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UMA INQUIETAÇÃO DA HISTÓRIA. SOBRE A GÊNESE DA HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA NA FRANÇA 1940-19901 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e a bibliografia utilizadas são referenciadas.

A RESTLESNESS OF HISTORY. ON THE RISE OF HISTORIOGRAPHY IN FRANCE 1940-1990

Resumo

Os estudos de Teoria da História e de Historiografia obtêm grande sucesso no Brasil. Entretanto, apesar do número crescente de publicações e da atual voga de temas provenientes da história da historiografia, esse campo permanece, mundo afora, desprovido de uma base institucional segura e mal reconhecido. O presente artigo procura retraçar algumas etapas, muitas delas hoje esquecidas, do lento e vacilante reconhecimento dos estudos de Historiografia entre os historiadores franceses desde o final da Segunda Guerra. Nosso objetivo é duplo: a) Impedir que tantos esforços empreendidos, na França, para promover a história da historiografia e aproximar historiadores empíricos e teóricos caiam no esquecimento; e b) denunciar a frágil situação institucional dos estudos de Teoria e de Historiografia dentro da escola francesa e alhures. Tal fragilidade institucional é hoje tanto mais alarmante que ela parece ofuscada pela pletora de publicações que caracteriza o nosso presente.

Palavras-chave
Escola Histórica Francesa; Historiografia; Henri-Irénée Marrou; Georges Lefebvre; Annales

Abstract

Studies on Theory of History and Historiography have achieved remarkable success in Brazil. However, despite the increasing number of publications and the current vogue of topics stemming from the field of Historiography, this field remains, throughout the world, barely recognized, lacking a strong institutional background. This paper seeks to retrace some forgotten milestones of the rise of historiographical studies among French historians since the World War II. Our aim is twofold: a) to prevent so many French efforts aimed at fostering Historiography and bringing together empirical and theoretical historians from being lost in oblivion; b), but also to denounce how fragile is the current institutional situation of historiographical and theoretical studies both within the French historical school and beyond. Such institutional fragility is today all the more disturbing as it appears overshadowed by the plethora of publications of our times.

Keywords
French Historical School; Historiography; Henri-Irénée Marrou; Georges Lefebvre; Annales

A Historiografia – isto é, a atenção que os historiadores prestam à história de sua disciplina – possui origens longínquas que remontam aos anos 30 do século XII, quando Hugo de Saint-Victor decide listar, sob a rubrica De nominibus hystoriographorum, os nomes de trinta e dois historiadores antigos, desde Heródoto até Paulo Orósio e Vitor de Vita, em seu livro sobre as três principais condições da história, De tribus maximis circumstantiis gestorum3 3 O De nominibus hystoriographorum de Hugo de Saint-Victor está reproduzido em G. Waitz, “Beschreibung von Handschriften, welche in den Jahren 1839-42 näher untersucht worden sind”, Archiv der Gesellschaft für ältere deutsche Geschichtskunde zur Beförderung einer Gesammtausgabe der Quellenschriften deutscher Geschichten des Mittelalters, XI, 1853-1858, p. 248-514. O texto foi mais recentemente editado por Harrison (2005, p. 290-292). . Como bem adverte Bernard Guenée, esse momento marca uma tripla tomada de consciência por parte dos historiadores: a de praticarem uma ciência respeitável e autônoma, a de poderem se juntar à categoria dos homens ilustres, mas sobretudo a de que “não há boa história sem boa história da história” (Guenée, 1983GuenÉe, Bernard. Les premiers pas de l’histoire de l’historiographie en Occident au XIIe siècle. Comptes rendus de l’Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, n. 1, 1983., p. 152). Séculos mais tarde, ensaios biobibliográficos pertencentes ao gênero da história da erudição literária marcaram o despertar de uma nova curiosidade historiográfica e de um novo desejo de se compreender a atividade histórica a partir de suas múltiplas expressões através do tempo. O século XVIII nascente dará luz à Historia Historiae de Johan Michael Heineccius no momento mesmo em que desaparecem Mabillon e Bayle. A Historiografia, no sentido mais amplo que hoje damos a ela – o de uma curiosidade intelectual dos historiadores pelos fundamentos do conhecimento que produzem e pelo passado de seu ofício –, emerge da tomada de consciência por parte desses mesmos historiadores de que a sua atividade é herdeira de uma tradição rica de séculos de experiência, de procedimentos técnicos cinzelados pacientemente de uma geração a outra e de que a escrita da história é uma prática que, para conseguir avançar, necessita conhecer a si mesma, rememorar os caminhos abertos pelos predecessores, recordar as experiências logradas e os ensaios fracassados, interrogar uma e outra vez as certezas do presente e os métodos julgados comprovados.

Apesar dessas origens remotas, talvez um pouco esquecidas pelo tempo, é possível partir de uma constatação: mais de trinta gerações nos separam do De nominibus hystoriographorum de Hugo de Saint-Victor. Não obstante, os estudos de Historiografia e de Teoria da História continuam marginalizados dentro do campo da disciplina histórica. A crescente voga que esses setores conheceram nos últimos quinze, vinte anos no Brasil e afora pode produzir uma perigosa ilusão de ótica, levando-nos a crer que as pesquisas nessa área obtêm um reconhecimento equivalente ao desfrutado por outros setores da disciplina histórica, mais bem assentados sobre um mais antigo processo de “disciplinarização”. Amadurecendo velozmente nas últimas décadas, graças ao trabalho dedicado de numerosos estudiosos apaixonados, o campo de estudos dedicado à história da historiografia permanece jovem, ao lado dos grandes territórios de eleição da disciplina, como a História Moderna, a História Medieval, a História Social, Econômica e Cultural. Isso porque – a razão é simples – a história sempre foi e continua sendo, fundamentalmente, uma disciplina empírica, firmada sobre o estudo aplicado de fatos concretos individuais, pouco afeito a generalizações teóricas, à reflexividade e aos debates de natureza filosófica.

Nas mais antigas escolas históricas da Europa, é forçoso reconhecer a posição nitidamente marginal dos estudos de Historiografia. Qual foi, por exemplo, o lugar ocupado de fato pelas pesquisas teóricas sobre a história do conhecimento histórico entre as prioridades dos historiadores ao longo do século XX? O caso da Itália talvez se distinga das demais tradições historiográficas europeias pelo laço estreito que soube preservar entre Historiografia e Filosofia, fruto direto do imenso prestígio do pensamento de Croce, assim como da obra de Gramsci. Este interesse filosófico mais marcado constitui uma das forças dos historiadores italianos e explica o destaque dado aos estudos de Historiografia nesse país, aliando comumente uma dupla curiosidade por indagações teóricas e pela história da erudição histórica4 4 Cf., por exemplo, Borghero, 1983, assim como a coleção napolitana dos “Studi vchiani”, inaugurada em 1969 por Pietro Piovani, da qual Corsano, 1971. , a qual encontra na obra de Arnaldo Momigliano a sua máxima expressão. Essa situação é, porém, singular à Península itálica e parece interrompida pelas encostas escarpadas dos Alpes. Com efeito, se a Teoria da História ocupou uma posição honorífica na antiga União Soviética graças ao domínio do materialismo histórico, as escolas históricas da Europa ocidental ao longo do último século parecem ter se esforçado, em comum, por situar o trabalho do historiador a distância das ousadas especulações filosóficas. É certo, não faltaram, aqui e ali, empreendimentos arrojados dispostos a desafiar a indiferença teórica dos historiadores, como é o caso, nos Países Baixos, da obra de maturidade de Pieter Geyl e da revista Theoretische Geschiedenis que, fundada em 1974, deu continuidade ao legado de Jan Romein (ver ROMEIN, 1948Romein, Jan. Theoretical History. Journal of the History of Ideas, 9, n. 1, 1948, p. 53-64.). Algo similar se observa na Alemanha, berço de algumas das reflexões teóricas mais estimulantes do último século. Não nos enganemos, no entanto. A voga planetária de alguns grandes teóricos da história alemães – o nome de Reinhart Koselleck é, sem dúvida, o exemplo mais ilustrativo – não nos deve fazer perder de vista o caráter predominantemente empírico da escola histórica germânica. E o que dizer da Inglaterra, cuja tradição historiográfica, marcadamente empírica, deu à luz uma extensa produção de estudos dedicados à escrita da história nos séculos passados, sem no entanto jamais constituir os estudos de Historiografia e de Teoria da História em setores institucionalmente consolidados, não obstante o imponente legado de um Collingwood e de um E.H. Carr? Ora, essa mesma dificuldade de encontrar, para a história da historiografia, uma expressão institucional se repete nos países ibéricos, apesar de um crescente interesse pela área desde os primeiros anos do novo milênio. Quanto à França, o cenário não é menos desanimador para o historiador da historiografia. Se, aqui como alhures, o número de publicações e de teses de doutorado na área vêm crescendo expressivamente nas últimas duas décadas, quantos são os recém-doutores que logram obter um posto universitário dedicado ao estudo teórico e ao ensino da Historiografia? Nem nas universidades, nem no CNRS, a Historiografia existe como um setor reconhecido. E após os anos de preparação de suas pesquisas, os jovens doutores se veem obrigados a jogar com estreitas margens de manobra no jogo das candidaturas, forçados muitas vezes a empreender uma conversão profissional, seja buscando refúgio na Filosofia, seja se candidatando para as áreas de História Antiga, Medieval, Moderna ou Contemporânea.

A situação é crítica. Os estudos de Historiografia parecem estar, à primeira vista, por todos os lados. Seus temas – a memória social e os usos da história, a poética e a subjetividade do historiador, as experiências do tempo, etc. – estão internacionalmente em voga. Publicações, congressos, seminários e periódicos sobre esses e outros temas da área não param de surgir. Em 2012 foi criado um International Network for Theory of History, cujas conferências bianuais atraem um número crescente de submissões. Mas todos esses empreendimentos e toda essa mobilização científica são, na verdade, tanto mais notáveis que a Teoria da História e a Historiografia permanecem setores periféricos e a sua profissionalização, incipiente.

