Resumo
Este artigo apresenta um estudo sobre a Antapodosis, obra redigida por Liutprando de Cremona e um dos mais conhecidos documentos latinos do século X EC. O objetivo consiste em explorar o eventual significado histórico atrelado à configuração narrativa que registra a ocorrência do insulto em acontecimentos históricos envolvendo as elites imperiais. Os resultados apresentados decorrem de uma pesquisa conduzida como um estudo de Análise do Discurso. Aplicando procedimentos metodológicos e diretrizes conceituais estipulados por Michel Pêcheux e Françoise Gadet, este artigo articula a hipótese de que os registros sobre insulto funcionassem como uma figura temporal inscrita no interior de um discurso sobre “corrupção” marcado por relevantes estratégias textuais e implicações ideológicas no âmbito da política imperial do século X latino.
Palavras-chave História da corrupção; insulto; Antapodosis; história política; século X
Abstract
This paper investigates the Antapodosis, a work written by Liutprand of Cremona and one of the best known Latin documents of the 10th century CE. It explores the possible historical significance related to the narrative configuration that records the occurrence of insult in historical events involving imperial elites. The results presented stem from a research conducted as a Discourse Analysis study. Based on Michel Pêcheux and Françoise Gadet, this article articulates the hypothesis that the records on insult functioned as a temporal figure inscribed within a discourse on “corruption” marked by relevant textual strategies and ideological implications within the imperial politics of the 10th century.
Keywords History of corruption; insult; Antapodosis ; political history; 10th century
Introdução: as coordenadas de pesquisa
As páginas a seguir decorrem do estranhamento. Da suspeita de que Antapodosis, um dos mais célebres documentos do século X latino, contenha uma trama de significados implícita – e, por isso, indiferenciada à letra lida – em torno de um registro: o insulto. Assim formulada, essa curtíssima apresentação dispõe um objetivo já desdobrado como hipótese preliminar: investigar se há algo historicamente relevante a se dizer sobre como Liutprando, bispo em Cremona por volta de 961 (SUTHERLAND, 1988), narrou o insultar. Não se trata de uma narrativa qualquer, composta entre 958 e 962, a Antapodosis foi elevada pela posteridade ao patamar de texto-chave para entender os enlaces entre o poder e as mentalidades (BUC, 1995; GANDINO, 1995; MACLEAN, 2017; PIAZZA, 2016; SCHNELL, 2021), entre a história e a literatura (GIOVINI, 1998, 2005; VILLA, 1993), e entre os Mediterrâneos latino e grego (CHIESA, 2017; GRABOWSKI, 2015a; SMALL, 2016) na era pós-carolíngia. Um texto já visitado, traduzido, interrogado, analisado e descosido por gerações de eruditos (CHIESA, 1998; SIVO, 1997), que, todavia, não foi ainda interrogado deste modo. Durante as pesquisas, deparei-me com vasta bibliografia, uma série de estudos sobre temáticas diversas que incluem desde a lógica da vingança (SUTHERLAND, 1975) até o senso de humor (BALZARETTI, 2004; GRABOWSKI, 2015b); do uso de epítetos gregos (TROVATO, 2016) à formação de mitologias (GRABOWSKI, 2014) – mas não encontrei uma investigação dedicada especificamente aos insultos. Tal escassez de respostas emprestou um quê de urgência à hipótese de que algo além do literal, algum significado histórico ainda não elucidado, teria sido comunicado pelo bispo de Cremona por meio das histórias a respeito do ultraje.
Nesse estágio preliminar da pesquisa, a hipótese era sustentada por dois indícios: o primeiro deles consiste na constatação de que três palavras latinas desempenhavam um papel ímpar, sendo elas iniūria, īnsultus e dēdecus. Substantivos distintos, com etimologias diversas e significações versáteis sobre ofender e desonrar (ESCUTIA ROMERO, 2010) mas que, nos seis livros que formaram Antapodosis, surgem concretizando a mesma função narrativa, o que será tema da segunda seção deste artigo. Por ora, o segundo indício: nos trechos em que ocorre essa funcionalidade, há um padrão na elaboração da trama; os personagens estão aí envolvidos em uma ação comunicacional e consumada. Em tais episódios, a ação narrada surge como mensagem enviada, unilateralmente, por um emissário explícito a um receptor (por isso, “comunicacional”), e disposta no pretérito, com seu percurso já situado no passado (donde “consumada”). Tal padrão foi o que despertou a suspeita de que os episódios sobre insulto seriam o fio condutor para algo além do explícito – eis o referencial visado por este estudo. Assim, ocorreu a fundamentação heurística da pesquisa, com tal “olhar distanciado” sobre a artesania da percepção. Olhar que, ao longo da leitura documental, definiu o estatuto do que seria considerado evidência histórica (HARTOG, 2013).
Com efeito, “insulto” não é aqui categoria lexical, mas que tem, no nível lexical, o marcador de um padrão discursivo. O vocábulo, mesmo com sua gama de sinônimos e correlatos etimológicos, não é suficiente para indicar a presença do que busco desvendar. A menção a um “abuso” (abutere) ou à “indignidade” (indignati), como ocorre em outras passagens da Antapodosis,3 não foi suficiente para remeter ao padrão que esta definição de insulto tornou tangível para um historiador do século XXI. O que também não ocorreu quando o verbo “insultar” (insultarent, insultantes) surgia conjugando a ação como futuro ou como particípio presente para adjetivar uma possibilidade, um caso hipotético (Antapodosis, 1.1, 2.46, p. 12, 134-136). Sob tal critério, foram encontrados quatro registros relevantes.
Uma vez cartografado o caminho para as evidências, foi preciso estabelecer como ocorreria o exame da informação. A essa altura das reflexões, quando já não se tratava de escrever uma “história do insulto”, mas de interpelar tal noção para sondar uma dimensão desafiadora da visão de mundo que embasou uma das mais famosas narrativas do século X, a lexicometria estava descartada. A proposta de pesquisa demandava uma abordagem que enfatizasse não a montagem de um “banco de dados”, mas as possíveis características de um conjunto de operações de sentido que, localizadas no próprio texto, delimitavam o processo de significação adequado à literalidade de um ou mais registros. Após uma longa imersão bibliográfica, um cabedal teórico-metodológico profícuo foi encontrado na teoria da Análise do Discurso formulada por Michel Pêcheux e Françoise Gadet (2010). Embora tenha incorporado diferentes postulados e regras, esta pesquisa foi balizada pela adoção de duas coordenadas gerais, uma metodológica, e outra, conceitual.
Eis a diretriz de método, cuja incorporação selou a adesão teórica: “ler um texto, uma frase, no limite uma palavra, não constitui uma simples ‘tomada de informação’. O ‘sentido’ de um texto, de uma frase, e, no limite, de uma palavra, só existe em referência a outros textos, frases ou palavras que constituem seu contexto (…)” (PÊCHEUX, 2009, p. 165). Como tal, “a análise de discurso se contenta em cercar o sentido de uma sequência [linguística]” – de um texto, uma frase ou uma palavra – “por meio de suas possibilidades de substituição, comutação e paráfrase” (p. 165). Elaborar e articular possibilidades de substituição, comutação e paráfrase para “insulto” é a operação primordial das páginas que virão. Por sua vez, a incorporação de tal diretriz trouxe à baila a coordenada conceitual, a noção de discurso em que estava ancorada: “chamaremos discurso [1] uma sequência linguística de dimensão variável, geralmente superior à frase, referida às [2] condições que determinam a produção dessa sequência em relação a outros discursos, sendo essas condições propriedades ligadas ao [3] lugar daquele que fala e [4] àquele que o discurso visa, (…) a quem se dirige formal ou informalmente, e [5] ao que é visado através do discurso” (p. 214). Da definição, formulou-se o plano de redação do artigo. Portanto, os segmentos enumerados serão explorados um a um, como cinco seções analíticas. Em busca de determinar um espectro que paira sobre o insulto, passo à primeira delas.
Uma sequência linguística…: as dimensões do insulto como evidência
O caso a seguir remete aos primeiros dias de outubro de 891, quando transbordou outro antagonismo entre a elite romana e seu bispo:
A causa da animosidade entre papa Formoso e os romanos foi esta. Quando o predecessor de Formoso morreu, um certo diácono Sérgio da igreja romana foi quem um partido de romanos escolhera como seu papa; outro partido, e não um pequeno, desejava que o bispo da cidade do Porto, chamado Formoso, fosse feito seu papa por sua fé verdadeira e conhecimento das doutrinas divinas. E quando o tempo chegou para Sérgio ser ordenado vigário dos apóstolos, o partido que apoiava a facção de Formoso expulsou o partido de Sérgio do altar, com um tumulto e um grande insulto, e fez de Formoso papa. Então Sérgio desceu até a Toscana uma vez que o apoio do poderosíssimo marquês Adalberto o socorreria, o que foi feito. Pois morto Formoso (…), aquele que foi feito papa após a morte de Formoso foi expulso e Sérgio foi escolhido papa por Adalberto. Uma vez investido, como um ímpio e ignorante das doutrinas divinas, Sérgio ordenou que Formoso fosse arrancado de sua tumba e colocado no assento dos pontífices romanos, vestido em traje sacerdotal. E disse-lhe: “Quando tu eras bispo do Porto, porque usurpaste a universal Sé Romana em espírito de ambição?” Quando isto foi feito, ele determinou que o cadáver, despido de suas vestimentas sagradas e com três dedos decepados, fosse lançado no Tibre e ordenou novamente [no sacerdócio], após degradá-los ao grau anterior, todos aqueles que Formoso havia ordenado. E o quão maligno foi isso (…), se pode constatar pelo fato de que aqueles que receberam as bençãos (…) de Judas, traidor de nosso Senhor Jesus Cristo, antes de sua traição não foram privados dessas [mesmas bençãos] após ele ter traído e se enforcado, exceto os que foram manchados por graves flagelos. De fato, a benção que é transmitida pelos ministros de Cristo é infundida não pelo sacerdote que é visível, mas pelo que é invisível. “Por isso, nem o que rega é alguma coisa, nem o que planta, mas Deus, que dá o crescimento” (Antapodosis, 1.29-30, p. 54-56).4
A alusão ao “grande insulto” (non mediocri iniūria) acelera a narrativa. Após ele, a sequência episódica – a proposição (PÊCHEUX, 2010) de cenários e atos – segue intervalos curtos. Cinco anos correm entre as letras. Umas poucas palavras e estamos em 896. Formoso está morto e sua sucessão, concluída. O clero romano estava prestes a empossar o escolhido, quando Sérgio ressurge com o apoio “do poderosíssimo marquês Adalberto” da Toscana, que se encarrega de expulsar “aquele que fora feito papa após a morte de Formoso” e assegurar o trono papal ao aliado. Do julgamento do cadáver, o narrador chega rapidamente à ação sobre a qual se detém como glosador, em uma exegese pontual inscrita com uma citação de I Coríntios (3:7) – “Por isso, nem o…” –, que ecoa a argumentação inaugural de Auxilii in Defensionem Sacrae Ordinationis Papae Formosi, apologia escrita no início do século X em defesa da validade sacramental das ações de Formoso (DÜMMLER, 1866). É o ponto culminante da trama: o desprezo pelas bençãos atreladas à autoridade de Formoso, anuladas por decisão de Sérgio como se fossem obras humanas, limitadas ao visível, quando deveriam ter sido reconhecidas como dons derramados pelo próprio Deus. Nesta versão, presumir a Graça como corruptível foi o pior crime cometido.
