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IT’S NATION TIME! JAZZ, RAÇA E POLÍTICA NOS ESCRITOS DE FRANTZ FANON E AMIRI BARAKA (1950-1970)1 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e a bibliografia utilizadas são referenciadas.

IT’S NATION TIME! JAZZ, RACE AND POLITICS IN THE WRITINGS OF FRANTZ FANON AND AMIRI BARAKA (1950-1970)

Resumo

Neste estudo, examino as concepções de jazz e negritude do filósofo martinicano Frantz Fanon e do escritor afro-americano Amiri Baraka. Para isso, mobilizo dados na bibliografia pertinente, em trabalhos acadêmicos relevantes e em estudos biográficos, tendo como aporte teórico-metodológico a noção de Atlântico Negro (GILROY, 2001 [1993]) e também o suporte de Bourdieu (2004; 2015 [1974]) e Koselleck (1992; 2006 [1979]), a fim de analisar os contextos de cada autor para a formulação de suas noções de jazz e negritude, atentando para os fluxos e refluxos em suas trajetórias intelectuais e ainda os diálogos que estabeleceram com os seus pares. Nesse diálogo, problematizo a relação entre Black Music e identidade negra, dando destaque às disputas políticas e estético-ideológicas em torno da definição da noção de negritude no Atlântico.

Palavras-chave
Frantz Fanon; Amiri Baraka; negritude; jazz ; Black Music

Abstract

In this study, I examine the conceptions of jazz and negritude by the Martinican philosopher Frantz Fanon and the Afro-American writer Amiri Baraka. For this, I mobilize data in the pertinent bibliography, in relevant academic works and in biographical studies, having as a theoretical-methodological contribution the notion of Black Atlantic (GILROY, 2001 [1993]) and also the support of Bourdieu (2004; 2015 [1974]) and Koselleck (1992; 2006 [1979]), in order to analyze the contexts of each author for the formulation of their notions of jazz and blackness, paying attention to the flows and ebbs in their intellectual trajectories and also the dialogues they established with their peers. In this dialogue, I problematize the relationship between Black Music and black identity, highlighting the political and aesthetic-ideological disputes around the definition of the notion of blackness in the Atlantic.

Keywords
Frantz Fanon; Amiri Baraka; blackness; jazz; Black Music

Fraseados e (contra)ataques preliminares: por que o jazz? Por que agora?

A revolução tem de vir por meios políticos.

Mas talvez a música (...) possa ajudar as pessoas a começarem a mudar um pouco – começarem a mudar suas consciências. Só assim estarão prontas para seguir outros caminhos.

Caminhos políticos.

Talvez.

Gato Barbieri

Insisto que o Brasil tem vivido um novo momento do jazz afro-brasileiro. Muito embora, desde o início, o jazz tenha sido apropriado e praticado por trabalhadores negros brasileiros3 3 Para os interessados no tema, sugiro as seguintes leituras: ABREU, Martha. Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas, 1870-1930. Campinas: Editora Unicamp, 2017; ARAÚJO, Tonny. Os negros na história do jazz do Maranhão. Agência Tambor, 19 nov. 2021. Disponível em: https://agenciatambor.net.br/opiniao/os-negros-na-historia-do-jazz-do-maranhao/. Acesso em: 20 jun. 2023; DOMINGUES, Petrônio. Nos acordes da raça: a era do jazz no meio afro-brasileiro. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 25, jul./set. 2018, p. 66-98; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. A cidade que dança: clubes e bailes negros no Rio de Janeiro (1881-1930). Campinas, São Paulo: Editora Unicamp. Rio de Janeiro, RJ: EdUERJ, 2020. , apenas recentemente tal prática parece ter ganhado uma roupagem mais fortemente afrocentrada, antirracista e anticolonial – o que se pode atestar na obra de músicos como o pianista pernambucano Amaro Freitas, o multi-instrumentista maranhense Isaías Alves, o carioca Jonathan Ferr, o projeto musical feminista Jazz das Minas, entre tantos outros. Observo que tal operação se dá, coincidentemente, em uma nova fase de discussão sobre o racismo no Brasil: conjuntura em que, aliás, reinvocam-se nomes mais ou menos conhecidos no país, como Frantz Fanon e, em menor grau, Amiri Baraka. Em vista disso, meu palpite é o de que as tentativas de volver à noção de um jazz preto e periférico podem estar conectadas aos atuais e acalorados debates sobre identidade, identitarismo, racismo e capitalismo (racismo estrutural). No entanto, é preciso questionar: qual seria exatamente a contribuição de Amiri Baraka e Frantz Fanon diante dessa possível relação entre música, identidade e antirracismo?

Para tentar responder a essa pergunta, pretendo discutir neste texto quais foram as condições de possibilidade para que Amiri Baraka e Frantz Fanon – autores direta ou indiretamente ligados ao que Robinson (2000 [1983])ROBINSON, Cedric. Black marxism: the making of the black radical tradition. Chapel Hill and London: The University of North Carolina Press, 2000 [1983]. chamou de Tradição Radical Negra – produzissem suas considerações sobre Black Music, no âmbito dos entendimentos do que seria uma identidade negra no cenário da atlanticidade racial diaspórica (GILROY, 2001GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001 [1993]. [1993])4 4 Ou seja, devido às singularidades culturais da América Latina, neste estudo não enfocarei no Atlântico Negro do Sul, especificamente o Brasil, onde o debate sobre modernidade, jazz, raça e identidade nacional gerou problemáticas bastante específicas. Para esse tema, cf. RIBEIRO JÚNIO>R, Antonio Carlos Araújo. O lugar do jazz na construção da música popular brasileira. Brasil/Alemanha: NEA, 2016; CARDOSO, Rafael. Modernidade em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. . Assim, destacarei pontos-chave da biografia dos agentes, considerando seus respectivos contextos, a formação política e as principais obras nas quais se fizeram presentes seus comentários sobre a Black Music. Pondo os dois autores face a face, viso colocar em diálogo, de um lado, alguém que escreveu a partir da e sobre a realidade colonial, interferindo incisivamente nos rumos dos movimentos de libertação em África (MANOEL, 2019MANOEL, Jones. A luta de classes pela memória: raça, classe e Revolução Africana. In: MANOEL, Jones; FAZZIO, Gabriel Landi (org.). Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista. 2. ed. São Paulo: Autonomia Literária, 2019, p. 15-62.), no debate sobre racismo e imperialismo e nos rumos ideológicos dos movimentos políticos afro-americanos – sobretudo, no movimento Black Power (FAUSTINO, 2020FAUSTINO, Deivison. A disputa em torno de Frantz Fanon: a teoria e a política dos fanonismos contemporâneos. Prefácio de Valter Roberto Silvério. São Paulo: Intermeios, 2020. (Coleção Africamundi).) e no partido dos Panteras Negras (ABU-JAMAL, 2020ABU-JAMAL, Mumia. Frantz Fanon and His Influence on the Black Panther Party and the Black Revolution. In: BYRD, Dustin; MIRI, Seyed Javad (ed.). Frantz Fanon and emancipatory social theory: a view from the Wretched. Studies in Critical Social Science. Leiden, Boston: Brill, 2019, p. 07-26. Vol. 142.). Do outro lado, situado ao mesmo tempo no seio e à margem do Império, uma figura de grande influência na orientação estética do movimento negro estadunidense e nos estudos críticos do jazz (FEBRIYANTI, 2015FEBRIYANTI, Irma. The power of Amiri Baraka’s political thoughts African American movement in America. Rubikon (Journal of Transnational American Studies), v. 2, n. 2, p. 51-63, Sept. 2015. ISSN 2541-2248. Disponível em: https://jurnal.ugm.ac.id/rubikon/article/view/34259. Acesso em: 19 ago. 2022. Doi: https://doi.org/10.22146/rubikon.v2i2.34259.
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; SIMANGA, 2015SIMANGA, Michael. Amiri Baraka and the Congress of African People: history and memory. London: Palgrave Macmillan, 2015.; RIBEIRO JÚNIOR, 2020).

Destaco, assim, semelhanças e diferenças entre Amiri Baraka e Frantz Fanon na construção de suas ideias e nelas mesmas – notadamente aquelas que referenciam o blues e o jazz –, no intuito de traçar conexões entre suas elaborações estético-intelectuais. Os alicerces dessa investigação serão a História dos Conceitos (KOSELLECK, 1992KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Trad. Manoel Luís Salgado Guimarães. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 05, n. 10, p. 134-146, 1992.), buscando apreciar o desenvolvimento e o uso de termos como “negritude” no campo intelectual (BOURDIEU, 2004BOURDIEU, Pierre. O campo intelectual: um mundo à parte. In: BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Trad. Cássia da Silveira e Denise Moreno Pegorim. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 169-180.; 2015 [1974]BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução, organização e seleção: Sérgio Miceli. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015 [1974].), considerando as realidades concretas que embalaram a formação, aplicações e sentidos desse fato linguístico – indicativo, aliás, das contingências, interesses e demandas de determinados atores e contextos (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006 [1979]. [1979]). Objetivo, desse modo, localizar as ideias dos autores, a partir de quais capitais disponíveis, formas de legitimação moral e com quem estavam dialogando; pontuando ainda quais eram os dispositivos de prestígio em jogo, suas regras e, principalmente, para quais objetivos eles dirigiam seus investimentos autorais.

Um jazz para os condenados da terra: Frantz Fanon, bebop e identidade cultural

[o negro] mostrou que pode inventar algo em sua corneta que ninguém jamais pensou. Se tiver independência intelectual, pode fazer a mesma coisa. (...). Pode inventar uma filosofia da qual ninguém ouviu falar ainda. Pode inventar uma sociedade, um sistema social, um sistema econômico, um sistema político diferente de tudo o que existe ou já existiu em qualquer lugar. Ele improvisará; vai trazê-lo de dentro de si mesmo. E é isso que queremos.

Malcolm X

Até agora, há apenas um estudo que analisa mais profundamente o lugar do jazz no pensamento do filósofo e psiquiatra marxista Frantz Omar Fanon (Martinica, 1925-1961). Trata-se do artigo Leaving the South: Frantz Fanon, modern jazz and the rejection of négritude (2012) de Jeremy Lane. Situado no ramo dos estudos pós-coloniais, o autor recupera os esparsos comentários do pensador martinicano sobre o blues e o jazz contidos em algumas de suas publicações, atentando para o contexto interno e externo dessas menções. Logo de início, Lane problematiza os olhares do biógrafo David Macey e da historiadora Françoise Vergès, que interpretaram essas elaborações como se fossem equívocos de Fanon. Em seguida, a fim de discutir melhor de que maneira as citações de Fanon ao jazz poderiam estar conectadas com o seu pensamento e com a sua trajetória intelectual e militante, o autor retrilha o debate sobre as discordâncias entre o pensador martinicano e o escritor senegalês Léopold Sédar Senghor, no que se refere à noção de “negritude”. Desse modo, em diálogo com outro texto de sua autoria, intitulado Jazz as antidote to the machine age: from Hugues Panassié to Leopold Sedar Senghor (2013) – estritamente focado na relação entre a négritude e o jazz no pensamento de Senghor5 5 Para Senghor, segundo Lane (2013, p. 90), “a negritude (...) correspondia a uma identidade negra transatlântica, que havia sido reprimida por uma longa história de imperialismo ocidental e racismo estadunidense”. Essa negritude estaria contida no diálogo entre as canções rurais da África Ocidental e as melodias/ritmos afro-americanos, criados em meio às plantações do Sul. Nessa lógica, a essência mais refinada da négritude estaria presente na sonoridade e na performance do chamado “hot jazz” – visto como prática que resguardava a pureza de suas raízes rurais africanas; sonoridade cujas origens remontariam a um longo processo de trocas entre as populações euro-americana e negro-africana, mas cujos elementos originários africanos teriam sido mantidos supostamente intactos, resistentes ao fluxo de transformações urbanas e tecnológicas. Assim, na tentativa de contrapor as representações depreciativas dos negros que circulavam pelo Atlântico, essa negritude visava, entre outras coisas, “reivindicar o jazz como uma ferramenta (...) para forjar uma consciência negra transnacional progressiva” (LANE, 2013, p. 94), tão logo recaindo, entretanto, num culto ao primitivismo, ao essencialismo e à nostalgia de um passado opressivo para africanos e afrodescendentes espalhados pela Europa e EUA. Após a Segunda Guerra, essa noção de identidade negra passou a ser duramente confrontada por vários pensadores, incluindo Fanon, a priori alinhado ao Movimento da Négritude. –, Jeremy Lane (2012)LANE, Jeremy. Leaving the South: Frantz Fanon, modern jazz and the rejection of négritude. In: MUNRO, Martin; BRITON, Celia (ed.). American creoles: the francophone Caribbean and the American South. Liverpool University Press, 2012, p. 129-146. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80.12?seq=9. Acesso em: 23 jun. 2023. Doi: https://chooser.crossref.org/?doi=10.2307%2Fj.ctt5vjd80.12.
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se concentra no contributo de Frantz Fanon para o debate sobre identidade étnica, tentando demonstrar como a preferência do pensador pelo jazz moderno se fundamentava em princípios estético-ideológicos consonantes com sua aposta em uma Argélia autodeterminada, apartada dos símbolos e códigos coloniais.

Antes de comentar mais sobre isso, é interessante observar que a relação entre a obra de Fanon e o jazz é anterior à publicação de Peau noire, masques blancs, ou seja, emerge antes de 1952. Tal aproximação surge de maneira indireta, na superfície, mais pelo viés estético, nas incursões do autor pelo mundo da dramaturgia, entre 1946 e 1951, precisamente ao escrever as peças A conspiração, O olho que se afoga e Mãos paralelas. Concebidas no início de seus estudos de psiquiatria – período marcado por uma relação vigorosa do autor com os episódios políticos da época, com os quais se envolvia, sobretudo, através do movimento estudantil – essas peças “chamam atenção pela tentativa de retratar personagens não racializadas e em dilemas humanos universais”, sendo “marcadamente influenciadas pelo existencialismo, pelo surrealismo e pelo impressionismo”, mas, além disso, inspiradas principalmente “pela proposta estética do movimento de negritude” (FAUSTINO, 2022FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon e as encruzilhadas: teoria, política e subjetividade. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 23). Misturando prosa e verso, nessas narrativas surgem, aqui e acolá, ideias sobre temas universais: vida e morte, tempo e esperança. Além disso, como percebe Faustino, nos deparamos nesses textos com “(...) a busca incessante de uma linguagem que fira a carne e convoque o corpo ao ato, como o vibrato do bebop ou a dissonância agonizante do hard bop” (FAUSTINO, 2022FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon e as encruzilhadas: teoria, política e subjetividade. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 23). Não por acaso, alguns autores reforçam a imagem de que Fanon foi um “filósofo do jazz6 6 Visão partilhada também pelo filósofo afro-americano Cornel West (2022, p. 357), que afirma: “(...) Tal como a revolução bebop de Charlie Parker na música moderna, as obras e o testemunho de Frantz Fanon romperam e esfacelaram os paradigmas dominantes na filosofia, na cultura e na política modernas. À semelhança do subversivo intelecto sônico de Nina Simone, Frantz Fanon tornou inevitável o enfrentamento das realidades históricas da descolonização”. Ou ainda: “(...) Como um grande músico de jazz, Fanon emprega e encarna contrapontos que fundem criativamente a crítica das economias capitalistas de Karl Marx, a filosofia da guerra de Carl von Clausewitz (com o acréscimo da guerra da guerrilha de Mao Tsé- Tung), as fecundas noções de psicologia ambiental e sociogenética de François Tosquelles (e, em certa medida, de Jacques Lacan) e, sobretudo, os exemplos inigualáveis de Aimé Césaire (mestre, mentor e companheiro martinicano de Fanon como combatente pela liberdade) e Jean-Paul Sartre” (WEST, 2022, p. 359). (GORDON, 2015GORDON, Lewis. What Fanon said: a philosophical introduction to his life and thought. New York: Fordham University Press, 2015.; FAUSTINO, 2022FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon e as encruzilhadas: teoria, política e subjetividade. São Paulo: Ubu Editora, 2022.).

A verve jazzística na escrita do jovem psiquiatra – que me parece fundamental para sua constituição política-intelectual enquanto “oxímoro radical” (FAUSTINO, 2018FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018., p. 15), pelo pendor ao experimentalismo e à improvisação7 7 Apesar de achar que Fanon se posicionou de maneira equivocada ao falar sobre o blues no texto “Racismo e cultura” – fruto de uma intervenção no I Congresso dos Escritores e Artistas Negros, publicado em setembro de 1956 e depois inserido na obra Pour la Révolution Africaine (1964) –, Gordon (2015, p. 90) também percebe que ressoa uma apropriação estética dessas melodias na escrita do filósofo, afirmando que Peau noire, masques blancs é um genuíno “texto de blues”. Ainda segundo Gordon, ao analisar o dilema existencial do sujeito colonizado, que busca, sem sucesso, a humanidade universal na brancura, “(...) Fanon conta uma história que é recontada em camadas crescentes de revelação. No momento da catarse – o choro – a sobriedade oferece o confronto com uma realidade que antes era insuportável: a realidade sem esperança de aprovação normativa, uma realidade na qual a dialética do reconhecimento deve ser abandonada” (GORDON, 2015, p. 90). Tomando essa ideia do blues como catarse/queixa cotidiana, não deixa de ser interessante que o primeiro ensaio de Fanon tenha se chamado “A queixa negra: a experiência vivida do negro” (1951), por meio do qual, aliás, acompanhamos a jornada do autor rumo às encruzilhadas epistemológicas, buscando formular um modus pensandi que encruza “saberes psicológicos, psiquiátricos, psicanalíticos, filosóficos e sociológicos” (FAUSTINO, 2018, p. 45). – pode ter relação com o ambiente parisiense do segundo pós-guerra, no qual jazz, literatura, arte e existencialismo se associavam nos círculos intelectuais. Ademais, como indica Macey (2012, p. 128)MACEY, David. Frantz Fanon: a biography (versão eletrônica). New York/London: Verso, 2012., o próprio Fanon apreciava o jazz afro-americano e as músicas populares da Martinica, como o beguine – ritmo afro-caribenho que se valia de elementos do jazz –, o que comprova que o autor teve uma experiência de escuta sensível desses sons e que, portanto, não apenas os citou como estava intimamente conectado com a sua estética8 8 Além desses fatores, é importante salientar que houve poetas do Caribe francês, como Aimé Césaire, professor e grande influência intelectual para Fanon, que adotaram uma estética semelhante à da “jazz poetry” (KWATERKO, 2017), prática desenvolvida no seio da Harlem Renaissance: movimento cultural afro-americano que buscava construir uma moderna e positiva concepção de identidade negra (investida epitomizada no discurso-imagem do chamado “New Negro”). .

Dito isso, é possível afirmar que a primeira vez que Fanon mencionou diretamente o jazz para criticar os postulados da Négritude foi em Peau noire, masques blancs, de 1952. A crítica ao movimento, de fato, está diluída ao longo de todo o livro. Contudo, compartilho com Lane (2012)LANE, Jeremy. Leaving the South: Frantz Fanon, modern jazz and the rejection of négritude. In: MUNRO, Martin; BRITON, Celia (ed.). American creoles: the francophone Caribbean and the American South. Liverpool University Press, 2012, p. 129-146. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80.12?seq=9. Acesso em: 23 jun. 2023. Doi: https://chooser.crossref.org/?doi=10.2307%2Fj.ctt5vjd80.12.
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a compreensão de que as referências ao jazz, ainda que bastante pontuais, surgem em momentos cruciais, dentro de contextos decisivos no desenvolvimento argumentativo de Fanon. Buscando ganchos que o colocassem em diálogo com a produção intelectual de seus pares, isto é, em consonância com as tendências do pensamento africano, francófono e afro-americano, Fanon mira no ensaio “Ce que l’homme noir apporte”, de 1939, no qual Senghor fala de maneira apaixonada sobre os tempos da África Ocidental pré-colonial e do jazz como exemplo dos dons rítmicos inatos dos negros: ou seja, pondo ambos como redutos simbólicos da “autêntica” identidade negra. Desafeto dessa ideia, para Fanon, tal leitura se baseava em “uma concepção essencialista e primitiva de identidade negra, que corre o risco de negar aos negros qualquer capacidade de pensamento racional ou agência histórica” (LANE, 2012LANE, Jeremy. Leaving the South: Frantz Fanon, modern jazz and the rejection of négritude. In: MUNRO, Martin; BRITON, Celia (ed.). American creoles: the francophone Caribbean and the American South. Liverpool University Press, 2012, p. 129-146. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80.12?seq=9. Acesso em: 23 jun. 2023. Doi: https://chooser.crossref.org/?doi=10.2307%2Fj.ctt5vjd80.12.
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, p. 131).

