Acessibilidade / Reportar erro

SEGREDOS DA GUERRA DE CANUDOS (1896- 1897): TELEGRAMAS CRIPTOGRAFADOS SOBRE O FRACASSO DA EXPEDIÇÃO MOREIRA CESAR SÃO FINALMENTE DECIFRADOS1 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e a bibliografia utilizadas são referenciadas.

Resumo

Num raro exemplo de como Ciências Humanas e Exatas podem se unir num mesmo projeto, este estudo se valeu da tecnologia para desvendar as lacunas da história e a pesquisa histórica para contextualizar documentos até então sigilosos sobre a Guerra de Canudos (1896-1897). Ferramentas de criptoanálise foram usadas para decifrar o texto de quatro telegramas altamente confidenciais, guardados há mais de um século no Arquivo Histórico do Exército. Compreender seu conteúdo exigiu ainda a consulta de fontes documentais e bibliográficas que permitissem complementar as informações contidas nos relatos criptografados sobre o fracasso da terceira expedição militar e o que aconteceu com o corpo de seu líder, o coronel Moreira César.

Palavras-chave
Guerra de Canudos; Euclides da Cunha; Moreira César; Criptografia; História Militar

Abstract

In a rare example of how Humanities and Exact Science can come together in the same project, this study used technology to unravel the gaps in history and historical research to contextualize the content of confidential documents about the Canudos War (1896-1897). Cryptanalysis tools were used to decipher the text of four secret telegrams, held for over a century at the Army Historical Archives. In order to understand their content, it was necessary to consult documentary and bibliographic sources that allowed additional information to the encrypted reports about the failure of the third military expedition and what happened to the body of its leader, Colonel Moreira César.

Keywords
Canudos War; Euclides da Cunha; Moreira César; Cryptography; Militar History

Um mistério permanece até hoje, mais de 120 anos depois de terminada a Guerra de Canudos (1896-1897): o que foi feito do corpo do coronel Moreira César, líder da penúltima expedição enviada aos sertões nordestinos para atacar os seguidores de Antonio Conselheiro. Sabe-se que um de seus últimos pronunciamentos, pouco antes de morrer ferido por duas balas na madrugada de 4 de março de 1897, foi ordenar um segundo ataque a Canudos, uma vez que, apesar das baixas no dia anterior, da fome e da sede que tomavam conta do acampamento, a maior parte dos soldados estava apta para o combate e havia munição suficiente. Qualquer passo atrás, segundo ele, “infamaria o Exército e traria sérios perigos à República” (CUNHA, 2009CUNHA, Euclides da. Caderneta de campo. Introdução, notas e comentário de Olímpio de Souza Andrade. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2009. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_obrasgerais/drg1283650.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/d...
, p. 223). Mas o que se seguiu foi bem pior do que uma retirada estratégica.

“É tempo de murici, cada um cuide de si”, teria sido a ordem do novo comandante, o coronel Pedro Nunes Tamarindo, assim que o dia amanheceu, segundo o relatado por Euclides da Cunha em Os Sertões (CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 481). Mas o que houve foi uma verdadeira desordem. A enorme tropa que prometia tomar o arraial, formada por cerca de 1.200 homens, fugiu desabalada, deixando 13 oficiais insepultos e centenas de soldados feridos ao longo do caminho, assim como uma preciosa munição para os seguidores do líder Antonio Conselheiro (SAMPAIO NETO et al., 1986SAMPAIO NETO, José Augusto Vaz et al. (org.). Canudos: subsídios para a sua reavaliação histórica. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986. Disponível em: http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/FCRBbases/FCRB_canudos_subsidios_para_a_sua_reavaliacao_historica.zip. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dado...
, p. 43). Corpos dos militares abandonados seriam encontrados, três meses depois, pelos integrantes da quarta expedição, numa das cenas mais macabras descritas por Euclides da Cunha em Os Sertões. Surpreendentemente, Moreira César não estava entre eles. Tamarindo, sim.

À margem esquerda do caminho, erguido num tronco — feito um cabide em que estivesse dependurado um fardamento velho — o arcabouço do coronel Tamarindo, decapitado, braços pendidos, mãos esqueléticas calçando luvas pretas...

Jaziam-lhe aos pés o crânio e as botas.

E do correr da borda do caminho ao mais profundo das macegas, outros companheiros de infortúnio: esqueletos vestidos de fardas poentas e rotas, estirados no chão, de supino, num alinhamento de formatura trágica; ou desequilibradamente arrimados aos arbustos flexíveis, que, oscilando à feição do vento, lhes davam singulares movimentos de espectros — delatavam demoníaca encenação adrede engenhada pelos jagunços

(CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 533).

A resposta sobre o que aconteceu com o corpo de Moreira César parecia estar para sempre perdida em uma das pastas de telegramas, quatro deles criptografados, guardadas no Arquivo Histórico do Exército, no sexto andar do Palácio Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Enquanto a correspondência trocada entre os militares isolados no front baiano e os oficiais do Ministério da Guerra, na então capital federal, ainda é facilmente legível, esses quatro telegramas sem data nem assinatura guardavam informações tidas como tão secretas que exigiam uma chave para serem decodificados, em poder apenas dos mais graduados oficiais da época.

É provável que o acesso a seu conteúdo tenha se perdido com o tempo, mesmo para os militares. Os incompreensíveis telegramas foram transcritos e depois catalogados pelo segundo tenente José de Macedo Braga, encarregado pela Diretoria do Arquivo Histórico do Exército de recuperar a documentação da Guerra de Canudos, para um projeto de História Militar sobre a campanha em 1941 (AHEx, 1897a). Em seu relatório, o tenente não demonstra ter qualquer informação sobre o conteúdo, apenas afirma que tudo indicava serem informações sobre o desastre da terceira expedição.

Com as ferramentas digitais atualmente disponíveis, porém, seria possível decifrar um código analógico usado mais de um século atrás? Foi o que nos propusemos a fazer: descobrir que conteúdo sensível os telegramas enviados logo após a morte de Moreira César escondiam. E, assim, usar a tecnologia para desvendar as lacunas da história e a pesquisa histórica para compreender e contextualizar esses documentos sigilosos, comparando-os com outras fontes documentais e bibliográficas (ver Figura 1).

Figura 1
Relatório de 1941, informando sobre a existência de telegramas criptografados, que teriam sido enviados para o Ministro da Guerra em março de 1987

Segredos de guerra

Embora permitisse que mensagens fossem trocadas rapidamente entre oficiais que lutavam no sertão nordestino e os altos comandantes sediados em Salvador e no Rio de Janeiro, a 1.400 quilômetros de distância, o telégrafo tinha um sério inconveniente para os militares: deixar o conteúdo da mensagem completamente exposto, como uma carta fora do envelope, permitindo que as informações fossem lidas e eventualmente vazadas. Para garantir a confidencialidade de informações sensíveis, era preciso fazer uso de chaves compartilhadas entre o remetente e o destinatário.