Assim, Liutprando recordou mais uma “animosidade” envolvendo os romanos. O relato – cujo foco algumas pesquisas deslocam, ao considerar o “sínodo do cadáver” como centro da trama (COLLINS, 2013; WEST-HARLING, 2020; MOORE, 2012) – não parece ser um linguajar comum ou expressão trivial ditada pelo hábito. Mesmo diante dos critérios apontados na seção anterior, fato é que alusões literais ao insulto são raras em Antapodosis. Assim, cabe indagar: dizer “insulto” era registrar um conteúdo histórico específico? O índice de uma ocorrência verificável? Em resumo: nesta narrativa, o insulto é evidência de quê?
Em casos assim, quando se trata de decifrar a razão que teria levado um medieval a relatar a palavra, o gesto ou o comportamento ofensivo, os estudos históricos costumam recorrer a uma fórmula conhecida, paradigmática, cujo essencial pode ser retido na frase: a sensibilidade à afronta era uma modalidade de ênfase sobre a honra (CAFERRO, 2013; GREER, 2019; LESNICK, 1991). Logo, o insulto não seria um dado em si, sequer um fato por si só; ele deve ser encarado como o segmento de uma informação maior, formada em estrutura binária. Ao registrá-lo, transmitia-se uma mensagem sobre a conexão entre duas convicções: a honra e sua diminuição. Um episódio surgia como difamatório ao violar ou subtrair possibilidades de distinção e afirmação de uma superioridade, cujo fundamento pode ter sido a classe social, o estatuto hierárquico, a genealogia, o gênero (COPLEY, 2019; FENSTER; SMAIL, 2003). Quer envolvesse símbolo ou intenção, omissão ou engajamento, o insulto assinalava uma experiência (ou, ao menos, uma grave ameaça) de redução do ser social. Situação contra a qual um sujeito reagia imediatamente. É o que se deduz da ênfase de pesquisadores como Susanne Pohl (1997, p. 17) sobre a efetividade do insulto para, “em uma cultura da honra (…), remodelar a atitude dos outros”. Reagir era agir – isto é, sentir vergonha e enfurecer-se era acusar a redução identitária, realizando o primeiro movimento em busca de reparação e reafirmação. Com efeito, quando registrava humilhação ou indignidade de um personagem, um narrador medieval localizava a fonte do impulso para uma luta contra a perda ou o embotamento de um status, revelando, assim, o protagonista da restauração e da preservação de uma hierarquia. Recordava-se o insulto para pronunciar a honra como pilar da correta ordem social e realçar sua centralidade no sistema de valores vigente.5
Se a correspondência a tal modelo for medida de qualidade e relevância históricas, o relato de Liutprando provavelmente acabará descartado como sequência de equívocos, defeitos em série; quem sabe, como irrelevante. Pois, ali, quase tudo se dá ao contrário. O insulto não atinge quem é distinguido pela proeminência, não é perpetrado contra a parte considerada honrada: provém dela. Vilipendiar enquanto causava tumulto diante do altar é o curso de ação adotado pelos que aderiram à autêntica fé – o partido do bispo Formoso. De modo paradoxal, a Antapodosis faz do insulto expediente da honra, e estabelece entre eles a enigmática relação de uma instrumentalização. Quanto ao protagonista e sua luta, a narrativa não é menos embaraçosa. À ofensa sofrida no altar, o diácono Sérgio sobrepõe outra, gravíssima: a anulação de bençãos sacerdotais. Sua volta não repara nem restaura. Munido do poder do principal magnata toscano, de ignorância e de impiedade, ele triunfa sobre a perda da autoridade papal consolidando uma autoridade da perdição.
O único aspecto em concordância com o padrão estipulado pela teoria da “cultura da honra” é a caracterização do insulto como portal para experiências de redução do ser, tal como socialmente hierarquizado. Afinal, das recordações do eclesiástico de Cremona, todos saem dilacerados pelo erro, apequenados pelo vazio de liderança plenamente cristã. Após colocar tudo à mercê do visível, tendo reduzido desde a autoridade rival, até a benção ministerial, a uma forma corpórea que pudesse controlar e mutilar, Sérgio se provou mais arruinado que Judas. Já Formoso, dotado de “grande autoridade e observância [da fé]” (Antapodosis, 1.31, p. 54),6 foi cúmplice do tumulto até o fim: seu pontificado foi marcado pela aliança com Arnulfo, rei da Bavária, descrito por Liutprando como aquele que aterrorizou os romanos com um teatro de decapitações e enforcamentos (Antapodosis, 1. 23, 24-28, p. 50-54). Os coadjuvantes não fogem à regra. Os partidos em disputa passam à posteridade como forças cegas ao que não fosse tomar para si.
A versão costurada a tinta pelo bispo de Cremona caracteriza-se pela coesão ética. A composição envereda por personagens e ambientes, unificada por um juízo moralizante, um senso de reprovação. Em que pesem as alusões aos méritos de Formoso, sua narrativa evoca continuamente o tópico da dissolução dos homens e seu ambiente. Pontuais, essas variações não abalam a unidade moralizante do conjunto, que predomina como uma regra. A homogeneidade, tal unidade ética, não parece ser fortuita ou acidental. Tamanha coesão e coerência sugerem, antes, sistematicidade de sentidos, um padrão de significações. O relato configura um uso da linguagem dotado de força simbólica e normativa. É preciso considerar que a coerência ética satisfaça condições de verdade que extrapolavam opinião e preferências do narrador. Condições constitutivas de uma dimensão da realidade que o modelo da “cultura da honra” pode não ter englobado. Como alertou Françoise Gadet, ser conduzido até uma forma do “sem-sentido” não é, necessariamente, equívoco analítico. Pensar assim é supor que a “ordem da língua seria categórica, séria, precisa”, o significado coincidindo sempre com as palavras, de modo que a oscilação ou a assimetria deveria ser explicada em termos de “a língua versus o seu exterior, o normal versus o patológico, a regra versus o desvio”. Mas, prossegue ela, no trabalho da língua, o significado também é “definido em relação ao que não faz sentido, o sem-sentido”.7 Com efeito, é precipitado enxergar nas incongruências entre a Antapodosis e essa teoria provas de uma irrelevância histórica. As incongruências põem a nu limites do pensamento, não do passado.
Como tal, o “grande insulto” mencionado por Liutprando se torna a evidência da expectativa frustrada quanto à aplicação da sociologia da honra. Por ora, eis a resposta: a evidência é um índice do que falta saber. A busca prossegue.
Condições de produção…: uma figura temporal entre a história e a fábula
A não ser na leitura focada, deliberadamente empenhada em decifrá-la, a menção àquele insulto muito provavelmente cruza o olhar como detalhe negligenciável, trivial. O próprio narrador parece desinteressado. Aparentemente, nem se deu ao trabalho de defini-lo: o que concretamente ocorreu perante o altar? A ofensa consistiu em um ato específico ou englobou a situação como um todo? Difícil saber. Ainda mais porque a referência pode ter sido uma duplicação, a ênfase sobre a gravidade da circunstância: seria um pleonasmo para tumulto? Localizada a meio caminho entre a imprecisão e a prolixidade, a referência ao insulto tornar-se-ia acessória, dispensável. Entretanto, se “insulto” era essa espécie de não-categoria, nome sem propriedade, oco de especificidade, por que ele ocorre? Deixar de reparar nele não apaga o fato de que sua presença acrescenta algo à narrativa; que, por alguma razão, escrever “tumulto” não bastava. Não obstante a incerteza, o insulto guarda algo singular e de valor para o narrador.
A hipótese trabalhada neste estudo é de que o insulto assinalava um limiar específico, demarcava o limite a partir do qual a desordem se tornava irreversível. Essa parece ser a singularidade contida no emprego narrativo: o insulto situava o ponto sem retorno para a ordem, marcava a altura em que se tornava impossível desfazer o dano ou revogar o mal. O insulto assinala quando Sérgio e os partidários de Formoso ficaram sem rumo, privados do senso de orientação enquanto suas vidas eram tragadas pelo mar bravio de outra sucessão papal. Escrito como substantivo, funcionava discursivamente como advérbio: sua função primordial consistia em modificar o sentido a ser reconhecido no encadeamento dos fatos, não em nomear e distinguir um fato – o que explica a aparente imprecisão. Com o insulto, a trama ingressava em modo específico, que ressalta a potência ontológica da inclinação humana a pecar; o ponto crítico em que o pecado foi elevado a princípio organizador dos acontecimentos e de seus significados.
Se não primou pelo zelo detalhista e descritivo, é porque a Antapodosis buscou no insulto uma figura temporal, um nome que representasse a irreversibilidade da desordem. Do ponto de vista atribuído ao diácono Sérgio, a ofensa pode ser um chamamento à honra. Pode-se arriscar que foi narrado como a força motriz que o arranca de Roma e conduz à Toscana, em busca de uma aliança que repusesse o que lhe fora tomado no altar. Porém, tal trajetória termina englobada em um plano geral, onde as coisas estão dispostas de outro modo.