Nessa lógica, ao mesmo tempo que Fanon confronta a mentalidade racista de certo pensamento sobre o jazz (aliás, fortemente influenciado pelas formulações do crítico musical reacionário Hugues Panassié9 9 Também produtor musical e empresário, Hugues Panassié (1912-1974) foi um dos mais influentes formadores de opinião sobre o jazz, ficando conhecido por seu posicionamento tradicionalista quanto ao gênero. Em solo francês, foi responsável pela fundação do Hot Club de France, além da publicação de inúmeros livros sobre o jazz. Contudo, como analisa Lane (2012, p. 135), Panassié era uma figura no mínimo controversa, pois foi filiado à extrema direita francesa, tendo vínculos próximos com a chamada juventude maurrasiana (jeunes maurrassiens) e outros apoiadores de Charles Maurras (1868-1952), líder do movimento monarquista, antissemita e antidemocrático L’Action Française. O principal sustentáculo desse movimento era a teoria do nacionalismo integral, cunhada por Maurras, que se baseava em proposições contrarrevolucionárias, como o retorno do domínio da Igreja Católica Romana, a fim de alcançar uma suposta “regeneração nacional” da França. ), também se afasta do mero culto romantizado à Black Music. O autor opta por esse caminho para ilustrar o erro de diagnóstico de uma negritude essencialista que, para ele, permanecia presa à racialização colonial e a uma noção equivocada de tradição, portanto descompromissada com as demandas históricas do presente e com as perspectivas de futuro. O seguinte relato de Fanon é muito elucidativo, nesse sentido:

Há alguns anos, a Associação Lyonesa de Estudantes Ultramarinos da França me pediu para responder a um artigo que literalmente considerava o jazz uma irrupção do canibalismo no mundo moderno. Sabendo aonde ir, recusei as premissas do interlocutor e pedi ao defensor da pureza europeia para se desfazer de um espasmo que nada tinha de cultural. Certos homens querem inflar o mundo com o próprio ser. Um filósofo alemão descreveu esse processo sob o nome de patologia da liberdade. No caso presente, eu não tinha de tomar posição a favor da música negra contra a música branca, devia ajudar meu irmão a abandonar uma atitude que nada tem de benéfica. O problema aqui considerado situa-se na temporalidade. Serão desalienados pretos e brancos que se recusarão enclausurar-se na Torre substancializada do passado

(FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008 [1952]. [1952], p. 187).

Analisando esse trecho, Lane (2012, p. 132)LANE, Jeremy. Leaving the South: Frantz Fanon, modern jazz and the rejection of négritude. In: MUNRO, Martin; BRITON, Celia (ed.). American creoles: the francophone Caribbean and the American South. Liverpool University Press, 2012, p. 129-146. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80.12?seq=9. Acesso em: 23 jun. 2023. Doi: https://chooser.crossref.org/?doi=10.2307%2Fj.ctt5vjd80.12.
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entende que em Fanon “a denúncia do jazz pelo racista branco como uma forma de canibalismo moderno e a mitologização da negritude de uma civilização negra perdida são duas faces da mesma moeda primitivista” e que, nesse raciocínio, a saída “não é celebrar a autenticidade das formas musicais negras em oposição aos seus equivalentes brancos, mas abandonar totalmente essa oposição binária”.

Válido realçar que, no trecho supracitado, Fanon poderia estar se referindo a um artigo publicado em meados dos anos 1940, justamente quando o jazz passava por vertiginosas e intensas transformações nos Estados Unidos. No começo daquela década, uma nova forma de tocar começou a ser ensaiada em cidades como o Kansas, vindo a encontrar em Nova Iorque, precisamente no bairro do Harlem, o ambiente propício para o seu desenvolvimento e maturação.

Tal como Nova Orleães se tornou popularmente conhecida como o berço do jazz, não obstante práticas musicais negras semelhantes estivessem sendo desenvolvidas em várias cidades do sul e centro-oeste dos Estados Unidos (BERENDT; HUESMANN, 2014BERENDT, Joachim-Ernest; HUESMANN, Gunther. O livro do jazz: de Nova Orleans ao século XXI. São Paulo: Perspectiva; Edições Sesc São Paulo, 2014., p. 32), atribuiu-se ao Clube Minton’s Playhouse a fama de lugar onde se originou o bebop. De fato, o espaço, situado no primeiro andar do Cecil Hotel, 210 West 118th Street, funcionou como laboratório musical para nomes como Thelonious Monk (piano), Charlie Christian (guitarra), Kenny Clarke (bateria), Charlie Parker (sax alto) e Dizzy Gillespie (trompete), sem contar aquelas figuras que os antecederam e que ajudaram a pavimentar o caminho para as novas experimentações, tais como Lester Young, Jo Jones e Roy Eldridge, que advinham da geração do swing – estilo de jazz dançante tocado pelas big bands (grandes orquestras) nos anos 1930 e que alimentou uma indústria milionária, envolvendo o cinema e a propaganda –, mas que, de alguma forma, o executavam de maneira criativa, fugindo, na medida do possível, das repetidas fórmulas exaustivamente exigidas pelo musical business. Finalmente, em um ambiente dominado por homens, por vezes racista, misógino e sexista, fundamental mencionar ainda mulheres que amiúde são apagadas dessa história, como as pioneiras Melba Liston (trombone), Pauline Braddy (bateria) e a pianista e compositora Mary Lou Williams, esta última mentora de muitos beboppers no início do processo de desenvolvimento do novo estilo (SMITH, 2020SMITH, Victoria. Listen to Liston: examining the systemic erasure of black women in the historiography of jazz. Thesis (Bachelor of Arts). Philosophy Department, Lehman College – CUNY, Academic Works, New York, 2020.). Pequenos conjuntos, improvisação sobre um tema executado em uníssono, frases velozes e curtas, uso e abuso da quinta diminuta descendente (flatted fifith) e, sobretudo, uma noção de jazz “enquanto empreendimento artístico”, intelectual, com consciência social, e por isso contra “as forças sociais do comércio e da raça”, como uma “rebelião de músicos negros contra um capitalismo controlado pela hegemonia branca” (DEVEAUX, 1997DEVEAUX, Scott. The birth of bebop: a social and musical history. Basingstoke: Picador, 1997., p. 4). Eis alguns traços característicos do bebop.

Já no começo dos anos 1950, o cool jazz prosseguiu as inovações musicais. Desenvolvido por músicos como Miles Davis, John Lewis e Ted Dameron, desde o nome – simbolizando exatamente o oposto do hot jazz dos anos 1920 o cool trazia uma sonoridade cuja verve antirracista, diferente do bebop, adotava uma estética mais “fria”, resignada, “[dando] lugar à calma, à ponderação e ao equilíbrio” (BERENDT; HUESMANN, 2014BERENDT, Joachim-Ernest; HUESMANN, Gunther. O livro do jazz: de Nova Orleans ao século XXI. São Paulo: Perspectiva; Edições Sesc São Paulo, 2014., p. 43). Por isso, minimalismo, frases simples com pouco vibrato sobre escalas modais, tonalismo livre, mas controlado, eram alguns traços dessa sonoridade que se popularizaram a partir das gravações iniciais do noneto Miles Davis Band. Em termos de atitude, segundo MacAdams (2001, p. 46)MACADAMS, Lewis. Birth of the cool: beat, bebop, and the American Avant Garde. New York: Free Press, 2001., o cool “juntou o estético ao político”, significando “um ato militante, uma forma de permanecer abaixo do radar da cultura dominante sem perder o respeito dos pares”.

O hard bop, por sua vez, surgiu no final dos anos 1950 como reação de músicos negros da Filadélfia ou de Detroit que viviam em Nova Iorque à orientação clássica do jazz da Costa Oeste (West Coast Jazz). Grosso modo, enquanto este era mais afeito aos padrões europeus e acadêmicos, aquele (também conhecido como East Coast Jazz) buscava dar uma nova roupagem às tradições musicais afro-americanas. Assim, os “slogans implícitos” do hard bop, comenta Hobsbawm (2011 [1959], p. 156)HOBSBAWM, Eric. História social do jazz. Trad. Angela Noronha. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011 [1959]., “voltavam-se para o passado: de volta a Parker, de volta ao blues e ao gospel, de volta mesmo ao jazz de big band da tradição central. As razões para essa reação foram, sem dúvida, tão ideológicas quanto musicais”. Art Blakey, Elvin Jones e Max Roach (bateria), Horace Silver (piano), Lee Morgan e Donald Byrd (trompete), Sonny Rollins e Hank Mobley (sax-tenor) foram alguns nomes representativos dessa escola. Depois, viria o free jazz, sobre o qual falarei em outro momento do trabalho.

Por hora, é mister sublinhar que o encontro do vanguardismo com a politização em meio àquele efervescente contexto situado entre a Segunda Guerra e a Guerra Fria, somado ao Movimento dos Direitos Civis, fomentou não apenas rupturas estéticas no mundo do jazz, mas também tensões geracionais. Representativas disso foram as dissonâncias envolvendo Louis Armstrong, Miles Davis e Dizzy Gillespie. Estes últimos, a princípio, criticavam o comportamento de Armstrong dentro e fora dos palcos, taxando-o pejorativamente de “Uncle Tom” (Pai Tomás, na versão em português): nome do personagem do romance abolicionista de Harriet Beecher Stowe (Uncle Tom’s Cabin, de 1852): um homem escravizado, cristão, que passou a ser visto como símbolo de subserviência, de negros alienados que não se posicionavam abertamente contra o racismo e que, para piorar, tentavam agradar os brancos. No caso de Louis Armstrong, essa submissão se expressaria em performances que aos olhos e ouvidos dos músicos modernos traziam a incômoda lembrança dos espetáculos racistas do Sul, dos black faces e toda sorte de opressões ali cultivadas na fase embrionária do jazz.

Tais conflitos são um bom gancho para retornar às considerações de Fanon sobre a Black Music, pois, para o autor, o universo estereotipado que rondava o “jazz tradicional” desponta em Pele negra, máscaras brancas (2008 [1952]) como exemplo do ciclo abismal que a racialização poderia fomentar sobre as subjetividades dos oprimidos, ludibriando seu horizonte de emancipação genuína por não obliterar o conjunto de códigos responsáveis pela manutenção do racismo – esquemas mentais e materiais que, inclusive, estavam impregnados em parte da história do jazz fora dos EUA10 10 Refiro-me ao contexto de proliferação do jazz pela Europa: a fascinação francesa pelos sons afro-atlânticos (sobretudo pelo jazz, ritmo que se sobressaiu comercialmente depois da Primeira Guerra Mundial) e da imagem de “modernos/primitivos” que recaiu sobre esses sons, pois vendida pelo showbusiness parisiense. Em suma, objetificação e animalização dos corpos negros. Delimitação dos “civilizados” e dos “selvagens”, franceses e não franceses, brancos e negros (ARCHER-STRAW, 2000; MACEY, 2004, p. 213). Tais representações, sob os auspícios de uma pretensa modernidade cosmopolita, refletiam as delimitações raciais forjadas no seio das sociedades pós-escravistas para justificar os diferentes graus de hierarquização racial, entre outros dispositivos de controle e manutenção de privilégios e de distinção social. Assim, da parte das colônias francesas, termos como “créole”, “noir” e “nègre”, usados para se referir aos escravizados e seus descendentes, denotavam o processo de criação do “negro” pelo branco, no afã de criar castas impondo etiquetas raciais aos sujeitos. Por outro lado, vale ressaltar que, a exemplo do Caribe francófono, os dominados souberam reagir, se apropriando da terminologia nègre, na tentativa de subverter o estigma negativo atribuído à concepção (branca-colonial) de negritude (AUDEBERT et al., 2022). . Contudo, esse jazz, uma vez modernizado, poderia se tornar referência para romper violenta e criativamente com um passado fossilizado, pavimentando, assim, o caminho para o estabelecimento do novo; para um devir desalienado – para uma liberdade, de fato, fora dos grilhões ideológicos e previsibilidades coloniais.

Válido ressaltar que, ao tomar partido pelo bebop, Fanon não necessariamente corrobora com as regras da “guerra do jazz” – disputa entre grupos estéticos que punham em termos antagônicos modernidade e tradição. Mesmo que não haja comentários críticos substanciais por parte do autor sobre a produção jazzística da época, essa conclusão parece acertada ao considerarmos a maneira como Fanon lidava com a temática das tradições culturais, saindo em favor de sua abertura nas trocas transatlânticas (FANON, 1961FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. Serafim Ferreira. Lisboa: Editora Ulisseia, 1961., p. 221), logo pela sua constante ressignificação – predisposição, aliás, que, segundo o autor, já seria encontrável nessas expressões culturais (FANON, 1961FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. Serafim Ferreira. Lisboa: Editora Ulisseia, 1961., p. 255). Por isso, Frantz Fanon entendia que o trato com as “raízes” tinha de passar pelo crivo da descolonização, pois só opressores e seus aliados teriam interesse em engessar, romantizar e exotizá-las. Exotização, a propósito, obcecada por imagens de inferiorização e sofrimento negro, de tal modo que mesmo o grito revoltado de dor de um bluesman, ou os improvisos melancólicos de um jazzman, tornar-se-iam, dentro de tal estrutura reificante, meros artigos de luxo para consumo e satisfação de uma branquidade sádica. Como principais representantes do jazz moderno, por terem sido os estilos que Fanon chegou a ter contato, o bebop, o cool e o hard bop, nesse sentido, significavam, aos ouvidos e ao corpo pensante/questionador do filósofo, artimanhas artísticas com potencial de não apenas driblar qualquer tentativa de cooptação dos músicos por essa lógica pervertida, como também poderiam contribuir para a progressiva erosão das engrenagens de exploração e opressão regidas pelo capitalismo racial (ROBINSON, 2000ROBINSON, Cedric. Black marxism: the making of the black radical tradition. Chapel Hill and London: The University of North Carolina Press, 2000 [1983]. [1983]) arraigado no mercado de entretenimento.

Arriscaria dizer ainda que, diante de suas duras posturas ao abordar o blues e o jazz, Fanon se voltava não só contra a cadeia mais evidente da máquina cultural colonizadora: ou seja, donos de gravadoras, empresários, grandes veículos de comunicação (para quem as representações racistas da cultura negra eram negócios rentáveis desde os Minstrels Shows11 11 Espetáculos teatrais itinerantes que se popularizaram nos EUA, entre fins do século XIX e início do XX, por seu conteúdo cômico calcado em representações racistas. Um de seus personagens mais populares foi o Jim Crow, black face interpretado pelo ator branco Thomas Dartmouth Rice. Por volta de 1855, pessoas negras também começaram a figurar nesses espetáculos. Sob a imagem de “negros legítimos”, esses artistas tentaram sutilmente ressignificar os black faces e o próprio sentido dos Minstrels Shows, mas as plateias racistas resistiram a essas investidas, o que estimulou parte da população negra a repudiar e se voltar contra esses espetáculos. Outros artistas negros, porém, insistiram nesse formato de entretenimento, tanto que no começo do século XX, cantoras de blues clássico (estilo tocado mais profissionalmente) se valeram dessas empresas teatrais para proliferar sua música, exemplo de Ma Rainey e Bessie Smith (JONES, 1967 [1963], p. 89-103). Para uma análise específica desses espetáculos, cf. ANDERSON, Lisa M. From Blackface to ‘Genuine Negroes’: Nineteenth-Century Minstrelsy and the Icon of the ‘Negro’. Theatre Research International, v. 21, p. 17-23, 1996. ) e consumidores brancos (da elite ou da classe média); como poderia ser também uma crítica direcionada aos setores brancos pretensamente progressistas (movimentos sociais, pesquisadores, acadêmicos, críticos, memorialistas) que, no afã de exaltar, salvaguardar, tutelar e dar visibilidade à música negra “autêntica”, resvalavam para uma perigosa folclorização dessas práticas, por conseguinte para uma involuntária (?) manutenção das desigualdades sociais. Além disso, em um nível mais profundo, percebo que Fanon denunciava a introjeção dessas representações por parte dos próprios negros, o que poderia levar a uma espécie de retroalimentação desses imaginários, por fim sua legitimação, cristalizando, assim, subjetividades negras ao gosto das nostalgias e taras coloniais da branquitude. Assim, ao vislumbrar no novo jazz um discurso musical antirracista, não é gratuito que com a mordacidade de um bebopper o pensador tenha alertado:

É assim que o blues, “lamento dos escravos negros”, é apresentado à admiração dos opressores. É um pouco de opressão estilizada, que agrada ao explorador e ao racista. Sem opressão e sem racismo não há blues. O fim do racismo seria o toque de finados da grande música negra... Como diria o demasiadamente célebre Toynbee, o blues é uma resposta do escravo ao desafio da opressão. Ainda atualmente, para muitos homens, mesmo os “de cor”, a música de [Louis] Armstrong só tem verdadeiro sentido nesta perspectiva

(FANON, 2021FANON, Frantz. Por uma revolução africana: textos políticos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2021 [1964]. [1964], p. 76-77).

E em outro momento, escrevendo no auge do bebop e do cool jazz, como se pressentisse o devir revolucionário das práticas jazzísticas, uma transformação radical das sociabilidades e a vitória de novos símbolos no consumo cultural/musical, Fanon vaticinou:

(...) não é utópico supor que em cinquenta anos ou mais a categoria de jazz como o grito gaguejado de um pobre Nègre amaldiçoado só será defendida por brancos que permanecem fiéis à imagem presa de uma espécie de relações, de uma forma de négritude

(FANON, 1961FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. Serafim Ferreira. Lisboa: Editora Ulisseia, 1961., p. 255).

Nesse sentido, para Fanon, contrários a tal estigma (e lidos pelo autor como um fenômeno que ia muito além de uma simples empreitada comercial), “os novos estilos em matéria de jazz não surgem apenas da competição econômica”, devendo ser vistos como “uma das consequências da derrota, inevitável ainda que lenta, do mundo sulista dos Estados Unidos”, pois, “quando o negro se compreende a si mesmo e concebe o mundo de uma maneira distinta, faz nascer a esperança e impõe um retrocesso ao universo racista, é claro que o seu trompete tende a libertar-se e a sua voz a perder a rouquidão” (FANON, 1961FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. Serafim Ferreira. Lisboa: Editora Ulisseia, 1961., p. 255). Nesse ponto, o autor parece evocar o “mundo sulista” como metáfora de um padrão sociocultural calcado na violência racial que tomava os EUA para além do Sul. Ao mesmo tempo, estaria confrontando uma idealização desse mesmo Sul, cuja romantização se expressava nas odes às raízes das musicalidades negras apenas enquanto significassem registros das precariedades, exploração e morte da população de cor, opção que, em um estágio mais oculto e reacionário, poderia simbolizar um apego sentimental, por vezes recalcado, a imagens de cunho escravista. Em seguida, ao mencionar certas formas estéticas (a maneira de tocar trompete, o estilo de canto), Fanon, de fato, poderia estar apontando para a total superação de linguagens, de resíduos que se remetiam ao universo rural, à memória das plantações do Sul – muito embora as primeiras gravações de jazz tenham ocorrido em áreas urbanas do Norte (LANE, 2012LANE, Jeremy. Leaving the South: Frantz Fanon, modern jazz and the rejection of négritude. In: MUNRO, Martin; BRITON, Celia (ed.). American creoles: the francophone Caribbean and the American South. Liverpool University Press, 2012, p. 129-146. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80.12?seq=9. Acesso em: 23 jun. 2023. Doi: https://chooser.crossref.org/?doi=10.2307%2Fj.ctt5vjd80.12.
https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80...
, p. 140). Não obstante, considerando que de maneira alguma fazia parte da agenda do autor a defesa pela extinção das práticas autóctones, do simples esquecimento do passado escravista, o realmente condenável, para Fanon, não seria o blues/jazz de origem rural em si, mas mais fortemente as camadas racistas que passavam a simbolizá-los e defini-los quando se tornavam produtos massificados; a transformação da revolta negra em mera grife de mercado; o estabelecimento de um critério de autenticidade musical escravo das plantações de algodão12 12 Quanto a isso, Gordon (2015, p. 88) oferece um interessante contraponto, afirmando que a leitura de Fanon sobre o blues é “extraordinariamente assimétrica” e que seu equívoco é “cometer a falácia da permanência causal, em que as condições que levam ao aparecimento de um fenômeno tornam-se aquelas pelas quais este último é mantido. Nascido do sofrimento racial, o blues, segundo Fanon, só poderia ser mantido por essa maldição específica. Assim, os brancos que ouvem blues ficam, na leitura de Fanon, entretidos pelo sofrimento que a sua localização política criou. Contudo, isto significaria que a identificação com uma produção estética requer uma ligação íntima com o seu surgimento. Muitas pessoas, no entanto, não só gostam de música que não está intimamente ligada à sua experiência pessoal, mas também atribuem a sua própria experiência à música nascida de outra. A miséria social sofrida por outra pessoa poderia ser artisticamente personalizada e apreciada em termos do sofrimento pessoal de alguém”. Importante notar que Fanon não se refere a brancos no sentido genérico, mas aos “opressores”, aos “brancos que permanecem fiéis à imagem presa de uma espécie de relações, de uma forma de négritude” (1961, p. 255). Depois, sua crítica parece mais voltada para o consumo esvaziado e desmobilizado do “lamento negro”; uma escuta falsamente revoltada, despreocupada em acabar com a continuidade de um sistema de opressões reformulado desde o pós-Abolição. Por fim, Fanon poderia estar incomodado com aquela visão estética do blues predominante em certos veículos midiáticos (que repercutiram amplamente canções como “Strange Fruit”, interpretada por Billie Holiday, ou mesmo “Black and Blue”, de Louis Armstrong), talvez sem atentar para artistas atuantes nas lutas pelos direitos civis e que não se prendiam necessariamente à estética do “queixume”: exemplo do músico e ativista Josh White, autor de “Free and equal blues”, “No more chain gangs”, entre outras músicas engajadas. Por outro lado, é possível especular que Fanon conhecia a obra desses bluesmen e blueswomen engajados e estivesse se dirigindo na verdade a leituras como as do escritor Richard Wright, que, por exemplo, ao escrever as notas para o disco Southern Exposure: An Album of Jim Crow Blues (JOSH WHITE, 1941), embora enfatizasse o aspecto combativo das canções, exaltava também a estética lamuriosa do blues. .

