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SPIVAK E OS INFORMANTES

Resenha do livro: SPIVAK, Gayatri Chakravorty. . Crítica da razão pós-colonial: por uma história do presente fugidio. Tradução: Carpinelli, Lucas. . São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2022, 544 p.

Gayatri Chakravorty Spivak (1942), uma das mais proeminentes críticas sobre pós-colonialismo, é conhecida do público brasileiro, principalmente pelo livro Pode o subalterno falar?, publicado originalmente em 1985, mas traduzido e publicado no Brasil apenas em 2020. Nesse livro, a autora aborda a teoria de filósofos contemporâneos caros aos estudos sobre a alteridade, notadamente Deleuze e Foucault, a fim de refletir sobre a prática discursiva pós-colonial. Inserida num grupo de estudos sobre sujeitos subalternos, Spivak relativizou a possibilidade de se pensar o subalterno a partir da perspectiva do outro, mesmo sendo o outro um pesquisador, um analista ou um estudioso (como ela e seus parceiros acadêmicos).

A autora parte da argumentação de Gramsci a respeito da homogeneidade do sujeito subalterno, assim como (se insurge) sobre a imobilidade de sua posição baseada numa sorte de premissa essencialista. Spivak não atribui o termo subalterno a todo e qualquer sujeito marginalizado, mas tão somente àquele cuja voz não pode ser ouvida, seguindo o exemplo de Gramsci, a quem relê criticamente: subalterno se refere àquele sujeito que pertence “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”.

O cerne de sua crítica aos estudos pós-coloniais (e também de sua autocrítica) é que toda ação intelectual que se vê como necessária enquanto ato de resistência em prol do outro, e que assim se julga “poder falar pelo outro”, reproduz em última análise as estruturas de poder e opressão, não permitindo que o próprio sujeito subalterno possa falar, e, principalmente, que possa ser ouvido. Ele se torna, pois, um mero objeto de conhecimento ou, como diria Hegel, um objeto de consideração científica.

Em seu livro Crítica da razão pós-colonial: por uma história do presente fugidio, publicado originalmente em 1990 e traduzido e editado agora para a língua portuguesa (com tradução impecável de Lucas Carpinelli), Spivak volta a pensar e a desconstruir os pensamentos já constituídos sobre os “informantes autóctones” ou “informantes nativos” e sua separação do “sujeito colonial”, entendido como apêndice de um sujeito principal enunciador implícito, autoafirmativo e dominante: o “Eu colonizador”. Nesse sentido, a autora recorda: “Depois de 1989, comecei a perceber que certo sujeito pós-colonial - manejado pelas práticas dominantes no período neoliberal - vinha (...) se apropriando da posição de informante nativo”. Ou seja, até que ponto é possível perceber um “informante nativo” nato (perdoem-nos a redundância) nas práticas discursivas dominantes e no meio de estudos acadêmicos e intelectuais que cooptam o sujeito pós-colonial, dirigindo-o à representação de um sujeito colonizado?

Spivak declara na abertura de seu primeiro capítulo:

Os estudos Pós-Coloniais e sua celebração inadvertida de um objeto perdido correm o risco de se converterem em mero álibi caso tal objeto não seja posicionado no interior de um enquadramento geral. Quando se concentram apenas na representação do colonizado ou na questão das colônias, os estudos do discurso colonial chegam, por vezes a servir à produção de conhecimento neocolonial contemporâneo, porque relegam o colonialismo/imperialismo firmemente ao passado e/ou sugerem a existência de uma linha contínua a ligar aquele passado ao nosso presente. (p. 29)

Duas questões se apresentam nessa argumentação (disparando inúmeras outras): comecemos pelo comentário final, no qual a autora esboça uma crítica ao aparentemente habitual enquadramento histórico adotado pelos estudos pós-coloniais, qual seja, o de se desenhar numa perspectiva histórica positivista, indo de um passado (que produz efeitos sobre) até um presente (que é consequentemente afetado por aquele), visando uma continuidade no mesmo enquadramento. Isso interessa às práticas discursivas dominantes que tanto fazem desaparecer o passado colonialista/imperialista, como o fazem reviver sob a forma de neocolonialismo.