Em perspectiva panorâmica, constata-se que o “grande insulto” é o ponto onde o narrador transfere o protagonismo do enredo. No princípio da composição, Sérgio sequer está em cena. A história pertence exclusivamente à “animosidade entre o papa Formoso e os Romanos”. Ao surgir, o diácono não age, é figura passiva. Escolhido por um partido de romanos, não conduz, é conduzido; assim como Formoso! – poder-se-ia replicar. Com razão: o bispo do Porto tampouco é responsável pelo que se passa, não realiza nem reage; seu brado pelo assento episcopal é obra alheia, operação dos partidários. Iniciativa e ação são monopólios de facções. Porém, há uma diferença crucial: o bispo é, desde o começo, o elemento que define o episódio e confere contornos precisos ao que estava em jogo. “O caso da animosidade entre papa Formoso e os romanos era este”; “quando o predecessor de Formoso morreu”; “que Formoso fosse feito papa por sua fé verdadeira”: a repetição assentava o nome como núcleo que “mantém os fatos juntos e permite apresentá-los como um todo” (RANCIÈRE, 2018, p. 16). Já o diácono surge assim: Sergius quidam Romanae Ecclesiae, “certo Sérgio da Igreja Romana”, o pronome quidam a lhe embaçar a silhueta e cingir em obscuridade. Ainda que tenham a inação em comum, os personagens não se equivalem. Um é o centro, o outro, a margem – arranjo que é invertido após o registro do insulto.
Sem interrupção, na linha a seguir, o que se lê é “Sérgio desce então até a Toscana, uma vez que o auxílio do poderosíssimo marquês Adalberto o socorreria, o que foi feito”. Já não são os partidários que traçam e escolhem, mas o diácono em pessoa. Em uma frase, ele arrebata a superioridade e os verbos aos romanos: é ele quem “desce” à Toscana para expandir o conjunto de forças envolvidas na disputa. A reação ao “grande insulto” fez o protagonismo mudar de mãos. Instalada no centro da trama, a potência do pecado alojada em Sérgio converte-se em enunciado fundamental e alcançará a todos. Será ela o elemento a manter os fatos juntos e a apresentá-los como unidade. Sobrepujada, a possibilidade de retorno à harmonia desaparece nas bordas do microcosmo que é a política itálica vista por Liutprando.8
O insulto não exprime a verdade de um gesto ou de uma palavra, ele situa o limiar da harmonia impossível. A conclusão, todavia, faz soar a dúvida: por que especificamente o insulto? Por que não o “tumulto”? Ou: por que não o “insulto e o tumulto”? Afinal, são mencionados como duplo, unidos por um elo indissociável. O que justifica o desengate e a atribuição de tal função narrativa a apenas um? A resposta reside em outro caso relatado em Antapodosis. Vamos a ele.
Sem mencionar o ano, Liutprando narrou a ocasião em que o rei Arnulfo enviou o filho, duque Suentibaldo, à frente de um exército, para se apoderar rapidamente de Pávia, sede do reino itálico. Porém, ao alcançar a cidade, os bávaros teriam se deparado com os defensores bem postados sob paliçadas erguidas ao longo do córrego Vernavola. Forçados a abortar a tática do ataque ágil, estacaram na margem norte. Entrincheirados na margem sul, os pavienses tampouco agiam. O riacho que intimidava o oponente negava o terreno necessário a um contra-ataque, impedindo-os de fazer a linha inimiga ceder. E então:
Vinte e um dias já haviam passado e, como nós dissemos, durante [esse tempo] nenhum lado podia ferir o outro, e todos os dias um bávaro, reaproximando-se das fileiras dos itálicos, gritava que eles eram inaptos para a guerra e incapazes de cavalgar. E para aumentar o insulto, ele saltou entre eles e arrebatou uma lança das mãos de um homem e, então, retornou alegre para a fortificação do seu lado. À época, Hubaldo, o pai de Bonifácio que, em nossa época, foi marquês dos Camerinos e Espoletanos, desejando vingar tão grande insulto contra sua gente, tendo tomado seu escudo, partiu rapidamente para encontrar o mencionado bávaro. Não apenas recordando seu triunfo anterior, mas igualmente encorajado por ele, certo da vitória, aquele avançou exaltado contra ele; e começou, por algumas vezes, a esporear seu ágil cavalo em cargas vigorosas, por outras, a puxá-lo de volta. O mencionado Hubaldo começou a avançar diretamente em sua direção. Quando ele alcançou o ponto onde atacariam um ao outro com golpes, em sua conduta usual, o bávaro começou a galopar em redemoinhos com seu cavalo realizando diversas voltas complicadas, de modo que com tais manobras ele pudesse enganar Hubaldo. Mas, quando, conforme essa tática, ele virou de costas para que pudesse, subitamente, dar a volta e atacar Hubaldo pelas costas, o cavalo sobre o qual Hubaldo cavalgava foi vigorosamente esporeado e o bávaro foi estocado com uma lança entre os ombros até o coração antes que pudesse virar. Então, Hubaldo, tomando o cavalo do bávaro pelo freio, abandonou o corpo trespassado no meio do leito do riacho e retornou ainda mais alegre, com o triunfo de ter sido o vingador do insulto dos seus. Após o ocorrido, um grande terror se espalhou entre os bávaros, e uma audácia em nada menor entre os itálicos. Então, tendo se aconselhado com os Bávaros, e tendo recebido diversos pagamentos em prata de Guido, Zwentibaldo retornou para a própria terra.(Antapodosis, 1.21, p. 46-48)9
Tudo nesse relato deve ser encarado com ceticismo. Os personagens dicotômicos e unidimensionais, a ofensa perpetrada sem motivação e desprovida de causas, o combate a se desenrolar com previsibilidade maniqueísta e certa irreverência: tudo sinalizando que estamos diante de uma das muitas anedotas (neniae)10 que fazem o estilo da Antapodosis, cujos livros estão “repletos de esquetes vivas e picantes, descrições de fatos e, sobretudo, de personagens, inspiradas por um gosto ‘cômico’ e por risos, (…) temperados pela cultura extraordinária da qual o escritor se compraz”, como comentou Armando Bisanti (2009, p. 125) na esteira de muitos estudiosos (LEVINE, 1991; OLDONI, 1987; VINAY, 1978). A proeza do marquês muito provavelmente é uma fábula (historia fabulae) e, como tal, seria implausível tomá-la como descrição verossímil ou testemunho fidedigno (ARNALDI, 2015, p. xxviii).11
No entanto, cultivar o ceticismo não é relativizar a importância do relato. A dúvida não minimiza o valor de evidência histórica, mas desloca sua localização, indicando que o verificável não reside no factual. Se explorarmos a maneira de narrar – ou seja, como o texto cria sentido e não só aquilo que ele enuncia –, podemos tentar dimensionar relações históricas plausíveis. Se o relato é uma delectabilis historia, uma história concebida para instruir e divertir, é porque expressa valores e ideias socialmente partilhados; significados que foram mobilizados pelo narrador – não criados por ele. Como advertiu Paolo Chiesa (2015), a “performance literária” de Liutprando é um dado cultural, que permite sondar diferentes facetas de um passado plausível – argumento que adquire coesão e, quiçá, uma coerência metodológica ampliada, quando observado pelas lentes da Análise do Discurso. Afinal, o historiador, geralmente, não tem contato com informações puramente factuais – observa Pêcheux –, “mas sim com enunciados no mínimo parcialmente opacos ou ambíguos, que só podem ser lidos em referência a outros textos”, de modo que “a sequência discursiva não deve ser considerada como uma simples articulação de informações elementares, mas como comportando uma série de mudanças de níveis” (PÊCHEUX, 2010, p. 166). Se notarmos que as “mudanças de níveis” abrangem o factual e o anedótico, constataremos que a sobreposição – ou uma fusão – entre o histórico e o fabuloso não é obstáculo ao discurso presente na Antapodosis, mas sua condição de produção. Sobre essa possibilidade de mudança era elaborado o “real próprio da língua”.12 Podemos avançar.
Comecemos reatando o fio da argumentação, interrompida cinco parágrafos atrás. Não há alusão a “tumulto”. Ele inexiste como vocábulo, ausente em termos lexicais, mas também como composição discursiva, pois a trama é uma série de ações individualizadas e explícitas, expostas com clareza, cuja alternância em momento algum remete à imagem de uma confusio, um evento indistintamente coletivo e de desenrolar indiscernível13 como o que arrebatou a autoridade papal ao diácono Sérgio. Porém, há alusão ao “grande insulto” – o qual, aliás, surge com conteúdo preciso. Os gritos de “inaptos para a guerra e incapazes de cavalgar” fizeram a ofensa, logo multiplicada pela conduta de saltar entre os injuriados e arrebatar uma lança das mãos de um homem. Um insulto era feito de palavras, mas eram gestos que o tornavam “grande”. Com efeito, a anedota (ou fábula) do duelo equestre indica que lidamos com uma visão de mundo em que “insulto” designa uma singularidade; que registrá-lo era inscrever uma presença textual ímpar, irredutível ao que denotavam outros nomes ou mesmo expressões. Portanto, separá-lo de uma correlação linguística para isolá-lo como unidade discursiva – como se deu há pouco, quando foi desatrelado de “tumulto” – faz sentido metodologicamente.14 Operacionalizar este recorte da unidade linguística no processo discursivo, conforme os termos de Pêcheux, é um procedimento necessário para demonstrar que o “insulto” desempenhava a função de orientar o tempo narrado – função que se repete na fábula da proeza do marquês de Camerino e Espoleto com importantes implicações ideológicas, tema da seção a seguir.
O lugar daquele que fala…: as fórmulas ideológicas atreladas ao insulto
Uma vez mais, a vitória do protagonista degrada a ordem social. Pois o “triunfo” de Hubaldo é um lote de pecados comuns. A primeira perversão colecionada pelos itálicos é o ultraje de um cadáver. “Vingador do insulto dos seus”, o marquês tomou o cavalo pelo freio e “abandonou o corpo trespassado no meio do leito do riacho”. Não é mera omissão. Ele não negligenciou um corpo caído, mas provocou sua queda e, a seguir, deixou-o. Esse parece ter sido o sentido primordial do verbo empregado pelo narrador: dereliquit conjuga a ato de abandonar não como esquecimento ou inação, mas como descarte, despojamento intencional. Expor os maus-tratos cometidos contra um morto era a antiga fórmula grega para caracterizar um desfecho como abominável: “o cadáver abandonado à decomposição é a completa inversão da bela morte, seu oposto; (…) detrito perdido nas margens do ser, representa o que não se pode celebrar nem muito menos esquecer: o horror do indizível, a infâmia absoluta” – explicou Jean-Pierre Vernant (1978, p. 59-60). Dada a frequência com que autores antigos frequentaram as páginas da Antapodosis, e, a julgar pela aparente naturalidade com que o narrador enveredava pelo uso do grego (ANDRÉE, 2020; GRABOWSKI, 1997; LIUTPRANDO, 1930; PRINZING, 2018), é possível que a cena do duelo emule essa tradição helênica.