Devemos então concluir que o estudo da Historiografia foi um fenômeno americano? É certo que, no Canadá, várias vozes se levantaram, desde a virada da década de 1970, em defesa do reconhecimento das pesquisas de história da historiografia. Obras como as de William H. Dray (DRAY, 1964DRAY, William H. Philosophy of History. New Jersey: Prentice Hall, 1964., em especial) ofereceram uma contribuição internacional durável aos problemas de epistemologia da história. No Québec, deplorando o descaso sofrido pelas pesquisas na área, historiadores, como Serge Gagnon (GAGNON, 1973Gagnon, Serge. La nature et le rôle de l’historiographie. Postulats pour une sociologie de la connaissance historique. Revue d’Histoire de l’Amérique Française, 26, n. 4, 1973, p. 479-531. e 1978Gagnon, Serge. Le Québec et ses historiens de 1840 a 1920. Québec: Les Presses de l’Université de Laval, 1978.) e Claude Sutto (SUTTO, 1970Sutto, Claude Huppert. The idea of perfect history. Revue d’Histoire de l’Amérique Française, 24, n. 3, 1970, p. 433-435.), e sociólogos, como Fernand Dumont (DUMONT, 1963Dumont, Fernand. Idéologies et savoir historique. Cahiers internationaux de sociologie, 35, 1963, p. 43-60.), advogaram em favor da admissão da Historiografia como uma parte essencial da pesquisa e do ensino universitários (DUMONT, 1969Dumont, Fernand. La fonction sociale de l’histoire. Histoire sociale, II, n. 4, 1969.). Quanto aos Estados-Unidos, a primeira impressão é a de que uma vasta produção dedicada à história da história se destaca dentro do campo mais amplo da história das ideias, provavelmente graças a uma aliança bem-sucedida que se estabeleceu entre esse campo e os estudos de teoria sociológica e de teoria literária. Dentro da imensa produção norte-americana, os trabalhos de Georg Iggers e os escritos de Hayden White, de Dominck LaCapra, de Joan Scott ou de Anthony Grafton chamam a atenção pela inventividade de suas análises, a força de suas interpretações e a abertura temática que promovem. No entanto, é difícil sistematizar a abundante produção norte-americana. Um rápido balanço nos permite pensar que, apesar da profusão de publicações voltadas para o estudo das formas de se pensar e de se escrever a história ao longo dos séculos, a Historiografia assim como a Teoria da História continuam aqui também, como na Europa, muito longe de obter um reconhecimento como disciplina consolidada – isto é, como uma área do conhecimento dotada de uma identidade profissional e epistemológica distinguível, dispondo de autoridade e autonomia para gerir e ratificar, segundo critérios internos e um sistema de avaliação endógeno, o recrutamento e o acesso aos postos responsáveis pela produção e difusão do saber.

À semelhança dos países europeus, a Historiografia e a Teoria da História estadunidenses penam, do ponto de vista institucional, em obter cátedras, logo em se reproduzir. Com efeito, apesar do número elevado de publicações, quantos são os departamentos norte-americanos que acolhem profissionais do setor – i.e., que conseguem incorporar as novas gerações de pesquisadores que, ao fim de uma longa formação especializada, obtiveram uma titulação distintiva? Quais são e onde estão, hoje, as equipes compostas de profissionais formados como historiógrafos ou teóricos da história? A revista norte-americana History and Theory continua certamente a nos admirar como a maior expressão dos êxitos da união entre Historiografia e Teoria da História; no entanto, o seu extraordinário sucesso sessenta anos desde a sua fundação parece evidenciar, antes de mais nada, um longo reinado solitário5 5 Longo reinado solitário que – cabe lembrá-lo aqui – parece assentado, como bem adverte Carlo Ginzburg, num recrutamento que tendeu a acolher mais filósofos do que historiadores de formação entre seus colaboradores (GINZBURG, 1989, p. 43). , sem ter até finais da década de 1990 qualquer outra revista ao seu lado com a qual compartilhar a sua glória.

Chamar a atenção para a precária situação do campo da Historiografia é tanto mais necessário que, no Brasil, este campo tem sido, desde há pelo menos quinze anos, objeto de um interesse crescente, absolutamente notável, entre profissionais e estudantes de História. O número de publicações no setor tem se expandido a olhos vistos. Simultaneamente, mais e mais departamentos através do país procuram reforçar as cadeiras de Teoria e Historiografia (muitas vezes confundidas sob a rubrica “Métodos e técnicas” ou “Introdução à História”). Esse sucesso da Teoria e da Historiografia entre nós é encorajador e estimulante, mas ele é suscetível de produzir uma perigosa ilusão de perspectiva, fazendo-nos esquecer de que esse mesmo sucesso é, no fim das contas, um traço distintivo de nossa produção. Com efeito, cabe aqui lembrá-lo, com suficiente realce, uma vez que a impressão que parece vigorar atualmente no Brasil é a das áreas de Teoria da História e de Historiografia como uma espécie de vanguarda triunfante das pesquisas históricas contemporâneas, como fica nitidamente ilustrado, entre tantos outros exemplos, numa chamada de dossiê lançada pela revista História da Historiografia no inverno de 2020 para um número sobre “História (In)disciplinada”, recentemente publicado (ver História da Historiografia, 2021HISTÓRIA da Historiografia, v. 14, n. 36, 2021.). A chamada em questão é, em si mesma, altamente reveladora do impulso teórico da historiografia brasileira e das interrogações e das problemáticas que hoje se colocam na ponta das pesquisas nacionais, mas encontro nela um ponto de discordância, se me permitem, quando a mesma chamada, apoiando-se no sucesso das pesquisas brasileiras em Teoria e em Historiografia, celebra o advento de uma “idade teórica” da disciplina – as pesquisas de Historiografia aparecendo como expressão da expansão de uma área reflexiva dentro da disciplina histórica. Embora o tema principal do dossiê seja a dialética disciplina/indisciplina no campo da História, e não uma discussão acerca das áreas de Teoria e de história da historiografia, tal chamada de artigos coloca uma questão relevante, que não merece ser ignorada. Ao mesmo tempo em que nos encoraja a nos perguntarmos sobre as razões desse atual sucesso das áreas de Teoria e de Historiografia no Brasil, a chamada do dito dossiê nos incita a levar seriamente em consideração, por contraste, a situação crítica em que a Teoria da história e a Historiografia se encontram em nossos dias mundo afora, onde ambos os setores oferecem apenas escassas possibilidades de carreira e onde o número crescente de publicações nessas áreas não espelha fielmente – para jogar com a palavra-chave do referido dossiê – a sua precária “disciplinarização”. Podemos, com efeito, perguntar-nos: esse notável sucesso dos estudos e do ensino de Historiografia no Brasil representa, de fato, uma conquista segura? Traduz um movimento global mais amplo comum a escolas históricas de diferentes países ou trata-se de uma contrastante particularidade nossa no cenário historiográfico internacional? Não seria exagerado afirmar, parece-nos, que a fulgurante profissionalização das áreas de Teoria e de Historiografia entre nós constitui, a dizer verdade, uma feliz excepcionalidade brasileira. Excepcionalidade que se estende à frutuosa aliança que aqui se formou entre os escritos de Teoria da História e as pesquisas de história da história6 6 Para sermos plenamente rigorosos, caberia aqui destacar que esse mesmo interesse pelas áreas de Historiografia e de Teoria da História, o Brasil o compartilha desde há muito com algumas outras historiografias latino-americanas, como a mexicana e a argentina. .

As razões do sucesso da Historiografia e da Teoria entre nós são certamente complexas. Elas mereceriam ser objeto de uma pesquisa de fôlego e não podem ser tratadas precipitadamente aqui. Mas talvez não seja inoportuno lembrar os obstáculos que os estudos de Teoria da História e de Historiografia tiveram que enfrentar ao longo do último século para que o valor de suas contribuições viesse a ser reconhecido. Emblemático é, a esse respeito, o caso da escola histórica francesa, notoriamente marcada por uma desconfiança frente a qualquer aproximação entre história e teoria. Optando por uma exposição cronológica, década por década, nossa proposta, nas páginas a seguir, é a de retraçar algumas etapas que marcaram o advento lento, laborioso, repleto de entraves e tropeços, da história da historiografia na França. Uma história da história da história, portanto – ou uma história au troisième degré, voltada exclusivamente para a difícil gestação dos estudos de Historiografia entre os historiadores franceses a partir do final da Segunda Guerra.

Sem qualquer pretensão de exaustividade, reconhecendo os limites impostos pelo número restrito de páginas de que dispomos, o nosso propósito é o de apresentar um esboço daquilo que se poderia chamar de a “gênese do campo da história da historiografia na França”, dos anos 40 ao final da década de 80, fornecendo ao leitor interessado alguns pontos de referências que o permitirão, se assim o desejar, ampliar e aprofundar esse esboço. Nosso objetivo é, portanto, duplo, embora muito modesto: 1º) o de trazer para o leitor, a partir do caso francês, um contraponto a esse recente sucesso da Historiografia e da Teoria entre nós, com o intuito de lembrar que esse mesmo sucesso nada tem de natural, de global e de assegurado; 2º) o de refrescar a nossa memória acerca de tantos autores que ousaram enfrentar a atávica resistência dos historiadores franceses diante da teoria, de modo a impedir que suas ações em defesa da Historiografia caiam no esquecimento.

Limiar: os anos 1940

Na segunda metade dos anos 40, a escola histórica francesa viu alguns de seus mais ilustres representantes se voltarem, de forma concertada, para uma interrogação sobre a história – não tanto aquela que os homens fazem sem sabê-lo e que move o destino das nações, mas a que os historiadores escrevem e que incessantemente modela a memória social. No imediato pós-guerra, em meio aos esforços de reconstrução de um Velho Mundo assolado, grandes nomes da historiografia francesa sentiram a necessidade de refletir sobre o seu ofício, questionando abertamente o seu propósito e a sua utilidade, numa tentativa de melhor entender como e por que trabalham os historiadores7 7 Retomando aqui o subtítulo provisório, já utilizado em seu curso de 1940-1941 em Clermont-Ferrand, escolhido por Marc Bloch para o seu futuro Apologie pour l’histoire. . Em 1945-1946, Georges Lefebvre inova, ao preparar para os seus alunos da Sorbonne um curso sobre o nascimento historiografia moderna (LEFEBVRE, 1946Lefebvre, Georges. Notions d’historiographie moderne. Paris: Centre de documentation universitaire, 1946.) que circulará de forma limitada em versão policopiada antes de sua reedição, em 1971, pelas edições Flammarion. Falar de Historiografia para estudantes de história na Liberação é, sem dúvida, uma originalidade do grande historiador da Revolução Francesa. Inspirando-se no trabalho pioneiro de Eduard Fueter (FUETER, 1911Fueter, Eduard. Geschichte der neueren Historiographie. München-Berlin: R. Oldenbourg, 1911.), Georges Lefebvre prega no deserto, e o seu livro sofre com a ausência de outros empreendimentos dessa natureza com os quais dialogar. Após os primeiros capítulos que remontam à Antiguidade, à Idade Média e à história praticada fora da Europa, Lefebvre revisita a obra de alguns grandes historiadores que marcaram o progresso metodológico da disciplina histórica, a dilatação do seu campo e a multiplicação de seus objetos. São assim convocadas as grandes figuras tutelares da história francesa: Michelet, Fustel, Thierry, Tocqueville, Guizot, Mézeray, Taine; Comte, mas também as grandes etapas que definiram o amadurecimento paulatino do conhecimento histórico europeu: os humanistas dentro e fora da Itália, seguidos pelos historiadores “racionalistas” do século XVIII (Voltaire, Montesquieu, Giannone, Gibbon, Vico, Herder), pelas historiografias inglesa e alemã (Niebuhr, Ranke, Ritter, Burckhardt, Waitz, Winckelmann, Burke), pelo renascimento da erudição no século XIX e, enfim, pelas aberturas que sacudiram o campo da história (Durkheim, Sombart, Weber e, acima de todos, Marx). O resultado é um livro datado. Suas análises são sumárias, comportando as deficiências esperáveis de uma abordagem historiográfica ainda incipiente. No entanto, o curso de Georges Lefebvre parece captar magistralmente uma nova sensibilidade, compartilhada por alguns de seus pares. E à sua pregação no deserto logo virão se unir novas vozes.

