RESUMO
Objetivo Avaliar os impactos da inserção do acolhimento à demanda espontânea no tratamento de usuários hipertensos na atenção primária de saúde.
Métodos Pesquisa de avaliação de terceira geração qualitativa, realizada junto a 16 trabalhadores de uma Unidade de Atenção Primária de Saúde (UAPS) da cidade de Fortaleza-CE, no período entre julho e setembro de 2015. Para a coleta de dados, foram utilizadas observação sistemática de campo e entrevistas semiestruturadas e, para a análise, adotaram-se as etapas da análise de conteúdo temática.
Resultados Os participantes revelaram que o acesso, vínculo e acolhimento são fundamentais para o tratamento da hipertensão, entretanto afirmaram que a introdução do livre acesso à demanda espontânea comprometeu o fluxo de atendimento dos programas de hipertensão.
Conclusão Foi evidenciada uma dicotomia entre a prática do acolhimento preconizada pelas políticas de saúde e a existente na realidade da UAPS, acarretando prejuízo ao cuidado do hipertenso na atenção primária.
Atenção primária à saúde; Hipertensão; Acolhimento
RESUMEN
Objetivo Evaluar el impacto de la inclusión de acoger la demanda espontánea en el tratamiento de pacientes hipertensos en atención primaria de salud.
Método Estudio de evaluación cualitativa de la tercera generación hecho con 16 trabajadores de una Unidad de Atención Primaria de la Salud (UAPS) de la ciudad de Fortaleza, en el período entre julio y septiembre de 2015. Para la recolección de datos, fueron utilizados observación de campo sistemática y entrevistas semiestructuradas, y en el análisis se adoptaron las etapas del análisis de contenido temático.
Resultados Los participantes revelaron que el acceso, enlace y la recepción son fundamentales para el tratamiento de la hipertensión, sin embargo, dijeron que la introducción de libre acceso a la demanda espontánea en peligro el flujo de la atención de los programas de hipertensión.
Conclusión Se demostró una dicotomía entre la práctica de acoger recomendado por las políticas de salud y existiendo en la realidad de la UAPS, causando daño a la atención de los pacientes hipertensos en atención primaria.
Atención primaria de salud; Hipertensión; Acogimiento
ABSTRACT
Objective To assess the impacts of inclusion of care for spontaneous demands in the treatment of hypertensive patients in primary health care.
Methods Third generation qualitative assessment survey conducted with 16 workers in a Primary Care Health Unit (PHCU) of the city of Fortaleza, state of Ceara, in the period between July and September of 2015. To collect data, systematic field observation and semi-structured interviews were used, and the stages of thematic content analysis were adopted for data analysis.
Results Participants revealed that access, connection and care are fundamental to the treatment of hypertension. However, they said that the introduction of free access for spontaneous demands compromised the flow of care in the hypertension programs.
Conclusion A dichotomy between the practice of care recommended by health policies and the one existing in the reality of PHCUs was shown, causing evident losses to the care of hypertensive patients in primary care.
Primary Health Care; Hypertension; Care
INTRODUÇÃO
A Estratégia Saúde da Família (ESF) surgiu há 21 anos como uma nova intervenção de saúde para implementação da atenção primária, objetivando a reestruturação do modelo assistencial vigente no país até então. Nesse sentido, a ESF é uma proposta de mudança ao modelo de atenção à saúde, tirando o foco do modelo hospitalar, evoluindo para uma atenção mais próxima das comunidades(1), sendo o acolhimento e o vínculo ferramentas fundamentais para o estabelecimento da confiança com o usuário.
Como um dos eixos estruturantes do Sistema Único de Saúde (SUS), o nível primário de atenção vive um momento especial ao ser identificado como uma das prioridades do Ministério da Saúde brasileiro, e entre os seus desafios atuais destacam-se aqueles relativos ao acesso, vínculo e acolhimento(2).
No caso das doenças crônicas não transmissíveis, especialmente a hipertensão arterial sistêmica (HAS) se destaca como a doença mais prevalente em todo o mundo, responsável por 13,5% de todas as mortes, que aumenta significativamente o risco cardiovascular, sendo uma condição clínica multifatorial caracterizada por níveis altos e sustentados dos níveis pressóricos do sangue. No Brasil, sua prevalência média é de 32,5%, representando assim, um sério problema de saúde pública(3-4).