Todavia, mais do que a influência ancestral, é a similitude com o caso de Formoso que salta aos olhos. Eis que a reparação de um “grande insulto” resulta novamente em um morto exposto como peça-chave de um julgamento, eclesiástico lá, laico aqui. Em ambos os casos, os despojos exibem a existência reduzida à aparência, o ser limitado ao nível do visível. Os cadáveres insepultos são signos de uma denúncia: que, em Roma, tanto quanto em Pávia, as ações humanas, alheias ao divino, espiritualmente desalentadas, convergiam para o desregramento irrefreável. Transposto o limiar, a vitória danificava, e as emoções de felicidade se transmutavam em assinatura culposa. É o caso da “alegria”, mencionada em duas ocasiões: “e para aumentar o insulto, ele [o bávaro] saltou entre eles e arrebatou uma lança das mãos de um homem e, então, retornou alegre para a fortificação”; e “então, Hubaldo, tomando o cavalo do bávaro pelo freio, abandonou o corpo trespassado no meio do leito do riacho e retornou ainda mais alegre para os seus”. A alegria é aí uma emoção especular, o reflexo do vencido na glória do vencedor. É o sentimento com que o marquês, assim como o bávaro, prestou contas aos seus sobre a consumação da injúria. Expressão do ultraje de vivos e mortos, a alegria é outro item no inventário de pecados comuns.15
Porém, a principal consequência da vitória de Hubaldo foi espalhar a audácia entre os itálicos e “grande terror entre os bávaros”. Embora audatia fosse um termo usado para evocar medidas repressoras de grosso calibre, nomeando um dos atributos da heresia,16 a atenção deve recair sobre terror, pois ele é a forma que desvia e define o destino coletivo. Observe-se: após o duelo, movido “por conselho dos bávaros e tendo recebido numerosos carregamentos de prata (…), Suentibaldo retornou para a própria terra” (Antapodosis, 1.21, p. 48).17 Acontece que o duque havia atacado para apoiar Berengário, marquês do Friuli em guerra para reaver o título de Rex Italiae das mãos de Guido, duque de Espoleto. A ágil investida contra Pávia deveria ter revertido a disputa. Com a cidade rendida pelo aliado, Berengário dilataria o domínio territorial e disporia de meios para engrossar o exército e reverter a superioridade de braços armados do rival (Antapodosis, 1.20, p. 44-46). Deu-se o oposto: a investida empacou em cerco infrutífero; um insulto reduziu o cerco a duelo equestre; o desfecho espalhou o terror entre os bávaros; aterrorizados, eles aconselharam seu líder, que partiu após aceitar vultoso pagamento em prata de Guido – detalhou Liutprando. Mobilização, impasse, insulto, terror, retirada: os elos que unem a história. Como o pêndulo que oscilava da recompensa para o desamparo, o cerco reduziu as chances de sucesso. “Berengário, tendo notado então que [aquilo que] o favorecia agora volta-se contra ele, juntamente com Suentibaldo, recorreu à força do rei Arnulfo”, quem, tendo “reunido um exército nada modesto, foi à Itália” (Antapodosis, 1.21, p. 48).18 E o terror, que havia cruzado os Alpes, regressou.
Em Bérgamo, Arnulfo “degolou, trucidou”; aqueles que, confiando na “fortíssima defesa do lugar”, julgaram-se protegidos, descobriram-se “enganados por ela”. Ninguém estava a salvo, nada garantia segurança. A força monárquica não era contida por pedra ou status; avançava indiferente a muralha e o privilégio: “mesmo o conde da cidade, chamado Ambrósio, ele fez com que fosse enforcado perante o portão com espada, cinto, braceletes e outras vestimentas preciosíssimas.” A notícia sobre outro cadáver ultrajado – o terceiro apenas no livro I da Antapodosis! – deixou os lombardos aterrorizados (perterriti): “Após isso ter sido feito, um grande terror se apoderou dos príncipes de todas as outras cidades; quem quer que ouvisse sobre isso sentia ambos os ouvidos estalarem” (Antapodosis, 1.23, p. 50).19
Como no relato sobre a ascensão do diácono Sérgio ao papado, o insulto imprimiu outro ritmo à história: acelerou-a. O cerco modorrento foi ultrapassado por uma sucessão de eventos que orientam a trama para um signo total: o terror. Imparável, o terrorem non parvum absorve a cena como figura sintética, o pecado em máxima potência ontológica, a força que anulava os efeitos de méritos pessoais e subtraía os cristãos, coletivamente, à virtude. Potência que era acionada entre os homens pela reação de seus líderes ao insulto. Ao agir para revidar à injúria, o diácono Sérgio e o marquês Hubaldo desencadearam uma espiral de ignorância, fraqueza e violações, que arrastou romanos e pavienses para a ruína. Com relatos assim, sejam eles reais ou anedóticos, o bispo de Cremona tentava convencer leitores e ouvintes de que o terror era obra humana. Mais precisamente, tentava persuadi-los de que certas ações foram terríveis – mesmo que engrandecidas por outrem.
A inexorabilidade do terror indica que, aos olhos do bispo de Cremona, reagir ao insulto era sujeitar-se a uma marcha de acontecimentos tão destrutiva quanto irreversível. Entretanto, assim redigida, a constatação deixou escapar uma sutileza decisiva: que reagir individualmente ao insulto era sujeitar-se coletivamente ao terror. Pessoalmente, Sérgio e Hubaldo triunfam. Que um deles tenha recebido o repúdio explícito do narrador, em razão da ignorância e da impiedade – o diácono, vale lembrar –, não altera o fato de que ambos foram lembrados como figuras que superaram perdas e prevaleceram. Porém, esse mesmo triunfo iniciou a escalada de eventos que custou vidas e almas, enjaulando os itálicos em uma queda ético-moral e política.
É preciso dizer “política” porque o terror é, aqui, a dissolução de uma coletividade e suas instituições. Recapitulemos pontualmente: vitorioso, Sérgio degradou romanos ao julgar o cadáver de “seu papa” e desfigurou o sacerdócio ao declarar nulas as ordenações e bençãos decorrentes da autoridade do “invasor”. Vingador, Hubaldo foi, indiretamente, responsável pela chegada do exército do rei Arnulfo, que estilhaçou vidas, fortificações e privilégios senhoriais em diferentes cidades lombardas.
Em Antapodosis, o insulto surge como armadilha em que a honra pessoal é o chamariz para atrair e capturar a comunidade política, seja ela a facção, a cidade, ou o reino. Portanto, a narrativa opera a premissa de que a correta condução da ordem pública é incomensurável para quem tem a honra individual como valor máximo, a última verdade. Em casos assim, as ações exprimem a privação de um bem maior e alojam no interior do corpo político a insuficiência do ser, uma falta que se alastra pelo uso da autoridade e da força. Portanto, quem reagia ao ultraje consumava duas ações: acionava a potência ontológica do pecado e se submetia à marcha irreversível de sua realização. Narrando, Liutprando exercia imenso poder: convertia o protagonista de um episódio passado, provavelmente glorioso em memórias outras, no detentor de um poder cujo efeito o sujeitara; alguém que perdeu a autonomia no instante em que alterou a aparência das coisas. O empenho para reparar o insulto foi retratado como uma conduta voluntária e, simultaneamente, coagida; em que autonomia e subjugação se misturaram. Como tal, esses episódios instruíam sobre liberdade cristã.
Acabamos de adentrar um nicho específico de regras e limites que dispuseram os “jogos ideológicos e as latitudes discursivas” (PÊCHEUX, 2011, p. 102) por meio de um uso singular da linguagem. Esse uso define e identifica o sujeito do discurso, instância a que este artigo aludiu e continuará a mencionar como “narrador”. Logo, uma observação é crucial: o “narrador” é um sujeito epistêmico, que emerge de um sujeito sociológico, mas não é seu simples prolongamento. Isto quer dizer que o modo como Liutprando definiu e encadeou proposições, inferências e implicações para a construção de sentido foi uma ação que operou e, por vezes, deslocou os limites e as possibilidades instituídas por esse lugar social (PÊCHEUX, 2010). Voltarei a isso na última seção do artigo. Por enquanto, o essencial a ser demonstrado é a assertiva de que mobilizar um sentido para a liberdade cristã consolidou a capacidade de nomear, situar e interpelar por parte do narrador da Antapodosis, definindo-o como sujeito discursivo.
O “valor intrínseco” (ARNALDI, 2015, p. xxviii)dessas histórias fragmentadas é a lição de que homens como Sérgio e Hubaldo não são livres. Se nós, leitores e leitoras do século XXI, esbarramos em alguma dificuldade para constatá-lo, é porque, provavelmente, projetamos sobre o texto a ideia de liberdade como autorrealização. Associamos “ser livre” à satisfação de anseios e à consumação de capacidades existentes no “domínio interior de uma consciência” (ARENDT, 2001, p. 172). Ou seja, habitualmente, o que entrevemos na liberdade é a “busca pela felicidade” através de espaços e entes públicos – segundo fórmula consagrada por Hannah Arendt. Tendemos a reconhecer como livre quem age com eficiência em fazer a diferença, aquele que intervém espontaneamente sobre os eventos para remover o que impossibilita, prejudica ou ameaça seu bem-estar (ARENDT, 2001; PITKIN, 1988). Espontaneidade, iniciativa, eficiência: tudo isso pode ser encontrado nas ações atribuídas ao diácono e ao marquês; eis o porquê da dificuldade em compreender. À primeira vista, os protagonistas daquelas histórias cumprem os requisitos para estar em liberdade – nossos requisitos. Liutprando, porém, partia de outros critérios.
Conforme notou Karl Leyser (1994), o prelado de Cremona “era herdeiro de uma longa tradição, bem sedimentada nos escritos carolíngios” e regida pela “ideia de que o diabo, através do pecado e lapso do primeiro homem, havia adquirido justos direitos sobre toda a humanidade” (p. 116-117). Sob tal ótica, viver é estar exposto à incessante coação do mal. Contudo, a condição humana não é patrimônio de uma força invisível; nesse “teatro de destruições contínuas” (GILSON, 2006, p. 275); ela não é inerte, não está disposta como objeto do usufruto maligno. Apto a fazer o bem, o ser humano pode escapar ao mal, subtrair-se à desordem iniciada por Adão. A Antapodosis se sustenta nessa premissa: é livre quem se emancipa da servidão ao pecado e ao mal controlando os próprios atos.