É assim que, no mesmo ano de 1946, é publicada a Introduction à l’histoire que Louis Halphen, eminente medievalista da Sorbonne, havia redigido durante a Ocupação entre setembro de 1943 e setembro de 1944. Reacendendo um antigo interesse historiográfico que Halphen havia precocemente demonstrado, desde 1914, em seu L’Histoire en France depuis cent ans – obra à frente de seu tempo, mas cuja recepção foi fortemente afetada por sua infeliz publicação às vésperas da guerra8 8 HALPHEN, 1914. Dedicado ao triunfo da história na França do século XIX, o trabalho historiográfico de L. Halphen indica, de modo revelador, que os historiadores franceses, mesmo sob o domínio da erudição, não permaneceram indiferentes ao aporte dos estudos historiográficos realizados por seus colegas fora da França, especialmente além-Reno. A guerra que então eclodiu abalou, sem dúvida alguma, uma possível onda de interesse pela história da historiografia na França na primeira década do século XX, e o livro de Halphen não foi o único que se viu lesado pelo conflito. Basta pensarmos no eco enfraquecido da Geschichte der neueren Historiographie, de Eduard Fuerter, publicado em 1911 e traduzido para o francês no mesmo ano de 1914. –, a sua Introducion à l’histoire é, ao mesmo tempo, uma apresentação da história (seu objeto, seu método, seu valor) e uma defesa de sua vocação científica. Pois, para Halphen, a história é uma ciência – uma ciência complexa, distinta das ciências matemáticas, debatendo-se com tudo o que há de movediço no reino das realidades humanas. Não menos rigorosa, no entanto. Como o provam – acrescenta – as etapas da crítica dos testemunhos, da pesquisa e da coordenação dos fatos. Objetividade e honestidade: eis as lições da história. Quanto ao lugar reservado à Historiografia e à Teoria da História nesta introdução aos estudos históricos, Halphen reconhece, por um lado, o valor da história da ciência histórica, se queixa da inexistência de um trabalho historiográfico de maior fôlego, capaz de oferecer uma visão de conjunto, integrada, do desenvolvimento da história ao longo dos séculos (HALPHEN, 1946HALPHEN, Louis. Introduction à l’histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1946., p. 81) e se arrisca, num curto apêndice, a apresentar uma síntese um tanto esquemática. No entanto, não hesita em se mostrar, por outro lado, cauteloso diante das tentativas de “Teoria da História”, que ele descreve como “um campo indefinido de reflexão, onde as mentes mais diversas se movem incansavelmente, sem que seja sempre possível distinguir claramente o benefício que a própria ciência histórica pode daí extrair” (id., p. 91).

A dizer verdade, a Introduction à l’Histoire pode ser contemplada como espécie de contraparte e de homólogo do livro póstumo de Marc Bloch, testamento inacabado de metodologia histórica do grande historiador, também ele redigido na clandestinidade durante a Ocupação, entre 1941 e 1943: o Apologie pour l’histoire ou Métier d’historien (BLOCH, 1949BLOCH, Marc. Apologie pour l’histoire ou métier d’historien. >Paris: Armand Colin, 1949.), publicado apenas três anos depois do manual de Halphen. Desde a sua publicação, o livro de Bloch é aclamado entre os pares, tornando-se rapidamente um breviário para as gerações mais jovens de historiadores pelas décadas que se seguirão. No entanto, esse movimento reflexivo que desponta na segunda metade dos anos 1940 se interrompeu tão logo surgiu. A hora de um campo de estudos dedicado à história da ciência dos historiadores não havia chegado. À margem do saber histórico, as reflexões teóricas acerca do método e da prática do historiador continuavam julgadas aventurosas e arriscadas, pois passíveis de levar o pesquisador ao campo perigoso da metodologia pura, de fazê-lo deslizar em considerações de natureza filosófica. Assim, Halphen, no apêndice de sua Introduction, reconhece a fineza e a inteligência das reflexões dos teóricos alemães (Dilthey, Rickert, Simmel, Weber), mas para lamentar o seu pouco contato com a prática concreta do historiador:

As reflexões dos filósofos deste calibre seriam, afirma, mais instrutivas se levassem mais em conta as lições que o historiador tira de sua própria experiência e se, partindo do concreto, sobre o qual a história se edifica, elas só se elevassem pouco a pouco até as conclusões de natureza mais abstrata, onde o pensamento do filósofo é realizado

(HALPHEN, 1946HALPHEN, Louis. Introduction à l’histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1946., p. 96).

O tempo dos esforços dispersos: os anos 1950

Os estudos franceses de história da historiografia nos anos 50 encontraram o seu maior porta-voz em Henri-Irénée Marrou. Defensor incansável da história da historiografia, daquilo que ele chama de “metodologia crítica” da história, Marrou foi provavelmente o historiador que, mais do que qualquer outro, procurou chamar a atenção, na França, para a importância e a utilidade de uma reflexão dos historiadores profissionais sobre os fundamentos de seu campo do conhecimento. Quem mais, além dele, defendeu com tanto afinco uma “filosofia da história” que, longe da “‘filosofia da história’, no sentido hegeliano do termo, especulação sobre o futuro da humanidade”, era concebida, ao contrário, como “o exame dos problemas de ordem lógica e gnosiológica” (MARROU, 1953MARROU, Henri-Irénée. La méthodologie historique: orientations actuelles. À propos d’ouvrages récents. Revue Historique, 209, 1953, p. 256-270., p. 257) que se relacionam diretamente com o trabalho do historiador? Em oposição à Louis Halphen, cuja Introduction há pouco publicada se concluía por uma crítica acerba contra a Teoria da História, denunciando suas “banalidades” e sua “leitura árida e decepcionante” (HALPHEN, 1946HALPHEN, Louis. Introduction à l’histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1946., p. 91), Marrou vai insistir, ao contrário, nos proveitos para os historiadores profissionais de uma maior familiaridade com a literatura teórica (MARROU, 1953MARROU, Henri-Irénée. La méthodologie historique: orientations actuelles. À propos d’ouvrages récents. Revue Historique, 209, 1953, p. 256-270., p. 284). De fato, poucos foram os historiadores profissionais, os historiadores-“artesãos” que, como ele, estiveram dispostos a lutar para pôr fim ao divórcio que, à custa de uns e outros, há muito separava os “teóricos” e os “técnicos” da história (id., p. 256).

Historiador de profissão e “artesão” à risca, Marrou nunca deixou de questionar a fragilidade do conhecimento histórico, exortando os historiadores a reconhecer a distância que os separa do ideal de objetividade perseguido, com excessiva confiança, pela história dita “positivista”. Leitor assíduo da Introdução à Filosofia da História (1938) de Raymond Aron, cujas teses ajudou a divulgar entre os historiadores profissionais, Marrou esteve de acordo com Lucien Febvre e próximo ao projeto de renovação dos Annales no que diz respeito à dilatação da noção de documento e ao combate ao método crítico tradicional. Sentia que um novo método histórico, diferente daquele venerado pelos mestres positivistas, se punha gradualmente em prática nesses anos. Um método, a seu ver, mais fino, apurado, que considerava a forma como a cultura, a visão de mundo e as paixões do historiador prevalecem, ainda que disfarçadamente, sobre o seu esforço de interpretar e de compreender o passado. A sua proposta de uma “metodologia crítica” e o seu elogio à história da historiografia fundavam-se, contudo, não sobre uma filosofia ideal e desconectada do exercício da história, mas sim sobre um esforço de devolver a história ao historiador, observando historicamente a evolução do método histórico e chamando a atenção para o interesse de se estudar mais de perto as representações mentais que os historiadores, enquanto homens de seu tempo, inevitavelmente agregam a seus escritos.

A metodologia não pode ser apresentada como uma teoria abstrata – como Prolegómenos a qualquer história possível: a história já existe, ou pelo menos o trabalho dos mais variados historiadores, com suas características comuns e suas particularidades, suas qualidades, seus defeitos, seu valor, seus limites. Qualquer análise crítica deve, para vir a ser relevante, tomar como ponto de partida o exame destes trabalhos (...). Daí a importância, ao lado de tantos estudos sobre a história, de livros dedicados aos historiadores

(MARROU, 1953MARROU, Henri-Irénée. La méthodologie historique: orientations actuelles. À propos d’ouvrages récents. Revue Historique, 209, 1953, p. 256-270., p. 265).

Convencido de que os historiadores merecem ser estudados em si mesmos, pelo testemunho que oferecem da sociedade e da época às quais pertencem, Marrou batalhou para que a Historiografia, como setor dedicado a situar os historiadores numa história mais ampla das ideias e da cultura, fosse reconhecida por seus pares. Seu livro De la connaissance historique (MARROU, 1954MARROU, Henri-Irénée. De la connaissance historique. Paris: Seuil, 1954.) e seus boletins metodológicos publicados na Revue Historique cumpriram, sem dúvida, um papel decisivo na promoção, difícil, da história da historiografia na França dos anos 50. Segundo Marrou, a história como realidade – isto é, enquanto campo acontecimental – não existe independentemente dos historiadores que a escrevem e a representam. A sua posição se aproxima, portanto, da de Croce e de Lucien Febvre, para quem não há história, mas tão somente historiadores. Em outras palavras, o passado histórico apenas existe a partir do momento em que podemos conhecê-lo, pois na história o plano do passado vivido pelos homens e o do presente onde esse passado é reconstituído apenas são compreensíveis dentro do conhecimento que os une, não sendo então possível, acrescenta, “isolar, senão por uma distinção formal, de um lado um objeto, o passado, do outro um sujeito, o historiador” (MARROU, 1954MARROU, Henri-Irénée. De la connaissance historique. Paris: Seuil, 1954., p. 37).