Válido recordar que essas encruzas político-estéticas com o jazz começaram a se explicitar, sobretudo, a partir das intervenções de Fanon no I e no II Congresso de Escritores e Artistas Negros, ocorridos, respectivamente, em Paris, em 1956, e em Roma, em 195913 13 Inspirado na categoria conceitual de campo (BOURDIEU, 2004), observo que esses encontros culturais foram cruciais para a propagação das ideias de Fanon e para a sua legitimação enquanto intelectual panafricanista. Nesses congressos, Fanon estabelecia ricas trocas intelectuais e acalorados embates com figuras bem estabelecidas no campo intelectual, reproduzindo raciocínios que já circulavam (e refinando outros que circulariam, mais tarde) através de periódicos, tais como as revistas Esprit, Présence Africaine e Afrique Action, e jornais (El Moudjahid) – todos importantes laboratórios que possibilitaram a aproximação de seu nome ao de outros agentes e o crescimento de sua reputação, a priori, na França e na África do Norte, aumentando seu potencial como concorrente no campo de discussões sobre a experiência colonial. , das quais sairiam os textos “Fundamentos Recíprocos da Cultura Nacional e das Lutas de Libertação”, presente na seção “Sobre a cultura nacional” d’Os condenados da terra (2022 [1961]), e “Racismo e Cultura”, como já dito, publicado depois em Pela revolução africana (2021 [1964]). Justamente nesses escritos, Frantz Fanon

[sugeria] que o jazz moderno poderia, no nível estético, ser capaz de descobrir uma saída para esta armadilha, de desacoplamento do jazz de qualquer elo orgânico que seus promotores possam alegar que possuía a localização geográfica especificada ou identidade étnica fixa. Com base nesse desacoplamento, o jazz moderno [poderia] de fato se tornar pertinente às discussões de uma cultura nacional em uma Argélia recém-independente

(LANE, 2012LANE, Jeremy. Leaving the South: Frantz Fanon, modern jazz and the rejection of négritude. In: MUNRO, Martin; BRITON, Celia (ed.). American creoles: the francophone Caribbean and the American South. Liverpool University Press, 2012, p. 129-146. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80.12?seq=9. Acesso em: 23 jun. 2023. Doi: https://chooser.crossref.org/?doi=10.2307%2Fj.ctt5vjd80.12.
https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80...
, p. 138).

Em síntese, é possível concluir que, para Frantz Fanon, o jazz afro-americano (especificamente aquele que procurou driblar as imposições de uma indústria cultural cuja lógica de funcionamento visava lucros ilimitados através da desumanização dos músicos negros, reduzindo-os a meras personagens/propriedades fetichizadas – cooperando, assim, para a manutenção do racismo nos EUA da época) foi uma expressão musical que, pelo “compromisso com a independência artística e a inovação”, despontou como “uma prática exemplar de liberdade cultural, um modelo para os miseráveis da terra nos seus esforços para inventar uma identidade nova e emancipada” (SHATZ, 2019SHATZ, Adam. Rapping with Fanon. The New York Review of Books, New York, 22 jan. 2019, s/p. Disponível em: https://www.nybooks.com/online/2019/01/22/rapping-with-fanon/?lp_txn_id=1513813. Acesso em: 21 dez. 2023.
https://www.nybooks.com/online/2019/01/2...
, s/p, tradução minha).

Assim, se para Fanon “é o homem branco que cria o Negro, mas é o Negro que cria a negritude” (FANON, 1967FANON, Frantz. A dying colonialism. Translation from French: Haakon Chevalier. New York: Grove Press, 1967., p. 47), o movimento de apropriação das táticas emancipatórias formuladas pelos primeiros jazzistas modernos (com seu aceno para o diálogo panafricano, a solidariedade com os asiáticos e povos originários, aliado à luta antirracista nos EUA)14 14 Eis alguns exemplos desse engajamento em tempos de bebop: a música “Alabama” de John Coltrane (Live at Birdland, 1964), composta em reação à morte de quatro crianças afro-americanas durante um ataque da Ku Klux Klan à 16th Street Baptist Church (Birmingham, Alabama). A composição “Fables of Faubus” (Charles Mingus presents Charles Mingus, 1960) de Charles Mingus, que denunciava a exclusão de nove crianças da Little Rock Center High School, Arkansas (PINHEIRO, 2015). Aliás, apesar de na época (1957) ser taxado de alienado e dos riscos à sua carreira, Louis Armstrong se pronunciou na imprensa sobre esse caso, chegando a criticar duramente o então governador do Arkansas, Orval Faubus, e o presidente Dwight Eisenhower. Sobre o apoio dos jazzistas ao Movimento dos Direitos Civis, um exemplo interessante foi o disco The Freedom Riders (ART BLAKEY & JAZZ MESSENGERS, 1964), que fazia referência a um grupo de ativistas que lutavam contra a segregação nos ônibus interestaduais. Em solidariedade aos povos originários e antecedendo a moda punk, Sonny Rollins passou a usar o cabelo ao estilo moicano (Mohawk), além de ter gravado o disco Freedom Suite (1958), um dos primeiros a sugerir a ligação entre jazz e protesto social. A empatia com os povos asiáticos pode ser captada em músicas como “Peace on Earth” (Live in Japan, 1966) de Coltrane, composta em solo japonês em solidariedade às vítimas do ataque nuclear dos EUA em Nagasaki, mas também como denúncia dos assassínios perpetrados pela Guerra do Vietnã e pela Guerra Fria. Já a aproximação com o continente africano pod>e ser encontrada em composições como “Africa” (Africa/Brass, 1961) de Coltrane (Pinheiro>, 2015), “All Africa” (Freedom Now Suite, 1960) de Max Roach, “New Africa” (Kwanza, 1974) de Archie Shepp, entre outras. , punha em prática sua concepção dialética de identidade cultural, esta, por sua vez, mais preocupada em transcender situações/processos compartilhados específicos do que ruminar sobre noções identitárias especificadas, isto é, fixas e imutáveis (LANE, 2012LANE, Jeremy. Leaving the South: Frantz Fanon, modern jazz and the rejection of négritude. In: MUNRO, Martin; BRITON, Celia (ed.). American creoles: the francophone Caribbean and the American South. Liverpool University Press, 2012, p. 129-146. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80.12?seq=9. Acesso em: 23 jun. 2023. Doi: https://chooser.crossref.org/?doi=10.2307%2Fj.ctt5vjd80.12.
https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80...
, p. 143-144).

Essa representação estética a partir do jazz aponta, portanto, para a uma concepção anticolonial e moderna de história em Fanon, pois visa a ruptura com uma noção potencialmente conservadora de passado; mira em uma relação dinâmica do universal com o particular (e vice-versa), na intersecção entre raça e classe, no total aniquilamento dos binarismos coloniais e do universalismo abstrato branco.

Importante acentuar que, embora tenha sido elaborado nos anos de 1940 – como já dito, por músicos que se opunham às amarras musicais, explorações, preconceitos e humilhações presentes na indústria musical desde a Swing Era15 15 Nesse sentido, julgo importante recordar, em diálogo com DeVeaux (1997) e Lane (2012), que o bebop não tentou simplesmente desmerecer a tradição musical afro-americana, mas ressignificá-la e desviá-la das armadilhas racialistas estereotípicas, evitando as ossificações estéticas desejadas por consumidores e mediadores culturais cuja nostalgia era atravessada pelo fetichismo racial. Foi o caso da utilização do blues e dos standards em temas e improvisações. Acredito que devido a essa postura, de relação não-passiva com o legado tradicional, o bebop pode ser tomado como um fenômeno musical dialético. –, o bebop surgiu mais enfaticamente no discurso de Fanon apenas quando o autor passou pela experiência profilática da Revolução Argelina, iniciada em 195416 16 Raciocínio sobre a experiência histórica-profilática de Fanon inspirado em Faustino (2015; 2018; 2021; 2022). Acrescento que o momento de tensão de Fanon com os preceitos de Césaire e Senghor coincide com o período de popularidade do fenômeno bebop, que alcançaria seu auge nos anos de 1960, o que reforça a relevância de uma nova profilaxia também no campo estético-musical. . Isto é, com o avanço do processo de independência da Argélia, a relação entre jazz moderno, raça, identidade, política e nação17 17 Como destaca Faustino (2022, p. 108), Fanon diferenciava consciência nacional e nacionalismo. Importante nas lutas de libertação, a consciência nacional não se fecharia em si, relacionando-se dialeticamente com o plano internacional. O nacionalismo, por sua vez, se exercido aos moldes burgueses, fomentaria a despolitização, sendo reduzido a um “formalismo esterilizante” (FANON, 1961, p. 211). Assim, por não lidar com as identidades culturais em termos metafísicos, o bebop surge para Fanon como fenômeno apreciável numa perspectiva de solidariedade nas lutas antirracistas no mundo Atlântico; como símbolo de uma inspiradora conquista fora de África: quer dizer, realizada dentro de suas especificidades históricas (LANE, 2012). ficou ainda mais evidente no discurso fanoniano.Ora, o fato de Fanon, um martinicano, ter enfrentado as forças coloniais em solo argelino, era porque sua ideia de solidariedade política se sustentava “na consciência de uma situação específica compartilhada, e não em qualquer reivindicação ilegítima de uma identidade comum especificada”, razão pela qual a Black Music, representada pelo bebop, denotava para ele um modelo identitário que, a partir do plano musical, poderia “ser integrado num projeto [sociocultural] transformador, de tal forma que os seus componentes [poderiam ser] redinamizados e transcendidas as suas limitações inerentes” (LANE, 2012LANE, Jeremy. Leaving the South: Frantz Fanon, modern jazz and the rejection of négritude. In: MUNRO, Martin; BRITON, Celia (ed.). American creoles: the francophone Caribbean and the American South. Liverpool University Press, 2012, p. 129-146. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80.12?seq=9. Acesso em: 23 jun. 2023. Doi: https://chooser.crossref.org/?doi=10.2307%2Fj.ctt5vjd80.12.
https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80...
, p. 141).

Neste ponto, abro um parêntesis: na leitura de Faustino (2018)FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018., se por um lado podemos perceber uma evolução do pensamento fanoniano ao longo de suas publicações, isso não de seu em termos de uma mera divisão entre um jovem Fanon, mais voltado para questões subjetivas, e um Fanon marcadamente mais revolucionário, materialista, como argumentado por Robinson (1993)ROBINSON, Cedric. The appropriation of Frantz Fanon. Race & Class, v. 35, n. 1, p. 79-91, 1993. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/030639689303500108. Acesso em: 14 jun. 2022. Doi: https://doi.org/10.1177/030639689303500108.
https://journals.sagepub.com/doi/abs/10....
. À linha de Faustino (2020, p. 35)FAUSTINO, Deivison. A disputa em torno de Frantz Fanon: a teoria e a política dos fanonismos contemporâneos. Prefácio de Valter Roberto Silvério. São Paulo: Intermeios, 2020. (Coleção Africamundi)., talvez o mais correto fosse entender a obra fanoniana – sabendo que ela está estruturada sob os preceitos da sociogênese18 18 Na síntese de Faustino (2018, p. 15), trata-se de um “sociodiagnóstico que conceba a subjetividade sempre em relação com os seus determinantes históricos e sociais”. Em outros termos, trata-se de um arcabouço teórico abrangente que amalgama os teores psicológicos, culturais e sociais em sua aplicação analítica. – como uma espiral que gira em torno de um eixo dialético. Numa aproximação musical – e nesse ponto me inspiro no esforço de percepção aural dos escritos barakianos proposta por Moten (2023 [2003])MOTEN, Fred. Na quebra: a estética da tradição radical preta. Trad. Matheus Araújo dos Santos. São Paulo: Crocodilo; n-1 edições, 2023 [2003]. –, podemos imaginar o swing intelectual do autor como a “percepção rotativa” do contrabaixista Charles Mingus, cujo balanço complexo e dinâmico posiciona o caos dentro de um círculo rítmico e o manipula em direção a horizontes estéticos revolucionários19 19 Faço essa comparação fundamentado novamente na argumentação de que Fanon foi um “filósofo do jazz” por escrever como um músico do bebop. Ciente de que a noção de “percepção rotativa” tem suas finalidades propriamente musicais, ressalto que não se trata, de forma alguma, de uma tentativa forçada de sobreposição conceitual. A coerência da analogia empregada reside na própria experiência social de Charles Mingus. Músico vinculado ao bebop, Mingus desenvolveu uma forma particular de improvisação que visava se afastar do padrão rítmico linear, por sua carência de dissonâncias e descontinuidades, logo facilmente previsível. Em paralelo, Mingus foi um músico ativo na luta antirracista, tendo que lidar ainda com agudos dilemas existenciais por conta das máscaras brancas e da pele negra – algo narrado em sua autobiografia Saindo da sarjeta (2005 [1971]) –, fazendo de sua música um instrumento de revolta contra o establishment branco-estadunidense, mas também contra aquilo que chamava de “ilhas raciais”, dentro das quais não era reconhecido nem como branco nem negro. .

Digressões à parte, vale dizer que ainda que não tenha comentado sobre o desenvolvimento do jazz em solo africano20 20 Refiro-me à produção jazzística sul-africana, exemplo do The Jazz Epistles, grupo formado nos anos 1950 por Hugh Masekela (trompete), Johnny Gertze (trombone), Kippie Moeketsi (saxofone alto), Jonas Gwangwa (trombone), com colaboração de Makwenkwe “Mackay” Davashe (saxofone), Abdullah Ibrahim (piano), Makaya Ntshoko e Early Mabuza (bateria). A Jazz Epistles se apropriou dos recursos do bebop, mesclando-os com o vocabulário musical local com o objetivo de unir tradição e cosmopolitismo, evitando, assim, nacionalismos estanques e internacionalismos sem dialética. Além disso, o conjunto musical se engajou na luta antiapartheid e anticolonial, estando, nesse sentido, perfeitamente alinhada à perspectiva revolucionária de Frantz Fanon e à noção de Atlântico Negro (GILROY, 2001 [1993]). , analiso que ao incorporar/calibanizar esse elemento musical-cultural dentro de suas análises, Frantz Fanon, a partir de sua atividade revolucionária na África, contribuiu para a discussão estética-sociológica do jazz numa perspectiva radical e afrodiaspórica, reconhecendo – como bom entendedor das regras do campo intelectual no qual estava inserido, e dos problemas históricos da sua realidade – a importância, mas também os limites, da négritude e de outras formas de identidade cultural.

Infelizmente, tal como não pôde assistir ao amanhecer da revolução na Argélia, Fanon também não viveu o suficiente para absorver a fundo o impacto de um fenômeno ainda mais radical do que o bebop: o nascimento do free jazz. O LP do multi-instrumentista Ornette Coleman Free Jazz: a collective improvisation (Atlantic Records), trabalho que batizou o novo estilo, foi lançado em setembro de 1961. Fanon morreria em dezembro daquele mesmo ano, tendo passado seus dias finais trabalhando n’Os condenados da terra, obra que ressoaria fortemente no movimento Black Power, na trajetória de muitos jazzistas engajados e na vida de um dos mais importantes críticos afro-americanos de jazz: o escritor Amiri Baraka.

Radicalidade jazzística e miscelânea negra: de Fanon a Leroy, de LeRoi a Baraka

I be black angry communist

I be part of rising black nation

I be together with all fighters who fight imperialism

I be together in a party with warmakers for the people

I be black and African and still contemporary Marxist warrior.

Reggae or Not, Amiri Baraka

Se Frantz Fanon pode ser entendido como oximoro radical, eu diria que Amiri Baraka (Nova Jersey, 1934-2014) foi um metamorfo radical. Bastante simbólicas em sua trajetória, as sucessivas mudanças de seu nome21 21 Moten (2023 [2003], p. 235) também entende que as variações em torno do nome do autor servem para compreender a “questão de para onde vai o radicalismo, ou como o radicalismo se desenvolve na obra de Baraka”, enfocando na experiência de “convulsão/abertura” do autor, entre 1962-1966. Ao contrário de Moten, que mantém um “marcador nominativo” para analisar o que chama de “pretitude” (blackness) de Baraka, entendo que para os fins deste estudo importa retrilhar todas essas mudanças nominais de LeRoi/Baraka. evidenciam essas transformações: nasceu Everett Leroy Jones, mas adotou depois as alcunhas de LeRoi Jones22 22 Nos trabalhos acadêmicos, material biográfico e textos da internet, a atribuição ao nome verdadeiro de Baraka é variável, surgindo nas formas Leroy Jones, Leroi Jones ou LeRoi Jones; podendo ser traço não apenas de suas várias fases, em busca de uma identidade pessoal e política, mas, sobretudo, de uma possível preponderância de seu legado político e cultural enquanto Amiri Baraka, fazendo com que haja esses desencontros na grafia de seu nome de batismo. Entendo tal imprecisão como marca de sua trajetória. , Amear Baraka e, por fim, Imamu Amiri Baraka. A variedade de campos em que trabalhou também reforça seu caráter multifacetado, pois foi poeta, dramaturgo, ficcionista, ensaísta, crítico musical, compositor e professor – atividades que concatenou com o seu ativismo.

Embora o nome de Leroy Jones tenha aportado no Brasil por volta dos anos de 1960, ou seja, na mesma época de Frantz Fanon, a produção acadêmica nacional sobre ele ainda é incipiente23 23 Alguns desses trabalhos são: CAMELO (2010); REINA PERES, Lilian. Makumba: uma proposta de matrigestão tradutória à poética de Amiri Baraka. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos). 153 f. Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São José do Rio Preto, 2022. Igualmente importante na divulgação das encruzas barakianas no Brasil, além de rica em referências, há a coluna “Missa Negra”, assinada pela pesquisadora Nathalia Grilo Cipriano (vulgo Preta Velha). A coluna é publicada no blog da Sob Influência, editora paulistana independente, e está disponível em: https://www.sobinfluencia.com/post/black-dada-nihilismus-a-imagina%C3%A7%C3%A3o-radical-de-amiri-baraka. A propósito, numa empreitada histórica, a editora lançou recentemente a primeira versão em português da obra Black Music (2023 [1968]) de Amiri Baraka, contando com um prefácio da própria Nathalia Grilo. . Devido a isso, penso que, nesse primeiro momento, é importante oferecer algumas notas biográficas sobre o autor. Após, discutirei mais atentamente o lugar do jazz em seu pensamento e, paralelamente, com qual ou quais concepções de negritude Baraka lidou para forjar esses raciocínios.

Semelhante a Fanon, Leroy Jones era oriundo de uma classe média negra. Seu pai, Coyt Leverette Jones, foi Supervisor Postal, e sua mãe, Anna Lois Jones, Assistente Social. Nos tempos escolares, Jones foi aluno da Barringer High School (atualmente, Barringer Academy of the Arts & Humanities), escola pública localizada no Condado de Essex, Nova Jérsei. No início dos anos de 1950, uma vez terminados os seus estudos na Barringer, conseguiu uma bolsa para estudar na Rutgers University, onde permaneceu por dois anos. Transferiu-se em seguida para a Howard University24 24 Entendendo a escola como agente de integração cultural, que transmite esquemas lógicos e programas de pensamento (BOURDIEU, 2015 [1974], p. 203-229), penso que convém uma comparação entre a formação educacional de Fanon e Jones. Se Frantz Fanon teve uma formação inicialmente assimilacionista, na qual, em contraposição à cultura “preta” (leia-se, africana), se promovia o apagamento do dado étnico dos martinicanos através do afrancesamento/branqueamento cultural de toda a população negra antilhana, Leroi Jones se deparou com os “valores brancos” e a “falsa negritude” que eram ensinados na Howard University, contra os quais se irrompia (FEBRIYANTI, 2015). Instituição aliada no Movimento dos Direitos Civis, por onde passaram nomes como Frederick Douglas, Alain Locke (difusor da ideologia “New Negro”), E. F. Frazier, Stokely Carmichael e Rayford Logan, a Howard era uma faculdade particular criada originalmente no século XIX para atender à população liberta, portanto voltada especialmente (mas não somente) para a comunidade negra. Mesmo com este histórico, Jones (2009) confrontava o perfil elitista da instituição, que, segundo ele, prezava não só por uma relação conservadora com os brancos (pautada na filantropia, em vez da radicalidade), mas também por ser reprodutora de códigos condizentes com os interesses da camada média branca. Ou seja, a instituição defendia uma “Negro culture” erudita, moralmente aceita pela branquitude, em contraposição às práticas dos “niggers” – por sua vez, estigmatizadas, de “mau gosto”, imorais, marginais. O jazz, e sobretudo o blues, fariam parte dessa subcultura negra que era desprezada. , onde obteve seu bacharelado em Letras (Arts in English), em 1954. Cursou ainda a New School for Social Research e a Columbia University, onde, embora não tenha se graduado, trabalharia mais tarde como professor25 25 Além dessas instituições, Amiri Baraka lecionou na Buffalo University, Yale, San Francisco State, George Washington e na New York State University. Nesta última, ministrou aulas sobre Estudos Africanos (African Studies), por mais ou menos vinte anos. .