Trata-se de um entendimento ancestral que, remontando não somente aos “escritos carolíngios”, mas a textos ainda mais antigos, como as obras de Agostinho de Hipona e as epístolas paulinas, paira como espectro sobre incontáveis temas e controvérsias cristãs (PATTERSON, 1991, 2007). Porém, estudiosos como Isaiah Berlin (2002) e Quentin Skinner (1999) nos ensinaram a designá-lo pela nomenclatura singular de “liberdade negativa”, tendo em vista a ênfase assim depositada sobre a noção de libertação ou soltura, isto é, sob o argumento de não mais estar sujeito ao domínio de uma pessoa, instituição ou força – inclusive imaterial (BERLIN, 2002; PATTERSON, 1991; SKINNER, 1999;). O ponto a ser notado com empenho redobrado é que tal compreensão define o controle como quintessência da liberdade – não livre-arbítrio. Por mais que admitisse que a habilidade de decidir afetasse a liberdade, esse pensamento estipulava que ser livre era, em diversas ocasiões, deter-se, refreando o arbítrio. A medida da liberdade (ratio libertatis) era extraída da contingência – não da perenidade – dos atos de vontade; medida que habitava o coração do justo, único que deseja e move-se somente na direção do bem (BOULNOIS, 2012). O filósofo Tobias Hoffmann resumiu o tema com argúcia: estamos diante de uma “liberdade sem escolha” (HOFFMANN, 2019).
Negativa, a liberdade era também defensiva. Nomeava uma maneira de agir, mais que um modo de ser, cuja autoridade exemplar talvez tenha sido incutida em Liutprando pela Vita Iohannis Abbatis Gorziensis. Em seu final, a “Vida” narrou a conduta de João como emissário de Oto I na corte do califa Abd al-Rahman III, em 953. O texto transcreve o suposto diálogo travado com um bispo local quanto ao “escândalo perigosíssimo” que ocorreria se João entregasse ao califa uma carta ditada por Oto I e repleta de “blasfêmias” contra o Islã. Após censurar a postura dos cristãos moçárabes de comprometer-se com o governo islâmico, o abade de Gorze fez da obediência para ler a controversa carta um ato de liberdade contra o qual o terror nada poderia: “mesmo que aceite que tu, premido por uma necessidade, contemporize com eles, eu, pela graça de Deus, livre de tal necessidade, e com minha mente firmemente resoluta, não serei afastado por terror, vantagem ou favor das ordens do imperador às quais jurei obedecer” (ARNULFI, 1841, p. 372).20
Embora se aceite que a Vita Iohannis foi escrita nos anos 970, há indícios de que sua composição ocorreu em etapas, pela lenta assimilação de um “dossiê pré-existente esboçado por uma testemunha ocular” (LEVIN, 2020; LEYSER, K., 1994). Junte-se a essa informação a constatação de que a Antapodosis foi revisada após o livro VI ter sido dado por encerrado – o que ocorreu, extemporaneamente, em 968 – e será plausível que Liutprando tenha lido sobre o abade de Gorze e o adotado como contra modelo para os líderes itálicos. Sua narrativa dispõe Sérgio e Hubaldo falhando exatamente onde João triunfou: em deter-se. Incapazes de se conter perante o “grande insulto”, eles arrastaram o corpo político para uma vida de pavor e sujeição. A ausência de controle metamorfoseou a coação do mal em domínio do mal. Mantida a honra, a liberdade estava perdida.
Aquele que o discurso visa…: o espectro da corrupção
Philippe Buc, um dos mais importantes estudiosos atuais da Antapodosis, anotou certa vez que “Liutprando é obcecado pelas disjunções entre as aparências e as realidades do poder” (BUC, 2001, p. 23). A frase é emblema de um posicionamento cujo desenrolar pode ser resumido assim: o desacerto entre o fundamento do poder (entre o invisível que o causa e sustenta) e a forma (a manifestação visível) é signo de ilegitimidade. É regra – ou obsessão, como preferiu o autor. Ao enunciar essa disjunção, o narrador desqualificava a personagem ou o tema sobre o qual se detinha (BUC, 2001). Este artigo contém uma compreensão diferente.
A liberdade a respeito da qual instruem os casos de insulto implica em reconhecer e adequar-se à disjunção entre aparência e realidade – melhor, em obedecer a tal disjunção. O controle libertador consistia em deter-se perante o jogo das aparências, em não se deixar guiar por ele, pois o fundamento do poder é de outra ordem – o que não significa desprezar o mundo visível. O homem livre não negligencia a exterioridade da existência, realiza-se através dela. Observa-a vigilante, zelando pela responsabilidade de preservar a realidade do poder, à qual seu acesso se dá por meio de condutas corpóreas, sempre ao alcance dos sentidos. A disjunção destacada por Buc é um signo de normatividade. Quando a enuncia, o narrador assenta uma norma que permite comparar e classificar, sem a qual a avaliação sobre o exercício do poder deixa de fazer sentido. Evocar a ilegitimidade é uma possibilidade entre outras viabilizadas pela comparação. Em muitos trechos, Antapodosis não conduz ao ideal da transparência política, isto é, do governante legítimo, porque é capaz de superar a cisão entre aparência e realidade do poder, como enfatizou Buc (2004). Conduz, porém, ao governante capaz de controlar a si e aos demais para evitar que sucumbam à disjunção; para que, reconhecendo-a, ajustem suas condutas – constatação que ganha força com outra história de insulto.
Em março de 899, “como um exército imenso, incontável”, os húngaros invadiram a Itália. Segundo Liutprando, o que se passou deveria ser lembrado assim:
O rei Berengário (…) ordenou que os itálicos, os toscanos, os volscianos, os camerinos e os espoletanos se reunissem como um (…) e um exército três vezes maior que o dos húngaros foi formado. E quando o rei Berengário viu tantos [guerreiros] ao seu redor, com o espírito inflado de soberba e atribuindo o [iminente] triunfo sobre seus inimigos mais a seus números do que a Deus, ele se deixou ficar com uns poucos, em uma pequena cidade, entregando-se a prazeres. O que ocorreu? Os húngaros, tão logo vislumbraram a multidão, subjugados em espírito, não podiam decidir o que fazer: temiam batalhar e, acima de tudo, não eram capazes de fugir. Em verdade, entre as duas possibilidades, fugir prevaleceu sobre lutar; eles cruzaram o rio Adda nadando, com os cristãos perseguindo-os de tal modo que muitos se afogaram por causa da precipitação. Por fim, os húngaros, tendo acolhido um conselho nada ruim, através de intermediários solicitaram aos cristãos que lhes fosse permitido ir para casa ilesos, uma vez que tivessem devolvido todo seu botim com todos seus ganhos. A solicitação foi convictamente negada pelos cristãos e eles insultaram os húngaros – ó, dor! – e buscaram por grilhões com os quais prender seus inimigos mais do que por armas com as quais matá-los. Quando os pagãos falharam em abrandar o espírito dos cristãos com este pacto, tendo decidido que seu plano original [a batalha] era melhor, eles tentaram se libertar fugindo e, assim, eles vieram aos vastos campos de Verona. (…) Então, os húngaros, percebendo-se sem esperança pela mensagem, tendo reunido seus mais fortes combatentes em uma unidade, consolaram-se trocando os seguintes dizeres: “Nada pior pode suceder aos homens do que o que vemos aqui; uma vez que não há lugar para a súplica e toda esperança de fuga foi retirada, curvar nossas cabeças é morrer; por que deveríamos ter medo de correr em direção às armas deles e infligir morte com nossa morte? Nossa queda não deve ser imputada à fortuna ou à fraqueza, deve? Pois sucumbir ao lutar de maneira viril não é morrer, mas viver. Que deixemos para nossos descendentes a mesma grande fama, a ‘herança’ que recebemos de nossos antepassados. (…)” Então, elevados em espírito por essa exortação, eles colocaram três emboscadas [nos flancos] e avançaram no meio de seus inimigos, atravessando o rio em linha reta. Muitos cristãos, esgotados pela longa espera provocada pelas negociações, haviam descido das fortificações para se divertirem com comida. Os húngaros abateram esses homens tão rapidamente que espetaram a comida em suas gargantas, enquanto negavam a outros, cujos cavalos levaram, a possibilidade de fuga, e por isso os pressionaram com mais leveza, pois viram que estavam presos sem cavalos. Finalmente, para aumentar sua perdição, houve uma discórdia nada pequena entre os cristãos. Vários homens claramente não apenas não tomaram parte da luta contra os húngaros, como também esperavam que o inimigo massacrasse seus próprios companheiros; e essas pessoas perversas agiram de forma tão perversa a fim de que pudessem governar mais livremente sozinhas, uma vez que seus vizinhos fossem mortos. (…) Assim, os cristãos fogem enquanto os pagãos se enfurecem, e aqueles que antes não podiam obter misericórdia nem com presentes, mais tarde não poupariam aqueles que imploravam por misericórdia depois. Enquanto isso, com os cristãos atingidos e fustigados, os húngaros percorreram todos os lugares do reino, massacrando (Antapodosis, 2.9-15, p. 96-104).21
O massacre não registra uma catástrofe associada aos invasores – imagem, aliás, que tem sido revisada há décadas (SETTIA, 1984, 1991; TABACCO, 1989) –, mas um contra-argumento disparado na direção da Gesta Berengarii Imperatoris. Redigido por volta de 950, provavelmente por um clérigo lombardo, esse panegírico poético laureava Berengário como um líder leal e comandante invencível, virtudes que o destinaram à coroa (GESTA, 1899; ROSENWEIN, 1996). Como notara Buc (2004), em trechos como esse sobre a batalha do rio Brenta, “Antapodosis pode ser vista como um anti-panegírico, que mancha a memória de Berengário onde o panegírico a havia exaltado” (p. 164). Entretanto, essa inversão fez algo mais: reordenou a lógica narrativa em torno de invasores e invadidos.
No fim, os cristãos formam uma comunidade indolente, desunida, massacrada. Os húngaros, um conjunto ultrajado, desesperado, sanguinário. Não se opõem, completam-se. Conjuntamente, fizeram com que o terror viesse à tona da existência, visível por inteiro. Suas decisões e ações multiplicaram transgressões espirituais, que, por sua vez, causaram a terrível sina de eventos. Um “espírito inflado de soberba” privou o formidável exército da liderança vital. Já “subjugados em espírito”, os húngaros eram incapazes de deliberar. A ausência de esperança – desperati, “desesperançados” – os empurrou para o refúgio na honra. A fúria que recaiu sobre os cristãos é consequência direta da fraqueza em face do gozo e da discórdia quanto ao direito de reinar. Em outras palavras, nesse caso, a aparência está sombriamente unida à realidade do poder. A contiguidade – não a disjunção – entre forma (terror) e fundamento (pecado) faz do episódio uma lembrança a mais desqualificando os itálicos, cuja perdição foi não contar com um rei capaz de reconhecer que a aparência é o sol opaco da verdade: só se enxerga a realidade do poder em razão de sua luz turvada.