Visada a continuidade como um lance perverso, Spivak faz questão de frisar que “por vezes” os estudos sobre os discursos coloniais se prestam à produção ou reafirmação do neocolonialismo, o que não significa que é desejada sua destruição ou declinação, e sim o posicionar-se criticamente em relação às estruturas discursivas em seu interior. “Um olho no gato, outro no peixe”, dizem, uma vez que o sujeito colonial se converteu num objeto de consideração científica aninhado num gueto disciplinar dentro das universidades norte-americanas (a autora não trata do contexto latino-americano), com efeitos túrgidos, principalmente quando a linguagem o converte em algo já dado. A autora usa de uma metáfora, a “dragagem”, como movimento de lançamento e recolha de ideias, ações, gestos, princípios, informações. Usa-a para referir os efeitos produzidos por tais estudos nos rastos pós-coloniais, mobilizando-a na desconstrução après Derrida como aparato que faz reler o texto em condições não usuais ou convencionais de operação conceitual.

Ela nos adverte que também o mainstream, a corrente dominante, nunca foi límpido/a, não se importando com o fato de alguém se aperceber em algum momento disso. Porque faz parte, prossegue, absorvê-la conjuntamente com a sanção da ignorância de suas impurezas. Uma vez que aquilo que Spivak mais intenta é por em xeque discursos dentro de sistemas ideologicamente e economicamente comprometidos com a manutenção do status quo da sociedade globalizada e do “capital financeirizado”, seu instrumento de reflexão se dá prioritariamente no campo interdisciplinar, no qual os excludentes podem nos auxiliar a repensar as questões pertinentes à corrente dominante num lugar mais aberto ou menos entrincheirado, desconstruindo-a a partir da memória impressa na linguagem. Por isso, Marx e Derrida, Hegel, Kant etc., que seriam autores com pontos de vistas antitéticos, quase excludentes, podem permitir, numa releitura em suas fímbrias ou dobras, a emergência de sentidos que dragam as opiniões costumeiras, as visões dirigidas. Spivak sentencia: “Por isso, ademais, pode ser de nosso interesse a leitura de Kant, Hegel e Marx como precursores discursivos remotos, em vez de como repositórios, quer transparentes quer tendenciosos, de ideias”.

A autora almeja que seu público preferencial, “as leitoras”, descubram uma “cumplicidade construtiva” entre as posições desses autores e a sua, dando a ver, ainda numa fissura romântica, como em Nietzsche (autor não abordado no livro), o que as interessa na produção/criação de seu campo discursivo. Façamos nos entender: Nietzsche dizia que seus leitores talvez nem existissem ou tivessem nascido à época de seus textos, que eram estes, em suma, que escolhiam os seus leitores, e não o contrário.

O texto de Spivak é difícil, de leitura entrecortada por referências teóricas que devem ser conhecidas pelo destinatário para não se perder, e, mesmo preenchida essa condição, é estressante, porque ela não as lê de modo sistematizado de acordo com o presente histórico dos textos originários para desconstruí-las e costurá-las na urdidura de um pensamento novo ou que se quer provisoriamente crítico (a autora rescreve repetidamente seus próprios textos).

Na resenha arrasadora feita após o lançamento da primeira edição desse livro por Terry Eagleton, no London Review of Books, essa dificuldade de leitura é usada como mote para questionar a existência do próprio debate em torno dos estudos pós-coloniais. Eagleton diz:

Deve existir em algum lugar um manual secreto para críticos pós-coloniais, cuja primeira regra diz: ‘Comece rejeitando completamente a noção de pós-colonialismo’. É notável o quão difícil é encontrar um entusiasta inabalável pelo conceito entre aqueles que o promovem (...) A segunda regra deste manual diz: ‘Seja o mais obscuro que você puder decentemente conseguir’. Os teóricos pós-coloniais muitas vezes se veem angustiados com a lacuna entre seu próprio discurso intelectual e os nativos dos quais falam; mas essa lacuna poderia parecer menos assombrosa se eles não usassem um discurso que a maioria dos intelectuais também considera ininteligível. (EAGLETON, 1999EAGLETON, Terry. In the Gaudy Supermarket. London: London Review of Books, Vol. 21 No. 10 13 May 1999 in: https://www.lrb.co.uk/the-paper/v21/n10/terry-eagleton/in-the-gaudy-supermarket
https://www.lrb.co.uk/the-paper/v21/n10/...
).

Fruto de uma leitura certamente preconceituosa e ligada ao mainstream, a crítica de Eagleton não reconhece que a escrita de Spivak revela um rigor e uma honestidade intelectual dificilmente encontrada nos teóricos contemporâneos. Nada ali está fora do lugar ou se dá apenas como um exercício linguístico. Ela constrói uma retórica muito particular, é claro, profundamente ligada ainda ao “estilo” de Derrida e Paul de Man (seu orientador de doutoramento na Universidade de Cornell), mas o que impera é o desejo de compor uma escrita que seja capaz de pôr em obra aquilo que se pensa a partir das grandes vigas mestras do pensamento ocidental, sem “desculpas ou acusações”, desnudando-as de seus autores (homens, brancos, europeus). De Lacan, Spivak toma emprestado o termo forclusion; “foraclusão” que é aplicado a outro, “informante nativo”, emprestado, como um genérico, da Antropologia.