Essa posição, que se aproxima perigosamente do idealismo tão temido pelos historiadores empíricos, permanecerá muito tempo sem ser retomada, mas a atenção dada à subjetividade do historiador e ao seu papel criador na construção do conhecimento parece, ainda que indiretamente, ter ressoado entre os historiadores franceses ao longo dos anos 50. Estariam agora, eles, dispostos a encarar seus predecessores como objetos de estudo, destrinchar as representações mentais que, como homens de seu tempo, estes últimos veiculavam inadvertidamente enquanto acreditavam estar redigindo escrupulosamente seus relatos? Melhor ainda: estariam prontos a admitir a plena historicidade de sua ciência e assumir, por conseguinte, que eles mesmos estão a produzir obras que se converterão inelutavelmente em fontes históricas para os historiadores de amanhã? Significativa, a esse respeito, é a maneira como a história da historiografia se introduz inopinadamente no relatório do Comitê Nacional de Pesquisa, publicado em 1959 na Revue Historique conjuntamente por Fernand Braudel, Ernest Labrousse e Pierre Renouvin, que declaram: “Convém acrescentar um campo mais novo: é a história da história, a historiografia. Estas pesquisas poderiam conduzir ao estudo das representações coletivas do passado em um determinado período. Haveria certamente aí um ensejo para trabalhos importantes (id., p. 46)”.

Tendo em conta a sua data, tal declaração é, decerto, surpreendente. Ora, nós estamos então na véspera dos anos 60, na fase embrionária de uma história das “mentalidades” que virá a se converter no cavalo de batalha da escola francesa ao longo da próxima década. Nesse momento, em finais dos anos 50, a tocha de Lucien Febvre mal havia sido passada para a jovem geração de historiadores. A data do relatório do CNRS é, desse ponto de vista, particularmente eloquente. E isso porque é precisamente como um dos possíveis temas de pesquisa para o estudo das “mentalidades coletivas” que os autores apontam, em 1959, o interesse de se investir em investigações sobre as “representações históricas do passado, período por período – e, mais geralmente, uma história da historiografia moderna e contemporânea” (BRAUDEL, LABROUSSE, RENOUVIN, 1959BRAUDEL, Fernand; LABROUSSE, Ernest; RENOUVIN, Pierre. Les recherches d’histoire moderne et contemporaine. Revue Historique, 222, 1959, p. 34-50., p. 42)9 9 Os autores do relatório não indicam nenhuma referência dessa história da historiografia nascente. Possivelmente, pensavam em Marrou, em Georges Lefebvre; e, fora da França, nos escritos de Karl Brandi, James Westfall Thompson, Herbert Butterfield, Pieter Geyl e Arnaldo Momigliano. . Reveladora da maneira de se pensar a utilidade da história da historiografia em finais dos anos 1950, essa incitação ao desenvolvimento de uma história da história nos interessa particularmente aqui pela maneira como ela se inscreve diretamente, não numa perspectiva teórica ou epistemológica, mas numa proposta de impulso ao ainda jovem, mas já promissor, estudo das mentalidades e das representações coletivas.

O despertar: os anos 1960

Poder-se-ia então pensar que, no reino das pesquisas históricas francesas, os anos 1960 seriam inaugurados por esse promissor impulso em favor de uma história da historiografia. Na verdade, a defesa desta última é um dado marginal dentro do balanço que Braudel, Labrousse e Renouvin fazem das grandes orientações da pesquisa histórica francesa, de modo que seria um erro dar a essas declarações uma importância maior do que a que tiveram em seu tempo. Mas elas nos parecem tanto mais relevantes quanto apontam para a tomada de consciência, por parte dos historiadores franceses, acerca de uma lacuna a ser preenchida: a de uma história das representações históricas. Ora, é precisamente nessa direção que Robert Mandrou começa, nesses mesmos anos, a dirigir suas reflexões. Enquanto preparava a sua investigação sobre a Biblioteca Azul de Troyes, Mandrou dedicou, por dois anos consecutivos (1962-1963 e 1963-1964), o seu seminário na VIa Seção da École Pratique des Hautes Études (EPHE) ao tema “Pesquisa sobre as representações lendárias da história francesa na literatura de colportagem (séculos XVII-XVIII)” (MANDROU, 1962-1963MANDROU, Robert. Histoire sociale des mentalités modernes. Annuaire de la VIe section de l’EPHE, 1963-1964, p. 57-58., p. 42). Sua abordagem é, sem sombra de dúvida, inovadora para a época, na medida em que, observando essa “literatura pseudo-histórica”, Mandrou destaca o interesse de se comparar as representações propaladas por essa história lendária com o trabalho dos historiadores eruditos para em seguida considerá-las “no âmbito de uma história mais ampla da historiografia francesa” (MANDROU, 1963-1964MANDROU, Robert. Histoire sociale des mentalités modernes. Annuaire de la VIe section de l’EPHE, 1962-1963., p. 57-58). Após a sua publicação, o trabalho de Robert Mandrou (MANDROU, 1964MANDROU, Robert. De la culture populaire aux XVIIe et XVIIIe siècles. Paris: Stock, 1964.) deixou sua marca no longo debate em torno da noção de “cultura popular”, o qual continuará mobilizando por muito tempo sucessivas gerações de historiadores. Quanto a essa história das representações histórico-lendárias, é possível dizer que a sua repercussão foi, num primeiro momento, tímida, passando praticamente despercebida em meio às polêmicas suscitadas pelo estudo da literatura ambulante de Troyes e pelo recurso, controverso, à ideia mesma de uma “cultura popular”. Não obstante, uma nova direção de pesquisa ficava assim indicada, e a história da historiografia francesa havia, ainda que por ora sem sabê-lo, encontrado já uma das bases sobre as quais, uma década mais tarde, ela viria a florescer.

Na virada dos anos 60, é possível distinguir o despertar de um novo interesse dos historiadores pelo estudo das formas como as sociedades representam o seu passado. Essa direção, que em breve se revelaria determinante para o sucesso que a história da historiografia virá a conhecer na França, não era, no entanto, a única na época. Nesse momento, diferentes trabalhos voltados para a análise de obras históricas contribuíram para a abertura de novos caminhos e para o estudo de noções profundamente enraizadas na vida cultural francesa. Esse é, por exemplo, o caso de Paul Viallaneix, estudando a ideia de povo em Michelet, o de Pierre Nora, dedicando-se ao estudo de um outro monumento historiográfico francês, Lavisse, ou ainda o da pesquisa de Jacques e Mona Ozouf sobre o tema do patriotismo nos livros escolares, desbravando assim um dos territórios que se revelarão ulteriormente fecundos junto aos futuros trabalhos de Historiografia (VIALLANEIX, 1959VIALLANEIX, Paul. La Voie royale, essai sur l’idée de peuple dans l’œuvre de Michelet. >Paris: Gallimard, 1959.; NORA, 1962NORA, Pierre. Ernest Lavisse: son rôle dans la formation du sentiment national. Revue Historique, 228, n. 463, 1962, p. 73-106.; OZOUF, 1964OZOUF, Jacques, Mona. Le thème du patriotisme dans les manuels primaires. Le Mouvement social, n. 49, 1964, p. 5-31.). A esses empreendimentos, cabe ainda acrescentar uma última referência, indispensável para se pensar o advento dos estudos de Historiografia na França e a sua progressiva maturação nos anos 60 e 70. Trata-se do balanço das orientações da pesquisa histórica francesa que Jean Glénisson prepara em 1965, em um texto formidável que oferece, ainda hoje, mais de meio século desde sua publicação, observações fulgurantes para todo estudioso da história da escola histórica francesa do século XX (GLÉNISSON, 1965GLÉNISSON, Jean. L’historiographie française contemporaine: tendances et réalisations. In: COMITE français des sciences historiques. Vingt-cinq ans de recherche historique en France (1940-1965). Paris: CNRS, 1965, p. IX-LXIV.). Não obstante a miríade de trabalhos sobre os historiadores franceses do último século já publicados desde então, o texto de Jean Glénisson destaca-se por sua lucidez e sagacidade. Desafiando esse imenso obstáculo para o historiador que é a falta de recuo temporal, Glénisson – que já havia publicado, no Brasil, um primeiro trabalho de teor historiográfico (GLÉNISSON, CAMPOS, VIOTTI DA COSTA 1961GLÉNISSON, Jean; CAMPOS, Pedro Moacyr; Viotti da Costa, Emília. Iniciação aos estudos históricos, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1961.) – logra apresentar, de forma clara e concisa, um retrato vívido e plural da escola histórica de seu tempo, abraçando as suas mais diversas direções, inclusive aquelas ainda em gestação. Feito tanto mais notável que o balanço esboçado é de uma delicadeza raramente igualada.

A década de 1970: disciplinarização balbuciante

Com a virada dos anos 70, entramos finalmente na década que verá o desabrochar das pesquisas de Historiografia na França. De um setor suspeito, controverso e pouco frequentado, a Historiografia consegue se colocar, no espaço de apenas dez anos, como um setor reconhecido dentro da escola francesa. Mais do que isso: nesse momento, a atenção dada aos estudos da história da disciplina histórica desperta uma nova consciência historiográfica, a qual se impõe como uma prática imprescindível que deve doravante presidir toda a reflexão histórica, os historiadores devendo assumir que suas pesquisas são produtos de seu tempo e herdeiras de uma tradição disciplinar. Embora dispersas, as batalhas travadas pelos defensores da Historiografia durante os anos 50 e 60 pareciam ter dado frutos. E o deslumbrante surgimento desse novo campo nos anos 70 é a melhor prova disso – como atesta o novo curso de Historiografia que Michel François acaba de inaugurar na École des Chartes. Experimentais, as jovens pesquisas de Historiografia que então despontam parecem exercer uma ação centrípeta sobre todo o território do historiador, atraindo para si questionamentos oriundos dos mais diversos setores, forjando ao mesmo tempo alianças com a história das mentalidades, com a história da ciência e, enfim, com a crítica epistemológica da história.