Nesse período universitário, diria que Sterling A. Brown – folclorista, crítico literário e poeta – esteve para LeRoi26 26 Forma afrancesada de seu nome (Leroy) que passou a usar nessa fase acadêmica (CAMELO, 2010, p. 13). Jones tal como Aimé Césaire esteve para Frantz Fanon. Isso porque, na condição de professor titular da Howard University, Brown (que tinha interesse particular no jazz, no blues e em seus primórdios: spirituals e work songs) montou um grupo de estudos do jazz, por meio do qual transmitiu aos alunos sua visão sobre a história dessas musicalidades, tendo especial interesse pelo quesito literário. Ou seja, as aulas destacavam a questão racial, o cotidiano dos negros (pré e pós-Abolição), mas também o uso “moderno” de valores do folclore afro-americano na escrita contemporânea (CAMELO, 2010CAMELO, Gerson Vieira. Four Black Revolutionary Plays: Amiri Baraka e a construção de uma dramaturgia revolucionária negra. Tese (Doutorado em Letras). 241 f. Programa de PósGraduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Departamento de Letras Modernas, São Paulo, FFLCH-USP, 2010., p. 17).

Após se formar na Howard, LeRoi Jones resolveu se alistar no exército, mas, diferentemente de Fanon, que teve uma exitosa (embora conflitante) carreira militar, lutando ao lado da Résistance francesa contra os nazistas, Jones foi expulso da Força Aérea em 1957, acusado de externar “atitudes comunistas”. A tirar pelo que relata em sua autobiografia (BARAKA, 1997BARAKA, Amiri. The autobiography of Leroi Jones. Chicago: Illinois: Lawrence Hill Books, 1997 [1984]. [1984], p. 141-173), o fator racial pode ter contribuído para sua insubordinação e expulsão, o que o aproxima, de certa forma, de Fanon, no sentido de que foi justamente lutando ao lado dos franceses que este percebeu a grande diferença de tratamento entre brancos e nègres.

Nesse espelho biográfico entre os dois autores, tal como o psiquiatra martinicano, Baraka articulou em suas encruzas biográficas as atividades acadêmicas/intelectuais com a militância em favor dos condenados na terra do Tio Sam: fundou, em 1965, o Black Arts Repertory Theater/School (BARTS), considerado o ponto inicial do Black Arts Movement (BAM). Foi uma figura ativa no Movimento pelos Direitos Civis dos Negros (1954-1968) e personagem central na chamada Black Revolt, ocorrida entre os anos de 1960 e 1970, estando à frente do Modern Black Convention Movement (MBCM), por meio do qual fundiu dois outros movimentos nos quais teve papel fundamental: o já citado Movimento de Artes Negras (BAM) e o Movimento Black Power (BPM) (WOODARD, 1999WOODARD, Komozi. A nation within a nation: Amiri Baraka (LeRoi Jones) & Black Power Politics. Chapel Hill/London: The University of North Carolina Press, 1999., p. 1). Por essa época, precisamente em 1967, participou da Newark Rebellion: sangrento conflito armado motivado pelas tensões raciais que fervilhavam nos quatro cantos do país. Em 1968, sob inspiração da ideologia do movimento Black Power, fundou o Committee for a Unified Newark (CFUN); e nos anos de 1970, organizou e presidiu o Congress of Afrikan People (CAP): importante centro de formação política para o Movimento de Libertação Negra dos EUA (SIMANGA, 2015SIMANGA, Michael. Amiri Baraka and the Congress of African People: history and memory. London: Palgrave Macmillan, 2015.), onde Baraka contribuiu com debates sobre negritude e questão nacional. O CAP, mais tarde, foi rebatizado de Revolutionary Communist League (RCL) cujo perfil ideológico era Marxista-Leninista-Mao Tsé-Tung. Nos anos 1980, a RCL se mesclou à League of Revolutionary Struggle (LRS), movimento marxista-leninista fundado em 1978.

De volta às comparações, lembremos que Frantz Fanon, a partir de sua vivência da realidade racial do Caribe francófono, vislumbrou no teatro uma forma de iniciar suas primeiras elaborações intelectuais, sendo estas, a priori, calcadas em dilemas humanistas não racialistas. Já Amiri Baraka, não obstante também tenha se interessado pela escrita dramática, compôs peças que comentavam sobre a segregação racial e sobre os conflitos identitários de parte da população afro-americana, trazendo elementos também de suas questões pessoais, na condição de intelectual/artista negro de vanguarda em face do racismo estadunidense27 27 Camelo (2010, p. 23) destaca que, entre as peças The Toilet (1962), Dutchman e The Slave (ambas de 1964), houve uma guinada radical do autor, passando de uma visão integracionista com os brancos a uma profunda desilusão com essa integração, dando vazão a uma visão niilista sobre a relação entre brancos e negros, resultando na ênfase da distância entre as realidades desses grupos étnicos. .

Interessante salientar que, se Fanon é tido como um “filósofo do jazz”, Baraka foi rotulado como “poeta do jazz” e, curiosamente, como “Frantz Fanon da literatura” (Harris, 2015HARRIS, William. The sweet and angry music of Amiri Baraka. Boston Review, s/p, 2015. Disponível em: http://bostonreview.net/poetry/william-j-harris-amiri-baraka-sos-poems. Acesso em: 29 jun. 2022.
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, s/p). Tal aproximação, no entanto, está relacionada não apenas à fase radical de Baraka, na qual o apelo à “violência revolucionária” surge ora diluída ora escancarada em seus escritos, mas também considerando a maneira como Fanon atentou – a partir de sua construção enquanto militante, de seu trabalho de observação do processo revolucionário na Argélia – para essa transformação política, subjetiva e ontológica do intelectual oprimido.

Nesse sentido, ao analisar as produções de Amiri Baraka, Milosavljević (2015, s/p)MILOSAVLJEVIĆ, Tatjana. “Let the world be a black poem”: Frantz Fanon in Amiri Baraka’s poetry of revolt. Americana – e-journal of American Studies in Hungary, v. XI, n. 2, s/p, 2015. ISSN: 1787-4637. Disponível em: http://americanaejournal.hu/vol11no2/milosavljevic. Acesso em: 30 ago. 2022.
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entende que sua trajetória “coincide quase que estranhamente com as três fases do ‘escritor colonial’ que Fanon propõe em Os Condenados da Terra”. Assim, mesmo que estivesse escrevendo no interior do Império, “os temas, a estética e a sensibilidade da obra de Baraka, à medida que passamos de sua fase Beat para a Transicional, Nacionalista Negra e, finalmente, Marxista, seguem de perto o caminho do desenvolvimento de um autor colonial”. Por isso mesmo, analiso que, numa espécie de relação antifônica28 28 Antifonia é o termo empregado para nomear o esquema de “chamada-resposta” encontrado em muitas tradições musicais afrodiaspóricas. O uso das antífonas nessas práticas, segundo Gilroy (2001 [1993], p. 168), competiu/compete para borrar as fronteiras entre o eu e o outro, fazendo com que “formas especiais de prazer [fossem/sejam] criadas em decorrência dos encontros e das conversas entre um eu racial fraturado, incompleto e inacabado e os outros”. Utilizo-o de maneira metafórica não apenas para enfatizar o potencial dialógico na trajetória dos autores, de seus contextos de violência colonial e racialização, mas, em uma camada mais profunda, para evidenciar também sua possível irmanação no momento de aproximação de suas experiências, suas táticas de resistência e agendas revolucionárias, com vistas para a qualificação do debate em torno da construção da ideia de negritude no Atlântico. , os caminhos de Fanon e Baraka novamente parecem se cruzar, mesmo que em seus contextos específicos de sociabilização, construção intelectual e formação política, isto é, em seus processos particulares de constituição das identidades culturais e, portanto, de seus entendimentos da negritude.

Seguindo o raciocínio de Milosavljević (2015)MILOSAVLJEVIĆ, Tatjana. “Let the world be a black poem”: Frantz Fanon in Amiri Baraka’s poetry of revolt. Americana – e-journal of American Studies in Hungary, v. XI, n. 2, s/p, 2015. ISSN: 1787-4637. Disponível em: http://americanaejournal.hu/vol11no2/milosavljevic. Acesso em: 30 ago. 2022.
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, a primeira fase barakiana se iniciou logo após sua expulsão da Força Aérea, em 1957, quando foi seduzido a recobrir seu rosto com a máscara da intelectualidade branca dos círculos de Greenwich Village, ponto de encontro do Movimento Beat e núcleo criador do que viria a ser a “contracultura”, nos anos de ١٩٦0. O hedonismo, a boemia, o jazz moderno e a arte surrealista amalgamados aos anseios de esquerda (não obstante pequeno-burgueses) dos frequentadores: eis alguns dos elementos de Greenwich Village que conquistaram um jovem Baraka deslocado e outsider. Uma vez inserido no meio beat, o escritor se aproximou de figuras como Frank O’Hara, Charles Olson, Gilbert Sorrentino, Allen Ginsberg, William Burroughs, Jack Kerouac e Diane di Prima (com quem teria um caso). Por volta de 1958, já morando em East Village, Nova Iorque, conheceu a judia Hettie Cohen, editora da revista The Record Changer29 29 Profissionalmente, esse emprego proporcionou a Jones a escuta de extenso material fonográfico, aproximando-o de várias fases do blues e do jazz. Permitiu também que tivesse contato com os jovens escritores brancos já estabelecidos no campo da crítica musical; e que, a partir desses diálogos, começasse a desenvolver seu pensamento crítico sobre a música negra (SMETHURST, 2020, p. 68). , com quem mais tarde se casaria. Nesse interim, fundou e trabalhou nos periódicos Yugen, Totem Press e The Floating Bear que o catapultaram no campo intelectual da vanguarda branca e o tornaram um dos mais influentes editores dos escritores beats (WOODARD, 1999WOODARD, Komozi. A nation within a nation: Amiri Baraka (LeRoi Jones) & Black Power Politics. Chapel Hill/London: The University of North Carolina Press, 1999., p. 52).

O primeiro divisor de águas na trajetória política-intelectual de Jones aconteceu entre 1959/1960, quando viajou para Cuba como membro do grupo ativista Fair Play for Cuba Committee (FPCC) e conheceu Fidel Castro. Pouco antes, o poeta já demonstrava sinais de ter sido afetado pela Revolução Cubana, pois editou, em homenagem à vitória do movimento que depôs o ditador Fulgêncio Batista, o pequeno panfleto Fidel Castro, January, 1, 1959, que continha poemas seus e de outros beats (WATTS, 2001WATTS, Jerry. Amiri Baraka: the politics and art of a black intellectual. New York/London: New York University Press, 2001., p. 51-52). Ao relembrar como a viagem a Cuba definitivamente mudou sua vida, Baraka (1997 [1984], p. 243)BARAKA, Amiri; BARAKA, Amina. The music: reflections on jazz and blues. New York: William Morrow & Co., 1987. relata em sua autobiografia o encontro que teve com artistas e intelectuais latino-americanos, como o escritor cubano Pablo Armando Fernández, a intelectual mexicana Rubi Betancourt, o revolucionário cubano Antonio Núñez Jiménez, e os poetas Jaime Shelly (mexicano) e Nicolás Guillén (afro-cubano), que o confrontaram acerca de sua reticente posição política (ainda restrita ao campo estético) no plano cotidiano30 30 Mais tarde, na Tanzânia, LeRoi Jones teria contato com o marxista panafricano Mohamed Babu (1924-1996), com o revolucionário Abied Karume (1905-1972) e com Julius Nyerere (1922-1999), idealizador da Ujamaa, projeto de teor socialista que visava desenvolver a economia da Tanzânia através de práticas comunitárias tradicionais. Para Woodard (1999, p. 53), esses encontros, motivados pelo “sentimento de parentesco que [Baraka] sentia com aquela geração de radicais em Cuba, África e Ásia”, foram fundamentais para a sua aproximação com a causa anti-imperialista do terceiro-mundismo. .

Nessa primeira fase, Baraka publica Preface to a Twenty Volume Suicide Note (1961), conjunto de textos em que, se valendo da linguagem experimental com toques e retoques surrealistas, apresenta conflitos subjetivos sob olhar niilista e ainda pretensamente apolítico.

Milosavljević (2015)MILOSAVLJEVIĆ, Tatjana. “Let the world be a black poem”: Frantz Fanon in Amiri Baraka’s poetry of revolt. Americana – e-journal of American Studies in Hungary, v. XI, n. 2, s/p, 2015. ISSN: 1787-4637. Disponível em: http://americanaejournal.hu/vol11no2/milosavljevic. Acesso em: 30 ago. 2022.
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entende que, nesse trabalho, Baraka trilha por uma complicada fuga da realidade, não comentando diretamente sobre a questão racial, que parece se situar nas entrelinhas dos versos. A mesma autora elabora uma boa síntese das duas primeiras fases barakianas, relacionando a complexa formação identitária do escritor, sua associação com os diagnósticos fanonianos presentes em Os condenados da terra e o lugar da música negra nessas suas experimentações estéticas, dando pistas da intersecção entre jazz, raça e nação na escrita do poeta:

(...) a fase Beat de Baraka corresponde aos pressupostos de Fanon sobre a assimilação de modelos ocidentais que são típicos dos primeiros trabalhos do escritor colonizado. Fanon elabora como essa fase imitativa, atormentada por imagens importadas e dicção artificial, dá lugar a uma crescente consciência nacional no escritor apanhado nas chamas da luta de libertação. Segundo Fanon, na segunda etapa, os ideais do escritor são abalados no fervor da guerra de descolonização, que desperta nele o desejo de mergulhar nos mitos primordiais e no folclore de seu povo. Nesta fase, o escritor tenta conjurar no presente um passado irrecuperável, idealizado, mas fica apenas com um traço derridiano. A cultura ancestral imaginada com a qual o escritor de repente se desespera para se reconectar torna sua arte “imersa em humor e alegoria, outras vezes angústia, mal-estar, morte e até náusea”, o que é aplicável ao estilo de Baraka durante sua fase de transição (1963-1965). Os poemas do segundo volume de Baraka, The Dead Lecturer, foram escritos no estado de uma subjetividade polarizada em uma época em que Baraka não mais se identificava com a cena de Greenwich Village (a fase de sua carreira que viria a lamentar e denunciar como brancura esotérica), mas ainda estava para forjar sua voz negra singular. A coleção usa a improvisação inerente ao jazz para retratar os paradoxos e complexidades insolúveis da vida de um artista negro

(MILOSAVLJEVIĆ, 2015MILOSAVLJEVIĆ, Tatjana. “Let the world be a black poem”: Frantz Fanon in Amiri Baraka’s poetry of revolt. Americana – e-journal of American Studies in Hungary, v. XI, n. 2, s/p, 2015. ISSN: 1787-4637. Disponível em: http://americanaejournal.hu/vol11no2/milosavljevic. Acesso em: 30 ago. 2022.
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, s/p, tradução minha).

Tal transição é perceptível nas suas primeiras peças com temas raciais (Dutchman e The Slave), mencionadas anteriormente, mas também nos seus poemas (An Agony. As now, Rhythm & Blues, Black Dada Nihilismus [contidos na coletânea The Dead Lecturer]; SOS, Black Art, The Racist [inseridos na antologia Black Magic: 1961-1967]), e em seus trabalhos de ficção, sobretudo contos e no romance The System of Dante’s Hell31 31 Assim escreve Woodie King Junior, produtor de peças e poemas de LeRoi, no prefácio dessa obra: “a jornada para o inferno já havia sido explorada por Milton, Virgílio e Homero, mas encontrou um novo público leitor com LeRoi Jones. Essa nova versão era tão experimental quanto a forma de jazz livre e a arte abstrata; todavia, agora, era de uma perspectiva afro-americana. O inferno ocupa espaço na cabeça de LeRoi. O inferno é onde os brancos se recusam a vê-lo. Ele é preto. Ao defender sua humanidade para os brancos, ele nunca pode se concentrar em seu próprio ‘eu’ negro” (KING JUNIOR, 2016, p. 09). Isto lembra a reflexão em Pele negra, máscaras brancas sobre a (des)construção identitária do colonizado/negro diante do colonizador/branco: produto da obstrução no processo dialético de subjetivação do negro, impedindo-o de “descer ao verdadeiro inferno” (FAUSTINO, 2022, p. 62). Mas, diferente de Fanon, que flertou com a linguagem do bebop em suas peças – cujas imagens poéticas, aliás, buscavam aparentemente suplantar o horizonte dantesco que acomete aquelas existências (pre)fixadas pela raça (FAUSTINO; GAYÃO, 2023) –, a incorporação do caos e da imprevisibilidade do free jazz por Jones serve não para puxar seus personagens do inferno racial, mas para empurrá-los contra essa realidade inescapável. , por exemplo.

O assassinato de Malcolm X, em 1965, foi o segundo e mais violento divisor de águas na trajetória de LeRoi Jones. Se, antes dessa tragédia, as noções de autodeterminação, orgulho, consciência e nacionalismo negros pregadas por Malcolm já afetavam um Jones cada vez mais politizado, depois dessa fatalidade, ele tomaria rumos mais radicais. Em busca da revolução negra, LeRoi decidiu, então, romper seu casamento com Hettie Cohen, sair de Greenwich Village, se mudar para o Harlem e depois retornar à Newark, onde se casou com a dançarina e atriz afro-americana Sylvia Robinson32 32 Sylvia Robinson (1942-) também era cantora e poetisa, possuía uma relação longeva com o blues e com o jazz, ajudando a fundar, em 1963, a Jazz Arts Society em Newark, juntamente de músicos negros como o baixista Art Williams e o baterista Edd Gladden. Além disso, Sylvia (mais tarde, Amina Baraka), “criou, encenou e atuou em dramas dançantes de jazz, antecipando tanto o estilo de performance mais maduro, multimídia e multigenérico de Amiri quanto os ‘coreopoemas’ de Ntozake Shang>e” (SMETHURST, 2020, p. 46), chegando a aproximar Baraka dos músicos de Newark, e mais propriamente do campo musical. Observo que tal aproximação seria fundamental para a articulação de Baraka como compositor e performer, alinhando sua poética às improvisações livres de bandas de jazz militantes como o New York Quartet (ver a música Black Dada Nihilismus, 1967) e dos engajados Da>vid Murray e Steve McCall (New Music – New Poetry, 1982). Gravou ainda Black & Beautiful, Soul & Madness, (AMIRI BARAKA & THE SPIRIT HOUSE MOVERS, Jihad, 1968), com a participação dos músicos Yusef Iman, Bobby e Russell Lyle, e It’s nation time: african visionary music (1972), pelo selo ativista Black Forum, no qual mistura a poesia falada com o ritmo do jazz funk, contando com os músicos Lonnie Smith, Gary Bartz, James Mtume, Gwendolyn Guthrie, Reggie Workman e Idris Muhammed. Segundo Ribeiro Júnior (2020), essas empreitadas de Baraka podem ter sido formas de intervir mais fortemente no campo da produção musical, vislumbrando nos discos, enquanto produtos da indústria cultural, uma maneira de amplificar suas mensagens estético-políticas acerca da negritude. . Nesse momento, foi rebatizado como LeRoi Jones Ameer Barakat (“Príncipe Abençoado”, em árabe) por Hajj Heesham Jaaber, padre islâmico encarregado do enterro de Malcolm X. Sua esposa, Sylvia, se tornou Amina. Pouco depois, por influência do líder nacionalista cultural Maulana Karenga, o nome do poeta foi novamente mudado, assumindo uma forma africanizada (suaíli), contando ainda com um título distintivo (Imamu) que significava “líder espiritual”. Assim nasceu Imamu Amiri Baraka (BARAKA, 1997BARAKA, Amiri. The autobiography of Leroi Jones. Chicago: Illinois: Lawrence Hill Books, 1997 [1984]. [1984], p. 376).

Nessa fase, que duraria até mais ou menos 1974, Baraka fundou a organização Spirit House (onde começaram as atividades do movimento Spirit House Movers & Players) e passou a se envolver fortemente com as doutrinas da Nação do Islã33 33 Esse envolvimento com o islã se refletiu no disco A Black Mass, registro com forte influência do free jazz, gravado em 1968 pelo selo de Baraka (Jihad Productions), contando com a participação da Mith-Science Arkestra liderada pelo músico afrofuturista Sun Ra. A ideia do disco adveio de uma peça de Baraka apresentada em 1966, ou seja, no início de sua relação com o nacionalismo negro e de seu envolvimento com o BAM. Basicamente, a peça contava a história de Yakub – mito idealizado por Wallace Fard Muhammad, fundador da Nação, depois desenvolvido por Ellijah Muhammad e repassado a Baraka através de Malcolm X. Grosso modo, a narrativa conta a história do nascimento dos brancos pelas mãos de Yakub, cientista louco de Meca que por meio de métodos eugênicos teria criado, a partir dos negros, uma nova raça. Este novo ser possuiria a chamada “tricknology”: uma tendência à trapaça, à mentira e ao despotismo – qualidades que se voltariam contra os negros, sendo mais tarde escravizados por essa nova criatura. Trata-se da última referência de Baraka à doutrina do Islã, pois logo rompeu laços com a Nação. O islamismo, aliás, foi bastante influente no meio do jazz, sobretudo em sua fase de modernização, havendo muitos músicos que aderiram à religião como ato político. Tal como Jones/Baraka, muitos deles assumiram novos nomes, a exemplo de Lynn Hope (Al Hajji Abdullah Rasheed Ahmed), alcunhado de “O Marajá do Saxofone”, Dakota Staton (Aliya Rabia), Art Blakey (Abdullah Ibn Buhain), Fritz Jones (Ahmad Jamal), William Emanuel Huddleston (Yusef Lateef), entre muitos outros. e de Karenga, participando de grupos afrocêntricos/panafricanistas como a Kawaida – um prolongamento da US Organization, que foi cofundada por Karenga e era adversária dos Panteras Negras. Nesse interim, Baraka se tornou coeditor da antologia Black Fire (1968), que reuniu autores cujos textos possuíam uma estética mais marcadamente ligada ao movimento Black Power. Publicou ainda o livro It’s nation time (1970), coletânea com poemas fortemente nacionalistas. Milosavljević (2015, s/p)MILOSAVLJEVIĆ, Tatjana. “Let the world be a black poem”: Frantz Fanon in Amiri Baraka’s poetry of revolt. Americana – e-journal of American Studies in Hungary, v. XI, n. 2, s/p, 2015. ISSN: 1787-4637. Disponível em: http://americanaejournal.hu/vol11no2/milosavljevic. Acesso em: 30 ago. 2022.
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compreende esse momento na obra barakiana como um “estágio de combate”, sobre o qual Frantz Fanon dissertou em Os condenados da terra.