O informante nativo é um “momento não passível de reconhecimento”, a não ser, num átimo, quando se vê excluído e substituído por outro, isto é, quando é foracluído. Quando algo é expulso do simbólico, explica a autora, reaparece no real; assim, a criação do homem ético, político e histórico do Iluminismo dá a ver a marca da expulsão de um informante nativo. Comentando (pensando por emendas) Freud, Spivak propõe que “a foraclusão está relacionada a um processo primário (...) que compreende duas operações complementares (...) a introdução no sujeito, e a (...) expulsão para fora do sujeito. O real é, ou porta, a marca dessa expulsão”.

Essa marca sinaliza também a impossibilidade de uma relação ética: o que é expulso é necessariamente apagado, passa à condição de não existência ou de uma existência invisível. Mas quando essa invisibilidade é representada como um movimento de afirmação, “com migrantes ou pós-coloniais que se automarginalizam ou que consolidam sua própria alteridade”, o informante nativo novamente é foracluído. Ele não faz parte desse grupo. A posição conceitual volta a ser importante quando uma prática repetidamente operada e transformada em costume, com propósitos ideologicamente bons ou não, corrompe os princípios gerais da reflexão que se pretende crítica, mais do que a única norteadora de sentidos. Uma relação, nesse sentido, com os apanhadores de plantão, por exemplo, de justificativas para se autoalojar entre os heróis da decolonialidade pode, talvez, servir de outro exemplo.

Spivak parte de Carl Pletsch (The three worlds):

Nosso desafio não é meramente o de abandonarmos essa ordenação conceitual do trabalho científico [em três mundos], mas o de criticá-la. E devemos compreender aqui a tarefa da crítica em seu sentido kantiano, hegeliano e marxista. Devemos, em outras palavras, superar as limitações que a noção de três mundos impôs às ciências sociais por mera convenção. (p. 30)

O pressuposto, implícito como tese eminentemente spivakiana, é o de propor uma política de leitura desconstrutiva capaz de denunciar o imperialismo e ao mesmo tempo ajudar a construir um novo magisterium, uma prática que edifica pela linguagem o nome do Outro. Por isso a autora afirma: “Escrevo na convicção de que é por vezes melhor sabotar aquilo que está inexoravelmente à mão do que inventar uma ferramenta que ninguém submeterá a teste (...)”.

A sua leitura de Kant, como uma “distorção escrupulosa”, destrincha os termos da Crítica da faculdade de julgar em duas partes: uma estética, outra teleológica. Da primeira, retém as considerações ou arbitrariedades sobre o Belo e o Sublime. O Belo seria um “prazer derivado da capacidade do sujeito em representar um objeto do conhecimento na ausência do referente necessário”, enquanto o Sublime representaria o momento em que “o sujeito acede à vontade racional (...) um sentimento de desprazer que surge da inadequação da imaginação na estimação estética da grandeza, quando comparada à estimação da razão”.

Para Spivak (e isto não é mais Kant), somos programados à incitação pelo sublime para nos decepcionarmos pela dor e ficarmos expostos à superioridade da razão. A operação é complexa, pois envolve a tradução do termo alemão Anlage por disposição, mas também programa ou projeto, o que implicaria conceber a liberdade não diretamente, não como alguma força redentora, mas mediada, como um conceito transitivo, um tropo, que opera a passagem do prazer como forma de violência dominadora da razão sobre a sensibilidade. Kant diz: “Tudo o que desperta em nós esse sentimento [da superioridade em relação à natureza em nós e à natureza fora de nós chama-se então, ainda que inapropriadamente sublime”. Mas como um conceito que nasce e expressa necessariamente uma cultura na qual são desenvolvidas ideias morais, o sublime seria “apavorante para o homem inculto”. (p. 40).

Spivak chama a atenção para o adjetivo roh (cru) e já emenda a tese (não kantiana): “A verdade é que, em Kant, os ‘incultos’ são especificamente as crianças e os pobres; o ser ‘naturalmente incultivável’ é a mulher. Em contrapartida, der rohe Mensch, o homem em estado cru, consegue, em seu alcance significante, abarcar tanto o selvagem quanto o primitivo”. Como um sujeito desprovido de sentimento moral, o homem selvagem ou inculto não pode ser ainda o sujeito das três críticas a que refere Pletsch, “não é ainda - ou simplesmente não é”. Mas a antropomorfização do sublime se deve a Schiller, segundo Spivak seguindo De Man, o que implica se pensar, no campo das possibilidades teóricas, que, embora não enunciada primeiramente em Kant, pode ser proposta como uma leitura política da sua filosofia.