A década historiográfica de 1970 se abre com uma nova leva de trabalhos que marcam uma inflexão na maneira como a história da historiografia é encarada em território francês. É nesse contexto de um interesse renovado pela literatura historiográfica que o curso de Georges Lefebvre, primeiramente publicado vinte e cinco anos antes, vem a ser reeditado, sob um novo título, pelas edições Flammarion como um livro que teria permanecido atual e novador (LEFEBVRE, 1971Lefebvre, Georges. La Naissance de l’historiographie moderne. Paris: Flammarion, 1971.). De fato, se as edições Flammarion perceberam, não sem razão, que uma nova sensibilidade pela Historiografia parecia haver se formado, permitindo que as lições de Lefebvre recebessem, agora, uma atenção muito superior à que lhes foi concedida um quarto de século atrás, é forçoso reconhecer que essa reedição é altamente reveladora da indiferença visível dos historiadores franceses pela área ao longo de todos esses anos. E Guy Palmade, que já em 1964 havia publicado com Jean Ehrard uma introdução à Historiografia dirigida aos estudantes universitários (EHRARD, PALMADE, 1964Ehrard, Jean; Palmade, Guy. L’Histoire. Paris: Armand Colin, 1964.), tem razão de denunciar, no prefácio que redige para a reedição do livro de Georges Lefebvre, o desinteresse francês pelo que, ainda em 1971, aparecia como “um continente quase desconhecido, a história da historiografia” (PALMADE, 1971PALMADE, Guy. Préface. In: LEFEBVRE, Georges. La Naissance de l’historiographie moderne. Paris: Flammarion, 1971., p. 11).

Continente que viria, no entanto, a ser em pouco tempo povoado. Com efeito, o que se vê no alvor da nova década é uma retomada resoluta das instigações de Raymond Aron e de Marrou. Pertencem precisamente a esse movimento o livro Histoire et vérité, do historiador polonês Adam Schaff (1971)Schaff, Adam. Histoire et vérité. Essai sur l’objectivité de la connaissance historique. Paris: Anthropos, 1971., cuja epígrafe retoma a máxima de Marrou, que declara desejar que no frontão de seu Propileu se leia: “Que ninguém entre aqui se não for filósofo – se não tiver primeiro meditado na natureza da história e na condição do historiador”; e o provocador Comment on écrit l’histoire, de Paul Veyne (1971)VEYNE, Paul. Comment on écrit l’histoire. Paris: Seuil, 1971., que defende um nominalismo radical e quebra as presunções epistemológicas dos historiadores de uma forma tanto mais avassaladora que ele aparece inteiramente construído sobre uma impecável erudição. Assim que foi publicado, Comment on écrit l’histoire suscitou debates acalorados dos quais participaram, entre outros, Raymond Aron, Georges Duby, Michel de Certeau e Pierre Vidal-Naquet.

Na esteira da “filosofia crítica” de Aron e de Marrou, o ensaio de epistemologia de Veyne desafia os modelos em vigor e contesta muitas das ideias feitas às quais os historiadores se agarravam piamente, incitando estes últimos a se mostrarem mais inventivos ao refletirem sobre a sua prática. Nesse sentido, o seu livro se alia a outros esforços contemporâneos, como é o caso da reflexão desenvolvida por Michel de Certeau em seu texto sobre a “operação historiográfica” (CERTEAU, 1974CERTEAU, Michel de. L’Opération historique. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre, Faire de l’histoire. Paris: Gallimard, 1974, p. 3-41.-1975CERTEAU, Michel de. L’Écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975.). Publicado inicialmente em 1974, num dos volumes da célebre trilogia Faire de l’histoire, dirigida por J. Le Goff e P. Nora, expandido e retrabalhado numa nova versão, seu texto se tornará altamente influente, convidando os historiadores a voltarem os seus olhares para alguns pontos cegos de sua prática, como o próprio lugar de enunciação/produção e outros não ditos do discurso histórico. Nessa primeira metade da década de 1970, a história da historiografia, propriamente dita, ainda não era plenamente reconhecida a ponto de ser incorporada a essa espécie de vitrine das novas orientações de ponta da pesquisa francesa que foram os três volumes de Faire de l’histoire. Entretanto, torna-se a partir desse momento manifesto o surgimento de diferentes esforços dispostos a questionar o papel social e científico da história, assim como a relação insidiosa que o conhecimento histórico mantém, furtivamente, com os sistemas ideológicos de uma sociedade.

Um mês após a publicação do livro de Veyne, no simpósio organizado em Veneza por Raymond Aron sobre a história e a futurologia, é a vez de Georges Duby apresentar suas reflexões sobre “a história dos sistemas de valores”, chamando a atenção de seu público para

a importância da história como um elemento particularmente ativo entre aqueles que compõem uma ideologia prática. Em larga medida, a visão que uma sociedade tem de seu destino, o sentido que ela atribui, com ou sem razão, à sua própria história atuam como uma das armas mais poderosas das forças de conservação ou progresso, ou seja, como um dos suportes mais decisivos de uma vontade de salvaguardar ou destruir um sistema de valores, como o freio ou o acelerador do movimento que, segundo ritmos variáveis, leva as representações mentais e os comportamentos a se transformarem

(DUBY, 1972Duby, Georges. L’histoire des systèmes de valeur. In: L’Historien entre l’ethnologue et le futurologue. Paris: La Haye, Mouton, 1972, p. 251-263., p. 262-263).

No debate que se segue, Georges Duby se dirige aos historiadores e futurólogos presentes na sala e os convida a se perguntarem: “qual é o lugar da história nas culturas atuais? Que papel ela desempenha e sob qual disfarce? Que esperança ela é chamada a promover? Que instruções de ação os homens de nosso tempo esperam que ela venha justificar?” (id., p. 263).

Conjunto de questões difíceis, deliberadamente provocadoras, atravessadas, no entanto, de ponta a ponta, por uma inquietação historiográfica. Que papel a história desempenha em nosso presente? Como avaliar a especificidade dessa ciência dos historiadores em relação às formas diversas com que as sociedades se relacionam com o seu passado e à imagem que pretendem criar de si mesmas? Essas questões, que somos levados a julgar atuais, já há muito acompanhavam as reflexões de Duby, como atesta a publicação, nesses mesmos anos, de um de seus livros mais famosos, Le Dimanche de Bouvines (DUBY, 1973Duby, Georges. Le Dimanche de Bouvines. Paris: Gallimard, 1973.). Nesse estudo da memorável batalha que opõe o rei da França à coalização formada por Otão IV, João sem Terras e os condes Ferrand de Flandres e Renaud de Dammartin em 27 de julho de 1214, Georges Duby oferece a seus leitores uma abordagem exemplar de história da historiografia, desvendando a gênese do “fato histórico” e a sua subsequente transformação em uma grande data da história nacional francesa.

O Domingo de Bouvines pode não ser, à primeira vista, um livro de Historiografia. Mas ao demonstrar que o material histórico é objeto de incessantes instrumentalizações, constantemente moldado a serviço de um poder, Duby se apodera, a partir desse grande acontecimento da história francesa, de um desses objetos caros à historiografia erudita, para virá-lo do avesso e prevenir o leitor de que mesmo a produção do conhecimento histórico que pretende ser rigorosamente científico, o mais firmemente ancorado em um método positivo, participa de perto da modelagem da memória social. Para muitos historiadores, Le Dimanche de Bouvines se destaca como uma espécie de arquétipo de uma investigação historiográfica plenamente alinhada à exploração do imaginário social. Por isso, Bernard Guenée, tomando o livro como modelo, poderá declarar no 100º Congresso das Sociétés Savantes:

Será preciso multiplicar as investigações deste tipo. Será preciso, enfim, deixando para trás as histórias e as crônicas, encontrar em qualquer documento, qualquer que seja, obra literária, sermão, pleito, qualquer sinal da cultura histórica dos franceses. Pois o que eles sabem, aqui e ali, sobre César, sobre suas origens troianas, sobre Clovis, sobre Carlos Magno, o que os bretões sabem sobre seus antigos reis, o que os borgonheses sabem sobre Girart de Roussillon, todas estas crenças, para reis ou príncipes, valem mais do que um exército. A história da historiografia, a geografia da cultura histórica trarão contribuições inestimáveis para o estudo das mentalidades políticas. É com esta convicção que agora voltei minhas pesquisas na direção delas

(GUENÉE, 1977bGuenÉe, Bernard. Les tendances actuelles de l’histoire politique au Moyen Âge français. Tendances, perspectives et méthodes de l’histoire médiévale. Actes du 100e Congrès national des Sociétés savantes (1975). Paris: Bibliothèque nationale, 1977b, p. 45-70. t. I., 63-64).

Publicado em abril de 1973, Le Dimanche de Bouvines se mostra em sintonia com o interesse historiográfico que começava então a se afirmar na França. Vale lembrar que, já em setembro de 1972, foi realizado o primeiro Colóquio francês de Historiografia, contando com a participação de Robert Mandrou, Pierre Guiral e Philippe Joutard, entre outros10 10 Sobre o Primeiro Colóquio francês de Historiografia, realizado entre os dias 22 e 24 de setembro de 1972, cf. Revue Historique, 1973, p. 280. . Tendo como objetivo promover esse campo de estudos que, “há muito abandonado na França”, “acolhe cada vez mais pesquisadores”11 11 Cf. o anúncio do Colóquio de Historiografia de Aix-Marselha, Revue Historique, 1971, p. 546-547. , esse Colóquio de Aix-Marselha se organiza em torno de dois grandes temas historiográficos: de um lado, a historiografia da Reforma e, do outro, a do Segundo Império, num esforço coletivo de se identificar a ressonância de um tema histórico no universo mental de uma sociedade (ver JOUTARD, 1977aJOUTARD, Philippe (org.). Historiographie de la Réforme. Paris: Neuchâtel, Montréal, Delachaux et Niestlé, 1977a.).

A Historiografia como história das representações históricas

Talvez tenhamos hoje dificuldade de apreender essa direção, tão original e particular à experiência francesa, pela qual as pesquisas de Historiografia conseguiram, depois de muita luta e de tantos esforços frustrados, vir a se implantar na França. O caminho inicialmente aberto pelos jovens trabalhos franceses de história da historiografia provinha, em larga medida, do modelo da história das mentalidades coletivas que fazia furor na virada da década de 1970. Com efeito, uma das direções mais exploradas pelos historiadores desejosos de adentrar o território da Historiografia nestes anos foi, precisamente, a que privilegiava a conjunção entre, de um lado, o estudo das representações históricas e, do outro, o dos sistemas ideológicos e do “outillage mental” de uma sociedade – ou seja, rigorosamente a direção já apontada, em 1959, por Braudel, Labrousse e Renouvin no relatório do CNRS e continuada, pouco depois, por Mandrou em seu seminário na EPHE.