Nesse contexto, a Atenção Primária de Saúde (APS) tem a importante atribuição de ser a entrada preferencial do sistema de saúde, reconhecendo o conjunto de necessidades e impactando positivamente nas condições de saúde da população(5). Portanto, a HAS se mostra um grande desafio para a rede primária pois é uma condição com coexistência de determinantes biológicos e socioculturais, e sua abordagem, para ser efetiva, exige o protagonismo dos indivíduos, suas famílias e comunidade, sendo notável a contribuição do acesso, vínculo e acolhimento nesses casos(6).
Neste sentido, é necessário compreender que a resolutividade da atenção às pessoas hipertensas consiste não apenas no uso medicamento e na instituição de medidas reguladoras, mas na consideração da pessoa em sua totalidade(7). Essas ações devem ser prestadas em associação com o atendimento à demanda espontânea e à escuta qualificada, em especial às urgências e emergências, envolvendo ações que devem ser realizadas em todos os pontos de atenção à saúde, entre eles, os serviços de atenção primária(8). Devem atuar de maneira a articular as equipes de APS e a população, possibilitando o estabelecimento de vínculo, o que caracteriza a continuidade do cuidado, legitimando esse nível como porta de entrada prioritária e preferencial para as redes de atenção à saúde do SUS e garantindo a continuidade da assistência aos usuários hipertensos.
Entretanto, mais de 20 anos após a implementação do SUS e, apesar de avanços relacionados, sobretudo, à ampliação da oferta de serviços da rede básica de saúde, o acesso aos serviços de saúde ainda constitui um desafio(9). Na cidade de Fortaleza-CE, o livre acesso e acolhimento à demanda espontânea começou a ser implementado em 2013 junto a uma série de mudanças na dinâmica das unidades de saúde. A partir de então, as unidades funcionam em um novo horário (12 horas de atendimento diárias) com uma equipe disponível exclusivamente para o atendimento à livre demanda, na qual o enfermeiro está alocado em uma sala próxima à recepção, para acolher os usuários que buscam assistência, realiza a classificação de risco e determina a necessidade de atendimento médico, de acordo com o princípio da equidade, independentemente do vínculo dos usuários com as equipes de saúde da família.
Nesse contexto, acredita-se que ao possibilitar livre acesso da demanda espontânea à APS, especialmente no caso da hipertensão, doença que necessita de tratamento contínuo, a efetividade do cuidado e o vínculo poderão ser comprometidos, pois os usuários recorrem às unidades de atenção primária visando um atendimento pontual, confrontando o controle de situações agudas de adoecimento com as estratégias de promoção de saúde nas doenças crônicas propostas por esse nível de atenção.
Embora a literatura científica aponte a importância do acesso e acolhimento na saúde(4,7-9), foi perceptível que poucas produções discutem o impacto de sua instituição no cuidado às pessoas com hipertensão na atenção primária. Dessa maneira, se torna fundamental compreender os fatores que influenciam a utilização da atenção primária no tratamento da HAS, identificando a satisfação com o cuidado prestado aos hipertensos e o resultado no controle da doença.
A partir dessa problematização, surgiu a seguinte pergunta norteadora: Quais os impactos da implantação do acolhimento à demanda espontânea com classificação de risco no tratamento de usuários hipertensos na atenção primária de saúde?
Baseando-se também na necessidade nacional em trabalhar com pesquisas voltadas para a realidade da atenção primária, a fim de se obter conhecimento sobre programas voltados para esse nível de atenção à saúde, e na tendência instituída pelo pelos programas do MS que buscam conhecer a realidade da assistência, esse estudo objetivou avaliar os impactos da inserção do acolhimento à demanda espontânea com classificação de risco no tratamento de usuários hipertensos na atenção primária de saúde.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa de avaliação de terceira geração com abordagem qualitativa, a qual se caracteriza pelo julgamento, onde o avaliador exerce a função de descrever e mensurar, acrescida a de estabelecer os méritos do programa avaliado, baseando-se em referenciais externos(10). Esse tipo de pesquisa afirma a necessidade de levar em conta a participação e as percepções dos sujeitos envolvidos, considerando as relações como parte fundamental das ações executadas(11).
Nesse caso, ajudará a identificar se a inserção do acolhimento à demanda espontânea com classificação de risco vem alcançando os objetivos de atender às necessidades de saúde da população de acordo com o princípio da equidade, garantindo assistência de saúde, independente da ordem de chegada, propiciando a tomada de decisões relevantes no contexto da atenção primária.
Esta pesquisa foi realizada a partir do desenvolvimento de uma dissertação de mestrado(12) e sua coleta de dados se deu em uma Unidade de Atenção Primária de Saúde (UAPS) da cidade de Fortaleza-CE, no período compreendido entre julho e setembro de 2015.