A argumentação é longa e descontínua ao longo do primeiro capítulo, mas ilumina em certos pontos a relação com a tese de apagamento do informante nativo. O que antecede o apagamento se dá como leitura em corte diagonal do texto kantiano, a fim de ler-lhe não apenas os sentidos filosóficos que inventam o ser moral, seu Deus, a concepção de desejo e de liberdade, mas sobretudo problematizar a sua performance textual na qual é possível encontrar tantas determinações, indistintas anteriormente, quanto a existência e a persistência do sujeito inventado no ocidente europeu.

A reler Kant, tirando-lhe partes que são de seu pertencimento teórico, Spivak não busca mantê-lo num pedestal da filosofia humanista, embora o trate a partir de metáfora cristalizadora, «o grande civilizador, um Próspero do Iluminismo», mas lhe aplica uma espécie do “paradoxo da cauda” (quando a lagartixa deixa o predador arrancar-lhe a cauda para poder sobreviver, a cauda original é regenerada depois). Do mesmo modo, suas intervenções não sustam, nem atacam o texto kantiano (que continua a operar dentro de seu próprio sistema argumentativo), mas lhe serve como pedaço que será amarrado a outros que inferem a dificuldade de pensarmos o informante nativo com a nossa cabeça, ou seja, com a cabeça pela qual somos continuamente falados desde o Iluminismo ou antes. Spivak confessa: “Não era meu intuito, aqui, diagnosticar as crenças veladas de Kant. Construí uma versão de uma escritura no interior da qual o texto do filósofo pudesse ser visivelmente mantido. Ler algumas páginas do discurso do mestre [master discourse], permitindo a parábase operada pelo olho impossível do informante nativo”.

Pensar sobre o “Tempo” e a “tempificação” (timing) da história inicia a reflexão de Spivak em torno da dialética hegeliana. A primeira justificativa é de natureza pessoal, e a sua escolha em comentar trechos dos Cursos de estética de Hegel se deve ao fato de ser crítica literária, especialmente quando o filósofo versa sobre a poesia indiana (Spivak nasceu na Índia).

A obra de arte e toda experiência fenomênica situam-se como uma coincidência do Espírito (Em-si e Para-si) no gráfico: “Arte é o nome do signo que denota o desencontro entre os dois eixos do gráfico [graph] - o Espírito e seu conhecimento”. Não se trata de pensá-la, contudo, como uma epistemologia; não interessa como as pessoas ou os artistas conhecem ou vêm a conhecer, ou como produzem, mas de aceitá-la como uma epistemografia, um desenho diagramado que demarca os momentos de encontro ou o encaixe entre o signo (Espírito) e o significado (conhecimento). Esse diagrama é imaginado dinâmico, porquanto aberto, para compreender as fases de inadequação entre os pares, assim como o esforço, grande, para se chegar poucas vezes ao match point.

A autora, no entanto, chega à fase que mais a interessa (como uma informante nativa): “Quando enfim chegamos à Índia, a forma (Gestalt) é aprendida (pelo Geist) enquanto sujeito, não por indivíduos indianos) como apartada do significado. Segundo Hegel, a arte indiana busca fornecer uma representação externamente adequada à grandiosidade de um significado que é apreendido como algo que está para além da fenomenalidade”. O ponto crítico na leitura de Hegel, segundo Spivak, está na inadequação do pensamento ocidental que investe um sujeito abstrato, estranho ao informante nativo indiano; por exemplo, em duas passagens da Gitã que devem ser lidas não esteticamente, mas como «um relato dinâmico da derrogação da questão da verificação histórica», ou seja, como uma narrativa dentro de um contexto histórico e cultural particular, que Hegel não poderia ter conhecido.

Quanto a Marx, a questão crucial é a análise da sedimentação do pensamento, quando os apanhadores agremiados em torno do marxismo e de ideologias de esquerda supérstites abstraem o lugar de Karl Marx como um crítico do capitalismo inserido nesse próprio sistema, ou seja, quando o mesmo é foraexcluído pela tradição marxista. Spivak diz:

A questão do informante nativo como sujeito revolucionário vê-se institucionalizada no marxismo em nome de uma vanguarda - um método mais sofisticado de foraclusão, talvez - embora o próprio Marx parecesse mais interessado na questão da agência (ação institucionalmente validada).