Mais adiante, analisando o momento em que Baraka se aproximou do marxismo, Milosavljević (2015, s/p, tradução minha)MILOSAVLJEVIĆ, Tatjana. “Let the world be a black poem”: Frantz Fanon in Amiri Baraka’s poetry of revolt. Americana – e-journal of American Studies in Hungary, v. XI, n. 2, s/p, 2015. ISSN: 1787-4637. Disponível em: http://americanaejournal.hu/vol11no2/milosavljevic. Acesso em: 30 ago. 2022.
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sugere:

A nova mudança ideológica de Baraka em direção ao marxismo fanonista é novamente profetizada em The Wretched of the Earth, em que Fanon observa: “O intelectual colonizado, mergulhado na cultura ocidental e determinado a provar a existência de sua própria cultura, nunca o faz em nome de Angola ou do Daomé. A cultura proclamada é a cultura africana”. A declaração reflete o conceito de Pan-africanismo, ou seja, a ideia de que todos os afrodescendentes constituem uma única nação com base na cultura compartilhada. Este é o tropo central do poema de Baraka “Afrikan Revolution”, escrito em 1973, no qual Baraka se dirige a “Anywhere Afrikans” para se unir na derrubada das forças opressoras brancas e capitalistas.

Dessa forma, nesse breve balanço biográfico, é importante ter em conta que, embora Baraka tenha aderido ao marxismo-leninismo, sua formação política foi bem diversificada, incluindo a forte influência das ideias socialistas de Dubois, o nacionalismo negro radical pregado por Malcolm X, o nacionalismo mais culturalista de Ron Karenga, o maoísmo, o castrismo, afora a influência de personagens africanos que se envolveram nas lutas de libertação naquele continente e que desenvolveram diagnósticos distintos (por vezes divergentes) em termos de agenda política e escopo ideológico. Nesse rol, estão Julius Nyerere, Kwame Nkrumah, Patrice Lumumba, Sekou Touré, Aimé Césaire, Amílcar Cabral, e o próprio Frantz Fanon34 34 Fanon, aliás, é um nome razoavelmente citado na autobiografia de Baraka (1997 [1984]). Em vários momentos, o escritor invoca o pensamento fanoniano para criticar os rumos do nacionalismo cultural no movimento negro estadunidense, sobretudo iniciativas como as de Ron Karenga. Baraka informa que a Kawaida e a US Organization não possuía>m uma agenda política clara, uma vez que seu líder, Karenga, misturava vários pensadores negros, de forma descontextualizada e fragmentada. Baraka confessa que, a princípio, o tema da “revolução cultural”, pregado por esses movimentos, o conquistou por ser um artista, e que, por isso, em sua visão, possuíam algum mérito. Entretanto, passado o momento inicial de encantamento, e uma vez aderido ao marxismo-leninismo, Baraka (1997 [1984], p. 357-359) passou a criticar o idealismo e o essencialismo advogados por esses grupos, que desconsideravam a luta de classes e recaíam num frágil culturalismo. . Nessa lista de influências, cabem ainda alguns escritores afro-americanos engajados, como a poetisa Jayne Cortez e o poeta militante Askia Muhammad Touré, aliado do Revolutionary Action Movement (RAM), atuante nos anos 1960 (WOODARD, 1999WOODARD, Komozi. A nation within a nation: Amiri Baraka (LeRoi Jones) & Black Power Politics. Chapel Hill/London: The University of North Carolina Press, 1999., p. 12; BARAKA, 1997BARAKA, Amiri. The autobiography of Leroi Jones. Chicago: Illinois: Lawrence Hill Books, 1997 [1984]. [1984]).

Como tentarei demonstrar no próximo tópico, essa colcha de retalhos ideológica, responsável por confeccionar a concepção mutante de Amiri Baraka acerca da negritude, atravessou os seus raciocínios críticos e sociológicos sobre a Black Music.

Toques negros, escrita branca: Amiri Baraka, free jazz e nacionalismo negro

Concordo com Ribeiro Júnior (2020)RIBEIRO JÚNIOR, Antonio Carlos Araújo. Black music e consciência negra: a influência de Amiri Baraka no pensamento crítico sobre o jazz. Apresentação no IX MUSICOM, set. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2X3Nh1IoaxU. Acesso em: 29 ago. 2022.
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sobre a urgência de entender o trabalho de LeRoi Jones/Amiri Baraka no campo da crítica musical (e no campo da teoria crítica) como fundamental para a historiografia da Black Music. Não que inexistissem críticos negros escrevendo sobre jazz à época, mas, segundo o próprio Baraka (1997 [1984], p. 206)BARAKA, Amiri. The autobiography of Leroi Jones. Chicago: Illinois: Lawrence Hill Books, 1997 [1984]., eram poucos, o que repercutia na bibliografia sobre o tema, que, desde pelo menos o final do século XIX, ainda contava em grande parte com a visão dos escritores brancos35 35 Para se informar mais a respeito, cf. FLOYD JUNIOR, Samuel. Books on black music by black authors: a bibliography. The Black Perspective in Music, v. 14, n. 3, p. 215-232, 1986. . O autor denunciou esse estado de coisas em um texto intitulado “Jazz and the white critics”, publicado na Metronome em 1963. Nele, LeRoi Jones alertava: “a maioria dos críticos de jazz tem sido americanos brancos, enquanto os músicos mais importantes, não” (JONES, 2016JONES, Leroi. Black Music. Trad. Patricio Orellana. Buenos Aires: Caja Negra, 2016 [1968]. [1968], p. 14). Segundo Jones, devido a isso, eram propagadas opiniões que desconsideravam a formação sociocultural da comunidade negra à qual os músicos pertenciam, resultando em leituras sobre o jazz imbuídas, muitas vezes, de concepções racistas, condescendentes e equivocadas36 36 Tais comentários parecem revelar os primeiros acenos de Baraka ao marxismo, ainda que timidamente, pois soam como críticas à posição dos brancos na superestrutura social: local privilegiado onde podem construir, administrar, determinar e impor os símbolos que devem circular na sociedade através dos aparelhos ideológicos. .

A propósito, foi justamente em 1963 que LeRoi Jones publicou Blues people: Negro37 37 O uso da palavra “negro” no título original, nesse sentido, faz referência à maneira como até os anos de 1960 eram caracterizadas tanto as pessoas pretas dos Estados Unidos (nesse caso, com “n” maiúsculo) quanto seus antepassados escravizados (com “n” minúsculo). music in white America, livro fundamental na historiografia do jazz, tendo sido talvez o primeiro livro sobre o jazz de cunho sociológico escrito por um afro-americano. Isso porque, nessa obra, o autor trabalha fundamentalmente com a proposta de compreender a relação dialética entre o desenvolvimento da música negra e a formação da cultura norte-americana. Ou, em outras palavras, a história dos afro-americanos e de seu lugar na composição nacional através da evolução de suas invenções musicais. Enquanto Fanon vislumbrou algo negativo no blues por conta da apropriação da burguesia branca, nesse livro (curiosamente traduzido para o português como O jazz e sua influência na cultura americana38 38 Publicado em 1967 pela Editora Record. Desde então, ainda não foi reeditado no Brasil. ), Jones entende que “o blues teve, e tem ainda, um certo peso nas almas de seus inventores”, pois essa forma musical, em sua visão, seria uma representação privilegiada de como se deu o “começo dos negros americanos (JONES, 1967JONES, Leroi. O jazz e sua influência na cultura americana. Trad. Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro: Editora Record, 1967 [1963]. [1963], p. 8 e 10). O blues não seria algo para se ter vergonha – sentimento que, segundo o autor, era mais comumente expressado por alguns negros da classe média desejosos pela aceitação branca (1967 [1963], p. 181). Nessa perspectiva, o jazz, especialmente em seus primórdios, é entendido como símbolo de uma fase de “alargamento da cultura afro-americana”, como expressão de um “terreno [sociocultural] intermediário”, símbolo de uma possível resolução do “conflito liberto-cidadão” (1967 [1963], p. 147), posto que sua criação se deu justamente pela aproximação – motivada, aliás, pela fronteira racial imposta pelos brancos – dos músicos creoles (fração assimilada, versada na tradição musical europeia) com os músicos negros; estes, por sua vez, habituados a diluir os dados europeus a partir da tradição musical africana. No princípio, o jazz seria, portanto, produto da tensa relação entre a(s) pele(s) negra(s) e as máscaras brancas no sul dos EUA.

Nessa lógica, situando as canções dos negros como produto de uma experiência social específica, que diz respeito ao processo de formação da identidade afro-americana – sobretudo a partir da Emancipação39 39 O trato com a Emancipação (no livro, momento decisivo na relação/luta de classes nos EUA) aparece sustentada muitas vezes pelas considerações jurídicas e econômicas de E. F. Frazier, por meio das quais Jones (1967 [1963], p. 61-62), por um lado, critica o resultado insatisfatório das promessas de cidadania feitas aos negros por parte da classe dominante branca, e por outro, aponta que por causa desse vácuo de direitos (aliás, jogada estratégica da burguesia para ludibriar os brancos pobres, fazendo-os crer que eram “iguais” pela semelhança racial), os negros, sobretudo sua fração letrada, optaram por emular os valores dos brancos, ainda que estivessem segregados. , seguida da Reconstrução do país (1865-1877) –, Jones se fundamenta principalmente no pensamento do antropólogo Melville Herskovits, estudioso da diáspora africana na América do Norte, para argumentar que a própria construção das bases culturais americanas foi devedora, em grande medida, dos agenciamentos dos escravizados e de seus descendentes, mas, sobretudo, de um longo (e tenso) movimento de deglutição, adaptação e reinterpretação de sua cultura dentro do mainstream cultural euro-americano40 40 Entendo que a forma como Jones pensou e estruturou as seções desse livro pode ilustrar bem sua proposta: 1. O Negro como Não-Americano: Alguns Antecedentes. 2. O Negro como Propriedade. 3. Escravos Africanos – Escravos Americanos e sua Música. 4. A Música e a Religião Afro-Cristãs. 5. Escravo e Pós-Escravo. 6 O Blues Primitivo e o Jazz Primitivo. 7. O Blues Clássico. 8. A Cidade. 9. Entrada da Classe Média. 10. Swing – De Verbo a Substantivo. 11. A Continuidade do Blues e 12. O Cenário Moderno. . Para tanto, LeRoi se vale de vários flagrantes na história dos primórdios da Black Music – em termos de linguagem poética e musical41 41 A análise das letras dessas canções de trabalho e das várias formas de blues (do rural ao clássico/urbano), além da utilização de narrativas de viajantes, trechos de jornais (fontes primárias) e levantamentos de alguns folcloristas, transparecem a influência de Sterling Brown na escrita dessa obra. , mas, sobretudo, no que chama de “atitude”, “postura” por parte desses sujeitos –, a fim de distinguir a experiência das gerações dos negros na América. Contudo, ressoando a influência do pensamento de W. E. B. Du Bois (MONSON, 2004MONSON, Ingrid. Blues People: Amiri Baraka as a social theorist. In: WOODARD, KOMOZI; Lawrence, Sarah (org.). Blues people: 40 years later, a symposium. Bronxville, New York, 2004.), localizável, principalmente, em As almas do povo negro (2021 [1903]), Jones não descarta o contributo da cultura africana para a construção das bases dessa cultura afro-americana.

Apesar da tentativa de desmistificar o “primitivismo” desse legado africano, Jones (1967 [1963])JONES, Leroi. O jazz e sua influência na cultura americana. Trad. Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro: Editora Record, 1967 [1963]. não fala de uma negritude essencializada, nos termos de uma racialidade metafísica. Em vez disso, discorre sobre uma Weltanschauung sociocultural ou sócio-histórica circunscrita à comunidade negra enquanto grupo étnico, sem deixar de sublinhar no texto os interesses por vezes divergentes de uma classe negra pobre em relação a uma classe média negra – esta última, aliás, sutilmente criticada por seus objetivos de integração social pela via da assimilação dos padrões culturais brancos. Neste ponto, observo os ecos políticos do Movimento dos Direitos Civis e do pensamento de Malcolm X, mas também a própria experiência conflitante de LeRoi Jones no seio das instituições da classe média negra42 42 Tensões que, como o próprio autor destaca, eram encontráveis também no “som deliberadamente áspero e anti-assimilacionista do bebop”, cuja rebelião social, longe de ser acidental, era produto de investidas conscientes dos beboppers de retirar a música negra “do perigo de ser diluída pela corrente principal [da cultura americana/branca média], ou mesmo de ser compreendida por ela”, motivo pelo qual optaram por restabelecer “o blues como a mais importante das formas afro-americanas na música negra”, valendo-se de um “reenunciado surpreendentemente contemporâneo do impulso básico do blues” (JONES, 1967 [1963], p. 186 e 198). .

Ainda em relação à influência de Malcolm X no texto, a citação à Guerra da Coreia (1950-1953) como divisor de águas nas tensões raciais nos EUA (JONES, 1967JONES, Leroi. O jazz e sua influência na cultura americana. Trad. Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro: Editora Record, 1967 [1963]. [1963], p. 217) aponta para novas aproximações com a trajetória de Fanon: primeiro, pelo fato de o pensador martinicano também demarcar o início de um conflito bélico (a Segunda Guerra, em 1939) como ponto de mudança nas relações raciais nas Antilhas, fenômeno que desempenhou papel central em sua reinterpretação da négritude e do jazz, visto como um dos símbolos dessa identidade. Segundo, porque, como se atestaria, mais tarde, à medida que Baraka se aproximou do nacionalismo negro e do marxismo-leninismo, tanto mais ele se mostrou alinhado às propostas revolucionárias da Conferência de Bandung43 43 Evento ocorrido entre 18 e 24 de abril de 1955, em Bandung (Indonésia). Tratou-se de uma “reunião de 23 países asiáticos e seis africanos”, em que “o Terceiro Mundo, o colonialismo, o imperialismo e as independências nacionais foram os temas que se destacaram durante a conferência, influenciando importantes pensadores do pós-guerra, entre eles Frantz Fanon” (FAUSTINO, 2015, p. 39). – bastante citada por Malcolm X como exemplo de solidariedade entre africanos e asiáticos contra o imperialismo ocidental (WOODARD, 1999WOODARD, Komozi. A nation within a nation: Amiri Baraka (LeRoi Jones) & Black Power Politics. Chapel Hill/London: The University of North Carolina Press, 1999., p. 60), reconhecidamente influente no pensamento de Frantz Fanon.

Esse ponto da fase radical de Baraka, em que as referências às revoluções socialistas e as lutas de libertação em África/Ásia surgem com mais frequência em seus escritos, coincide com o período de radicalização de vários músicos de jazz, que, entre os anos de 1960 e 1970, vislumbraram na improvisação livre do free jazz uma maneira de se rebelar de maneira ainda mais extrema (se comparado às escolas jazzísticas antecedentes) contra os sistemas musicais ocidentais, almejando experimentar padrões rítmicos, melódicos e harmônicos insubmissos às estruturas formais convencionais44 44 Berendt e Huesmann (2014, p. 46) listam algumas dessas novidades: “1. O ingresso no espaço livre de uma tonalidade expandida que, inicialmente, suscitou a impressão de ‘atonalidade’. 2. Uma nova concepção rítmica que se caracteriza pela dissolução do metro, do beat e da simetria. 3. A adesão à música do mundo [World Music], numa abertura súbita a todas as grandes culturas musicais, como Índia, África, Japão e os países árabes. 4. Uma ênfase no quesito intensidade como nunca se vira nos estilos de jazz do passado. O jazz sempre foi uma música que, em termos de intensidade, esteve além das outras formas musicais do Ocidente, mas nunca na história do jazz a intensidade foi buscada com um sentido tão catártico e orgíaco – em alguns casos também religioso – como no free jazz (...)”. , continuando, assim, em plena consonância com o refrão político dos gritos de liberdade do Movimento dos Direitos Civis (MONSON, 2007MONSON, Ingrid. Freedom sounds: civil rights call out to jazz and Africa. New York: Oxford University Press, 2007.; PINHEIRO, 2015PINHEIRO, Ricardo Nuno Futre. Playing out loud: jazz music and social protest. Journal of Music and Dance, v. 5, n. 1, p. 1-5, March 2015. Disponível em: https://academicjournals.org/journal/JMD/article-abstract/5AEAC5251488. Acesso em: 14 jan. 2014. DOI: 10.5897/JMD2014.0030
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). Alguns músicos representativos foram Cecil Taylor, Archie Shepp, Sunny Murray, Alice Coltrane, Barbara Donald, Albert Ayler, Milford Graves, Roswell Rudd, John Tchicai e o próprio Ornette Coleman.

Esse é o tema de Black Music (2016 [1968]), conjunto de ensaios escrito entre 1959 e 1967 no qual Baraka enfoca no fenômeno do jazz moderno, mais enfaticamente no que chama de “New Thing”, “New Black Music”, “jazz avant garde” (jazz de vanguarda) ou “free jazz45 45 Inclusive, Baskerville (1994, p. 485-487) destaca que o uso da palavra “jazz” gerou dissonâncias no meio musical da época (1960-1970), sendo lida por uns como expressão criada por brancos, numa crítica similar ao termo “negro” e ao uso dos nomes de batismo – vistos como heranças dos senhores de escravo. Tal postura lembra um pouco as críticas de Frantz Fanon aos vícios coloniais presentes no blues e no jazz de Nova Orleães. Contudo, nem todos os músicos aderiram a essa posição, preferindo muito mais se apropriar da palavra “jazz” e modificar seu sentido. Esse também parece ter sido o caso de Amiri Baraka, que preferiu fazer uso de todos esses termos. . Nesses textos (muitos deles escritos a partir da observação in loco das apresentações musicais em clubes como o Five Spot, em Nova Iorque46 46 Alguns desses ensaios foram publicados na seção “Apple Cores”, coluna que Baraka manteve regularmente na revista Downbeat nos anos 60. Nesses textos, o autor afirma que, nas jam sessions do Five Spot, ensaiava-se o som da chamada “nova onda”, representada por músicos como John Coltrane e Thelonious Monk (já na fase pós-Miles Davis). Tais figuras são invocadas por Baraka como “as fontes da inundação que traz o novo, como disse Mao [Tsé-Tung] sobre a Revolução (...)”. Ou seja, simbolizavam uma profunda transformação musical conectada ao “espírito mundial” da época – a eventos que consumavam o que chama de “revolução real”: o Boicote aos Ônibus de Montgomery (1955-1956), a marcha de Fidel Castro sobre Havana (1959), a aparição midiática de Malcolm X, o movimento estudantil em Greensboro, Carolina do Norte, entre outros episódios que afetavam o público, os músicos e sua forma de tocar/compor (JONES, 2016 [1968], p. 10). ), Jones/Baraka (2016 [1968], p. 19-21) sustenta a mesma premissa da “atitude” nas performances dos instrumentistas, nas quais enxerga uma filosofia social: um conteúdo correspondente à experiência coletiva e ao universo subjetivo dos músicos – aspectos que, segundo ele, eram negligenciados tanto pela crítica musicológica quanto pelas análises excessivamente sociológicas. Insuficiência, ainda segundo o autor, reprodutora de uma visão muitas vezes branqueada dessas práticas musicais. “Branqueadas” não por serem escritas por pessoas brancas, mas por serem brancos despreocupados com o valor e o conteúdo intrínsecos em cada performance47 47 Ilustra e sintetiza bem essa premissa o seguinte comentário: “a incapacidade [da crítica] de entender, por exemplo, que Paul Desmond e John Coltrane representam, não apenas duas formas muito diferentes de ver o mundo, está na origem da maioria dos equívocos que são estabelecidos diariamente, impingidos como comentário inteligente, sobre o jazz ou a crítica do jazz. Os catalisadores e a necessidade da música de Coltrane devem ser entendidos como existem, antes mesmo de serem expressos como música. A música é fruto da atitude, da postura. Assim como os negros fizeram o blues, e não outra gente, por causa da maneira peculiar do Negro ver o mundo” (JONES, 2023 [1968], p. 36-37). Ou seja, há aqui uma relação universal x particular específica. . Com exceção daquelas feitas por alguns historiadores (JONES, 2023JONES, Leroi. Black Music: free jazz e consciência negra (1959-1967). Trad. André Capilé. São Paulo: Sobinfluência Edições, 2023 [1968]. [1968], p. 36), essas críticas seriam reducionistas, desrespeitosas e, claro, ideologicamente orientadas. Tanto que nesse contexto de radicalização do jazz, houve, por um lado, ataques violentos por parte da crítica tradicionalista, que rotulava essas novas produções de “anti-jazz”, “música sem sentido”; e por outro, não menos reacionária, uma fração desses analistas que tentava desqualificar o conteúdo político das performances e composições, julgando-as sob o critério de um idealismo abstrato burguês (CARLES; COMOLLI, 2016CARLES, Phillipe. COMOLLI, Jean-Louis. Free jazz, black power. Jackson: University Press of Mississippi, 2016 [1971]. [1971]). Em resposta a essa crítica, Jones/Baraka enfatizava tanto as qualidades emocionais quanto a consciência social e racial nas atitudes desses músicos:

(...) em relação à sua postura social, a música é finalmente a manifestação mais forte dos músicos. E a New Black Music, como diziam antes ao falar da música negra, é ‘radical’ (...). Posto que a nova música começa por ser livre. Livre da canção popular. Livre do coquetel americano branco. Quer se libertar da camisa de força da expressão americana sem negritude, quer se libertar de seu temperamento e de suas escalas

(JONES, 2016JONES, Leroi. Black Music. Trad. Patricio Orellana. Buenos Aires: Caja Negra, 2016 [1968]. [1968], p. 203, tradução minha)48 48 Nesse trecho, entre outros músicos, Jones cita Archie Shepp e Max Roach, que faziam comentários políticos sobre a libertação negra nos EUA, mas também em favor do socialismo, panafricanismo, nacionalismo negro e anticolonialismo. Alguns discos simbólicos foram: We Insist – Freedom Now Suite (que conta com a participação fundamental da cantora e ativista Abbey Lincoln), It’s Time e Force (MAX ROACH, 1961; 1962; 1976); Poem for Malcolm, Attica Blues e U-jaama – Unité (ARCHIE SHEPP, 1969; 1972; 1975), entre outros. O historiador Eric Hobsbawm (2016 [1998], p. 484-485) comenta sobre essa radicalização, concluindo que “o jazz de vanguarda dos anos 1960 era consciente e politicamente negro, como nenhuma outra geração de músicos de jazz havia sido antes (...). Como Whitney Balliet disse nos anos 1970: ‘O free-jazz é realmente o jazz mais negro que há’. Politicamente negro e radical. Assim, o LP Charlie Haden: Liberation Music Orchestra (1969) continha quatro canções da Guerra Civil Espanhola, inspirando-se nas manifestações de 1968 da Convenção Democrática de Chicago; uma homenagem a Che Guevara, e uma versão de ‘We Shall Overcome’. Archie Shepp (sax soprano e tenor), uma das maiores figuras da vanguarda, criou uma homenagem musical a Malcolm X e também ‘Attica Blues’, inspirado no famoso levante da prisão negra. A conscientização política continuou a manter uma ligação entre a vanguarda e a massa de negros norte-americanos e suas tradições, gerando, portanto, a possibilidade de retorno à corrente principal do jazz (...)”. .