De fato, se o interesse pela história da historiografia conseguiu, após um longo ostracismo, se expandir repentinamente entre os historiadores franceses nessa primeira metade dos anos 70, isso se deve ao fato de essas novas pesquisas terem conseguido se manter a uma distância segura das elocubrações teórico-filosóficas, optando ao contrário por se implantar sobre um outro campo, também ele ainda jovem nesses anos, que começava a se posicionar na vanguarda da pesquisa histórica: a história cultural. Dando prosseguimento ao impulso conquistador da história das “mentalidades”, destronando a história econômica e social enquanto setor nobre da historiografia francesa, a história cultural conhece um sucesso fulgurante que vai contribuir a propulsionar as pesquisas na área de Historiografia, cujo estudo é agora considerado como um ponto de entrada particularmente fértil para uma melhor compreensão dos sistemas de representação do passado.

O ponto não é sem importância, pois esse diálogo que os estudos de Historiografia estabelecem, nessa primeira metade dos anos 70, com os respectivos programas da história cultural e da história das “mentalidades” deixará uma marca durável, que até hoje não desapareceu por completo do tipo de abordagem historiográfica cultivada pelos historiadores franceses.

Não é exagerado afirmar que grande parte da produção francesa em história da historiografia permanece hoje, a despeito da crescente internacionalização das pesquisas, tributária dessa aliança com a história cultural, tal como travada durante a década de 1970. Beneficiando-se da voga das pesquisas sobre as práticas culturais e as representações coletivas, a história da historiografia conseguiu superar, nesse momento, a desconfiança que até então inspirava e obter, enfim, cidadania reconhecida em terra historiadora. As formas socialmente diversas com as quais os homens, ao longo dos séculos, imaginaram o seu próprio passado e a sua inscrição no tempo permitem agora ao historiador da historiografia alcançar as emoções de uma época e a cultura de um grupo social, bem como as práticas sociais que garantem a manutenção de uma mitologia local ou nacional. Essa aliança entre dois setores não necessariamente contíguos – a história cultural e das representações, de um lado; e a Historiografia, do outro – não deixa de provocar certo espanto. Mas ela se tornou uma marca distintiva da maneira como a história da historiografia foi (e continua sendo) praticada na França, desempenhando aí um papel decisivo na legitimação e no reconhecimento desse setor.

Entre os exemplos dessa nova orientação voltada para a história das representações históricas, estão O Domingo de Bouvines, já citado, de Georges Duby, o trabalho de Alice Gérard sobre os mitos e interpretações da Revolução francesa (GÉRARD, 1970GÉRARD, Alice. La Révolution Française, mythes et interprétation. Paris: Flammarion, 1970.), mas também as pesquisas empreendidas, nesses mesmos anos, por Bernard Guenée e Philippe Joutard. O primeiro foi o grande promotor, na França, de uma história da historiografia e da “cultura histórica” no Ocidente medieval (GUENÉE, 1977GuenÉe, Bernard. Le Métier d’historien au Moyen Âge; études sur l’historiographie médiévale. Paris: Publications de la Sorbonne, 1977a., 1980GuenÉe, Bernard. Histoire et culture historique dans l’Occident médiéval. Paris: Aubier-Montaigne, 1980., 1981GuenÉe, Bernard. Politique et histoire au Moyen Âge; Recueil d’articles sur l’histoire politique et l’historiographie médiévale. Paris: Publications de la Sorbonne, 1981.). Quanto ao segundo, os seus trabalhos na década de 1970 estão direcionados para o estudo das “formas de sensibilidade ao passado”, tema de sua tese de doutorado sobre o conflito memorial (protestante x católico) que modelou a lenda dos Camisards (JOUTARD, 1977bJOUTARD, Philippe. La Légende des Camisards. Paris: Gallimard, 1977b.), mas também objeto de um outro estudo dedicado às ressonâncias da noite de São Bartolomeu no imaginário francês (JOUTARD, ESTÈBE, LABROUSSE, LECUIR, 1976JOUTARD, Philippe; ESTÈBE, Janine; LABROUSSE, Elisabeth; LECUIR, Jean. La Saint-Barthélémy ou les résonances d’un massacre. Neuchatel: Delachaux et Niestlé, 1976.).

Afirmando-se em meados dos anos 70 como uma província da história cultural, a história da historiografia começa simultaneamente a ser defendida como “parte integrante e preliminar” dos estudos históricos (GODECHOT, 1974Godechot, Jacques. Un jury pour la Révolution. Paris: Robert Laffont, 1974., p. 11), mas também, de acordo com Krzysztof Pomian, como um ramo da história do saber (POMIAN, 1975Pomian, Krzysztof. L’histoire de la science et l’histoire de l’histoire. Annales ESC, 30, n. 5, 1975, p. 935-952.). Com o encontro dessas duas orientações – a do estudo dos mitos históricos e das representações do passado, de um lado, e a das pesquisas sobre a história do conhecimento e da vida científica, de outro –, as condições enfim se preparam, às vésperas dos anos 1980, para que o campo da história da historiografia se imponha, de forma menos tímida, como uma abordagem que interroga criticamente as questões de método e os procedimentos técnicos sobre os quais se ergue o trabalho do historiador. Essa será a configuração das pesquisas francesas de história da historiografia ao longo da década seguinte.

Os anos 1980: a Historiografia obtém direito de cidadania

Com a chegada dos anos 80, as pesquisas no campo da história da historiografia se expandem para além do estudo dos discursos ideológicos encobertos pelas representações míticas do passado. Agora, é a própria obra científica dos historiadores, a visão histórica dos pares, predecessores ou contemporâneos, que se impõe como um objeto de pleno direito da pesquisa histórica. Duas orientações merecem então destaque. A primeira delas aponta para as pesquisas de Charles-Olivier Carbonell, um dos principais promotores da história da historiografia nesse momento na França. Após a sua tese de doutorado dedicada à “mutação” do pensamento histórico que marcou a sua profissionalização na França entre 1865 e 1885, Ch.-O. Carbonell participou ativamente de numerosos eventos organizados no intuito de promover a Historiografia como objeto de pesquisa e como instrumento de análise. Entre os quais, cabe assinalar o então recentemente criado Groupe d’études historiographiques, o qual reunia Alice Gérard, Jacques Godechot, Pierre Guimal, Philippe Joutard, Yvonne Knibiehler, Albert Soboul e Jean-René Suratteau, mas também o colóquio de Toulouse, nos dias 5 e 6 de março de 1977, sobre a história da vulgarização histórica; e enfim a publicação, em 1981, do 1966o volume da coleção Que sais-je?, intitulado precisamente “L’historiographie” (CARBONELL, 1981CARBONELL, Charles-Olivier. L’Historiographie. Paris: PUF, 1981.). Fazendo frente à “indiferença às vezes desdenhosa demonstrada pelos historiadores franceses para com a história de sua própria disciplina”, Carbonell assumirá, nesses mesmos anos, um papel decisivo na participação francesa junto à constituição da Comissão de história da historiografia do Comitê Internacional de Ciências Históricas por ocasião do 15o Congresso de Ciências Históricas em Bucarest, e ao lançamento da plurilíngue Storia della storiografia, primeira revista internacional nessa área12 12 Cf. os estatutos da Comissão de História da Historiografia do Comitê Internacional de Ciências Históricas (Storia della storiografia, n. 1, 1982, p. 143), assim como o artigo de abertura de Ch.-O. Carbonell (1982, p. 7-25). .

Quanto à segunda orientação a ser destacada nesse momento, merece aqui menção especial o extraordinário sucesso de uma história da historiografia contemporânea, dedicada ao estudo à chaud dos historiadores então em plena atividade. O êxito desta segunda orientação, dedicada ao estudo da historiografia mais atual e da história em construção, foi na realidade o fruto do encontro, na França, entre dois movimentos em princípio independentes: de um lado, a rápida expansão de uma história do tempo presente, voltada para a atualidade mais imediata13 13 Essa virada da disciplina histórica na direção do estudo da atualidade se esboça em finais da década de 1970. Cumpre lembrar que, em 1978, foi fundado o Instituto d’Histoire du Temps Présent (IHTP) no momento mesmo em que Pierre Nora inaugura, na EHESS, o seu seminário “História do Presente”; e que Jean Lacouture publica o seu artigo sobre “A História imediata” (LACOUTURE, 1978). ; de outro, o extraordinário sucesso, ao mesmo tempo científico, intelectual, editorial e social da produção da historiografia universitária francesa. Sucesso sem precedentes, que alçou alguns de seus representantes ao estatuto de verdadeiras vedetes literárias. Ao cabo de meio século de notáveis progressos metodológicos, a escola histórica francesa havia se imposto na cena intelectual como a tradição historiográfica de referência, a vanguarda das pesquisas históricas, tendo à sua frente a prestigiosa revista Annales. Com efeito, o resplendor da revista fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre tornou-a uma matéria particularmente atrativa do ponto de vista historiográfico, suscitando todo um conjunto de pesquisas, dentro e fora da França, interessadas em examinar de perto as origens do movimento e desvendar o segredo de seu inigualável triunfo. Estudada desde o começo dos anos 70 (MANN, 1971MANN, Hans-Dieter. Lucien Febvre. La pensée vivante d’un historien. Paris: Armand Colin, 31, 1971., Aymard, 1972AYMARD, Maurice. The Annales and French historiography. Journal of European Economic History, I, n. 2, 1972, p. 491-511., Leuillot, 1973LEUILLOT, Paul. Aux origines des ‘Annales d’histoire économique et sociale’ (1928). Contribution à l’historiographie française. Mélanges en l’honneur de Fernand Braudel. Toulouse: Privat, 1973, p. 317-324. t. II.), a revista Annales vem a se impor como um objeto privilegiado de estudo historiográfico à medida em que nos aproximamos dos anos 80 (ver STOIANOVITCH, 1976STOIANOVITCH, Traian. French historical method. The Annales paradigm. Ithaca-New York: Cornell University Press, 1976.; ALLEGRA e TORRE, 1977ALLEGRA, Luciano; TORRE, Angelo. La nascita della storia sociale in Francia dalla Commune alle Annales. Torino: Einaudi, 1977., Review, 1978REVIEW. The impact of the Annales school on the social sciences, n. 3-4, 1978.). Dentro da própria École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), André Burguière e Jacques Revel vão consolidar esse interesse historiográfico pela história e a memória da revista. Após a organização de um seminário conjunto sobre a “História de uma história: os Annales e o desenvolvimento das ciências sociais na França do século XX” (BURGUIÈRE; REVEL, 1978-1980BURGUIÈRE, André; REVEL, Jacques. Histoire d’une histoire: les Annales et le développement des sciences sociales en France au XXe siècle. Annuaire de l’EHESS, 1978-1980, p. 193-194., p. 193-194), ambos publicam, por ocasião do cinquentenário da revista, dois artigos que podem ser considerados os marcos inaugurais de um campo de investigação promissor que não cessa há quarenta anos de atrair novos estudiosos: a história dos Annales (BURGUIÈRE, 1979BURGUIÈRE, André. Histoire d’une histoire: la naissance des Annales. Annales ESC, 34, n. 6, 1979, p. 1347-1359., REVEL, 1979REVEL, Jacques. Histoire et sciences sociales: les paradigmes des Annales. Annales ESC, 34, n. 6, 1979, p. 1360-1376.).