No entanto, nem sempre essas chaves eram encontradas, gerando trapalhadas como demonstra a troca de telegramas no dia 24 de março de 1897, apenas 20 dias após a morte de Moreira César, entre dois generais: Arthur Oscar de Andrada Guimarães, até então comandante do Segundo Distrito Militar, com sede em Recife, enviado às pressas ao sertão baiano para liderar uma nova expedição a Canudos; e o general Bibiano Sérgio Macedo de Fontoura Costallat, ajudante-general do Exército, sediado no Rio de Janeiro. A correspondência faz menção ainda ao general João Tomás de Cantuária, na época comandante do Terceiro Distrito Militar, que abrangia Bahia, Sergipe e Alagoas, mais tarde ministro interino de Guerra, quando o titular, o marechal Carlos Machado Bittencourt, deslocou-se para a Bahia para comandar pessoalmente o cerco a Canudos (GUIMARÃES, 1965GUIMARÃES, Carlos Eugenio. Arthur Oscar: um soldado do império e da república. Rio de Janeiro: Bbliex, 1965.). Com o assassinato do ministro, durante um atentado no Rio de Janeiro, Cantuária assumiu o comando do Ministério da Guerra até a posse do novo presidente, Campos Sales, no ano seguinte.

Figura 2
Telegrama n° 883 da estação do Quartel
Figura 3
Telegrama n° 886 da estação do Quartel Rio n° 588

Nomeado oficialmente como comandante-em-chefe da quarta expedição militar a Canudos, em 6 de março, o general gaúcho Arthur Oscar mal pisou em Salvador e partiu para Queimadas na manhã seguinte, no dia 19. Só chegou na primeira base de operações dois dias depois (SAMPAIO NETO et al., 1986SAMPAIO NETO, José Augusto Vaz et al. (org.). Canudos: subsídios para a sua reavaliação histórica. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986. Disponível em: http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/FCRBbases/FCRB_canudos_subsidios_para_a_sua_reavaliacao_historica.zip. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dado...
, p. 59). Em 16 de maio, entrou em Monte Santo, a segunda base. No final do mês, iniciou o cerco, acampando com as tropas no Morro da Favela, de onde era possível avistar o temido arraial de Belo Monte, conforme o povoado de 5.200 casas, segundo estimativa provavelmente exagerada pelo Exército, foi batizado por Conselheiro. O que teria acontecido de tão grave em 24 de março de 1997 que ninguém, a não ser os oficiais que conhecessem a cifra usada pela expedição Moreira César, pudesse ser informado? Nas pastas do Arquivo Histórico do Exército reservadas à Guerra de Canudos, não há registro dos dois telegramas criptografados enviados pelo general Arthur Oscar para o general Costallat. Nem quem seria o misterioso Trovoada, funcionário responsável por “denodar” os documentos.

Percebe-se que a criptografia dos telegramas era uma questão de segurança nacional, devido ao receio de vazamento de informações sigilosas para apoiadores secretos de Conselheiro e até mesmo para o exterior.

Em 1886, quando foi enviada a primeira expedição militar a Canudos, o litoral brasileiro já estava conectado por 182 estações telegráficas. O serviço era feito pelas linhas da rede estatal RGT (Repartição Geral dos Telégrafos), mas grande parte das companhias que operavam em território nacional era inglesa, como a Brazilian Submarine Telegraph Company, a Amazon Telegraph Company. A mais importante delas, a Western and Brazilian Telegraph Company, era responsável pelas principais linhas costeiras da América Latina, assim como pela ligação direta do país com a Europa e os Estados Unidos, por meio de cabos submarinos que desembocavam em Belém, São Luiz do Maranhão, Fortaleza, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Santos, Desterro (atual Florianópolis) e Porto Alegre. Era razoável temer que os ingleses tivessem acesso à correspondência do exército republicano, como sugerem documentos encontrados no arquivo dos documentos militares da Guerra de Canudos (AHEx,1897bAHEX. Arquivo Histórico do Exército. Telegramas de 7 a 19 de março de 1897 [b]. Campanha de Canudos. In: BR RJ AHEx CCan T 05.)4 4 Telegramas de 7 a 19 de março de 1897, expedidos pelo coronel Siqueira de Menezes; e de 7 a 13 de abril, pelo general Arthur. Conteúdo: telegramas codificados; disposição das forças e seus respectivos comandos; lista dos médicos em Sergipe; pedido de reforços; pedido de cavalos; falta de materiais de guerra; falta de oficiais; pedido de quantificação do efetivo; pedido de provimentos; questões sobre companhia telegráfica inglesa na Bahia. In: BR RJ AHEx CCan T 05. .

Apesar de haver mais ou menos uma divisão entre fluxo nacional – pela RGT e ferrovias (a rede fluvial era inexpressiva) – e o fluxo internacional (pela Western pelos cabos costeiros), havia normalmente cooperação mútua, até pela precariedade do sistema. Muitas vezes a Western não podia fazer uma entrega num trecho e pedia auxílio à RGT. Outras vezes, a RGT encontrava alguma interrupção nos seus ramais e pedia cooperação da Western. Isto é, a Western também operava a entrega de telegramas internos

(MATHEUS, 2014MATHEUS, Letícia C. A imprensa e o desenvolvimento do sistema telegráfico brasileiro. In: XII CONGRESSO ALAIC, 2014, Peru. Anais. Lima: PUCP, 2014. Disponível em: https://congreso.pucp.edu.pe/alaic2014/wp-content/uploads/2013/09/vGT17-Leticia-Matheus.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://congreso.pucp.edu.pe/alaic2014/w...
).

A Inglaterra era apontada como o epicentro de um complô de potências europeias interessadas na restauração da monarquia no Brasil. Pelo menos, segundo a teoria da conspiração montada pelos agitadores jacobinos, florianistas radicais, grande parte deles militares e jornalistas militantes da causa republicana. Amplamente divulgada pela imprensa nacional, a teoria da conspiração restauradora criou uma cortina de fumaça para o fracasso da terceira expedição contra Canudos e, principalmente, daquele que muitos acreditavam ser o sucessor natural de Floriano Peixoto: o temido coronel Moreira César. Para isso, faltava-lhe “tão somente o generalato, que imaginara arrancar junto com a cabeça de Antonio Conselheiro” (PERNAMBUCANO DE MELLO, 2020PERNAMBUCANO DE MELLO, Frederico. A Guerra total de Canudos. 3. ed. São Paulo: Escrituras Editora, 2020 [1997]. [1997], p. 133).