Já na fase marxista, ao comentar sobre “a música mais intelectualmente pretensiosa do período”, citando nomes como Sun Ra, Eric Dolphy e Pharoah Sanders, Baraka adicionou o fator luta de classes em sua apreciação, sustentando que o clamor/protesto desses músicos

era reiteradamente, em diferentes graus, sobre Liberdade. Música Livre (exemplo: Freedom Now, Freedom Suite, Free Jazz etc., ou que tal Let Freedom Swing?)! Destruam a prisão da forma comercial da música, afastem-se dos intermináveis acordes mortais. Os gritos, as lamentações – os sérios confrontos sobre contratos, cartões de cabaré, controle artístico, economia, produção, a política da música49 49 Jones se refere aos movimentos e táticas políticas dos músicos de jazz, mais fortemente a partir de seu vínculo com o Movimento Black Power. Enquanto alguns músicos decidiram encontrar espaços onde podiam tocar e oferecer debates sobre segregação racial, a relação entre o jazz e a política, as questões do mercado (a exemplo do que aconteceu nos quatro dias do festival The October Revolution in Jazz [homenagem à Revolução Bolchevique de 1917], realizado em outubro de 1964, nas dependências do Cellar Café, em Nova Iorque), outros, cansados da exploração nos clubes noturnos e da falta de acesso da população negra de baixa renda, começaram a boicotar esses ambientes, optando por tocar em seus próprios apartamentos, no que ficou conhecido como “loft jazz movement”. Houve também aqueles que decidiram criar suas próprias cooperativas, na tentativa de mudar essa situação. Algumas delas foram a Jazz Composers Guild (JCG), a Chicago’s Association for the Advancement of Creative Musicians (CAACM) e a Detroit Artists’ Workshop (DAW) (BASKERVILLE, 1994, p. 489-490). Acrescentaria ainda aqueles coletivos que foram mais efêmeros como o Black Artists for Community Action (BACA), encabeçado pelo saxofonista Archie Shepp, e o Jazz and People’s Movement (JPM), liderado pelo multi-instrumentista Rahsaan Roland Kirk. – foram reflexos do período e finalmente reflexo do povo que a música expressava (como um núcleo, bem como parte de uma América maior... por exemplo, o Movimento de Libertação Negra, as rebeliões). A luta negra move a sociedade dos EUA como um todo e a reflete. Além de ser a expressão específica do negro, é também uma expressão de classe, pois a maior parte dos negros é trabalhadora e a sua música expressava essa consciência de classe

(1987, p. 283, tradução minha).

Importante frisar que os escritos musicais de Baraka não se limitaram ao território estadunidense, chegando a aportar em terras argelinas através da revista Révolution Africaine, entre fins de 1950 e início de 1960 (BARAKA, 1997BARAKA, Amiri. The autobiography of Leroi Jones. Chicago: Illinois: Lawrence Hill Books, 1997 [1984]. [1984], p. 270). O periódico foi patrocinado por Ben Bella, fundador da FLN (Frente de Libertação Nacional) e chefe do ELN (Exército de Libertação Nacional), e foi dirigido por Mohammed Harbi, membro da FLN, colega de trabalho e de militância de Fanon no jornal El Moudjahid.

Tentador imaginar que, pela circulação da revista e pela proximidade de Frantz Fanon com Ben Bella e Harbi, o psiquiatra revolucionário possa ter tido, em algum momento, contato com esse periódico e, por consequência, com os textos de Baraka. O que, afinal, teria pensado Fanon ao se deparar com a mistura de marxismo-fanonista e nacionalismo cultural nos textos sobre jazz de um escritor afro-americano que também confrontava os estereótipos racistas, os purismos e reacionarismos de certa crítica, sem, no entanto, deixar de enfatizar o caráter étnico enquanto símbolo de um lugar social e condição cultural específicos?

Ainda que não haja indícios concretos de que Fanon tenha tido contato com os textos de Baraka, considerando que o filósofo deixou pistas de que acompanhava a produção crítica sobre o jazz, é possível supor que, em contraposição aos “especialistas brancos” que criticou em Os condenados da terra, soubesse também de vozes dissonantes nessa arena de batalha, entre as quais estava Jones/Baraka. Desse modo, arrisco sustentar que nesse “encontro ideológico” (MILOSAVLJEVIĆ, 2015MILOSAVLJEVIĆ, Tatjana. “Let the world be a black poem”: Frantz Fanon in Amiri Baraka’s poetry of revolt. Americana – e-journal of American Studies in Hungary, v. XI, n. 2, s/p, 2015. ISSN: 1787-4637. Disponível em: http://americanaejournal.hu/vol11no2/milosavljevic. Acesso em: 30 ago. 2022.
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), Fanon e Baraka estabeleceram um diálogo transatlântico cujo efeito destoante (possível graças à tensão entre suas ideias) apenas confirma o diagnóstico revolucionário fanoniano que, por um lado, buscava reconquistar a humanidade pelo confronto; e, por outro, estimulava o movimento para dentro e para fora da modernidade; para dentro e para fora das fronteiras identitárias: rumo à desestabilização contracultural e à solidariedade das lutas anticoloniais que constituíram (e constituem) o chamado Atlântico Negro. Algo que o próprio Frantz Fanon notou na ação dos músicos africanos e da diáspora:

Os cantores da negritude não hesitariam em transcender os limites do continente. Da América, vozes negras retomarão esse hino com uma amplitude aumentada. O “mundo negro” nascerá e Busia de Gana, Birago Diop de Senegal, Hampaté Ba do Sudão, Saint-Clair Drake de Chicago não hesitarão em afirmar a existência de laços comuns, de linhas de força idênticas

(FANON, 1961FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. Serafim Ferreira. Lisboa: Editora Ulisseia, 1961., p. 221).

Desse modo, como jazzistas dotados de gramáticas improvisacionais próprias, Amiri Baraka e Frantz Fanon “jammificam” (jamming) sobre as determinações e indeterminações da negritude: suas interrupções, possibilidades e, sobretudo, disrupções. E assim, do balançante desafio-diálogo travado, ao mesmo tempo, entre eles e outros condenados de terras alhures, gera-se o drible, o revide, a trama que finalmente implodirá a ordem branca do mundo.

Colisões finais: divergências e convergências entre Frantz Fanon e Amiri Baraka

Para Koselleck (1992, p. 137)KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Trad. Manoel Luís Salgado Guimarães. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 05, n. 10, p. 134-146, 1992., “todo conceito está imbricado em um emaranhado de perguntas e respostas, textos/contextos”. Tal ocorre em torno da trajetória conceitual de “negritude”. Suas variações, sempre interessadas, podem ser exemplificadas, como procurei demonstrar, a partir do cruzamento das exposições de Fanon e Baraka sobre a música afro-americana.

Ora, enquanto Frantz Fanon avistou nas bases estéticas do jazz moderno uma via de escape da visão essencializada de negritude (sem negar a importância da identidade étnica, vale dizer), significando, para ele, uma referência cultural potente no processo de descolonização da África e, sobretudo, para os dias correntes de uma Argélia revolucionária (LANE, 2012LANE, Jeremy. Leaving the South: Frantz Fanon, modern jazz and the rejection of négritude. In: MUNRO, Martin; BRITON, Celia (ed.). American creoles: the francophone Caribbean and the American South. Liverpool University Press, 2012, p. 129-146. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80.12?seq=9. Acesso em: 23 jun. 2023. Doi: https://chooser.crossref.org/?doi=10.2307%2Fj.ctt5vjd80.12.
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), Amiri Baraka, principalmente em suas fases radicais (nacionalista e marxista), confrontou as interpretações racistas e reacionárias sobre a produção musical afro-americana, chamando atenção para a especificidade da experiência social negra expressa na música, bem como o teor revolucionário das escolas modernas de jazz (RIBEIRO JÚNIOR, 2020RIBEIRO JÚNIOR, Antonio Carlos Araújo. Black music e consciência negra: a influência de Amiri Baraka no pensamento crítico sobre o jazz. Apresentação no IX MUSICOM, set. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2X3Nh1IoaxU. Acesso em: 29 ago. 2022.
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). Assim aproximados, é possível contemplar, através dos sentidos e significados que ambos atribuíram ao jazz (isto é, o conteúdo político-ideológico de suas considerações estético-musicais), as tensões comunicantes entre o Movimento da Négritude e o Movimento Black Power.

Enfim, frente a frente na encruzilhada, observo as continuidades e descontinuidades, aproximações e divergências entre Fanon e Baraka, cujas opiniões apontam para os processos distintos de construção e instrumentalização política da identidade negra no Atlântico. Ao divergirem quanto ao significado de “raça” e “nação”, ambos contribuíram para a formação de uma crítica estética anticolonial.

Os resultados dessa confluência simbólica inspiraram estudiosos marxistas interessados na Black Music (nos Estados Unidos, o historiador Frank Kofsky e a filósofa Angela Davis; na França, os críticos musicais Phillipe Carles e Jean-Louis Comolli50 50 Refiro-me específica e respectivamente às obras Black nationalism and the revolution in music (1970) e Black music, white business: illuminating the history and political economy of jazz (1998); Blues legacies and black feminism (1998); Free jazz/Black Power (1971). Acrescentaria ainda Fire music: a political history of jazz (1976) de Robert Backus. ), que subscreveram o potencial político do jazz, destacando a consciência social e racial de seus praticantes. Cada um desses empreendimentos merece um estudo aprofundado. Por exceder os limites deste trabalho, essa tarefa ficará para as próximas investidas.