O município de Fortaleza está dividido administrativamente em sete Secretarias Regionais (SRs), que possuem um papel executivo das políticas setoriais, que de forma articulada definem suas prioridades, estabelecendo metas específicas para cada grupo populacional. Desta forma, pesquisa foi realizada em uma UAPS pertencente à SR IV, na qual a Universidade Estadual do Ceará (UECE) está inserida(13).
Participaram da pesquisa trabalhadores de saúde selecionados por conveniência a partir de suas disponibilidades de horário para atender o pesquisador, os quais se encaixaram nos critérios de inclusão (os que possuíam vínculo trabalhista com a UAPS e que assistiam diretamente usuários hipertensos há mais de seis meses) e exclusão (os que encontravam ausentes do serviço por férias ou licença).
O primeiro momento da coleta de dados, se iniciou a partir de observação sistemática de campo, a fim de reconhecer a unidade e compreender a realidade de atendimento do usuário hipertenso. Ela foi mantida em todo o período de execução do estudo e se deu de maneira estruturada, aberta e não participante(14).
Junto aos participantes, foram aplicadas entrevistas semiestruturadas com o objetivo de apreender suas opiniões a respeito do acesso, vínculo e acolhimento aos usuários portadores de hipertensão arterial na atenção primária(15). Dessa maneira, o roteiro de entrevista foi composto de cinco questões contendo abordagens relacionadas ao fluxo de atendimento de hipertensos dentro da UAPS, acesso, vínculo e acolhimento desses usuários na rede de atenção primária.
As entrevistas foram realizadas até que o objetivo do estudo fosse respondido, sendo, portanto, adotada a amostra de 16 participantes. Dentre eles estão médicos, enfermeiros, dentistas, farmacêuticos, técnicos de enfermagem, técnicos em saúde bucal, técnicos de laboratório, agentes comunitários de saúde e recepcionistas.
A fim de se contextualizar e analisar os conteúdos manifestos, adotou-se a análise de conteúdo temática(16). Os dados obtidos foram armazenados em arquivos de áudio, transcritos e analisados como ilustrado na Figura 1.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa da UECE sob o parecer nº 1.068.382, e durante seu desenvolvimento foram seguidos os preceitos éticos e legais da Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde(17). Todos os participantes foram informados previamente sobre os objetivos, justificativa e a relevância do estudo, e após, convidados a assinar o termo de Consentimento Livre e Esclarecido garantido a opção de participar ou não da pesquisa, o anonimato e a opção de desistência a qualquer momento. A fim seu anonimato, esses foram identificados ao decorrer do estudo pela letra “P” seguidos de números de 1 a 16 distribuídos aleatoriamente.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir da adoção da hipertensão arterial como doença crônica multifatorial, sendo necessárias para seu tratamento estratégias de controle e prevenção dos agravos, constatou-se a necessidade de que esses usuários sejam assistidos com acolhimento e vínculo. Para a elaboração das categorias empíricas descritas abaixo, resgatou-se que a ESF deve ter sua atenção centrada além do usuário doente, especialmente no programa de controle da HAS, envolvendo a família, o ambiente e a comunidade, com a equipe multiprofissional atuando além das práticas curativas e prestando assistência universal, equânime e integral.
A inserção do acolhimento a demanda espontânea como fator determinante para o desenvolvimento de vínculo no tratamento da HAS
A inserção do acolhimento à demanda espontânea de usuários hipertensos foi apreendida como determinante para o desenvolvimento de vínculo. Percebeu-se que as crises hipertensivas são frequentes, denunciando a não adesão ao programa de hipertensão arterial e a desvinculação do usuário com o serviço. Foi constatado que os usuários procuram a UAPS em momentos de “agudização” da doença (crises) em substituição às consultas eletivas para controle da pressão arterial e dos fatores de risco.
Ao abordar o fluxo de atendimento, após a inserção do acolhimento à demanda espontânea, os entrevistados foram questionados sobre as mudanças no atendimento ao hipertenso dentro da UAPS, a fim de se compreender como ocorre o processo do acolhimento dentro da atenção primária. Destacaram-se as seguintes falas:
Esse atual modelo de gestão, com postos abertos de 7 as 19, é interessante na teoria, dando a impressão de que realmente há uma funcionalidade. O posto está aberto de 7 as 7 [7h às 19 h], mas será que realmente está atendendo? E acompanhando? O que vemos são diversos hipertensos descompensados (P14).