“Era preciso uma explicação qualquer para sucessos de tanta monta. Encontraram-na: os distúrbios sertanejos significavam pródromos de uma vastíssima conspiração contra as instituições recentes”, lembraria Euclides da Cunha, cinco anos depois, em Os Sertões (Cunha, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p 498), minimizando sua participação nela, ao comparar, em dois artigos para o jornal O Estado de S.Paulo, Canudos com Vendeia, região da Bretanha em que monarquistas se rebelaram contra a Revolução Francesa, um século antes, com incentivo da coroa inglesa (COSTA et al., 2022COSTA, Cristiane; BREY, Maria Luise; AZEVEDO, Luana Neves. Anatomia de uma teoria da conspiração: O papel de Euclides da Cunha na divulgação de que Canudos seria o epicentro de um movimento de restauração monarquista patrocinado por potências internacionais. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, 2022, p. 213-237. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27904/15307. Acesso em: 23 jun. 2023. DOI: 10.29146/ecops.v25i2.27904.
https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_po...
).

Com base na exploração de uma verdadeira onda de notícias falsas pelos jornais, ganhou força uma narrativa delirante em que os jagunços de Antonio Conselheiro recebiam apoio de monarquias europeias que enviavam armas ultramodernas, carregamentos de balas explosivas jamais vistas no país – e muito dinheiro para desestabilizar a jovem República, com o objetivo de fundar o Terceiro Império no Brasil. “Garantia-se: um dos chefes do reduto era um engenheiro italiano habilíssimo, adestrado talvez nos polígonos bravios da Absínia”, relata Euclides, ironizando uma das notícias falsas amplamente difundidas, envolvendo ainda oficiais austríacos e franceses (CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 507). Numa ação aparentemente orquestrada de desinformação, surgiram até mesmo documentos secretos que ligariam uma certa Unión Internacional de los Amigos del Império del Brasil à tropa conselheirista, supostamente patrocinada por um Comitê Imperialista sediado em Paris, com filial em Buenos Aires e Nova York.

Foi a princípio o espanto; depois um desvairamento geral da opinião; um intenso agitar de conjeturas para explicar o inconceptível do acontecimento o induzir uma razão de ser qualquer para aquele esmagamento de uma força numerosa, bem aparelhada e tendo chefe de tal quilate. Na desorientação completa dos espíritos, alteou-se logo, primeiro esparsa em vagos comentários, condensada depois em inabalável certeza, a ideia de que não agiam isolados os tabaréus turbulentos. Eram a vanguarda de ignotas falanges prontas a irromperem, de remanente, em toda a parte, convergentes sobre o novo regímen. E como nas capitais, federal e estaduais, há muito, meia dúzia de platônicos, revolucionários contemplativos e mansos, se agitavam esterilmente na propaganda da restauração monárquica, fez-se de tal circunstância ponto de partida para a mais contraproducente das reações

(CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 497-498).

Ao instalar o pânico de que “hordas invasoras” de jagunços estivessem preparadas para saquear as cidades em direção ao litoral, a teoria da conspiração restauradora acabou garantindo o apoio público necessário para mobilizar tropas do Pará ao Rio Grande do Sul (CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]., p. 508) contra os seguidores de Conselheiro. Caso fossem vazados na época, os telegramas enviados pelos sobreviventes da expedição Moreira César poderiam comprometer a narrativa conspiratória, apontando erros táticos que explicariam de forma menos delirante o fracasso de uma legião originalmente formada por 1.300 soldados, dos quais 253 morreram, 120 foram feridos e 17 dados como desaparecidos (SAMPAIO NETO et al., 1986SAMPAIO NETO, José Augusto Vaz et al. (org.). Canudos: subsídios para a sua reavaliação histórica. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986. Disponível em: http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/FCRBbases/FCRB_canudos_subsidios_para_a_sua_reavaliacao_historica.zip. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dado...
, p. 43).

O que teria provocado tamanho estrago? Além do coronel Moreira César, nada menos do que 12 oficiais morreram durante a terceira expedição. Entre os que disseram ter “milagrosamente” sobrevivido aos jagunços de Conselheiro, pelo menos um será citado em termos pouco lisonjeiros em um dos telegramas criptografados: o major Rafael Augusto da Cunha Matos (apud MILTON, 2003MILTON, Aristides Augusto. A campanha de Canudos. Brasília: Senado Federal, 2003 [1901]. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/1070. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id...
, p. 82).

A arte de decifrar segredos

Não surpreende que documentos sensíveis da Guerra de Canudos tenham sido protegidos por criptografia. Do grego kyptós (esconder) e gráphein (escrita), a criptografia é uma técnica para ocultar o que está escrito e tem origem em tempos remotos – aparece em registros históricos da Grécia Antiga. Se hoje a criptografia faz parte do cotidiano, utilizada tanto em transações bancárias quanto na comunicação por meio de aplicativos de celular, durante muito tempo seu principal uso foi militar e diplomático, resguardando informações estratégicas.

A criptografia clássica se baseava em dois modelos: a transposição, que embaralha os caracteres do texto segundo um determinado padrão que funciona como chave para o receptor reordená-los corretamente; e a substituição, que cria uma tabela de correspondência entre os caracteres da mensagem e seus substitutos no texto criptografado (LAREW; KAHN, 1968LAREW, K.; KAHN, D. The codebreakers: the story of secret writing. The American Historical Review. New York: Macmillan, 1968, v. 74, n. 2.).

O próprio código Morse, usado pelos telégrafos elétricos, pode ser considerado uma forma de criptografar uma mensagem, ao transformar vogais e consoantes em sinais curtos (pontos) e longos (traços). Mas, por ser um código amplamente conhecido, para manter o sigilo das mensagens era necessário entregá-las já criptografadas ao telegrafista, protegendo-as de serem interceptadas durante o processo de transmissão pelas linhas telegráficas.

Figura 4
Código Morse

Sem dispor de aparelhagem que permitisse o emprego de técnicas mais avançadas, era de se esperar que o processo de criptografia utilizado pelos militares na época da Guerra de Canudos fosse relativamente simples: uma substituição monoalfabética. Em resumo, as substituições monoalfabéticas transportam para os textos criptografados a mesma distribuição de frequência dos textos originais. Assim, cada símbolo do texto é substituído por um equivalente, e sempre pelo mesmo.

Como a frequência de determinadas letras nos textos em português é amplamente conhecida, há um teste para verificar se o texto criptografado, ou criptograma, tem essa mesma distribuição – o teste do Índice de Coincidência (IC), criado por William Friedman em 1922. Como o valor desse IC para textos em português é próximo de 0,075, os sistemas monoalfabéticos devem ter IC próximo desse valor. Assim, o conteúdo dos quatro telegramas foi submetido a uma ferramenta que calcula o IC automaticamente, no site especializado PlanetCalc. Por garantia, o resultado foi confirmado no site dCode, que também conta com ferramentas capazes de facilitar o trabalho de criptoanálise.