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    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e a bibliografia utilizadas são referenciadas.
  • 2
    Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Maranhão, São Luís, Maranhão, Brasil, com orientação do Prof. Dr. Luiz Alberto Couceiro (PPGHis – UFMA). Integrante do GEJAZZBR (Grupo de Estudos do Jazz no Brasil) e do GPMUSI (Grupo de Estudos em Práticas Musicais no Maranhão). Membro da IASPM-AL (International Association for the Study of Popular Music – Filial América Latina) e da RHN (Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros).
  • 3
    Para os interessados no tema, sugiro as seguintes leituras: ABREU, Martha. Da senzala ao palco: canções escravas e racismo nas Américas, 1870-1930. Campinas: Editora Unicamp, 2017; ARAÚJO, Tonny. Os negros na história do jazz do Maranhão. Agência Tambor, 19 nov. 2021. Disponível em: https://agenciatambor.net.br/opiniao/os-negros-na-historia-do-jazz-do-maranhao/. Acesso em: 20 jun. 2023; DOMINGUES, Petrônio. Nos acordes da raça: a era do jazz no meio afro-brasileiro. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 25, jul./set. 2018, p. 66-98; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. A cidade que dança: clubes e bailes negros no Rio de Janeiro (1881-1930). Campinas, São Paulo: Editora Unicamp. Rio de Janeiro, RJ: EdUERJ, 2020.
  • 4
    Ou seja, devido às singularidades culturais da América Latina, neste estudo não enfocarei no Atlântico Negro do Sul, especificamente o Brasil, onde o debate sobre modernidade, jazz, raça e identidade nacional gerou problemáticas bastante específicas. Para esse tema, cf. RIBEIRO JÚNIO>R, Antonio Carlos Araújo. O lugar do jazz na construção da música popular brasileira. Brasil/Alemanha: NEA, 2016; CARDOSO, Rafael. Modernidade em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
  • 5
    Para Senghor, segundo Lane (2013, p. 90)LANE, Jeremy. Jazz as antidote to the machine age: from Hugues Panassié to Leopold Sedar Senghor. In: LANE, Jeremy. Jazz and machine-age imperialism: music, “race” and intellectuals in France, 1918-1945. Michigan: University of Michigan, 2013, p. 90-125., “a negritude (...) correspondia a uma identidade negra transatlântica, que havia sido reprimida por uma longa história de imperialismo ocidental e racismo estadunidense”. Essa negritude estaria contida no diálogo entre as canções rurais da África Ocidental e as melodias/ritmos afro-americanos, criados em meio às plantações do Sul. Nessa lógica, a essência mais refinada da négritude estaria presente na sonoridade e na performance do chamado “hot jazz” – visto como prática que resguardava a pureza de suas raízes rurais africanas; sonoridade cujas origens remontariam a um longo processo de trocas entre as populações euro-americana e negro-africana, mas cujos elementos originários africanos teriam sido mantidos supostamente intactos, resistentes ao fluxo de transformações urbanas e tecnológicas. Assim, na tentativa de contrapor as representações depreciativas dos negros que circulavam pelo Atlântico, essa negritude visava, entre outras coisas, “reivindicar o jazz como uma ferramenta (...) para forjar uma consciência negra transnacional progressiva” (LANE, 2013LANE, Jeremy. Jazz as antidote to the machine age: from Hugues Panassié to Leopold Sedar Senghor. In: LANE, Jeremy. Jazz and machine-age imperialism: music, “race” and intellectuals in France, 1918-1945. Michigan: University of Michigan, 2013, p. 90-125., p. 94), tão logo recaindo, entretanto, num culto ao primitivismo, ao essencialismo e à nostalgia de um passado opressivo para africanos e afrodescendentes espalhados pela Europa e EUA. Após a Segunda Guerra, essa noção de identidade negra passou a ser duramente confrontada por vários pensadores, incluindo Fanon, a priori alinhado ao Movimento da Négritude.
  • 6
    Visão partilhada também pelo filósofo afro-americano Cornel West (2022, p. 357)WEST, Cornell. Introdução à edição norte-americana de 2021 (anexo). In: FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. Ligia Fonseca Ferreira e Regina Salgado Campos. Rio de Janeiro: Zahar, 2022 [1961], p. 357-364., que afirma: “(...) Tal como a revolução bebop de Charlie Parker na música moderna, as obras e o testemunho de Frantz Fanon romperam e esfacelaram os paradigmas dominantes na filosofia, na cultura e na política modernas. À semelhança do subversivo intelecto sônico de Nina Simone, Frantz Fanon tornou inevitável o enfrentamento das realidades históricas da descolonização”. Ou ainda: “(...) Como um grande músico de jazz, Fanon emprega e encarna contrapontos que fundem criativamente a crítica das economias capitalistas de Karl Marx, a filosofia da guerra de Carl von Clausewitz (com o acréscimo da guerra da guerrilha de Mao Tsé- Tung), as fecundas noções de psicologia ambiental e sociogenética de François Tosquelles (e, em certa medida, de Jacques Lacan) e, sobretudo, os exemplos inigualáveis de Aimé Césaire (mestre, mentor e companheiro martinicano de Fanon como combatente pela liberdade) e Jean-Paul Sartre” (WEST, 2022WEST, Cornell. Introdução à edição norte-americana de 2021 (anexo). In: FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. Ligia Fonseca Ferreira e Regina Salgado Campos. Rio de Janeiro: Zahar, 2022 [1961], p. 357-364., p. 359).
  • 7
    Apesar de achar que Fanon se posicionou de maneira equivocada ao falar sobre o blues no texto “Racismo e cultura” – fruto de uma intervenção no I Congresso dos Escritores e Artistas Negros, publicado em setembro de 1956 e depois inserido na obra Pour la Révolution Africaine (1964) –, Gordon (2015, p. 90)GORDON, Lewis. What Fanon said: a philosophical introduction to his life and thought. New York: Fordham University Press, 2015. também percebe que ressoa uma apropriação estética dessas melodias na escrita do filósofo, afirmando que Peau noire, masques blancs é um genuíno “texto de blues”. Ainda segundo Gordon, ao analisar o dilema existencial do sujeito colonizado, que busca, sem sucesso, a humanidade universal na brancura, “(...) Fanon conta uma história que é recontada em camadas crescentes de revelação. No momento da catarse – o choro – a sobriedade oferece o confronto com uma realidade que antes era insuportável: a realidade sem esperança de aprovação normativa, uma realidade na qual a dialética do reconhecimento deve ser abandonada” (GORDON, 2015GORDON, Lewis. What Fanon said: a philosophical introduction to his life and thought. New York: Fordham University Press, 2015., p. 90). Tomando essa ideia do blues como catarse/queixa cotidiana, não deixa de ser interessante que o primeiro ensaio de Fanon tenha se chamado “A queixa negra: a experiência vivida do negro” (1951), por meio do qual, aliás, acompanhamos a jornada do autor rumo às encruzilhadas epistemológicas, buscando formular um modus pensandi que encruza “saberes psicológicos, psiquiátricos, psicanalíticos, filosóficos e sociológicos” (FAUSTINO, 2018FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018., p. 45).
  • 8
    Além desses fatores, é importante salientar que houve poetas do Caribe francês, como Aimé Césaire, professor e grande influência intelectual para Fanon, que adotaram uma estética semelhante à da “jazz poetry” (KWATERKO, 2017KWATERKO, Józef. “Le nègre debout”: the spirit of jazz and blues among the poets of the American Harlem Renaissance and the poets of Franco-Caribbean Négritude. Romanica Cracoviensa, v. 17, n. 2, p. 125-135, 2017. Disponível em:https://www.ejournals.eu/autorzy/9999999493/Jozef-Kwaterko/. Acesso em: 23 jun. 2023. DOI: 10.4467/20843917RC.17.011.7693
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    ), prática desenvolvida no seio da Harlem Renaissance: movimento cultural afro-americano que buscava construir uma moderna e positiva concepção de identidade negra (investida epitomizada no discurso-imagem do chamado “New Negro”).
  • 9
    Também produtor musical e empresário, Hugues Panassié (1912-1974) foi um dos mais influentes formadores de opinião sobre o jazz, ficando conhecido por seu posicionamento tradicionalista quanto ao gênero. Em solo francês, foi responsável pela fundação do Hot Club de France, além da publicação de inúmeros livros sobre o jazz. Contudo, como analisa Lane (2012, p. 135)LANE, Jeremy. Leaving the South: Frantz Fanon, modern jazz and the rejection of négritude. In: MUNRO, Martin; BRITON, Celia (ed.). American creoles: the francophone Caribbean and the American South. Liverpool University Press, 2012, p. 129-146. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80.12?seq=9. Acesso em: 23 jun. 2023. Doi: https://chooser.crossref.org/?doi=10.2307%2Fj.ctt5vjd80.12.
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    , Panassié era uma figura no mínimo controversa, pois foi filiado à extrema direita francesa, tendo vínculos próximos com a chamada juventude maurrasiana (jeunes maurrassiens) e outros apoiadores de Charles Maurras (1868-1952), líder do movimento monarquista, antissemita e antidemocrático L’Action Française. O principal sustentáculo desse movimento era a teoria do nacionalismo integral, cunhada por Maurras, que se baseava em proposições contrarrevolucionárias, como o retorno do domínio da Igreja Católica Romana, a fim de alcançar uma suposta “regeneração nacional” da França.
  • 10
    Refiro-me ao contexto de proliferação do jazz pela Europa: a fascinação francesa pelos sons afro-atlânticos (sobretudo pelo jazz, ritmo que se sobressaiu comercialmente depois da Primeira Guerra Mundial) e da imagem de “modernos/primitivos” que recaiu sobre esses sons, pois vendida pelo showbusiness parisiense. Em suma, objetificação e animalização dos corpos negros. Delimitação dos “civilizados” e dos “selvagens”, franceses e não franceses, brancos e negros (ARCHER-STRAW, 2000ARCHER-STRAW, Petrine. Negrophilia: avant-garde Paris and black culture in the 1920s. Londres; Nova York, NY: Thames & Hudson, 2000.; MACEY, 2004MACEY, David. Frantz Fanon, or the difficulty of being martinican. History Workshop Journal, v. 58, n. 1, p. 211-223, 2004. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/25472761 . Acesso em: 15 jun. 2023. https://doi.org/10.1093/hwj/58.1.211
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    , p. 213). Tais representações, sob os auspícios de uma pretensa modernidade cosmopolita, refletiam as delimitações raciais forjadas no seio das sociedades pós-escravistas para justificar os diferentes graus de hierarquização racial, entre outros dispositivos de controle e manutenção de privilégios e de distinção social. Assim, da parte das colônias francesas, termos como “créole”, “noir” e “nègre”, usados para se referir aos escravizados e seus descendentes, denotavam o processo de criação do “negro” pelo branco, no afã de criar castas impondo etiquetas raciais aos sujeitos. Por outro lado, vale ressaltar que, a exemplo do Caribe francófono, os dominados souberam reagir, se apropriando da terminologia nègre, na tentativa de subverter o estigma negativo atribuído à concepção (branca-colonial) de negritude (AUDEBERT et al., 2022AUDEBERT, Cédric et al. Negritude e relações raciais: racismo e antirracismos no espaço atlântico. Horizontes Antropológicos [online]. Porto Alegre. v. 28, n. 63, p. 07-37 maio/ago. 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/HRvYQntgjcY8wY4YCzCpw4d/?lang=pt. Acesso em: 30 ago. 2022. Doi: https://doi.org/10.1590/S0104-71832022000200001.
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    ).
  • 11
    Espetáculos teatrais itinerantes que se popularizaram nos EUA, entre fins do século XIX e início do XX, por seu conteúdo cômico calcado em representações racistas. Um de seus personagens mais populares foi o Jim Crow, black face interpretado pelo ator branco Thomas Dartmouth Rice. Por volta de 1855, pessoas negras também começaram a figurar nesses espetáculos. Sob a imagem de “negros legítimos”, esses artistas tentaram sutilmente ressignificar os black faces e o próprio sentido dos Minstrels Shows, mas as plateias racistas resistiram a essas investidas, o que estimulou parte da população negra a repudiar e se voltar contra esses espetáculos. Outros artistas negros, porém, insistiram nesse formato de entretenimento, tanto que no começo do século XX, cantoras de blues clássico (estilo tocado mais profissionalmente) se valeram dessas empresas teatrais para proliferar sua música, exemplo de Ma Rainey e Bessie Smith (JONES, 1967JONES, Leroi. O jazz e sua influência na cultura americana. Trad. Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro: Editora Record, 1967 [1963]. [1963], p. 89-103). Para uma análise específica desses espetáculos, cf. ANDERSON, Lisa M. From Blackface to ‘Genuine Negroes’: Nineteenth-Century Minstrelsy and the Icon of the ‘Negro’. Theatre Research International, v. 21, p. 17-23, 1996.
  • 12
    Quanto a isso, Gordon (2015, p. 88)GORDON, Lewis. What Fanon said: a philosophical introduction to his life and thought. New York: Fordham University Press, 2015. oferece um interessante contraponto, afirmando que a leitura de Fanon sobre o blues é “extraordinariamente assimétrica” e que seu equívoco é “cometer a falácia da permanência causal, em que as condições que levam ao aparecimento de um fenômeno tornam-se aquelas pelas quais este último é mantido. Nascido do sofrimento racial, o blues, segundo Fanon, só poderia ser mantido por essa maldição específica. Assim, os brancos que ouvem blues ficam, na leitura de Fanon, entretidos pelo sofrimento que a sua localização política criou. Contudo, isto significaria que a identificação com uma produção estética requer uma ligação íntima com o seu surgimento. Muitas pessoas, no entanto, não só gostam de música que não está intimamente ligada à sua experiência pessoal, mas também atribuem a sua própria experiência à música nascida de outra. A miséria social sofrida por outra pessoa poderia ser artisticamente personalizada e apreciada em termos do sofrimento pessoal de alguém”. Importante notar que Fanon não se refere a brancos no sentido genérico, mas aos “opressores”, aos “brancos que permanecem fiéis à imagem presa de uma espécie de relações, de uma forma de négritude” (1961, p. 255). Depois, sua crítica parece mais voltada para o consumo esvaziado e desmobilizado do “lamento negro”; uma escuta falsamente revoltada, despreocupada em acabar com a continuidade de um sistema de opressões reformulado desde o pós-Abolição. Por fim, Fanon poderia estar incomodado com aquela visão estética do blues predominante em certos veículos midiáticos (que repercutiram amplamente canções como “Strange Fruit”, interpretada por Billie Holiday, ou mesmo “Black and Blue”, de Louis Armstrong), talvez sem atentar para artistas atuantes nas lutas pelos direitos civis e que não se prendiam necessariamente à estética do “queixume”: exemplo do músico e ativista Josh White, autor de “Free and equal blues”, “No more chain gangs”, entre outras músicas engajadas. Por outro lado, é possível especular que Fanon conhecia a obra desses bluesmen e blueswomen engajados e estivesse se dirigindo na verdade a leituras como as do escritor Richard Wright, que, por exemplo, ao escrever as notas para o disco Southern Exposure: An Album of Jim Crow Blues (JOSH WHITE, 1941), embora enfatizasse o aspecto combativo das canções, exaltava também a estética lamuriosa do blues.
  • 13
    Inspirado na categoria conceitual de campo (BOURDIEU, 2004BOURDIEU, Pierre. O campo intelectual: um mundo à parte. In: BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Trad. Cássia da Silveira e Denise Moreno Pegorim. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 169-180.), observo que esses encontros culturais foram cruciais para a propagação das ideias de Fanon e para a sua legitimação enquanto intelectual panafricanista. Nesses congressos, Fanon estabelecia ricas trocas intelectuais e acalorados embates com figuras bem estabelecidas no campo intelectual, reproduzindo raciocínios que já circulavam (e refinando outros que circulariam, mais tarde) através de periódicos, tais como as revistas Esprit, Présence Africaine e Afrique Action, e jornais (El Moudjahid) – todos importantes laboratórios que possibilitaram a aproximação de seu nome ao de outros agentes e o crescimento de sua reputação, a priori, na França e na África do Norte, aumentando seu potencial como concorrente no campo de discussões sobre a experiência colonial.
  • 14
    Eis alguns exemplos desse engajamento em tempos de bebop: a música “Alabama” de John Coltrane (Live at Birdland, 1964), composta em reação à morte de quatro crianças afro-americanas durante um ataque da Ku Klux Klan à 16th Street Baptist Church (Birmingham, Alabama). A composição “Fables of Faubus” (Charles Mingus presents Charles Mingus, 1960) de Charles Mingus, que denunciava a exclusão de nove crianças da Little Rock Center High School, Arkansas (PINHEIRO, 2015PINHEIRO, Ricardo Nuno Futre. Playing out loud: jazz music and social protest. Journal of Music and Dance, v. 5, n. 1, p. 1-5, March 2015. Disponível em: https://academicjournals.org/journal/JMD/article-abstract/5AEAC5251488. Acesso em: 14 jan. 2014. DOI: 10.5897/JMD2014.0030
    https://academicjournals.org/journal/JMD...
    ). Aliás, apesar de na época (1957) ser taxado de alienado e dos riscos à sua carreira, Louis Armstrong se pronunciou na imprensa sobre esse caso, chegando a criticar duramente o então governador do Arkansas, Orval Faubus, e o presidente Dwight Eisenhower. Sobre o apoio dos jazzistas ao Movimento dos Direitos Civis, um exemplo interessante foi o disco The Freedom Riders (ART BLAKEY & JAZZ MESSENGERS, 1964KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Trad. Manoel Luís Salgado Guimarães. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 05, n. 10, p. 134-146, 1992.), que fazia referência a um grupo de ativistas que lutavam contra a segregação nos ônibus interestaduais. Em solidariedade aos povos originários e antecedendo a moda punk, Sonny Rollins passou a usar o cabelo ao estilo moicano (Mohawk), além de ter gravado o disco Freedom Suite (1958), um dos primeiros a sugerir a ligação entre jazz e protesto social. A empatia com os povos asiáticos pode ser captada em músicas como “Peace on Earth” (Live in Japan, 1966) de Coltrane, composta em solo japonês em solidariedade às vítimas do ataque nuclear dos EUA em Nagasaki, mas também como denúncia dos assassínios perpetrados pela Guerra do Vietnã e pela Guerra Fria. Já a aproximação com o continente africano pod>e ser encontrada em composições como “Africa” (Africa/Brass, 1961) de Coltrane (Pinheiro>, 2015), “All Africa” (Freedom Now Suite, 1960) de Max Roach, “New Africa” (Kwanza, 1974) de Archie Shepp, entre outras.
  • 15
    Nesse sentido, julgo importante recordar, em diálogo com DeVeaux (1997)DEVEAUX, Scott. The birth of bebop: a social and musical history. Basingstoke: Picador, 1997. e Lane (2012)LANE, Jeremy. Leaving the South: Frantz Fanon, modern jazz and the rejection of négritude. In: MUNRO, Martin; BRITON, Celia (ed.). American creoles: the francophone Caribbean and the American South. Liverpool University Press, 2012, p. 129-146. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80.12?seq=9. Acesso em: 23 jun. 2023. Doi: https://chooser.crossref.org/?doi=10.2307%2Fj.ctt5vjd80.12.
    https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80...
    , que o bebop não tentou simplesmente desmerecer a tradição musical afro-americana, mas ressignificá-la e desviá-la das armadilhas racialistas estereotípicas, evitando as ossificações estéticas desejadas por consumidores e mediadores culturais cuja nostalgia era atravessada pelo fetichismo racial. Foi o caso da utilização do blues e dos standards em temas e improvisações. Acredito que devido a essa postura, de relação não-passiva com o legado tradicional, o bebop pode ser tomado como um fenômeno musical dialético.
  • 16
    Raciocínio sobre a experiência histórica-profilática de Fanon inspirado em Faustino (2015FAUSTINO, Deivison. “Por que Fanon? Por que agora?”: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia). 260 f. Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia do Centro de Ciências Humanas – CECH, Universidade Federal de São Carlos, 2015.; 2018FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.; 2021FAUSTINO, Deivison. A política dos “escritos políticos” de Frantz Fanon (prefácio). In: FANON, Frantz. Escritos Políticos. Trad. Monica Stahel. São Paulo: Boitempo, 2021 [2015], p. 9-23.; 2022)FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon e as encruzilhadas: teoria, política e subjetividade. São Paulo: Ubu Editora, 2022.. Acrescento que o momento de tensão de Fanon com os preceitos de Césaire e Senghor coincide com o período de popularidade do fenômeno bebop, que alcançaria seu auge nos anos de 1960, o que reforça a relevância de uma nova profilaxia também no campo estético-musical.
  • 17
    Como destaca Faustino (2022, p. 108)FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon e as encruzilhadas: teoria, política e subjetividade. São Paulo: Ubu Editora, 2022., Fanon diferenciava consciência nacional e nacionalismo. Importante nas lutas de libertação, a consciência nacional não se fecharia em si, relacionando-se dialeticamente com o plano internacional. O nacionalismo, por sua vez, se exercido aos moldes burgueses, fomentaria a despolitização, sendo reduzido a um “formalismo esterilizante” (FANON, 1961FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. Serafim Ferreira. Lisboa: Editora Ulisseia, 1961., p. 211). Assim, por não lidar com as identidades culturais em termos metafísicos, o bebop surge para Fanon como fenômeno apreciável numa perspectiva de solidariedade nas lutas antirracistas no mundo Atlântico; como símbolo de uma inspiradora conquista fora de África: quer dizer, realizada dentro de suas especificidades históricas (LANE, 2012LANE, Jeremy. Leaving the South: Frantz Fanon, modern jazz and the rejection of négritude. In: MUNRO, Martin; BRITON, Celia (ed.). American creoles: the francophone Caribbean and the American South. Liverpool University Press, 2012, p. 129-146. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80.12?seq=9. Acesso em: 23 jun. 2023. Doi: https://chooser.crossref.org/?doi=10.2307%2Fj.ctt5vjd80.12.
    https://www.jstor.org/stable/j.ctt5vjd80...
    ).
  • 18
    Na síntese de Faustino (2018, p. 15)FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018., trata-se de um “sociodiagnóstico que conceba a subjetividade sempre em relação com os seus determinantes históricos e sociais”. Em outros termos, trata-se de um arcabouço teórico abrangente que amalgama os teores psicológicos, culturais e sociais em sua aplicação analítica.
  • 19
    Faço essa comparação fundamentado novamente na argumentação de que Fanon foi um “filósofo do jazz” por escrever como um músico do bebop. Ciente de que a noção de “percepção rotativa” tem suas finalidades propriamente musicais, ressalto que não se trata, de forma alguma, de uma tentativa forçada de sobreposição conceitual. A coerência da analogia empregada reside na própria experiência social de Charles Mingus. Músico vinculado ao bebop, Mingus desenvolveu uma forma particular de improvisação que visava se afastar do padrão rítmico linear, por sua carência de dissonâncias e descontinuidades, logo facilmente previsível. Em paralelo, Mingus foi um músico ativo na luta antirracista, tendo que lidar ainda com agudos dilemas existenciais por conta das máscaras brancas e da pele negra – algo narrado em sua autobiografia Saindo da sarjeta (2005 [1971]) –, fazendo de sua música um instrumento de revolta contra o establishment branco-estadunidense, mas também contra aquilo que chamava de “ilhas raciais”, dentro das quais não era reconhecido nem como branco nem negro.
  • 20
    Refiro-me à produção jazzística sul-africana, exemplo do The Jazz Epistles, grupo formado nos anos 1950 por Hugh Masekela (trompete), Johnny Gertze (trombone), Kippie Moeketsi (saxofone alto), Jonas Gwangwa (trombone), com colaboração de Makwenkwe “Mackay” Davashe (saxofone), Abdullah Ibrahim (piano), Makaya Ntshoko e Early Mabuza (bateria). A Jazz Epistles se apropriou dos recursos do bebop, mesclando-os com o vocabulário musical local com o objetivo de unir tradição e cosmopolitismo, evitando, assim, nacionalismos estanques e internacionalismos sem dialética. Além disso, o conjunto musical se engajou na luta antiapartheid e anticolonial, estando, nesse sentido, perfeitamente alinhada à perspectiva revolucionária de Frantz Fanon e à noção de Atlântico Negro (GILROY, 2001GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001 [1993]. [1993]).
  • 21
    Moten (2023 [2003], p. 235)MOTEN, Fred. Na quebra: a estética da tradição radical preta. Trad. Matheus Araújo dos Santos. São Paulo: Crocodilo; n-1 edições, 2023 [2003]. também entende que as variações em torno do nome do autor servem para compreender a “questão de para onde vai o radicalismo, ou como o radicalismo se desenvolve na obra de Baraka”, enfocando na experiência de “convulsão/abertura” do autor, entre 1962-1966. Ao contrário de Moten, que mantém um “marcador nominativo” para analisar o que chama de “pretitude” (blackness) de Baraka, entendo que para os fins deste estudo importa retrilhar todas essas mudanças nominais de LeRoi/Baraka.
  • 22
    Nos trabalhos acadêmicos, material biográfico e textos da internet, a atribuição ao nome verdadeiro de Baraka é variável, surgindo nas formas Leroy Jones, Leroi Jones ou LeRoi Jones; podendo ser traço não apenas de suas várias fases, em busca de uma identidade pessoal e política, mas, sobretudo, de uma possível preponderância de seu legado político e cultural enquanto Amiri Baraka, fazendo com que haja esses desencontros na grafia de seu nome de batismo. Entendo tal imprecisão como marca de sua trajetória.
  • 23