A desqualificação dos cristãos não engrandece os pagãos. Liutprando não enxerga a face da vítima nos húngaros. Agarrar-se à honra como última verdade provava, segundo a lógica interna à Antapodosis, que estavam já em “perdição”. Nós esperamos encontrar no insulto o elemento trágico de um enredo sobre as glórias do status, a advertência sobre a seriedade da hierarquia; mas, com essa história sobre idólatras honrados, ouvimos o eco satírico de uma “gargalhada sobre a miséria do poderoso em decadência, [a revelação da] debilidade de quem ostenta a força” (CHIESA, 2015, p. liv). O riso sardônico registra ainda outra ideia: que a miséria do poderoso e da comunidade política por ele governada resultavam de uma busca ativa pelo que é aparentemente bom, mas essencialmente prejudicial; do engajamento por algo que satisfaz o arbítrio e o desejo. Narrar o insulto é, aqui, instruir sobre como os homens corrompem a vida pública dedicando-se a vantagens pessoais. O insulto registra uma percepção singular a respeito do que nós designamos como “a corrupção”. É preciso qualificar essa conclusão.
Instituído como um campo de pesquisas relativamente autônomo durante a década de 1960 e tendo experimentado um “boom literário” a partir dos anos 1990, o estudo sobre a corrupção conta, hoje, com uma profusão de abordagens paradigmáticas, possibilidades temáticas e controvérsias metodológicas (RAJAN, 2020; TORSELLO; VENARD, 2015). Entretanto, essa bibliografia multidisciplinar costuma mobilizar não mais do que três definições para “corrupção”. A primeira consiste na ideia de venalidade administrativa; assim, a corrupção é compreendida como o desvio organizacional: suborno, fraude, inobservância processual e todo ato proibido por normas ou leis de uma instituição (GARDINER, 2017). Já a segunda definição ressalta a apropriação de prerrogativa ou recurso público visando benefício privado: é a corrupção como abuso econômico, um aliciamento materialista da política, privatização do que é comum (ROSE-ACKERMAN, 2008). Por fim, a tipificação mais ampla, que projeta o comportamento corrupto como padrão sociológico gerado pela colisão entre costumes sociais arcaicos e ética governamental (idealmente) racionalista. Situada na fronteira entre o traço cultural e o bem comum, a corrupção é encarada como um ato repartido entre dois mundos: politicamente condenável e disruptiva, socialmente justificável e funcional (MILLER, 2006).
À primeira vista complementares, talvez até repetitivas, essas tipologias embasam uma unidade teórica. As três definições exploram diferentes facetas do mesmo problema humano: a necessidade de estabelecer uma representação, socialmente generalizável, da natureza negativa atribuída a um agenciamento individual de normas, prerrogativas ou recursos considerados comuns. “Corrupção” é um conceito altamente político para uma constante sociológica; abarca um componente intrínseco à percepção da competição pelo poder em meio à pluralidade normativa e à desigualdade de posições sociais. A corrupção é o excesso administrativo e a infração legal porque é um argumento do poder: “portanto, (…) podemos pesquisar a corrupção mesmo quando a palavra, em si, não é usada em uma realidade histórica particular” (KROEZE et al., 2018, p. 5), pois, ao longo da história, os homens lidam com o mesmo problema de maneiras diversas, empregando outras noções, nomes e temas. Foi o que fez o bispo de Cremona narrando insultos. Isso pode ser demonstrado, uma vez mais, com o último caso encontrado na Antapodosis.
A história se passa após a morte de Berengário, quando a coroa já pesava há anos sobre as têmporas de Hugo da Provença. Em 932, o monarca:
(…) tendo deixado seu exército distante em razão da segurança desta fortificação, veio a Roma com poucos homens; recebido de modo respeitável pelos romanos, ele se retirou para a cama da prostituta Marózia na fortificação há pouco mencionada. Quando ele havia gozado de desejos impuros, ele começou a desprezar os romanos como se estivesse seguro. Em verdade, Marózia tinha um filho de nome Alberico, que ela havia gerado com o marquês Alberico; e quando Alberico, por solicitação de sua mãe, estava despejando água para que o rei Hugo, seu padrasto, pudesse lavar suas mãos, ele foi atingido no rosto por ele em reprimenda, porque não havia despejado a água moderada e cuidadosamente. Então esse homem, para que pudesse vingar a ofensa dirigida a ele, reuniu os romanos e dirigiu-lhes um discurso como este: “a dignidade da cidade de Roma é levada a tal profundeza de estupidez que ela agora obedece às ordens de uma prostituta. Pois o que é mais sinistro e mais torpe do que a cidade de Roma perecer pela impureza de uma mulher, e que os outrora escravos dos romanos, me refiro aos burgúndios, governem os romanos? Se ele acerta minha face, isto é, a face do enteado, e, o que é ainda mais grave, quando ele é um hóspede recentemente chegado, o que vós pensais que ele vos fará assim que estiver instalado?” (…) Sem demora, após ouvir essas palavras, todos abandonaram o rei Hugo e elegeram Alberico seu senhor; e, antes que o rei Hugo tivesse uma oportunidade para mobilizar seus guerreiros, eles rapidamente começaram a atacar a fortificação [o Castelo de Sant’Angelo]. (…). Em realidade, ele [Hugo] foi tomado por tal terror que, descendo por uma corda lateral à fortificação onde as muralhas da cidade conectavam-se ao local, abandonou Roma e fugiu para seus homens. Assim, com o rei Hugo e a mencionada Marózia expulsos, Alberico assumiu a monarquia da cidade de Roma, com seu irmão João presidindo sobre o bispado da mais alta e universal Sé (Antapodosis, 3.45-46, p. 228-234).22
O padrão se repete: o insulto como limiar para a irreversibilidade da desordem; a reação ao ultraje como o vetor do destino de toda uma comunidade política; a consumação da união entre a aparência (terror) e a realidade (pecado) do poder. Não é preciso retomar cada uma dessas ideias. A esta altura, cabe insistir no último argumento. Retratada como a resposta a um ato de coerção, à interferência deliberada de uma pessoa sobre a maneira como outra agia, a reação do protagonista ao insulto surge como o agenciamento da força e dos valores romanos para um fim pessoal. A história é o recurso retórico aplicado para generalizar uma classificação negativa que o narrador atribuiu a um personagem. Trata-se de anedota ou fábula altamente política, mobilizada para convencer a audiência de que Alberico, que assumiu a “monarquia de Roma”, ascendeu de modo danoso, injustificado, segundo o narrador. Como Sérgio ao assumir o papado, Hubaldo ao tomar parte da guerra por Pávia, Berengário ao (não) liderar o exército peninsular contra os húngaros, o senhor de Roma devia ser lembrado como alguém que aviltou o bem comum, corrompeu a ordem pública. O insulto registrou um argumento do poder.
…O que é visado através do discurso: a complexidade política da Antapodosis
A quem foi destinada Antapodosis? Que leitores ou ouvintes eram presumidos por Liutprando enquanto a redigia entre 958 e 962? Uma pergunta de difícil resolução.23 A resposta mais comum é que a obra teria sido composta para olhos e ouvidos da elite laica saxônica, cuja audiência se iniciava com Oto I, de quem o narrador se tornara cliente. Até meados dos anos 940, Liutprando residia no centro da política itálica. Tendo acumulado experiência na corte do rei Hugo, de quem fora nuntius em Constantinopla, ele assumira o estratégico posto de epistolarum signator do marquês Berengário II de Ivrea – neto de Berengário, monarca da batalha do rio Brenta –, magnata, à época, “mais poderoso que o rei” (ARNALDI, 2015, p. xxviii). Porém, uma reviravolta marca sua vida no início da década seguinte.
Em 956, cerca de seis anos após viajar a Constantinopla como “embaixador” do marquês, ele surge na corte de Oto I, exilado. Entre os dois patronos, uma fratura profunda, a respeito da qual faltam registros e sobram implicações. O exílio saxão o teria convertido em ideólogo da nascente realeza otônida, incensada na Antapodosis como a força capaz de redimir a irrefreável tendência itálica para a desordem. Escritas majoritariamente em Frankfurt, as histórias satíricas e as fábulas macabras teriam sido concebidas para informar e instruir os grandes senhores que chancelaram o pacto de 952, através do qual Oto reconheceu Berengário II como “rei dos itálicos”, em troca do juramento de lealdade do marquês. Como defendem Philippe Buc (2001) e Paolo Squatriti (LIUTPRANDO, 2007), narrando sobre uma política peninsular autodestrutiva, o futuro bispo de Cremona tentava convencer os aliados germânicos sobre o caráter providencial – de fato, salvacionista – do juramento, enquanto minorava as críticas à dificuldade enfrentada por Oto para impor-se sem intermediários ao sul dos Alpes.
A resposta tem peso, mas esbarra em desafios de maior tonelagem. Pensar assim é inscrever a Antapodosis em um padrão de sociabilidade letrada carolíngia. É basear-se na premissa de que Liutprando vivenciou algo semelhante ao que ocorreu a Alcuíno de York ou a Hincmar de Reims: vincular-se à corte significou ingressar em um centro intelectual, caracterizado pela existência de uma audiência específica, que tem no monarca o primeiro destinatário (WICKHAM, 2019; KLEINJUNG, 2015). Ocorre que a monarquia otônida não é uma extensão da política carolíngia. Vinte anos atrás, Rosamond McKiterick (2002) havia chamado atenção para isso: os carolíngios dirigiam a patronagem intelectual e a produção de livros para a promoção do poder régio e a consolidação da religião cristã; quanto aos otônidas, os registros de que dispomos não apontam para a patronagem sistemática de centros particulares, a existência de um grupo de eruditos vinculados à corte, ou a um expressivo papel do monarca na disseminação de textos particulares – sequer havia scriptorium na corte. Portanto, a “promoção do trabalho intelectual (…) não é comparável entre ambos” – arrematou McKiterick (2002, p. 174). Com efeito, é dificílimo sustentar a imagem da elite laica saxônica como o público-alvo de um texto do século X. É mais plausível cogitar destinatários de um perfil social diverso, o que leva à outra resposta.