Tabela 1
Índice de Coincidência (IC) dos quatro telegramas analisados

Reunindo os quatro textos num só, o IC foi de 0,0746. A conclusão foi a de que todos os telegramas são monoalfabéticos, apesar do resultado anormal do texto 2. Portanto, efetivamente cada letra foi substituída sempre pela mesma letra em todo os telegramas criptografados. Por exemplo, se a letra A foi substituída pela letra Q, todas as vezes em que o A apareceu numa palavra do texto original foi trocada por Q no criptograma.

A segunda hipótese era a de que a criptografia dos quatro telegramas tivesse feito uso da mesma chave. Para isso foram construídos quatro histogramas, representações gráficas de dados estatísticos sobre a distribuição de letras, um para cada telegrama. A intenção era verificar qual seria a frequência com que uma determinada letra aparece em cada criptograma. O resultado foi interessante: todos têm a frequência de letras distribuídas de forma muito parecida. Portanto, estariam usando a mesma chave ou chaves muito semelhantes.

Gráficos 1, 2, 3 e 4
Frequência de letras distribuídas nos quatro telegramas analisados
Gráfico 5
Quatro criptogramas reunidos em um só texto
Gráfico 6
Frequência do uso de vogais e consoantes em português encontrada na análise dos quatro telegramas

Outra forma de análise desses parâmetros ocorre por meio da elaboração de tabelas para medir o percentual de frequência das letras e dos bigramas do texto. Bigramas nada mais são do que um par de letras consecutivas, como LH ou CH. Numa análise estatística, a identificação dos bigramas mais frequentes numa língua é importante para determinar possíveis correspondências nos textos criptografados.

Por meio dessas tabelas, foi possível comparar a frequência de determinadas letras em um texto de 11.607 de caracteres, com a frequência com que ocorreram nos quatro textos criptografados, que têm um total de 419 caracteres. Trechos escolhidos ao acaso da parte de Os Sertões dedicada à terceira expedição foram usados para essa comparação.

O resultado foi o exposto a seguir, segundo a ferramenta do site Frequency Analysis – Enigmator.

Tabela 2 e 3
Frequências de determinadas letras em um texto de 11.607 de caracteres e frequências que ocorrem nos quatro textos criptografados

Novas tabelas foram elaboradas, utilizando-se o mesmo site para comparar a frequência dos principais bigramas que ocorrem na língua portuguesa com os encontrados nos quatro telegramas criptografados. Da mesma forma que nas tabelas anteriores, tomou-se como base o mesmo texto com 11.607 caracteres, formado por trechos de Os Sertões, e os 419 caracteres dos criptogramas.

É de se notar a prevalência das letras Z, H, K e U e, simultaneamente, dos diagramas formados com H e com Z. Isso sugere que essas letras estão substituindo as vogais A, E, O e, talvez, a consoante R ou S.

Tabelas 4 e 5
Frequências dos principais bigramas que ocorrem na língua portuguesa com os encontrados nos quatro telegramas criptografados

Fonte: Frequency Analysis - Enigmator

Depois dessa análise preliminar, cada texto foi examinado isoladamente numa ferramenta de solução de criptogramas, tanto de forma automática quanto iterativa, no site especializado Cryptogram Solver. No entanto, é preciso advertir que os sistemas automáticos nem sempre conseguem uma tradução perfeita, especialmente quando os textos não têm tamanho suficiente, os percentuais de ocorrência de letras são próximos, há o uso de abreviaturas e até mesmo erros do próprio emissor. Por esse motivo, há a necessidade de analisar as palavras truncadas, usando o conhecimento do idioma e o contexto em que foi transmitida a mensagem. Assim mesmo, nem tudo será decriptografado corretamente.

No caso dos telegramas, a separação das palavras foi mantida, o que facilitou o trabalho, uma vez que normalmente são reunidas e transmitidas em blocos de cinco caracteres, dificultando o uso do contexto para dirimir dúvidas. Com essas informações, e observando os originais dos telegramas, os resultados foram os que seguem.

Análise do telegrama 1

Figura 5
Telegrama codificado 1

Tkhxzg ulfhzhzm xzlevks juhguseqvzg tkskg myffkg muqk vqz fhua fhzdzlvk nexfz juggkzn xzgzg iezfhk rkhzg xkhk lun xuaz h tuhqvk hufqhke

Chave utilizada na tentativa 1:

O texto 1 poderia ser traduzido para:

FORÇAS ENTRARAM CANUDOS PERSEGUIDAS FOGOS M_TTOS MEIO DIA TREZ TRAVANDO LUCTA PESSOAL CASAS QUATRO HORAS CORONEL CEZAR FERIDO RETIROU

Observação: M_TTOS parece ser uma versão truncada de “muitos” ou “mortos”. O horário do primeiro ataque foi realmente ao meio-dia de 3 de março. Num lance de excessiva autoconfiança, o comandante afirmou que pretendia almoçar em Canudos, forçando a tropa a investir imediatamente após uma caminhada exaustiva, desidratada e sem alimentação desde a véspera. Não havia plano B. Moreira César “parecia contar menos com a bravura do soldado e competência de uma oficialidade leal que com uma hipótese duvidosa: o espanto e o terror dos sertanejos em fuga, colhidos de improviso por centenares de baionetas” (CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 467).

Na pressa, mais de mil soldados entraram em Canudos, como quem penetra numa armadilha, descreve Euclides da Cunha em Os Sertões.

E nesse perseguir tumultuário, realizado logo nos primeiros minutos do combate, começou a esboçar-se o perigo único e gravíssimo daquele fossado monstruoso; os pelotões dissolviam-se. Entalavam-se nas vielas estreitas, enfiando a dois de fundo por ali dentro, atropeladamente. Torciam centenares de esquinas que se sucediam de casa em casa; dobravam-nas em desordem, de armas suspensas uns, atirando outros ao acaso, à toa, para a frente; e dividiam-se, a pouco e pouco, em seções pervagantes para toda a banda; e partiam-se, estas, por seu turno, em grupos aturdidos cada vez mais dispersos e rarefeitos, dissolvendo-se ao cabo em combatentes isolados...

(CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 470).

Moreira César ordenou à cavalaria atacar, mas os animais refugaram ao serem recebidos por uma saraivada de tiros no momento em que atravessavam o rio Vaza-Barris, derrubando seus cavaleiros. Aqueles que buscavam atravessar a pé acabavam escorregando no leito do rio, oferecendo uma cena tragicômica para quem observava de binóculos, como o próprio Moreira César. Irritado, o comandante resolveu sair de sua posição protegida e esporear seu cavalo. “Eu vou dar brio àquela gente...”, teria dito, antes de ser atingido na barriga (CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 475-476).