    Alguns desses trabalhos são: CAMELO (2010)CAMELO, Gerson Vieira. Four Black Revolutionary Plays: Amiri Baraka e a construção de uma dramaturgia revolucionária negra. Tese (Doutorado em Letras). 241 f. Programa de PósGraduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Departamento de Letras Modernas, São Paulo, FFLCH-USP, 2010.; REINA PERES, Lilian. Makumba: uma proposta de matrigestão tradutória à poética de Amiri Baraka. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos). 153 f. Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São José do Rio Preto, 2022. Igualmente importante na divulgação das encruzas barakianas no Brasil, além de rica em referências, há a coluna “Missa Negra”, assinada pela pesquisadora Nathalia Grilo Cipriano (vulgo Preta Velha). A coluna é publicada no blog da Sob Influência, editora paulistana independente, e está disponível em: https://www.sobinfluencia.com/post/black-dada-nihilismus-a-imagina%C3%A7%C3%A3o-radical-de-amiri-baraka. A propósito, numa empreitada histórica, a editora lançou recentemente a primeira versão em português da obra Black Music (2023 [1968]) de Amiri Baraka, contando com um prefácio da própria Nathalia Grilo.
  • 24
    Entendendo a escola como agente de integração cultural, que transmite esquemas lógicos e programas de pensamento (BOURDIEU, 2015BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução, organização e seleção: Sérgio Miceli. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015 [1974]. [1974], p. 203-229), penso que convém uma comparação entre a formação educacional de Fanon e Jones. Se Frantz Fanon teve uma formação inicialmente assimilacionista, na qual, em contraposição à cultura “preta” (leia-se, africana), se promovia o apagamento do dado étnico dos martinicanos através do afrancesamento/branqueamento cultural de toda a população negra antilhana, Leroi Jones se deparou com os “valores brancos” e a “falsa negritude” que eram ensinados na Howard University, contra os quais se irrompia (FEBRIYANTI, 2015FEBRIYANTI, Irma. The power of Amiri Baraka’s political thoughts African American movement in America. Rubikon (Journal of Transnational American Studies), v. 2, n. 2, p. 51-63, Sept. 2015. ISSN 2541-2248. Disponível em: https://jurnal.ugm.ac.id/rubikon/article/view/34259. Acesso em: 19 ago. 2022. Doi: https://doi.org/10.22146/rubikon.v2i2.34259.
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    ). Instituição aliada no Movimento dos Direitos Civis, por onde passaram nomes como Frederick Douglas, Alain Locke (difusor da ideologia “New Negro”), E. F. Frazier, Stokely Carmichael e Rayford Logan, a Howard era uma faculdade particular criada originalmente no século XIX para atender à população liberta, portanto voltada especialmente (mas não somente) para a comunidade negra. Mesmo com este histórico, Jones (2009)JONES, Leroi. Home: social essays. Brooklyn: Akashi Classics: Renegade Reprint Series, 2009. E-book. confrontava o perfil elitista da instituição, que, segundo ele, prezava não só por uma relação conservadora com os brancos (pautada na filantropia, em vez da radicalidade), mas também por ser reprodutora de códigos condizentes com os interesses da camada média branca. Ou seja, a instituição defendia uma “Negro culture” erudita, moralmente aceita pela branquitude, em contraposição às práticas dos “niggers” – por sua vez, estigmatizadas, de “mau gosto”, imorais, marginais. O jazz, e sobretudo o blues, fariam parte dessa subcultura negra que era desprezada.
  • 25
    Além dessas instituições, Amiri Baraka lecionou na Buffalo University, Yale, San Francisco State, George Washington e na New York State University. Nesta última, ministrou aulas sobre Estudos Africanos (African Studies), por mais ou menos vinte anos.
  • 26
    Forma afrancesada de seu nome (Leroy) que passou a usar nessa fase acadêmica (CAMELO, 2010CAMELO, Gerson Vieira. Four Black Revolutionary Plays: Amiri Baraka e a construção de uma dramaturgia revolucionária negra. Tese (Doutorado em Letras). 241 f. Programa de PósGraduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Departamento de Letras Modernas, São Paulo, FFLCH-USP, 2010., p. 13).
  • 27
    Camelo (2010, p. 23)CAMELO, Gerson Vieira. Four Black Revolutionary Plays: Amiri Baraka e a construção de uma dramaturgia revolucionária negra. Tese (Doutorado em Letras). 241 f. Programa de PósGraduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês. Departamento de Letras Modernas, São Paulo, FFLCH-USP, 2010. destaca que, entre as peças The Toilet (1962), Dutchman e The Slave (ambas de 1964), houve uma guinada radical do autor, passando de uma visão integracionista com os brancos a uma profunda desilusão com essa integração, dando vazão a uma visão niilista sobre a relação entre brancos e negros, resultando na ênfase da distância entre as realidades desses grupos étnicos.
  • 28
    Antifonia é o termo empregado para nomear o esquema de “chamada-resposta” encontrado em muitas tradições musicais afrodiaspóricas. O uso das antífonas nessas práticas, segundo Gilroy (2001 [1993], p. 168)GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001 [1993]., competiu/compete para borrar as fronteiras entre o eu e o outro, fazendo com que “formas especiais de prazer [fossem/sejam] criadas em decorrência dos encontros e das conversas entre um eu racial fraturado, incompleto e inacabado e os outros”. Utilizo-o de maneira metafórica não apenas para enfatizar o potencial dialógico na trajetória dos autores, de seus contextos de violência colonial e racialização, mas, em uma camada mais profunda, para evidenciar também sua possível irmanação no momento de aproximação de suas experiências, suas táticas de resistência e agendas revolucionárias, com vistas para a qualificação do debate em torno da construção da ideia de negritude no Atlântico.
  • 29
    Profissionalmente, esse emprego proporcionou a Jones a escuta de extenso material fonográfico, aproximando-o de várias fases do blues e do jazz. Permitiu também que tivesse contato com os jovens escritores brancos já estabelecidos no campo da crítica musical; e que, a partir desses diálogos, começasse a desenvolver seu pensamento crítico sobre a música negra (SMETHURST, 2020SMETHURST, James. Brick city vanguard: Amiri Baraka, black music, black modernity. Amherst/Boston: University of Massachusetts Press, 2020., p. 68).
  • 30
    Mais tarde, na Tanzânia, LeRoi Jones teria contato com o marxista panafricano Mohamed Babu (1924-1996), com o revolucionário Abied Karume (1905-1972) e com Julius Nyerere (1922-1999), idealizador da Ujamaa, projeto de teor socialista que visava desenvolver a economia da Tanzânia através de práticas comunitárias tradicionais. Para Woodard (1999, p. 53)WOODARD, Komozi. A nation within a nation: Amiri Baraka (LeRoi Jones) & Black Power Politics. Chapel Hill/London: The University of North Carolina Press, 1999., esses encontros, motivados pelo “sentimento de parentesco que [Baraka] sentia com aquela geração de radicais em Cuba, África e Ásia”, foram fundamentais para a sua aproximação com a causa anti-imperialista do terceiro-mundismo.
  • 31
    Assim escreve Woodie King Junior, produtor de peças e poemas de LeRoi, no prefácio dessa obra: “a jornada para o inferno já havia sido explorada por Milton, Virgílio e Homero, mas encontrou um novo público leitor com LeRoi Jones. Essa nova versão era tão experimental quanto a forma de jazz livre e a arte abstrata; todavia, agora, era de uma perspectiva afro-americana. O inferno ocupa espaço na cabeça de LeRoi. O inferno é onde os brancos se recusam a vê-lo. Ele é preto. Ao defender sua humanidade para os brancos, ele nunca pode se concentrar em seu próprio ‘eu’ negro” (KING JUNIOR, 2016KING JUNIOR, Woodie. LeRoi Jones and the emergence of Amiri Baraka (Introduction). In: JONES, Leroi. The system of Dante’s Hell. Brooklyn: Akashi Classics: Renegade Reprint Series, 2016. E-book., p. 09). Isto lembra a reflexão em Pele negra, máscaras brancas sobre a (des)construção identitária do colonizado/negro diante do colonizador/branco: produto da obstrução no processo dialético de subjetivação do negro, impedindo-o de “descer ao verdadeiro inferno” (FAUSTINO, 2022FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon e as encruzilhadas: teoria, política e subjetividade. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 62). Mas, diferente de Fanon, que flertou com a linguagem do bebop em suas peças – cujas imagens poéticas, aliás, buscavam aparentemente suplantar o horizonte dantesco que acomete aquelas existências (pre)fixadas pela raça (FAUSTINO; GAYÃO, 2023FAUSTINO, Deivison; GAYÃO, Nicolau. Estranhas harmonias: a vida, a morte e o tempo na linguagem dramatúrgica de Frantz Fanon. Fólio – Revista de Letras, 14(2), p. 41-66, maio 2023. Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/folio/article/view/12262. Acesso em: 13 jan. 2023. Doi: https://doi.org/10.22481/folio.v14i2.12262.
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    ) –, a incorporação do caos e da imprevisibilidade do free jazz por Jones serve não para puxar seus personagens do inferno racial, mas para empurrá-los contra essa realidade inescapável.
  • 32
    Sylvia Robinson (1942-) também era cantora e poetisa, possuía uma relação longeva com o blues e com o jazz, ajudando a fundar, em 1963, a Jazz Arts Society em Newark, juntamente de músicos negros como o baixista Art Williams e o baterista Edd Gladden. Além disso, Sylvia (mais tarde, Amina Baraka), “criou, encenou e atuou em dramas dançantes de jazz, antecipando tanto o estilo de performance mais maduro, multimídia e multigenérico de Amiri quanto os ‘coreopoemas’ de Ntozake Shang>e” (SMETHURST, 2020SMETHURST, James. Brick city vanguard: Amiri Baraka, black music, black modernity. Amherst/Boston: University of Massachusetts Press, 2020., p. 46), chegando a aproximar Baraka dos músicos de Newark, e mais propriamente do campo musical. Observo que tal aproximação seria fundamental para a articulação de Baraka como compositor e performer, alinhando sua poética às improvisações livres de bandas de jazz militantes como o New York Quartet (ver a música Black Dada Nihilismus, 1967) e dos engajados Da>vid Murray e Steve McCall (New Music – New Poetry, 1982). Gravou ainda Black & Beautiful, Soul & Madness, (AMIRI BARAKA & THE SPIRIT HOUSE MOVERS, Jihad, 1968BARAKA, Amiri. The autobiography of Leroi Jones. Chicago: Illinois: Lawrence Hill Books, 1997 [1984].), com a participação dos músicos Yusef Iman, Bobby e Russell Lyle, e It’s nation time: african visionary music (1972), pelo selo ativista Black Forum, no qual mistura a poesia falada com o ritmo do jazz funk, contando com os músicos Lonnie Smith, Gary Bartz, James Mtume, Gwendolyn Guthrie, Reggie Workman e Idris Muhammed. Segundo Ribeiro Júnior (2020)RIBEIRO JÚNIOR, Antonio Carlos Araújo. Black music e consciência negra: a influência de Amiri Baraka no pensamento crítico sobre o jazz. Apresentação no IX MUSICOM, set. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2X3Nh1IoaxU. Acesso em: 29 ago. 2022.
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    , essas empreitadas de Baraka podem ter sido formas de intervir mais fortemente no campo da produção musical, vislumbrando nos discos, enquanto produtos da indústria cultural, uma maneira de amplificar suas mensagens estético-políticas acerca da negritude.
  • 33
    Esse envolvimento com o islã se refletiu no disco A Black Mass, registro com forte influência do free jazz, gravado em 1968 pelo selo de Baraka (Jihad Productions), contando com a participação da Mith-Science Arkestra liderada pelo músico afrofuturista Sun Ra. A ideia do disco adveio de uma peça de Baraka apresentada em 1966, ou seja, no início de sua relação com o nacionalismo negro e de seu envolvimento com o BAM. Basicamente, a peça contava a história de Yakub – mito idealizado por Wallace Fard Muhammad, fundador da Nação, depois desenvolvido por Ellijah Muhammad e repassado a Baraka através de Malcolm X. Grosso modo, a narrativa conta a história do nascimento dos brancos pelas mãos de Yakub, cientista louco de Meca que por meio de métodos eugênicos teria criado, a partir dos negros, uma nova raça. Este novo ser possuiria a chamada “tricknology”: uma tendência à trapaça, à mentira e ao despotismo – qualidades que se voltariam contra os negros, sendo mais tarde escravizados por essa nova criatura. Trata-se da última referência de Baraka à doutrina do Islã, pois logo rompeu laços com a Nação. O islamismo, aliás, foi bastante influente no meio do jazz, sobretudo em sua fase de modernização, havendo muitos músicos que aderiram à religião como ato político. Tal como Jones/Baraka, muitos deles assumiram novos nomes, a exemplo de Lynn Hope (Al Hajji Abdullah Rasheed Ahmed), alcunhado de “O Marajá do Saxofone”, Dakota Staton (Aliya Rabia), Art Blakey (Abdullah Ibn Buhain), Fritz Jones (Ahmad Jamal), William Emanuel Huddleston (Yusef Lateef), entre muitos outros.
  • 34
    Fanon, aliás, é um nome razoavelmente citado na autobiografia de Baraka (1997 [1984])BARAKA, Amiri. The autobiography of Leroi Jones. Chicago: Illinois: Lawrence Hill Books, 1997 [1984].. Em vários momentos, o escritor invoca o pensamento fanoniano para criticar os rumos do nacionalismo cultural no movimento negro estadunidense, sobretudo iniciativas como as de Ron Karenga. Baraka informa que a Kawaida e a US Organization não possuía>m uma agenda política clara, uma vez que seu líder, Karenga, misturava vários pensadores negros, de forma descontextualizada e fragmentada. Baraka confessa que, a princípio, o tema da “revolução cultural”, pregado por esses movimentos, o conquistou por ser um artista, e que, por isso, em sua visão, possuíam algum mérito. Entretanto, passado o momento inicial de encantamento, e uma vez aderido ao marxismo-leninismo, Baraka (1997 [1984], p. 357-359)BARAKA, Amiri. The autobiography of Leroi Jones. Chicago: Illinois: Lawrence Hill Books, 1997 [1984]. passou a criticar o idealismo e o essencialismo advogados por esses grupos, que desconsideravam a luta de classes e recaíam num frágil culturalismo.
  • 35
    Para se informar mais a respeito, cf. FLOYD JUNIOR, Samuel. Books on black music by black authors: a bibliography. The Black Perspective in Music, v. 14, n. 3, p. 215-232, 1986.
  • 36
    Tais comentários parecem revelar os primeiros acenos de Baraka ao marxismo, ainda que timidamente, pois soam como críticas à posição dos brancos na superestrutura social: local privilegiado onde podem construir, administrar, determinar e impor os símbolos que devem circular na sociedade através dos aparelhos ideológicos.
  • 37
    O uso da palavra “negro” no título original, nesse sentido, faz referência à maneira como até os anos de 1960 eram caracterizadas tanto as pessoas pretas dos Estados Unidos (nesse caso, com “n” maiúsculo) quanto seus antepassados escravizados (com “n” minúsculo).
  • 38
    Publicado em 1967 pela Editora Record. Desde então, ainda não foi reeditado no Brasil.
  • 39
    O trato com a Emancipação (no livro, momento decisivo na relação/luta de classes nos EUA) aparece sustentada muitas vezes pelas considerações jurídicas e econômicas de E. F. Frazier, por meio das quais Jones (1967 [1963], p. 61-62)JONES, Leroi. O jazz e sua influência na cultura americana. Trad. Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro: Editora Record, 1967 [1963]., por um lado, critica o resultado insatisfatório das promessas de cidadania feitas aos negros por parte da classe dominante branca, e por outro, aponta que por causa desse vácuo de direitos (aliás, jogada estratégica da burguesia para ludibriar os brancos pobres, fazendo-os crer que eram “iguais” pela semelhança racial), os negros, sobretudo sua fração letrada, optaram por emular os valores dos brancos, ainda que estivessem segregados.
  • 40
    Entendo que a forma como Jones pensou e estruturou as seções desse livro pode ilustrar bem sua proposta: 1. O Negro como Não-Americano: Alguns Antecedentes. 2. O Negro como Propriedade. 3. Escravos Africanos – Escravos Americanos e sua Música. 4. A Música e a Religião Afro-Cristãs. 5. Escravo e Pós-Escravo. 6 O Blues Primitivo e o Jazz Primitivo. 7. O Blues Clássico. 8. A Cidade. 9. Entrada da Classe Média. 10. Swing – De Verbo a Substantivo. 11. A Continuidade do Blues e 12. O Cenário Moderno.
  • 41
    A análise das letras dessas canções de trabalho e das várias formas de blues (do rural ao clássico/urbano), além da utilização de narrativas de viajantes, trechos de jornais (fontes primárias) e levantamentos de alguns folcloristas, transparecem a influência de Sterling Brown na escrita dessa obra.
  • 42
    Tensões que, como o próprio autor destaca, eram encontráveis também no “som deliberadamente áspero e anti-assimilacionista do bebop”, cuja rebelião social, longe de ser acidental, era produto de investidas conscientes dos beboppers de retirar a música negra “do perigo de ser diluída pela corrente principal [da cultura americana/branca média], ou mesmo de ser compreendida por ela”, motivo pelo qual optaram por restabelecer “o blues como a mais importante das formas afro-americanas na música negra”, valendo-se de um “reenunciado surpreendentemente contemporâneo do impulso básico do blues” (JONES, 1967JONES, Leroi. O jazz e sua influência na cultura americana. Trad. Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro: Editora Record, 1967 [1963]. [1963], p. 186 e 198).
  • 43
    Evento ocorrido entre 18 e 24 de abril de 1955, em Bandung (Indonésia). Tratou-se de uma “reunião de 23 países asiáticos e seis africanos”, em que “o Terceiro Mundo, o colonialismo, o imperialismo e as independências nacionais foram os temas que se destacaram durante a conferência, influenciando importantes pensadores do pós-guerra, entre eles Frantz Fanon” (FAUSTINO, 2015FAUSTINO, Deivison. “Por que Fanon? Por que agora?”: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. Tese (Doutorado em Sociologia). 260 f. Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia do Centro de Ciências Humanas – CECH, Universidade Federal de São Carlos, 2015., p. 39).
  • 44
    Berendt e Huesmann (2014, p. 46)BERENDT, Joachim-Ernest; HUESMANN, Gunther. O livro do jazz: de Nova Orleans ao século XXI. São Paulo: Perspectiva; Edições Sesc São Paulo, 2014. listam algumas dessas novidades: “1. O ingresso no espaço livre de uma tonalidade expandida que, inicialmente, suscitou a impressão de ‘atonalidade’. 2. Uma nova concepção rítmica que se caracteriza pela dissolução do metro, do beat e da simetria. 3. A adesão à música do mundo [World Music], numa abertura súbita a todas as grandes culturas musicais, como Índia, África, Japão e os países árabes. 4. Uma ênfase no quesito intensidade como nunca se vira nos estilos de jazz do passado. O jazz sempre foi uma música que, em termos de intensidade, esteve além das outras formas musicais do Ocidente, mas nunca na história do jazz a intensidade foi buscada com um sentido tão catártico e orgíaco – em alguns casos também religioso – como no free jazz (...)”.
  • 45
    Inclusive, Baskerville (1994, p. 485-487)BASKERVILLE, John. Free jazz: a reflection of black power ideology. Journal of Black Studies, New York, Sage Publishing, v. 24, n. 4, p. 484-497, June, 1994. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/2784566. Acesso em: 28 ago. 2022. Doi: https://doi.org/10.1177/002193479402400408.
    https://www.jstor.org/stable/2784566...
    destaca que o uso da palavra “jazz” gerou dissonâncias no meio musical da época (1960-1970), sendo lida por uns como expressão criada por brancos, numa crítica similar ao termo “negro” e ao uso dos nomes de batismo – vistos como heranças dos senhores de escravo. Tal postura lembra um pouco as críticas de Frantz Fanon aos vícios coloniais presentes no blues e no jazz de Nova Orleães. Contudo, nem todos os músicos aderiram a essa posição, preferindo muito mais se apropriar da palavra “jazz” e modificar seu sentido. Esse também parece ter sido o caso de Amiri Baraka, que preferiu fazer uso de todos esses termos.
  • 46
    Alguns desses ensaios foram publicados na seção “Apple Cores”, coluna que Baraka manteve regularmente na revista Downbeat nos anos 60. Nesses textos, o autor afirma que, nas jam sessions do Five Spot, ensaiava-se o som da chamada “nova onda”, representada por músicos como John Coltrane e Thelonious Monk (já na fase pós-Miles Davis). Tais figuras são invocadas por Baraka como “as fontes da inundação que traz o novo, como disse Mao [Tsé-Tung] sobre a Revolução (...)”. Ou seja, simbolizavam uma profunda transformação musical conectada ao “espírito mundial” da época – a eventos que consumavam o que chama de “revolução real”: o Boicote aos Ônibus de Montgomery (1955-1956), a marcha de Fidel Castro sobre Havana (1959), a aparição midiática de Malcolm X, o movimento estudantil em Greensboro, Carolina do Norte, entre outros episódios que afetavam o público, os músicos e sua forma de tocar/compor (JONES, 2016JONES, Leroi. Black Music. Trad. Patricio Orellana. Buenos Aires: Caja Negra, 2016 [1968]. [1968], p. 10).
  • 47
    Ilustra e sintetiza bem essa premissa o seguinte comentário: “a incapacidade [da crítica] de entender, por exemplo, que Paul Desmond e John Coltrane representam, não apenas duas formas muito diferentes de ver o mundo, está na origem da maioria dos equívocos que são estabelecidos diariamente, impingidos como comentário inteligente, sobre o jazz ou a crítica do jazz. Os catalisadores e a necessidade da música de Coltrane devem ser entendidos como existem, antes mesmo de serem expressos como música. A música é fruto da atitude, da postura. Assim como os negros fizeram o blues, e não outra gente, por causa da maneira peculiar do Negro ver o mundo” (JONES, 2023JONES, Leroi. Black Music: free jazz e consciência negra (1959-1967). Trad. André Capilé. São Paulo: Sobinfluência Edições, 2023 [1968]. [1968], p. 36-37). Ou seja, há aqui uma relação universal x particular específica.
  • 48
    Nesse trecho, entre outros músicos, Jones cita Archie Shepp e Max Roach, que faziam comentários políticos sobre a libertação negra nos EUA, mas também em favor do socialismo, panafricanismo, nacionalismo negro e anticolonialismo. Alguns discos simbólicos foram: We Insist – Freedom Now Suite (que conta com a participação fundamental da cantora e ativista Abbey Lincoln), It’s Time e Force (MAX ROACH, 1961; 1962; 1976); Poem for Malcolm, Attica Blues e U-jaama – Unité (ARCHIE SHEPP, 1969; 1972; 1975), entre outros. O historiador Eric Hobsbawm (2016 [1998], p. 484-485)HOBSBAWM, Eric. Pessoas extraordinárias: resistência, rebelião e jazz. Trad. Irene Hirsch e Lólio Lourenço de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2016 [1998]. comenta sobre essa radicalização, concluindo que “o jazz de vanguarda dos anos 1960 era consciente e politicamente negro, como nenhuma outra geração de músicos de jazz havia sido antes (...). Como Whitney Balliet disse nos anos 1970: ‘O free-jazz é realmente o jazz mais negro que há’. Politicamente negro e radical. Assim, o LP Charlie Haden: Liberation Music Orchestra (1969) continha quatro canções da Guerra Civil Espanhola, inspirando-se nas manifestações de 1968 da Convenção Democrática de Chicago; uma homenagem a Che Guevara, e uma versão de ‘We Shall Overcome’. Archie Shepp (sax soprano e tenor), uma das maiores figuras da vanguarda, criou uma homenagem musical a Malcolm X e também ‘Attica Blues’, inspirado no famoso levante da prisão negra. A conscientização política continuou a manter uma ligação entre a vanguarda e a massa de negros norte-americanos e suas tradições, gerando, portanto, a possibilidade de retorno à corrente principal do jazz (...)”.
  • 49
    Jones se refere aos movimentos e táticas políticas dos músicos de jazz, mais fortemente a partir de seu vínculo com o Movimento Black Power. Enquanto alguns músicos decidiram encontrar espaços onde podiam tocar e oferecer debates sobre segregação racial, a relação entre o jazz e a política, as questões do mercado (a exemplo do que aconteceu nos quatro dias do festival The October Revolution in Jazz [homenagem à Revolução Bolchevique de 1917], realizado em outubro de 1964, nas dependências do Cellar Café, em Nova Iorque), outros, cansados da exploração nos clubes noturnos e da falta de acesso da população negra de baixa renda, começaram a boicotar esses ambientes, optando por tocar em seus próprios apartamentos, no que ficou conhecido como “loft jazz movement”. Houve também aqueles que decidiram criar suas próprias cooperativas, na tentativa de mudar essa situação. Algumas delas foram a Jazz Composers Guild (JCG), a Chicago’s Association for the Advancement of Creative Musicians (CAACM) e a Detroit Artists’ Workshop (DAW) (BASKERVILLE, 1994BASKERVILLE, John. Free jazz: a reflection of black power ideology. Journal of Black Studies, New York, Sage Publishing, v. 24, n. 4, p. 484-497, June, 1994. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/2784566. Acesso em: 28 ago. 2022. Doi: https://doi.org/10.1177/002193479402400408.
    https://www.jstor.org/stable/2784566...
    , p. 489-490). Acrescentaria ainda aqueles coletivos que foram mais efêmeros como o Black Artists for Community Action (BACA), encabeçado pelo saxofonista Archie Shepp, e o Jazz and People’s Movement (JPM), liderado pelo multi-instrumentista Rahsaan Roland Kirk.
  • 50
    Refiro-me específica e respectivamente às obras Black nationalism and the revolution in music (1970) e Black music, white business: illuminating the history and political economy of jazz (1998); Blues legacies and black feminism (1998); Free jazz/Black Power (1971). Acrescentaria ainda Fire music: a political history of jazz (1976) de Robert Backus.

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Editado por

Editores Responsáveis

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2023
  • Aceito
    21 Fev 2024
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