Retrospectivamente, esses dois artigos de Burguière e de Revel permanecem como verdadeiros pontos de referência, não só da historiografia sobre os Annales que prosperou nos últimos quarenta anos, mas também do momento exato em que o crescente interesse por pesquisas de Historiografia e a transformação dos Annales em objeto de estudo para os historiadores se entrecruzaram. De 1979 data igualmente o importante simpósio organizado pelo grupo de estudos historiográficos e pela Universidade de Estrasburgo sobre a gênese da revista (CARBONELL, LIVET, 1983CARBONELL, Charles-Olivier; Livet, Georges (org.). Au berceau des Annales. Toulouse: Presses de l’Institut d’études politiques de Toulouse, 1983.). Na realidade, todos esses trabalhos se situam no ponto culminante de um fenômeno excepcional de projeção acadêmica, social e midiática da chamada “Nova história” e, através dela, de toda uma parte da tradição dos Annales. Nessa altura, os historiadores académicos, conhecidos até então apenas no círculo restrito dos especialistas, tornaram-se subitamente famosos. Tal popularidade, tida por muitos como despropositada, não deixou de gerar controvérsias. Alguns não hesitaram em condenar de imediato o aspecto comercial da moda, “trust” da chamada escola dos Annales na “corrida aos best-sellers académicos” e a sua estratégia de controle sobre o mercado editorial: “Hegemônica, imperialista, a escola influencia até mesmo aqueles que a criticam” (DUMOULIN; DOSSE, 1980DOSSE, François; DUMOULIN, Olivier. Main basse sur la ville. Vendredi, n. 6, 1980, p. 7., p. 7). O efeito de moda que cercou os “novos historiadores” serviu aqui de estímulo para os detratores. À sua revelia, estes últimos acabariam, no entanto, por desempenhar um papel decisivo na consagração instantânea da “Nova história” como um objeto de estudo historiográfico em voga. Com efeito, havia uma necessidade premente de compreender de perto (pró ou contra) a evolução desse grupo de historiadores desde a sua fundação, discernindo as etapas, o programa e as razões por detrás do seu invejável sucesso (ver COUTAU-BÉGARIE, 1983COUTAU-BÉGARIE, Hervé. Le phénomène « nouvelle histoire »: stratégie et idéologie des nouveaux historiens. Paris: Economica, 1983., DOSSE, 1983DOSSE, François. L’École des Annales dans les médias depuis 1968. Dissertação. Paris VII, 1983., DOSSE, 1987DOSSE, François. L’Histoire en miettes. Des ‘Annales’ à la ‘nouvelle histoire’. Paris: La Découverte, 1987.). Assim, no momento mesmo em que os estudos de história da historiografia começam a emergir na França, os Annales lograram captar a curiosidade historiográfica reinante, sem precisar desprender qualquer esforço para isso. E se impõem exitosamente até mesmo aí, ocupando um lugar de destaque também como, desta vez, objeto de estudos dos historiadores.

É difícil afirmar que a história da historiografia fosse, às vésperas dos anos 1980, um setor reconhecido dentro da escola histórica francesa. Em 1978, ela esteve ausente da enciclopédia La Nouvelle Histoire, dirigida por Jacques Le Goff, Roger Chartier et Jacques Revel, assim como o esteve, alguns anos antes, da trilogia Faire de l’histoire. No entanto, cabe aqui enfatizar o papel decisivo que o imenso prestígio “Nova história” acabaria exercendo, na virada dos anos 80, em favor do crescente interesse francês pelas pesquisas na área de história da historiografia. A projeção social dos historiadores universitários e a popularidade então alcançada pela disciplina histórica trazem à tona um dado novo e surpreendente: agora, o que parece mais fascinar o grande público não é tanto a história em si mesma, mas os próprios historiadores – ou seja, aqueles profissionais que, na maior parte do tempo fechados nos arquivos e nas bibliotecas, não estavam até então acostumados a gozar de tamanha visibilidade. Para além da produção científica, o que agora está sob os holofotes são os profissionais, os artesãos da ciência histórica, solicitados insistentemente pela imprensa e os mass media a falarem para um público cada vez mais amplo, não apenas de seus trabalhos e do passado histórico, mas também da atualidade e dos desafios contemporâneos. É desse contexto que data a publicação de um vasto conjunto de entrevistas de historiadores universitários, entre os quais destacam-se os livros Um historiador diletante, de Ariès (1980)ARIÈS, Philippe. Un historien du dimanche. Paris: Seuil, 1980., e Diálogos, de Duby (1980)Duby, Georges; LARDREAU, Guy. Dialogues. Paris: Flammarion, 1980.. Em contraste com a atitude tradicional do pesquisador, praticando a ascese para desaparecer por trás da sua obra, os historiadores franceses de finais dos anos 70 se veem arrancados de seu relativo anonimato. O seu trabalho deixa de ser exclusivamente feito em nome de uma ciência abstrata e coletiva, e passa a estar diretamente ligado a uma obra autoral.

Essa extraordinária projeção midiática dos historiadores, que propulsiona alguns nomes da profissão ao estrelato, encontra talvez a sua máxima expressão na obra coletiva, organizada por Pierre Nora, em torno dos Essais d’ego-histoire de sete eminentes representantes da escola histórica francesa (NORA, 1987NORA, Pierre (org.). Essais d’ego-histoire. Paris: Gallimard, 1987.). Publicados em 1987, esses ensaios fizeram correr muita tinta. Alguns denunciaram prontamente uma “egoïstoire” (DOSSE, 1988DOSSE, François. Une egoïstoire. Le Débat, n. 49, 1988, p. 122-124.), voltada para a autocelebração de um pequeno grupo de vedetes da disciplina, numa simplificação excessiva da complexa paisagem dos estudos históricos na França, que aparecia assim, de acordo com os críticos, açambarcada por alguns renomados membros de duas ou três instituições de prestígio, como o Collège de France e a EHESS. Aos olhos de todos, contudo, o novo empreendimento de Pierre Nora se inscrevia perfeitamente num contexto, próprio aos anos 1980, de reabilitação do sujeito. No entanto, pouco se discutiu acerca de seu impacto historiográfico. Ora, a nosso ver, o que esses ensaios de ego-história traziam à tona era algo de mais radical: uma transformação da imagem e do próprio estatuto dos historiadores. Não se contentando em mostrá-los como atores e como produtores da história, esses ensaios revelavam-nos agora como objetos de história. Objetos de seu próprio campo de estudo. Na realidade, o “ego” que dá à obra o seu título refere-se talvez menos ao dos sete convidados a participar da experiência do que ao do conjunto da própria disciplina histórica, que doravante se auto-observa. De um ponto de vista teórico, o projeto de reunião desses sete escritos autobiográficos funciona, não apenas por fornecer os materiais de base para uma futura história intelectual da França, mas sim por expressar terminantemente a conversão, então em andamento, dos historiadores contemporâneos em objetos historiográficos.

Com efeito, é nesse mesmo ano de 1987 que, pela primeira vez, a EHESS, em Paris, oferece um seminário intitulado, simplesmente, “Historiografia”. Dezessete anos após o ensino pioneiro de Historiografia de Michel François na École des Chartes, treze anos após o seminário de Jean Glénisson na própria EHESS e trinta e dois anos após o curso de Georges Lefebvre na Sorbonne, o novo seminário da EHESS, sob a direção de François Hartog, é em si mesmo um atestado do sucesso vagaroso, mas enfim alcançado pelos estudos de Historiografia na França. Mas qual o sentido dado aqui à “Historiografia”? Segundo Hartog, trata-se de entendê-la como “uma abordagem, uma perspectiva: um exercício nunca fixo de distanciamento que aparece sempre redobrado; uma forma de construir um objeto tornando-o mais complexo, já que nunca coincide consigo mesmo. Uma forma de história intelectual, portanto. Gostaríamos de vê-la como uma ‘inquietação’ da história” (HARTOG, 1990-1991HARTOG, François. Historiographie. Annuaire de l’Ecole des hautes études en sciences sociales, 1990-1991., p. 128).

De 1987 aos dias de hoje, as pesquisas de história da historiografia ganharam um espaço crescente no universo editorial francês. Publicações na área passaram a se tornar mais visíveis, chegando a interessar não apenas aos especialistas, mas também a um público mais amplo de curiosos. Balanços da pesquisa histórica francesa contemporânea (BÉDARIDA, 1995BÉdarida, François (org.). L’Histoire et le Métier d’historien en France, 1945-1995. Paris: Maison des Sciences de l’Homme, 1995.), apresentações de alguns conceitos-chave do campo (DELACROIX et al., 2010DELACROIX, Christian; DOSSE, François; GARCIA, Patrick; OFFENSTADT, Nicolas. Historiographies: concepts et débats (2 vol.). Paris: Gallimard, 2010.), estudos sobre o conflito de memórias (BLANCHARD, VEYRAT-MASSON, 2008BLANCHARD, Pascal; VEYRAT-MASSON, Isabelle (dir.). Les guerres de mémoire: la France face à son histoire. Paris: La Découverte, 2008.; ROUSSO, 2016ROUSSO, Henri. Face au passé. Essais sur la mémoire contemporaine. Paris: Belin, 2016.; FRANÇOIS, SERRIER, 2017FRANÇOIS, Étienne; SERRIER (org.). Thomas, Europa, Notre Histoire. Paris: Les Arènes, 2017.; NORA, 2021NORA, Pierre; Stora, Benjamin. Mémoires coloniales. Paris: Bayard, 2021.; LEDOUX, 2021aLedoux, Sébastien. Le devoir de mémoire. Paris: CNRS, 2021a.), o tratamento dos arquivos e a poética dos historiadores (CARRARD, 1998Carrard, Philippe. La poétique de la Nouvelle Histoire. Lausanne: Payot, 1998.; JABLONKA, 2014JABLONKA, Ivan. L’histoire est une littérature contemporaine. Manifeste pour les sciences sociales. Paris: Seuil, 2014.), sem falar das pesquisas sobre a grande narrativa nacional francesa (NORA, CHANDERNAGOR, 2008NORA, Pierre; CHANDERNAGOR, Françoise. Liberté pour l’histoire. Paris: CNRS, 2008.; JEANNENEY, 2017Jeanneney, Jean-Noël. Le récit national. Une querelle française. Paris: Fayard, 2017.; LEDOUX, 2021bLedoux, Sébastien. La nation en récit. Belin, 2021b.) e os usos do passado (HARTOG, REVEL, 2001HARTOG, François; Revel, Jacques (org.). Les Usages politiques du passé. Paris: EHESS, 2001.): sob o signo da circulação acelerada de informações e da pletora de publicações que marcam os primórdios desse nosso terceiro milênio, as edições francesas na área de Historiografia dão, como se vê, testemunho de um relativo triunfo do setor. Triunfo efêmero, no entanto. Comprometido, tão logo alcançado. Com efeito, apesar desse aparente sucesso editorial da Historiografia, é forçoso reconhecer que existe uma imensa decalagem entre a produção bibliográfica que esta última inspira e a sua institucionalização enquanto departamento epistemológico reconhecido.