Um dos primeiros a publicar um livro sobre a campanha militar que meses depois destruiria o reduto de Antonio Conselheiro (Última expedição a Canudos, lançado em 1898, revisto, ampliado e republicado em 1912 sob o título Destruição de Canudos), o tenente-coronel Emídio Dantas Barreto descreveu em tom romanesco a cena que, assim como Euclides, não chegou a presenciar. Em seu livro mais abrangente sobre o conflito, Acidentes da guerra (DANTAS BARRETO, 1905DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos). Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/c...
), menciona um detalhe nunca comprovado: o tiro teria partido de um fuzil moderno e não das típicas armas usadas pelos conselheiristas, o que deixa margem à hipótese de traição ou fogo amigo.

O coronel Moreira César estava convencido de que os legionários de Antonio Conselheiro lhe entregariam Canudos no primeiro momento de se encontrarem, se o esperassem, e afagava com um sorriso interior a ideia de voltar em breve ao Rio de Janeiro, aclamado com o mesmo ruído atordoador com que os generais de Roma voltavam de longínquas terras à capital do mundo. Por isso não se deteve diante de conveniência alguma e marchou direito para o seu túmulo.

Compreendendo a gravidade de tão delicado momento, o coronel deixou a polícia na posição que esta força ocupava nas colinas de leste, examinou de novo toda a zona de combate e uma tristeza imensa dominou-o por fim. E logo depois, como tocado por um sopro funesto da fatalidade, dirigia-se para a linha já desconjuntada dos seus legionários apavorados, quando o atingiu uma bala de fuzil moderno. Era a suprema desventura no momento agudo da peleja, o golpe final do destino sobre mil e duzentos homens vencidos!

Mudando então de rumo, o coronel aproximou-se da artilharia, já com o semblante desfeito, o olhar amortecido, vagando incerto, e, vendo-o assim, sem compreenderem bem o que se passava nesse organismo arruinado, os tenentes Severo e Ávila foram ao seu encontro; apearam-no do paciente animal e conduziram-no para a retaguarda da bateria, onde armaram uma barraca para acomodá-lo.

Chamado imediatamente, o Dr. Fortunato verificou ter-lhe o projetil penetrado no baixo ventre, e declarou sem mais reticências que tratava-se de um caso fatal: o comandante estava ferido de morte!

(DANTAS BARRETO, 1905DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos). Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/c...
, p. 128).

Contorcendo-se de dor, Moreira César teria enviado seu assistente pessoal, o capitão Olímpio de Castro, e o primeiro-tenente Alfredo Severo, outro nome que será citado num dos telegramas criptografados, para avisar ao coronel Tamarindo que ele deveria assumir a direção da tropa e renovar o ataque. Em meio ao tiroteio, Tamarindo “recebeu a pesada investidura com uma blasfêmia grosseira” (DANTAS BARRETO, 1905DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos). Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/c...
, p. 130).

A ordem deve ter parecido pouco realista para quem estava sob uma chuva de balas, como Tamarindo e o major Cunha Matos, que já tinha se aborrecido com a decisão de Moreira César de atacar naquele dia; ao contrário do planejado, dar descanso às tropas exaustas pela jornada de 19 quilômetros sob sol inclemente do Rancho do Vigário até Canudos, sem comida nem água. Cunha Matos teria declarado “categoricamente que era impossível renovar o ataque, porquanto havia-o determinado muitas vezes a certa unidade tática, sem conseguir um movimento sequer no empenho reivindicador dos seus brios militares comprometidos” (DANTAS BARRETO, 1905DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos). Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/c...
, p. 130). Essa falta de disciplina levaria a um resultado bem pior do que o das expedições anteriores, chefiadas pelo tenente Pires Ferreira e pelo major Febrônio de Brito, cujas retiradas se deram sem abandono de corpos e feridos. No ataque do dia 3, muitos soldados esfomeados foram mortos enquanto deixavam o combate para procurar comida.

Quase sempre, depois de expugnar a casa, o soldado faminto não se forrava à ânsia de almoçar, afinal, em Canudos. Esquadrinhava os jiraus suspensos. Ali estavam carnes secas ao sol; cuias cheias de paçoca, a farinha de guerra do sertanejo; aiós repletos de ouricuris saborosos. A um canto os bogós transudantes, túmidos de água cristalina e fresca. Não havia resistir. Atabalhoadamente fazia a refeição num minuto. Completava-a largo trago de água. Tinha, porém, às vezes, um pospasto crudelíssimo e amargo — uma carga de chumbo...

Os jagunços à porta assaltavam-no. E invertiam-se os papéis, revivendo o conflito, até baquear no chão — cosido à faca e moído a pauladas, pisado pela alpercata dura o lutador imprudente

(CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 471).

Depois de cinco horas de uma luta inglória, a tropa naturalmente começou a recuar, repelida por jagunços escondidos num aparentemente intransponível labirinto de casebres e becos quase iguais. O medo de ficar sem munição e ser enterrado naquele formigueiro quando a noite virasse breu trouxe momentos de pânico, com soldados se atropelando para chegar até a outra margem do Vaza-Barris. Pisoteados pela massa em fuga, alguns chegaram mesmo a se afogar em suas águas rasas, que ficaram cobertas de cadáveres, numa cena dramática descrita por Euclides da Cunha com base nos relatos de soldados que a testemunharam.

Repelindo-se; apisoando os malferidos, que tombavam; afastando rudemente os extenuados trôpegos; derrubando-os, afogando-os, os primeiros grupos bateram contra a margem direita. Aí, ansiando por vingá-la, agarrando-se às gramíneas escassas, especando-se nas armas, filando-se às pernas dos felizes que conseguiam vencê-las, se embaralham outra vez em congérie ruidosa. Era um fervilhar de corpos transudando vozear estrídulo, e discordante, e longo, dando a ilusão de alguma enchente repentina, em que o Vaza-Barris, engrossado, saltasse, de improviso, fora do leito, borbulhando, acachoando, estrugindo…

(CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 477).

Análise do telegrama 2

Figura 6
Telegrama codificado 2

fkhxy mkhhk iezfhk mzvhheszvz tznnuxuk zmqskg jzvqknz jhkxehzdzm neszh ulfuhhzh tkhzm zfzxzvhg

Foi usada a mesma chave do telegrama 1 na tentativa no texto 2. Aplicou quase perfeitamente.