Agora, os médicos dedicam boa parte do tempo ao DESP [demanda espontânea], fazendo com que o número de consultas para hipertensos e diabéticos seja na faixa de 16 [usuários] por semana, o que é muito pouco, sendo impossível fazer um balanço da porcentagem de hipertensos atendidos (P4).
Neste ínterim, destaca-se que as UAPS funcionam em um novo horário (12 horas de atendimento diárias) com uma equipe disponível exclusivamente para o atendimento à livre demanda, na qual a equipe multiprofissional se articula de maneira que o enfermeiro realiza a classificação de risco e determina a necessidade de atendimento médico, independentemente do vínculo dos usuários com as equipes de saúde da família. Tal fato facilita a busca por atendimento em momentos de crise em substituição à espera por consultas eletivas.
Foi constatado através das falas que a inclusão do acolhimento à demanda espontânea não vem sendo bem aceito pelos trabalhadores de saúde, pois segundo eles, os casos de urgência e emergência se sobrepõem às consultas agendadas com o objetivo de prevenção e promoção da saúde em hipertensão, comprometendo, segundo eles, o vínculo com os usuários pertencentes à área de atuação de suas equipes.
Antes, nós tínhamos dois turnos só para o atendimento de hipertensos e diabéticos. Agora, dispomos de apenas um turno, com cerca de 250 hipertensos, fora os de área descoberta (P11).
Foi perceptível que, na UAPS investigada, o estímulo ao livre acesso e ao acolhimento à demanda espontânea foi de encontro ao preconizado pelo MS que busca, com essas medidas, legitimar a atenção primária como porta de entrada prioritária e preferencial do SUS, garantindo a continuidade da assistência aos usuários portadores de hipertensão. Segundo as falas, nessa unidade de saúde, o acolhimento à demanda espontânea vem comprometendo o vínculo com os usuários hipertensos atendidos pela equipe de saúde.
A gente tem uma UPA aqui do lado e, por isso, vários casos são encaminhados para cá devido ao DESP [demanda espontânea], que é para urgência e emergência [...] ela atende não só a demanda do bairro, mas também todos os outros bairros (P16).
O que estamos percebendo é que pacientes hipertensos pouco estão utilizando a demanda agendada, vindo muito para a demanda espontânea, já que esta é mais fácil, considerando que não precisa de agendamento e que eles são atendidos na hora, recebendo cada um o seu remédio, o que pra eles já é suficiente (P1).
No entanto, observa-se a produção de outra problemática de maior dimensão, que é a não adesão ao plano terapêutico, trazendo para a atenção primária, a “comodidade” do hipertenso, desmontando o seguimento do usuário com doença crônica, que necessita de acompanhamento contínuo, controle e prevenção de maus súbitos, que é característico do quadro clinico da HAS.
O que acontece hoje é que o hipertenso nem sempre é atendido pelo médico ou enfermeiro da equipe dele, ou seja, foi criada certa emergência na atenção básica, em que todos os dias têm um rodízio de médicos, os quais ficam numa sala que se chama DESP, os quais atendem uma demanda de pessoas que inclusive não é do bairro (P10).
Nesse contexto, as perspectivas de vincular os usuários do território de cada UAPS ficam a desejar, tendo em vista que esse atendimento emergencial, sobrepondo ao seguimento da atenção à saúde enquanto doença crônica de forma sistemática na promoção e prevenção de agravos, possibilita o rompimento com o plano terapêutico.
As pessoas muitas vezes não comparecem às consultas e quando ”passam mal”, acabam por vir pra cá e são atendidas por qualquer outro profissional, não tendo um acompanhamento (P10).
Os hipertensos, por não conseguirem mais agendar consultas, acabam recorrendo a DESP para terem atendimento, não tendo mais vínculo com nenhum médico, já que cada vez que eles vêm, são atendidos por um profissional diferente (P12).
A denúncia de que os usuários têm dificuldades de acesso a consultas propicia essa discussão investigativa quanto as questões e situações que tem levado usuários com hipertensão arterial a optarem pelo atendimento na demanda espontânea.
Percebeu-se, a partir das falas, a existência de uma dicotomia entre as práticas recomendadas daquelas que vêm sendo implementadas em diversos cenários. Sinaliza-se deficiência no que diz respeito à alteração do modelo hegemônico, uma vez que tem sido insuficiente a mudança na forma de pensar e fazer no cotidiano das ações nos diversos níveis.