Spivak foca a atenção de sua análise para uma frase de Marx/Engels (apenas uma frase): “o modo de produção asiático”, algo que passou desapercebido pelos cultores de sua obra até pelo menos 1986, quando Fredric Jameson a retoma num ensaio opondo sociedades tribais e primitivas àquelas “do modo de produção asiático”, ou seja, “dos grandes sistemas burocráticos imperiais”. Trata-se, em princípio, de uma taxonomia que normatiza e generaliza aquilo que não seja considerado europeu. Por isso, “o modo asiático de produção marca um momento venerável da teorização do Outro”.

Em Marx, a adjetivação do modo de produção implica compreender em seu pensamento a migração gradual de um sujeito individual para um sujeito coletivo, entendendo o autor a partir da filosofia alemã o ser humano como um “ser genérico” ou universal. É na premissa da universalidade que o homem encontra a sua liberdade e em vista da qual a filosofia pode se ocupar formalmente da ética.

A generalização da forma de ser e produzir coletivos não impediu a interpretação, espúria, do modo de produção asiático como forma de comunismo primitivo, ou seja, como modo de produção subdesenvolvido, porquanto não originário do continente europeu, embora para Marx, o comunismo, em sua fase mais remota, não tenha sido visto como injusto socialmente ou desajustado, de acordo com as premissas de sua predicação contra o capitalismo.

Aparte o fato de ter usado uma vez a expressão “modo de produção asiático”, Marx nos revela que esse não era “em termos histórico-geográficos, ‘asiático’, tampouco era, em termos lógicos, um ‘modo de produção’”. O principal para Spivak é indagar: “por que a lógica normativa do capital não determinou a si mesma de forma idêntica em toda parte?”, pergunta que a leva a uma série de considerações sobre o binômio forma-valor demarcando a différance entre capitalismo e socialismo. Para ela “o capitalismo é, portanto, o pharmakon do marxismo. Ele produz a possibilidade de operação da dialética que produzirá o socialismo; porém, deixado ao próprio financiamento, é também aquilo que bloqueia essa operação”.

No segundo capítulo, Spivak exercita-se na crítica literária, relendo clássicos que foram ou são ainda considerados precursores da emancipação feminista europeia: Jane Eyre, de Charlotte Brontë (cotejada com Wide sargasso sea, da caribenha Jean Rhys), Frankenstein, de Mary Shelley, Pterodactyl, pirtha and puran sahay, da escritora indiana Mahasweta Devi, além de Baudelaire, Kipling, um relatório da Companhia das Índias Ocidentais e Foe, do escritor sul-africano John Coetzee, no qual o personagem Sexta-feira é apresentado como um “limite-retido”, pois se recusa a se apresentar como um informante nativo para a narradora branca inglesa, a personagem Susan Barton: “O nome arbitrário que recebe - Sexta-feira - pode ser o nome da possibilidade (...) de se guardar um segredo que é visível de dentro [a l’intérieure], mas não de fora [a l’extérieure]”.

O terceiro capítulo é uma releitura e reescrita do livro Pode o subalterno falar?; e o quarto e último capítulo, uma análise densa sobre o livro Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, de Jameson. Chama a atenção o caráter positivo conferido pela autora à monstruosidade do Frankenstein de Shelley, como metáfora do reconhecimento de uma não normatividade assistida ao sujeito ou à percepção do Outro, do diferente.

Num mundo onde as fronteiras são cada vez mais tênues e ao mesmo tempo as condições de comunicação entre corpos e sujeitos distintos mais raras, vislumbrar na literatura europeia do século XIX (que abre a modernidade) uma espécie de elogio à heterodoxia, ainda que num corpo desconstruído e depois remendado com os pedaços que restaram, dotando-os de um desejo de lugar e de fala, é visto não apenas como um gesto inaugural de uma escritora mulher, mas sobretudo como um sinal auspicioso em prol do nome do Outro.

Referências Bibliográficas

  • EAGLETON, Terry. In the Gaudy Supermarket. London: London Review of Books, Vol. 21 No. 10 13 May 1999 in: https://www.lrb.co.uk/the-paper/v21/n10/terry-eagleton/in-the-gaudy-supermarket
    » https://www.lrb.co.uk/the-paper/v21/n10/terry-eagleton/in-the-gaudy-supermarket
  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Crítica da razão pós-colonial: por uma história do presente fugidio. Tradução: Lucas Carpinelli. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2022. 544 p.

Editado por

Editores Responsáveis: Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2024
  • Aceito
    25 Mar 2024
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