Poderíamos traduzir o texto 2 para:

TORC_ MORRO QUATRO MADRUGADA FALLECEO AMIGOS PADIOLA PROCURAVAM LUGAR ENTERRAR FORAM ATACADOS

Em Os Sertões, Euclides da Cunha narrará o que aconteceu naquela madrugada em tons bem mais dramáticos do que a fria letra da comunicação telegráfica. Ao final da tarde, os soldados acamparam no Alto do Mário, de onde ouviam ladainhas e rezas que iniciaram religiosamente ao bater dos sinos da Ave Maria (CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 479).

Numa palhoça em ruínas o comandante-em-chefe, moribundo, soube pelos oficiais que no dia seguinte iniciariam a retirada. De pouco adiantou vociferar. Às 4h da madrugada, sua voz deixou de ser ouvida. O futuro marechal Dantas Barreto, que se consagraria como sucessor de Joaquim Nabuco na cadeira 27 da Academia Brasileira de Letras, recuperou detalhes em seu livro Acidentes da guerra (DANTAS BARRETO, 1905DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos). Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/c...
):

O coronel Tamarindo, assoberbado por semelhante situação nascida do imprevisto; vencido pela fatalidade do seu temperamento particular; entregue aos desfalecimentos da sorte adversa, que lhe dava a expressão viva do martírio; com o espírito embotado pela falta de estimulante intelectual enérgico e, então, ainda mais pelos horrores da jornada que terminara com o desbarato da expedição inteira; recostado sobre um caixote de munição, indiferente ao que se desenrolava a seus olhos, tinha o aspecto contrito, que um jacto de luz trairia, do condenado já desiludido da piedade humana e cuja morte se aproxima inexoravelmente. Não aventurava uma frase, um pensamento sequer a respeito da situação que o empolgara tão cruelmente, ao passo que os minutos e as horas se sucediam no seu universal andamento. Dir-se-ia, mesmo, já ter perdido até a noção da existência e fazia pena vê-lo assim, esmagado pela desventura! Diante de tamanho desalento, o tenente Severo, encarando o perigo em suas justas proporções, e querendo doutriná-lo com um lance de energia, aproximou-se do chefe, desenhou-lhe com tintas carregadas todos os desastres que os encaminhavam para a hecatombe sem exemplo nos fastos da história nacional e pediu-lhe que tomasse uma resolução imediata, vazada na audácia dos instantes supremos da guerra, a fim de conjurar, se ainda era possível, a calamidade que se manifestaria assombrosa, apenas clareasse o dia. Uma centelha de vida atravessou-lhe a alma quase adormecida e, readquirindo uns laivos da sua antiga animação, o velho soldado convocou os comandantes de unidades e frações militares para ouvi-los a respeito dos sucessos e nesse conselho, atenta a desorganização de todos os elementos expedicionários, ficou assentada, não sem protesto dos tenentes Domingos Alves e Alfredo do Nascimento, também consultados sobre os acontecimentos, a retirada da coluna, ao romper da manhã

(DANTAS BARRETO, 1905DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos). Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/c...
, p. 135-137).

Havia um plano de retirada: a infantaria formar um quadrado, reforçada pela artilharia nos ângulos da retaguarda. Dentro, iriam os feridos. Os armamentos que não pudessem ser carregados seriam inutilizados (DANTAS BARRETO, 1905DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos). Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/c...
, p. 127). Mas o planejamento logo foi substituído por uma fuga desordenada, em que soldados de todos os corpos se misturaram na correria pelas estradas, e apenas uma divisão com canhões, guarnecida por poucos homens da infantaria, tentou garantir a retaguarda sem sucesso. Sob vaias e gritos de desdém dos jagunços, a terceira expedição “não retirava, fugia” (CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 485). Uma vez dada a partida, ninguém mais se lembrava do combinado, cada um lutando para correr mais do que o outro, como retrata Euclides da Cunha.

Oitocentos homens desapareciam em fuga, abandonando as espingardas; arriando as padiolas, em que se estorciam feridos: jogando fora as peças de equipamento; desarmando-se; desapertando os cinturões, para a carreira desafogada; e correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos, em bandos erradios, correndo pelas estradas e pelas trilhas que as recortam, correndo para o recesso das caatingas, tontos, apavorados, sem chefes.

Entre os fardos atirados à beira do caminho ficara, logo ao desencadear-se o pânico — tristíssimo pormenor! — o cadáver do comandante. Não o defenderam. Não houve um breve simulacro de repulsa contra os inimigos, que não viam e adivinhavam no estrídulo dos gritos desafiadores e nos estampidos de um tiroteio irregular e escasso, como o de uma caçada. Aos primeiros tiros os batalhões diluíram-se (CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 487).

Três oficiais e um “cabo de esquadra que fora seu ordenança e amigo” (DANTAS BARRETO, 1905DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos). Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/c...
, p. 147) teriam conduzido a padiola com o corpo de Moreira César, planejando enterrá-lo dignamente numa cova funda que pudesse ser localizada mais tarde nas proximidades da Fazenda do Rosário. Mas os quatro não chegaram a caminhar três quilômetros, quando foram assaltados por um bando de jagunços numa emboscada.

Cedendo, portanto ao peso da adversidade cada vez mais implacável, os valentes militares baixaram a padiola para um lado do caminho, lançaram ainda um olhar de saudade sobre o cadáver que entregavam à profanação dos selvagens sertanejos e preciptaram-se para a frente, sem articularem uma palavra, succumbidos a essa provação esmagadora. E só pela audácia de que écapaz o homem arrojado nas situações desesperadas conseguiram eles vencer os obstáculos que lhes opunha o adversário vitorioso. Depois seguiu-se a matança em toda a linha de retirada, e não se descreve com tintas bastante vivas o que então se passou

(DANTAS BARRETO, 1905DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos). Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/c...
, p. 140-151).

A partir daí, uma lenda se criou em torno do corpo de Moreira César. Nem todos os responsáveis por protegê-lo teriam fugido. Num lance heroico, o ordenança Arnaldo Roque teria pago com a própria vida a fidelidade ao comandante-em-chefe, protegendo seu corpo até o fim. Infelizmente, para os que inventaram a história, o cabo Roque em pessoa tratou de desconstruir o mito do herói abnegado, ao reaparecer em segurança, menos de uma semana depois.

A história inspirou o dramaturgo Dias Gomes para criar o cabo Jorge, protagonista da peça O berço do herói, em 1963. Embora transposta na peça para os combates na Itália em 1944, a história era ainda tão incômoda que foi proibida pela ditadura militar que se instalaria no ano seguinte. Em 1975, a primeira versão da telenovela Roque Santeiro, em que Dias Gomes voltava ao tema do herói “que era sem nunca ter sido”, também foi censurada. Só uma década depois foi ao ar uma terceira versão, que se tornou um dos maiores sucessos da tevê brasileira (RIBEIRO, 2019RIBEIRO, Rondinele Aparecido. De O Berço do Herói a Roque Santeiro: análise da transposição do herói para a teleficção. Dissertação de mestrado, Letras, FCLAS, UNESP, 2019. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/190956. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
). Era uma crítica bem-humorada à manipulação da opinião pública apelando para lances de heroísmo reais ou imaginários.