Acrescenta-se que o acolhimento de queixas e as condutas pontuais relacionadas às situações agudas de adoecimento favorece a baixa resolubilidade, sendo os problemas de saúde resolvidos de forma fragmentada e focalizada, contribuindo para que o usuário retorne constantemente ao serviço, por não ter tido sua demanda de saúde realmente acolhida.
Confrontando com as experiências relatadas por trabalhadores da unidade de saúde, o acolhimento deve surgir como ferramenta capaz de promover o vínculo entre unidade de saúde e usuários, possibilitando o estímulo ao autocuidado, melhor compreensão da doença e corresponsabilização na terapêutica proposta(18). Corroborando ainda que ele auxilia na universalização do acesso, fortalece o trabalho multiprofissional e intersetorial, qualificando a assistência à saúde, humaniza as práticas e estimula ações de combate ao preconceito.
Nessa perspectiva, o acolhimento deve ser entendido como relacionamento capaz de desenvolver e fortalecer afetos, contribuindo para o processo terapêutico entre usuários, trabalhadores e os gestores do sistema de saúde.
É importante destacar também que, no contexto do serviço, o acolhimento à livre demanda foi pontuado como o momento de recepção do usuário que acontece em um ambiente físico isolado ao atendimento cotidiano das equipes de saúde dentro da UAPS, diferentemente da dimensão de acolhimento como pilar fundamental para a construção do novo modelo de APS, envolvendo muito mais que somente receber o usuário mas também cabe dispensar a atenção ao usuário, através da escuta e identificação das necessidades individuais.
Nesse sentido, destaca-se que o acolher pautado na inclusão social, no respeito e no diálogo promove vínculo. E reduzir o acolhimento a práticas exclusivas de classificação de risco, sem a garantia da escuta, torna a prática realizada na porta de entrada, como apenas mais um passo a ser seguido pelo usuário em seu fluxo na unidade.
Assim, o acolhimento não deve estar relacionado somente com um momento de recepção do usuário na unidade de saúde, trata-se de uma mudança no processo de trabalho, com vistas a atender todos aqueles que buscarem o serviço, devendo ele ser compreender a responsabilização dos trabalhadores pelo usuário, a escuta qualificada de sua queixa, a garantia de assistência resolutiva e a articulação com outros serviços para continuidade do cuidado quando necessário.
O vínculo como ferramenta de cuidado qualificado da HAS na atenção primária
Os entrevistados manifestaram o vínculo trabalhador/usuário fundamental para o controle e tratamento qualificado da hipertensão. A prática do acolhimento, como preconizado, na atenção primária pode viabilizar a criação e fortalecimento de vínculos, na medida em que os usuários passam a se sentir acolhidos pelo serviço e os trabalhadores passam a conhecer verdadeiramente a história daquele usuário inserido em sua comunidade.
Destaca-se aqui a caracterização de vínculo como uma relação de cumplicidade entre usuários e trabalhadores, concretizando-se no momento do acolhimento e sendo ponto de partida para a construção de confiança entre os envolvidos para controle da pressão arterial. Considera-se que para haver vínculo, a empatia e respeito são indispensáveis, e que os elementos que denotam a formação do vínculo baseiam-se no reconhecimento mútuo entre serviço e comunidade, pois não se estabelece vínculo sem a condição de sujeito, sem a livre expressão do usuário, por meio da fala, julgamento e desejo.
Percebeu-se que ações interdisciplinares de corresponsabilidade entre os trabalhadores de saúde e a população se mostraram fundamentais para os entrevistados, pois segundo eles, proporcionam a construção de relações de vínculo, a produção do cuidado qualificado e a promoção da saúde em hipertensão arterial.
O programa do hipertenso deve ser a base do atendimento (P16).
[Qualidade] é você acompanhar o seu paciente desde o início, ter um prontuário sempre disponível para poder ter o histórico completo do paciente (P10).
O acompanhamento verdadeiro do hipertenso como era antigamente na Estratégia de Saúde da Família, pois os médicos e agentes de saúde sabiam e acompanhavam o paciente. Já hoje, isso está bastante defasado (P14).
Constatou-se também que os trabalhadores de saúde consideram o vínculo trabalhador/usuário fundamental para o controle e tratamento qualificado da hipertensão. A construção do vínculo deve, através das falas, basear-se na formação de laços entre trabalhadores e usuários, através do acesso, da humanização, da corresponsabilização, do diálogo, do respeito e da confiança. A partir da construção do vínculo e de confiança, surgem satisfação e segurança do usuário.