Há pouco mais de cinco anos, Anastasia Brakhman (2016) argumentou que os seis livros redigidos no exílio foram destinados a uma recepção eclesiástica. Na realidade, para um interlocutor singular: Ratério, bispo de Verona. Educado na abadia beneditina de Lobbes, trazido para a escola catedralítica de Colônia por influência de Bruno – arcebispo local, duque da Lotaríngia e irmão de Oto I –, Ratério protagonizara passagens turbulentas pelos bispados de Verona e de Liège, de onde foi deposto em 934 e 948 (Verona), e em 955 (Liège). Não obstante a perda tripla do episcopado, era figura influente, próxima a alguns dos mais importantes prelados germânicos, e beneficiário direto de decisões de Oto, que o instalaria como bispo de Verona em 962 – a terceira e não menos ruidosa passagem por aquela sé (LEYSER, C., 2010, 2016). Brakhman (2016) sugere que Liutprando cobiçou transformar Ratério em leitor porque, assim, angariaria as simpatias de um eclesiástico que pudesse auxiliar sua carreira clerical – vale lembrar que ele ainda não era bispo de Cremona.
A hipótese tem lastro. Muito do que emerge na Antapodosis poderia unir Ratério a Liutprando em duradoura afinidade intelectual: a hostilidade aos itálicos, a justificação da competência otônida para a resolução de conflitos (inclusive, eclesiásticos) ou mesmo o estilo virulento de certas passagens – a “acrimônia” costuma despontar como uma marca de Ratério (AUERBACH, 1965; LIUTPRANDO, 2007; ROBERTS, 2019;). Por outro lado, essa é uma acepção que parece diminuir a complexidade dos seis livros escritos no exílio. Muito do que lemos em Liutprando indica uma preocupação com motivos e moralidades que destoam da exemplaridade clerical necessária à eventual estratégia de que aquelas páginas o credenciassem para uma ascensão na hierarquia. Por exemplo, as historias delectabilis sobre adultérios parecem se distanciar da normatização eclesiástica ao oferecer margem para a leitura de que casamentos eram laços regidos pela utilidade (necessitas) ao governo dos homens (Antapodosis, 5.32, p. 360-364). A coesão social alinhavada pela hipótese de Brakhman (2016) – que situa autor e leitor, produção e recepção no interior da elite clerical – implicaria uma uniformidade ideológica que a própria Antapodosis perturba com seu riso sardônico (VILLA, 1993).
Por fim, é Antoni Grabowski (2018, p. 13) quem parece ter razão ao cravar: “não há uma clara ideia da audiência para a qual Liutprando escrevia”. Este artigo não resolve o imbróglio; de fato, acrescenta uma dobra. A narrativa do insulto como argumento sobre a corrupção adquiria coerência e persuasão porque mobilizava significados díspares que nós, leitores e leitoras do século XXI, talvez considerássemos ambivalentes. O insulto é aí um fato que justificava uma vingança que não deveria mobilizar liderança; repará-lo era reaver a honra e perder a liberdade: aquele que era movido por insulto agenciava os recursos visíveis de uma coletividade porque havia perdido a capacidade de notar o que separava aparência e realidade do poder. Um código em que a primeira parte seria tipicamente laica, e a segunda, caracteristicamente eclesiástica.
Aqui o artigo se desdobra em uma possibilidade histórica relevante: o insulto teria sido mobilizado pelo narrador justamente por ser um signo capaz de tocar leitores de perfis sociais distintos. Não laicos ou clérigos, mas laicos e clérigos. Esta investigação indica que a Antapodosis foi escrita, ao menos em parte, para controlar o entendimento da aristocracia cristã sobre “corrupção”, a quem interpelou não como destinatário constituído, mas a ser formado, edificado pelo texto. Ideólogo da corrupção, Liutprando mobilizou “insulto” como uma figura de elevada performance cultural, como um elemento que, acessível ao entendimento e ao engajamento, viabilizasse um consenso entre as heterogêneas elites imperiais.24
A ênfase na construção do consenso não apresenta a Antapodosis como portadora de uma mirada utópica sobre a redução de conflitos aristocráticos. O espectro discursivo da corrupção não projeta uma superação das relações de força, mas, sim, a plena imersão em seus movimentos. O caráter de paradoxo lógico do insulto, cuja unidade narrativa era composta pela “estranha propriedade de ser ao mesmo tempo idêntico e antagônico” (PÊCHEUX, 2011, p. 97), é evidência da ampliação de um processo ideológico, do novo alcance estipulado para uma reprodução de diferenças sociais sob uma única competência discricionária, formulada e praticada pelo narrador como poder para designar o insulto, estipular as propriedades de um ato e classificá-lo como legítimo ou ilegítimo. O não dito textual guarda uma tentativa de ampliar o campo de possibilidades para controlar a diferença social – não a extinguir.
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Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Gostaria de agradecer a Henrique Modanez de Sant’Anna pela ajuda bibliográfica e a Maria Filomena Coelho e André Gustavo de Melo Araújo pela leitura do manuscrito e pelas valiosas sugestões. Agradeço igualmente aos pareceristas selecionados pela Revista de História.
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Para esta pesquisa foram consultadas as seguintes edições documentais: Becker (1915); Liutprando (1930, 2007); Bougard (2015); Chiesa (2015). Embora tenha comparado e cotejado edições e traduções, adotei a de Chiesa como o referencial para o texto latino, em razão de ser a edição que disponibiliza o texto publicado em 1998 como vol. 156 da coleção Corpus Christianorum, Continuatio Mediaevalis, considerada o absoluto estado da arte filológica e que normatizou os trabalhos de Bougard e Squatriti (LIUTPRANDO, 2007). Reportarei-me à edição de Chiesa simplesmente como Antapodosis, indicando, então, o livro e os capítulo citados, e as páginas em questão. Começando aqui: (Antapodosis, 2.41, 3.15, p. 128, 188).
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No original: Causa autem simultatis inter Formosum papam et Romanos haec fuit. Formosi decessore defuncto Sergius quidam Romanae ecclesiae diaconus erat, quem Romanorum pars quaedam papam sibi elegerat. Quaedam uero pars non infima nominatum Formosum, Portuensis ciuitatis episcopum, pro uera religione diuinarumque doctrinarum scientia papam sibi fieri anhelabat. Nam dum in eo esset, ut Sergius apostolorum uicarius ordinari debuisset, ea, quae Formosi fauebat partibus, pars Sergium non mediocri cum tumultu et iniuria ab altari expulit et Formosum papam constituit. Descenditque Sergius in Tusciam, quatinus Adelberti, potentissimi marchionis, auxilio iuuaretur; quod et factum est. Nam Formoso defuncto (…), is qui post Formosi necem constitutus est expellitur, Sergiusque papa per Adelbertum constituitur. Quo constituto, ut inpius doctrinarumque sanctarum ignarus, Formosum e sepulcro extrahere atque in sedem Romani pontificatus sacerdotalibus uestimentis indutum collocare praecepit. Cui et ait: “Cum Portuensis esses episcopus, cur ambitionis spiritu Romanam uniuersalem usurpasti sedem?”. His expletis, sacratis mox exutum uestimentis digistique tribus abscisis, in Tiberim iactare praecepit, cunctosque quos ipse ordinauerat gradu proprio depositos iterum ordinauit. Quod quam male egerit, (…) qui a Iuda, Domini nostri Iesu Christi proditore, ante proditionem salutem (…) perceperunt, ea post proditionem propriique corporis suspensionem minime sunt priuati, nisi quos improba forte defaedarant flagitia. Benediction siquidem, quae ministris Christi impenditur, non per eum qui uidetur, sed qui non uidetur sacerdotem infunditur. Neque enim qui rigat est aliquid, neque qui plantat, sed qui incrementum dat, Deus. Benedictio siquidem. Registrado por analistas e historiógrafos medievais, o macabro julgamento de Formoso ocorreu na primeira metade de 897 e foi presidido por Estevão VI – não Sérgio. (GATTO, 2004).
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Como argumentou De Jong (1999). Timothy Reuter definiu o binômio insulto/honra como o que permitia àquela sociedade, “carente de uma linguagem na qual o conflito ou a oposição pudesse ser expressado de uma forma controlável”, dispor de uma “forma característica para a ação política pública” (REUTER, 2018, p. 518).
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No original: Quantae autem auctoritatis quantaeque religionis papa Formosus (…).
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Trecho da entrevista publicada em Pêcheux (2011, p. 103), argumento que é sistematicamente desenvolvido na perspectiva de uma história da linguística em Gadet e Pêcheux (2010). Além disso, acredito que essa alusão ao “sem-sentido” pode ser considerada como um desafio específico criado pelo “primado do outro sobre o mesmo”, traço característico da “terceira época da Análise do Discurso”, na qual Michel Pêcheux situava a própria produção intelectual. Neste ponto da análise, acredito enfrentar um desafio semelhante àquele que Pêcheux formulou como heterogeneidade mostrada, isto é, do limite criado na ordem discursiva pela emergência da posição do sujeito, que se configura como ponto ordenador, mas também como obstáculo para a ampla inteligibilidade do corpo interdiscursivo de traços inscritos por uma língua. (PÊCHEUX, 2010).
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Emprego “microcosmo” por entender, convencido por Antoni Grabowski, que a Antapodosis se desenrola com características do que compreendemos como um pensamento mitológico (GRABOWSKI, 2018).
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No original:Unus et uigesimus dies iam transierat, cum, sicut diximus, altera pars alteram nocere non posset; et Bagoariorum unus cotidie agminibus exprobrans Italorum inbelles eos atque equitandi inscios clamitabat. Ad augmentum etiam dedecoris eos inter prosiliit hastamque uni de manu excussit sicque laetus in suorum castra repedauit. Hubaldus igitur Bonefatii pater, qui post tempore nostro Camerinorum et Spoletinorum extitit marchio, tantum gentis suae cupiens dedecus uindicare clipeo accepto praedicto mox obuiam Bagoario tendit. Is autem triumphi praeteriti non solum non immemor, se deo factus audatior, ceu e uictoria iam secures hunc contra properat laetus. Coepitque uertibilem equum modo impetu uehementi dimitere, strictis modo habenis retrahere. Memoratus uero Hubaldus recta se coepit adire. Cumque in eo esset, ut mutuis sese uulneribus figerent, more solito Bagoarius equo uersili uarios perplexosque per amfractus coepit discurrere, quatinus iis argumentis Hubaldum posset decipere. Verum cum hac arte terga uerteret, ut mox rediens Hubaldum ex aduerso percuteret, equus, cui Hubaldus insederat, uehementer calcaribus tunditur et per scapulas, antequam reuerti Bagoarius posset, lancea ad cor usque perforatur. Hubaldus igitur freno Bagoaricum percipiens equum, ipsum in medio fluuioli alveo exutum hominem dereliquit; sicque suorum iniuriae ultor de triumpho ad suos redit hilarior. Hoc sane factum non mediocrem Bagoariis terrorem, Italicis audatiam contulit. Inito quippe Bagoarii consilio nonnullisque Centebaldus a Widone argenti acceptis ponderibus in propria remeavit.