A morte trágica de Salomão da Rocha foi uma satisfação ao amor-próprio nacional. Aditou-se-lhe depois, mais emocionante, a lenda do cabo Roque, abalando comovedoramente a alma popular. Um soldado humilde, transfigurado por um raro lance de coragem marcara a peripécia culminante da peleja. Ordenança de Moreira César, quando se desbaratara a tropa, e o cadáver daquele ficara em abandono à margem do caminho, o lutador leal permanecera a seu lado, guardando a relíquia veneranda abandonada por um exército. De joelhos junto ao corpo do comandante, batera-se até ao último cartucho, tombando, afinal, sacrificando-se por um morto...

E a cena maravilhosa, fortemente colorida pela imaginação popular, fez-se quase uma compensação à enormidade do revés. Abriram-se subscrições patrióticas; planearam-se homenagens cívicas e solenes; e, num coro triunfal de artigos vibrantes e odes ferventes, o soldado obscuro transcendia à História quando —vítima da desgraça de não ter morrido —, trocando a imortalidade pela vida, apareceu com os últimos retardatários supérstites em Queimadas

(CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 505).

Dantas Barreto narra em detalhes as aventuras por que teria passado o herói que preferiu viver a entrar para a história, sacrificando-se abraçado ao cadáver de Moreira César. Junto com os oficiais responsáveis pelo corpo, o cabo Roque teria se embrenhado pela caatinga para fugir dos jagunços. Dado como morto, foi um dos últimos soldados que chegaram à base de Monte Santo, frustrando-se ao descobrir que o próprio comandante militar tinha fugido, deixando apenas um bilhete: “À vista das notícias alarmantes vindas da frente, retiro-me para Queimadas, também para onde deverão seguir todos que aqui chegarem” (DANTAS BARRETO, 1905DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos). Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/c...
, p. 155-156).

Análise do telegrama 3

Figura 7
Telegrama codificado 3

rzdulvk nexfz xkhjk xkhjk zkmjnufz vughvum zhfqnvzhqz zjuazh fqhkg fkmzvz mkhhuh kttqxtzug zjhqgqhlzvzg

Usando a chave no texto 3, obtém-se:

HAVENDO LUCTA CORPO A CORPO COMPLETA DESORDEM ARTILHARIA APEZAR TIROS TOMADA MORRER OFFICIAES APRISIONADAS

Enquanto a tropa disputava quem corria mais, abandonando fardas, armas, munição e mantimentos na estrada para carregar menos peso, a artilharia seguia vagarosamente na retaguarda, disparando granadas contra os jagunços que avançavam, sob o firme comando do capitão José Agostinho Salomão da Rocha, segundo Euclides da Cunha. “O resto da expedição podia escapar-se a salvo. Aquela bateria libertava-a. De encontro aos quatro Krupps de Salomão da Rocha, como de encontro a uma represa, embatia, e parava, adunava-se, avolumando, e recuava, e partia-se a onda rugidora dos jagunços” (CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 488).

Mas de pouco valeram os canhões de aço alemães e as modernas granadas contra um arrastão de “sertanejos em chusma, gritando, correndo, disparando os trabucos e as pistolas – assombrados ante aquela resistência inexplicável, vacilantes no assaltar a zargunchadas e a faca o pequeno grupo de valentes indomáveis”. O cerco se fechou. “Um a um tombavam os soldados da guarnição estoica” (CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 489), originalmente formada pelo capitão Salomão, o primeiro tenente Alfredo Teixeira Severo, o alferes Paula Freitas e um número de artilheiros inferior a 10 praças, além dos condutores dos animais que puxavam os canhões (ARARIPE, 1985ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedições militares a Canudos e seu aspecto militar: seu aspecto marcial. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército – Bibliex, 1985 [1960]., p. 70).

O coronel Tamarindo, que volvera à retaguarda, agitando-se destemeroso e infatigável entre os fugitivos, penitenciando-se heroicamente, na hora da catástrofe, da tibieza anterior, ao deparar com aquele quadro estupendo, procurou debalde socorrer os únicos soldados que tinham ido a Canudos. Neste pressuposto ordenou toques repetidos de “meia volta, alto!”. As notas das cornetas, convulsivas, emitidas pelos corneteiros sem fôlego, vibraram inutilmente. Ou melhor — aceleraram a fuga. Naquela desordem só havia uma determinação possível: “debandar!”

Debalde alguns oficiais, indignados, engatilhavam revólveres ao peito dos foragidos. Não havia contê-los. Passavam; corriam; corriam doidamente; corriam dos oficiais; corriam dos jagunços; e ao verem aqueles, que eram de preferência alvejados pelos últimos, caírem malferidos, não se comoviam. O capitão Vilarim batera-se valentemente quase só, e ao baquear, morto, não encontrou entre os que comandava um braço que o sustivesse. Os próprios feridos e enfermos estropiados lá se iam, cambaleando, arrastando-se penosamente, imprecando os companheiros mais ágeis...

As notas das cornetas vibravam em cima desse tumulto, imperceptíveis, inúteis... Por fim cessaram. Não tinham a quem chamar. A infantaria desaparecera...

Pela beira da estrada, viam-se apenas peças esparsas de equipamento, mochilas e espingardas, cinturões e sabres, jogados a esmo por ali fora, como coisas imprestáveis.

Inteiramente só, sem uma única ordenança, o coronel Tamarindo lançou-se desesperadamente, o cavalo a galope, pela estrada — agora deserta — como se procurasse conter ainda, pessoalmente, a vanguarda. E a artilharia ficou afinal inteiramente em abandono, antes de chegar ao Angico.

Os jagunços lançaram-se então sobre ela.

Era o desfecho. O capitão Salomão tinha apenas em torno meia dúzia de combatentes leais. Convergiram-lhe em cima os golpes; e ele tombou, retalhado a foiçadas, junto dos canhões que não abandonara.

Consumara-se a catástrofe...

(CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 489).

Dantas Barreto narra de forma bem diferente os lances dramáticos em que a artilharia estava prestes a ser sacrificada. Baseando-se no depoimento do tenente Alfredo Severo, que será diretamente citado num dos telegramas criptografados, relata uma cena que não aparece em Os Sertões. Em desespero, o capitão Salomão teria abandonado os canhões com Severo, galopando velozmente em busca de Cunha Matos.