Destaca-se também, a importância do perfil de trabalhadores mais sensíveis para perceber as reais necessidades da população, produzir atenção capaz de gerar satisfação social e excelência técnica, de forma resolutiva, para os usuários(19).
O vínculo permite a construção de confiança, capaz de estimular o autocuidado, favorecendo o entendimento sobre a doença e o desenvolvimento de estratégias terapêuticas pelos usuários. Como o acolhimento, o vínculo é outra tecnologia leve associada à humanização, o qual não existe sem que os usuários sejam reconhecidos na condição de sujeitos, ampliando a eficácia das ações de saúde e favorecendo a participação do usuário durante o cuidado.
Especialmente no caso da hipertensão, o vínculo se constitui de uma ferramenta eficaz na democratização das práticas de cuidado, favorecendo a negociação entre trabalhadores e usuários, tornando-os sujeitos autônomos no tratamento, possibilitando a construção de planos terapêuticos corresponsabilizados, prevenindo comorbidadaes associadas à HAS e promovendo saúde.
Com isso, a relação estabelecida, a troca de experiências, o acolhimento e a escuta qualificada poderão atuar como elementos que ampliam a qualidade da assistência, promovem a segurança do cuidado e favorecem a satisfação do usuário(20).
O vínculo se dá por meio da relação entre trabalhador de saúde e usuário, objetivando a prática centrada no sujeito. Assim, os trabalhadores devem buscar trabalhar de maneira multiprofissional, considerando a diversidade racial, cultural, religiosa e os fatores sociais presentes, envolvendo também cuidadores e familiares no desenvolvimento junto à comunidade de estratégias que busquem o controle de doenças crônicas.
Com ênfase ao usuário com hipertensão arterial, acredita-se que o vínculo também se constitui de uma ferramenta eficaz na democratização das práticas de cuidado, favorecendo a negociação entre trabalhadores e usuários, tornando-os sujeitos autônomos no tratamento, possibilitando a construção de planos terapêuticos corresponsabilizados, prevenindo comorbidadaes associadas à HAS e promovendo saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa investigação de campo identificou que na UAPS estudada, foi identificada uma dicotomia entre a prática do acolhimento à livre demanda preconizada nos Cadernos de Atenção Básica e pelas demais políticas promovidas pelo Ministério da Saúde, e a que é executada na realidade da atenção ao usuário hipertenso.
Por ser a hipertensão arterial, uma doença crônica com altas taxas de prevalência, necessitando de tratamento contínuo, o fato de o acolhimento ser percebido como uma prática pontual associado à classificação de risco mostrou-se como fator comprometedor para a criação de vínculo entre trabalhadores de saúde e usuários, acarretando prejuízo ao cuidado do hipertenso na atenção primária.
Quanto a manifestação dos trabalhadores de saúde, estes demonstraram conhecimento da importância que o acesso, vínculo e acolhimento possuem para o tratamento da hipertensão arterial, como da corresponsabilização por esse processo de cuidado, entretanto denunciam que a introdução do livre acesso à demanda espontânea comprometeu o fluxo de atendimento dos usuários aos programas de cuidado à HAS. Por outro lado, os usuários precisam ser contemplados com a disponibilização de um serviço de saúde que assegure o acesso universal, equitativo, integral e resolutivo, com qualidade.
Como limitação da pesquisa, acredita-se que a realização de estudo similar em outras UAPS das demais SRs da cidade de Fortaleza se faz necessária, para que se possa avaliar a problemática nas diversas realidades existentes para então compará-las em um estudo de maior abrangência. O conhecimento aqui apreendido desperta o interesse em ampliar essa investigação a fim de buscar solução para a melhoria da atenção e promoção de um cuidado qualificado e eficaz.
Os resultados desse estudo proporcionarão um retorno ao serviço de saúde em busca de estratégias de corresponsabilização entre trabalhadores e gestores responsáveis pelo cuidado aos usuários hipertensos, para que compartilhem as dificuldades enfrentadas em busca de solucionar as lacunas deixadas pela inclusão do acolhimento à demanda espontânea em busca do cuidado qualificado com acesso e vínculo, e do controle da doença e de seus fatores de risco.
Torna-se fundamental também, o estabelecimento de comunicação entre gestão pública e universidades em busca do compartilhamento de informações a fim de proporcionar retorno à comunidade dos benefícios das pesquisas científicas.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
2016
Histórico
-
Recebido
22 Nov 2015 -
Aceito
21 Mar 2016