:

Rosana Maffacciolli

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2021
  • Aceito
    16 Nov 2021
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