No início dos anos 1990, nas últimas páginas de sua autobiografia intelectual, A História continua, Georges Duby reconhecia nos estudos de Historiografia, de história da história, uma das orientações mais promissoras da pesquisa histórica, capaz, a seu ver, de desassossegar os historiadores, de abalar os seus hábitos enraizados, assim como a sua confiança às vezes um tanto prepotente no rigor de sua ciência (DUBY, 1991Duby, Georges. L’Histoire continue. Paris: Odile Jacob, 1991., p. 219). Resta agora indagar se a esperança depositada pelo grande medievalista foi concretizada. Ora, trinta anos mais tarde, o que se percebe é que o campo dos estudos de Historiografia na França permanece entregue a uma disciplinarização incipiente – “disciplinarização” entendida aqui como o processo através do qual determinado setor epistemológico se autonomiza, i.e., adquire um conjunto de práticas de acreditação e a autoridade reconhecida para assumir soberanamente a gestão do acesso aos seus postos, homologar a soma atual dos conhecimentos acumulados e dotar-se dos meios institucionais, técnicos e também teóricos para assegurar, como meta profissional, o monitoramento e a transmissão desse seu saber adquirido sob a forma de um domínio de estudos ao mesmo tempo homogêneo e sujeito a revisões periódicas. Desse ponto de vista, a expectativa de Georges Duby parece não ter se cumprido. E o campo da Historiografia, não obstante a massa de publicações que produz, continua relegado como um setor auxiliar dentro da escola histórica francesa. O diagnóstico sombrio é partilhado pelo próprio François Hartog, em entrevista recente à revista Tempo:

Hoje, parece-me que estamos num momento em que a dimensão reflexiva já não suscita grande interesse. O que se quer é a emoção e o sensível. Fala-se sobretudo de ‘campo’, de investigações de campo, arquivos e identidades. ‘Teoria’ tornou-se uma palavra feia. Até onde esta tendência irá, e quanto tempo irá durar? Não sei. Nesta atual conjuntura, é evidente que a historiografia (em todos os sentidos da palavra) não é mais tão atraente: qual o desafio que ela poderia ainda carregar?

(HARTOG, 2020HARTOG, François. Temps, histoire et historiographie (entrevista com Francine Iegelski). Tempo, n. 20, v. 1, 2020.).

Objetar-se-á que à frente dos principais desafios dos historiadores estão hoje a memória e os usos do passado, as experiências plurais do tempo, a responsabilidade histórica ou ainda o lugar da história na esfera pública: todos oriundos do campo da Historiografia. É certo. Mas como uma catedral erguida sobre solo arenoso, a atual voga desses e outros temas é menos uma razão para aplaudir o triunfo das pesquisas de Historiografia do que para lamentar a sua precária situação institucional. De que vale um suntuoso edifício sobre fundações instáveis? Enquanto a Historiografia e a Teoria não forem reconhecidas como um setor epistemológico autônomo, a popularidade alcançada por algumas de suas interrogações será apenas um efeito de moda, um sucesso conjuntural. No caso francês que nos ocupou, todas as batalhas que vimos travadas em prol da Historiografia desde os anos 40 não terão produzido senão uma vitória efêmera, comprometida ao completar tão somente meio século?

Em permanente ebulição, o campo da História renova o seu questionário a todo momento, e a cada cinco, dez anos são outros os seus centros de interesse. No atual cenário internacional, o capital institucional que os estudo de Teoria e de Historiografia gerem é, de um modo geral, ínfimo. Sua legitimidade científica e simbólica, pouco expressiva. Mas num mundo constantemente ameaçado pela profusão de falsas notícias e diante da veloz produção de mitologias políticas enganosas, traiçoeiras, torna-se imprescindível levarmos sempre mais adiante nossa interrogação sobre os fundamentos da história. Na verdade, nem na França, nem alhures, a Historiografia e a Teoria são conquistas asseguradas. Razão a mais para, no Brasil, não descansarmos sobre os louros alcançados. E, reconhecendo a fragilidade do campo, continuarmos a investir nessa senda reflexiva que ousamos adentrar, a fim de explorar as formas plurais de se pensar a história e desvendar os segredos dessa prática historiadora que tanto nos fascina.

  • 1
    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e a bibliografia utilizadas são referenciadas.
  • 3
    O De nominibus hystoriographorum de Hugo de Saint-Victor está reproduzido em G. Waitz, “Beschreibung von Handschriften, welche in den Jahren 1839-42 näher untersucht worden sind”, Archiv der Gesellschaft für ältere deutsche Geschichtskunde zur Beförderung einer Gesammtausgabe der Quellenschriften deutscher Geschichten des Mittelalters, XI, 1853-1858, p. 248-514. O texto foi mais recentemente editado por Harrison (2005, p. 290-292)HARRISON, Julian. Hugh of Saint Victor’s Chronicle in the British Isles. In: BERNDT, Rainer (ed.). Schrift, Schreiber, Schenker: Studien zur Abtei Sankt Viktor in Paris und den Viktorinern. Berlin: Akademie Verlag, 2005, p. 290-292..
  • 4
    Cf., por exemplo, Borghero, 1983BORGHERO, Carlo. La Certezza e la storia. Cartesianismo, pirronismo e conoscenza storica. Milão: F. Angeli, 1983., assim como a coleção napolitana dos “Studi vchiani”, inaugurada em 1969 por Pietro Piovani, da qual Corsano, 1971CORSANO, Antonio. Bayle, Leibniz e la storia. Nápoles: Guida, “Studi Vichiani”, 1971..
  • 5
    Longo reinado solitário que – cabe lembrá-lo aqui – parece assentado, como bem adverte Carlo Ginzburg, num recrutamento que tendeu a acolher mais filósofos do que historiadores de formação entre seus colaboradores (GINZBURG, 1989GINZBURG, Carlo. Montrer et Citer. Le Débat, n. 56, 1989, p. 43-54., p. 43).
  • 6
    Para sermos plenamente rigorosos, caberia aqui destacar que esse mesmo interesse pelas áreas de Historiografia e de Teoria da História, o Brasil o compartilha desde há muito com algumas outras historiografias latino-americanas, como a mexicana e a argentina.
  • 7
    Retomando aqui o subtítulo provisório, já utilizado em seu curso de 1940-1941 em Clermont-Ferrand, escolhido por Marc Bloch para o seu futuro Apologie pour l’histoire.
  • 8
    HALPHEN, 1914HALPHEN, Louis. L’Histoire en France depuis cent ans. Paris: Armand Colin, 1914.. Dedicado ao triunfo da história na França do século XIX, o trabalho historiográfico de L. Halphen indica, de modo revelador, que os historiadores franceses, mesmo sob o domínio da erudição, não permaneceram indiferentes ao aporte dos estudos historiográficos realizados por seus colegas fora da França, especialmente além-Reno. A guerra que então eclodiu abalou, sem dúvida alguma, uma possível onda de interesse pela história da historiografia na França na primeira década do século XX, e o livro de Halphen não foi o único que se viu lesado pelo conflito. Basta pensarmos no eco enfraquecido da Geschichte der neueren Historiographie, de Eduard Fuerter, publicado em 1911 e traduzido para o francês no mesmo ano de 1914.
  • 9
    Os autores do relatório não indicam nenhuma referência dessa história da historiografia nascente. Possivelmente, pensavam em Marrou, em Georges Lefebvre; e, fora da França, nos escritos de Karl Brandi, James Westfall Thompson, Herbert Butterfield, Pieter Geyl e Arnaldo Momigliano.
  • 10
    Sobre o Primeiro Colóquio francês de Historiografia, realizado entre os dias 22 e 24 de setembro de 1972, cf. Revue Historique, 1973REVUE Historique, 249, n. 505, 1973, p. 280., p. 280.
  • 11
    Cf. o anúncio do Colóquio de Historiografia de Aix-Marselha, Revue Historique, 1971REVUE Historique, 246, n. 500, 1971, p. 546-547., p. 546-547.
  • 12
    Cf. os estatutos da Comissão de História da Historiografia do Comitê Internacional de Ciências Históricas (Storia della storiografia, n. 1, 1982STORIA della storiografia, n. 1, 1982., p. 143), assim como o artigo de abertura de Ch.-O. Carbonell (1982, p. 7-25)CARBONELL, Charles-Olivier. Pour une histoire de l’historiographie. Storia della storiografia, n. 1, 1982, p. 7-25..
  • 13
    Essa virada da disciplina histórica na direção do estudo da atualidade se esboça em finais da década de 1970. Cumpre lembrar que, em 1978, foi fundado o Instituto d’Histoire du Temps Présent (IHTP) no momento mesmo em que Pierre Nora inaugura, na EHESS, o seu seminário “História do Presente”; e que Jean Lacouture publica o seu artigo sobre “A História imediata” (LACOUTURE, 1978LACOUTURE, Jean. L’Histoire immédiate. In: LE GOFF, Jacques; CHARTIER, Roger; REVEL, Jacques (org.). La Nouvelle Histoire. Paris: Retz, 1978.).

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Editado por

Editores Responsables

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2023
  • Aceito
    21 Fev 2024
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