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Incorporo o termo “anedota” do uso estabelecido por Arnaldi (2015, p. xxviii).
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As recentes conclusões de Laura Wangerin também corroboram a caracterização do duelo como elemento de estruturação das possibilidades argumentativas do discurso da Antapodosis – na perspectiva de Wangerin, da defesa de um modelo de realeza sacramental –, não, necessariamente, como medida de verossimilhança ao curso real de eventos (WANGERIN, 2019).
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Argumento que se fundamenta ainda nos posicionamentos epistemológicos extensivamente formulados em Pêcheux (1975). Ainda conforme o teórico: “a primeira exigência [para esta maneira de trabalhar] consiste em dar o primado aos gestos de descrição das materialidades discursivas. Uma descrição, nesta perspectiva, não é uma apreensão fenomenológica ou hermenêutica na qual descrever se torna indiscernível de interpretar: essa concepção da descrição supõe ao contrário o reconhecimento de um real específico sobre o qual ela se instala: o real da língua. Eu disse bem: a língua. Isto é, nem linguagem, nem fala, nem discurso, nem texto, nem interação conversacional, mas aquilo que é colocado pelos linguistas como a condição de existência do simbólico, no sentido de Jakobson e de Lacan” (PÊCHEUX, 2009, p. 50).
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A definição fundamenta-se na seção dedicada por Heinrich Fichtenau (1991, p. 381-434) à maneira como “cristãos viam os conflitos internos e externos, os destinos dos povos e os impulsos contraditórios do eu interior” durante o século X. Seção intitulada confusio (FICHTENAU, 1991).
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Procedi guiado pela argumentação de Pêcheux (2009) a respeito de como a coerência ideológica de um discurso se impõem como prioridade analítica que, para ser operacionalizada, implica, em muitos casos, a indexação de descontinuidades linguísticas e o isolamento de unidades semântica aparentemente arbitrárias do ponto de vista do sujeito falante.
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Distancio-me da definição sobre o significado da honra atribuído a Liutprando em Freudenberg (2009).
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Embora seja possível identificar uma interseção entre “audácia” e “bravura militar”, especialmente como parte das formas de representação da coragem, conforme demonstrou Philippe Contamine (1998) em texto hoje considerado clássico, parece-me que Liutprando filia-se aqui à matriz agostiniana que vinculava a audatia a uma conduta perturbadora da ordem pública, relação que teve na caracterização da heresia donatista uma de suas versões mais incisivas e influentes ao longo da Antiguidade Tardia. Quanto à matriz agostiniana: Gillis (2017), Van Geest (2021), Escribano Paño (2016).
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No original: Inito quippe Bagoarii consilio nonnullisque Centebaldus a idone argenti acceptis, in propria remeauit .
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No original: Igitur Berengaius, dum ubi prospera sibi aduersari prospiceret, cum Centebaldo pariter Arnulfiregis adit potentiam (…). Tantae siquidem, ut praediximus, promissionis gratia excitus copiis collectis non minimis Italiam adit.
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A redação do parágrafo baseia-se no original: Ubi dum firmissima loci munitione confisi, immo decepti, homines ei occurrere nollent, castrametatus eodem belli fortitudine urbem cepit, iugulat, trucidat; ciuitatis etiam comitem, Ambrosius nomine, cum ense, balteo, armillis caeterisque pretiosissimis indumentis suspendi ante portae ianuam fecit. Quod factum caeteris omnibus urbibus cunctisque principibus terrorem paruum non atulit; quicumque hoc audierat, utraque auris eius tinniebat.
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A argumentação baseou-se em Smith (1988) e no original de Arnulfi (1841): Quid ergo, Iohannes ait, de literis imperatoris? Nonne earum maxime causa directus sum? Quia ipse blasphemas praemisit, his etiam vana erroris sui commenta destruentibus confutetur. (…) Numquam, Iohannes inquit, id approbaverim, ut metu, amore, vel favore mortali, divina transgrediantur statuta. (…) quoniam eis vos necessitate constrictos assentire fatemini, mihi procul his necessitatibus Christi gratia libero, fixus Domino miserante stat animus, quod nullo terrore, allectione vel gratia, ab his quae imperatoris suscepi mandatis deflectar.
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No original: Rex igitur Berengarius (…) Italorum igitur, Tuscorum, Volscorum, Camerinorum, Spoletiorum (…) omnes tamen in unum uenire praecepit, factusque est exercitus triplo Hungariorum ualidior. Cumque sibi rex Berengarius tot adesse copias cerneret, superbiae spiritu inflatus magisque triumphum de hotibus multitudini suae quam Deo tribuens, solus ipse cum paucis quodam in opidulo degens uoluptati operam dabat. Quid igitur? Tantam mox ut Hungarii contemplati sunt multitudinem, animo consternati, quod facerent deliberare non poterant: praeliari poenitus formidabant, fugere magis quam praeliari iuuat; persequentibus christiani Adduam fluuium natando, ita ut nimia festinatione plurimi necti submergerent, pertranseunt. Hungarii denique, consilio non malo accepto, internuntiis Christianos rogant quatinus, praeda omni cum lucro reddita, ipsi incolumes remeare possent. Quam peticionem Christiani funditus abdicantes his, pro dolor!, insultabant potiusque uincula, quis Hungarii uincirentur, quam arma, quibus necarentur, exquirunt. Cumque pagani Christianorum animos hoc pacto mulcere nequirent, uetus rati melius consilium, coepta sese liberare satagunt fuga sicque fugiendo in Veronenses latissimos campos perueniunt. (…) Hac igitur Ungarii legatione desperati collectis in unum fortissimos tali sese mutuo sermone solantur: ‘Si hac, quae inpraesentiarum cernitur, luce perdita nichil est, quod deterius proueniri possit hominibus, et quia locus preci nullus, fugiendi spes omnis ablata, colla summitere mori est, quid uerendum nobis est tela inter ipsa ruere, morte mortem inferre? Numquid non fortunae et non inbecilliati casus deputandus est noster? Viriliter enim pugnando occumbere non est mori, sed uiuere. Hanc famam tantam, hanc clironomian, id est hereditatem, ut a patribus nostris accepimus, nostris etiam relinquamus heredibus. (…).’ Hac itaque exhortatione utcumque animos recreati tres in partes insidias ponunt, recta ipsi fluuium transeundo hostes in medios ruunt. Christianorum enim plurimi longa propter internuntios expectatione fatigati per castra, ut cibo recrearentur, descenderant; quos tanta Hungarii celeritate confoderant, ut in gula cibum transfigerent aliis, quibusdam equis fugam negarent ablatis, eoque illos leuius perhimebant, quo sine equis eos esse conspexerant. Ad augmentum denique perditionis Christianorum non parua inter eos erat discordia. Nonnulli plane Hungariis non solum pugnam on inferebant, sed, ut proximi caderent, anhelabant; atque ad hoc peruersi ipsi peruerse fecerant, quatinus, dum proximi caderent, soli ipsi quasi liberius regnarent. (…) Fugiunt itaque Christiani, saeuiuntque pagani, et qui prius supplicare muneribus nequibant, supplicantibus postmodum parecere nesciebant. Interfectis denique fugatisque Christianis omnia Hungarii regni loca saeuiendo percurrunt.
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No original: Rex denique ob munitionis confidentiam relicto longe exercito cum paucis Romam advenit. Quo decenter a Romanis susceptus in praedictam munitionem ad Maroziae meretricis thalamum declinavit. Cuius incesto dum potitus esset concubitu, romanos quase iam securus despicere coepit. Habuerat sane Marozia filium nomine Albericum, quem ex Alberico marchione ipsa genuerat. Qui dum matris hortatu Hugoni regi,uitrico scilicet, aquam funderet, ut manus ablueret, abe o pro correctione in faciem caesus est, eo quod non moderate et pudenter aquam effunderet. Is uero, ut inlatam sibi posset ulcisci iniuriam, congregatis in unum romanis huiusmodi eos sermone conuenit: ‘Romanae urbis dignitas ad tantam est stultitiam ducta, ut meretricum etiam imperio pareat. Quod enim fedius quidue turpius, quam ut unius mulieris incestu Romana civitas pereat, Romanorum aliquando serui, Burgundiones scilicet, Romanis imperent? Si meam, priuigni scilicet sui, faciem cecidit, cum praesertim nouus habeatur hospes, quid uobis iam inveteratum facere creditis? (…) Nec mora, his auditis Hugonem regem cuncti deserunt atque eundem Albericum sibi dominum eligunt et, ne spacium quidem milites introducendi suos rex Hugo haberet, munitionem confestim obpugnare inceptant. (…) Tanto quippe est terrore coactus, ut per restim se ipsum ea ex parte, qua ciuitatis muro munitio inhaerebat, deponens eam desereret atque ad suos confugeret. Expulsus igitur rex Hugo cum praefata Marozia, Romanae urbis Albericus monarchiam tenuit, fratre suo Iohanne summi atque uniuersalis praesulatus sedi praesidente.
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Formalmente, Liutprando dedicou Antapodosis a Recemundo, bispo de Elvira, que surge, no proêmio da obra, como destinatário (Antapodosis, 1.1, p. 12). Mas, no estado da arte de nosso conhecimento, prevalece a certeza de que “Liutprando não parece pensar prioritariamente em Recemundo” enquanto escrevia (CHRISTYS, 2002, p. 115).
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Aqui culmina a argumentação desenvolvida desde a terceira seção do artigo, quando ideologia se tornou, paulatinamente, elemento fulcral da análise. O processo ideológico foi entendido no sentido abordado por Pêcheux (2011), isto é, de assujeitamento do próprio enunciador ao discurso: “Se o discurso é uma materialidade histórica sempre já dada, na qual os sujeitos são interpelados e produzidos como ‘produtores livres’ de seus discursos cotidianos, literários, ideológicos, políticos, científicos, etc.…, a questão primordial cessa de ser a da subjetividade produtora do discurso e torna-se a das formas de existência histórica da discursividade: em suma, passamos assim de Greimas a Foucault, e à noção de formação discursiva que ele inicialmente introduziu” (p. 156).
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Editado por
-
Editores ResponsáveisMiriam Dolhnikoff e Miguel Palmeira
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Out 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
19 Jul 2021 -
Aceito
23 Fev 2022