E nunca mais se soube ao certo o que fora feito do brioso capitão que, segundo um dos seus companheiros de jornada, morreu quando voltou desenganado do seu generoso objetivo, mais ou menos na altura em que daí a quatro meses o 25 batalhão de infantaria de vanguarda na expedição Arthur Oscar encontrou o cadáver desarticulado do coronel Tamarindo. E presume que assim fosse, diz o oficial referido, porque acharam-se fragmentos da gola de uma túnica fina com o numero – dois – e um atilho contendo a quantia de quatro contos de réis, preso a uma canela humana, como costumava guardar o capitão Salomão igual importância recebida na caixa militar que acompanhara a expedição, para despesas do pessoal que comandava

(DANTAS BARRETO, 1905DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos). Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/c...
, p. 152-153).

Se existem vários testemunhos de participantes da quarta expedição, como os livros escritos pelo então próprio Dantas Barreto e pelo tenente Henrique Duque-Estrada Macedo Soares, além dos estudantes de medicina Alvim Martin Horcades e Francisco Mangabeira, e ainda o do tropeiro Manuel Bombinho, o mesmo não se pode dizer da terceira expedição. As memórias do então sargento e futuro brigadeiro Marcos Evangelista da Costa Villela Jr., publicadas apenas em 1988, são uma exceção. Nela, o integrante da artilharia do capitão Salomão dá sua versão sobre o que aconteceu com a “guarnição estoica” que teria dado a vida para proteger os companheiros.

Pela manhã do dia 4 de março, depois de uma hora de bombardeio, ele viu que os soldados posicionados nas linhas laterais que deveriam proteger a artilharia estavam se retirando, deixando-a completamente desguarnecida, assim como os feridos reunidos no hospital de sangue. Capitão Salomão teria dado ordem para continuar em fogo constante até a retirada do último ferido e depois encontrá-lo na estrada. No caminho, Villela Jr. diz ter chegado a ver o corpo do coronel Moreira César jogado numa padiola abandonada num descampado em meio a feridos agonizantes e outros cadáveres, enquanto o resto da tropa corria em disparada. “Vi o coronel Tamarindo galopando e, tomando a frente dos pelotões, gritando: ‘Alto, meia volta!’, e os pelotões fugiam, lateralmente entrando na caatinga para adiante tomarem a estrada” (VILLELA Jr., 1988, p. 27). Também o capitão Salomão galopava, quando seu cavalo foi ferido, segundo o artilheiro.

Um pouco adiante, encontrei-o mancando, com o revólver na mão e vociferando palavras que não é interessante reproduzir. Perguntei-lhe se estava ferido e ele respondeu que sim (...) Neste ponto, atingimos os três canhões que tinham marchado na frente e estavam entreverados num corredor estreito, pois na azáfama do salvamento, tinham fechado a passagem completamente. Aí chegando, o capitão encostou-se em uma face do armão, quando uma leva compacta de jagunços vem gritando e nos fuzilando sem piedade. Enquanto isso acontecia, eu insistia em montar o capitão no muar, mas ele me disse: “Eu estou morto e onde fica a bateriam fica seu capitão, trata de salvar-se se conseguir

(VILLELA Jr., 1988VILLELA JR., Marcos Evangelista da Costa. Canudos: memórias de um combatente. São Paulo: Marco Zero, 1988., p 27-28)

Quando olhou para trás, o sargento diz não ter visto mais os canhões, apenas o grande grupo de jagunços que os rodeavam. Lá teriam ficado o capitão Salomão, o primeiro-sargento Júlio Edmundo Paes de Figueiredo e alguns artilheiros cujos ferimentos os impediram de fugir. Assim como Villela Jr., os auxiliares mais próximos do capitão Salomão, o tenente Alfredo Severo e o alferes Paula Freitas, escaparam.

Tomados os canhões, os jagunços avançaram sobre o resto da tropa. O coronel Tamarindo teria sido um dos primeiros a serem atingidos. Sua última ordem foi um pedido desesperado para buscar o major Cunha Matos, que comandava o 7º Batalhão e seria seu sucessor natural no comando da expedição, mas ele já estava longe.

Logo adiante, na ocasião em que transpunha a galope o córrego do Angico, o coronel Tamarindo foi precipitado do cavalo por uma bala. O engenheiro militar Alfredo do Nascimento alcançou-o ainda com vida. Caído sobre a ribanceira, o velho comandante murmurou ao companheiro que o procurara a sua última ordem:

— Procure o Cunha Matos...

Esta ordem dificilmente podia ser cumprida

(CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 489-490).

Análise do telegrama 4

Figura 8
Telegrama codificado 4

xklgfz fululfu guduhk dqzp zieq xruszhzm xzjqfzug znnuneqz fululfuq xzhjug tqseuqhz zdquz ieu tuhqvk fkrkg qlrq slzvk xklfhz mz pkh xelrz m ieu vuk dka vu xzvz em

A chave se aplicou quase perfeitamente. O final está evidentemente truncado.

O texto 4 pode ser traduzido para:

CONSTA TENENTE SEVERO VIAJOU AQUI CHEGARAM CAPITAES ALLELUIA TENENTE CARPES FIGUEIRA AVISA QUE FERIDO TODOS INDIGNADO CONTRA MAJOR CUNHA M QUE DEO VOZ DE CADA UM

Aparentemente, falta a parte final do telegrama. Teria sido o major Cunha Matos quem pronunciou a famosa frase atribuída a Tamarindo ou simplesmente a repetiu à tropa, incentivando o “cada um por si” que levou à desorganização da retirada? Outra possibilidade é a última palavra ter vindo truncada, ou faltando um pedaço, e o telegrama dizer que o major, que deveria suceder Tamarindo na terceira expedição, deu ordem de “debandar”. A verdade é que, mal se viu em segurança, o ágil Cunha Matos se apressou a dar explicações.

Figura 9
Primeira página do jornal O Paiz, edição do dia 8 de março de 1897, n. 4539

A mesma edição do jornal O Paiz que, no dia 8 de março, anuncia a morte de Moreira César e o fracasso da terceira expedição, sob o título, todo em letras maiúsculas, de “A CATASTROPHE”. Há um telegrama que expõe um relatório do major, datado do dia 5, que nas entrelinhas se exime de qualquer responsabilidade. Segundo ele, “todos os comandantes foram de opinião que pela madrugada se fizesse uma retirada em ordem e de forma a não abandonar um só ferido”. Seu relato sobre o corpo de Moreira Cesar coincide com a informação de que os soldados responsáveis pela padiola em que estava o comandante teriam fugido:

“Conselheiristas, com carabinas, vararam o infeliz coronel com uma bala, acidente este que foi imediatamente comunicado ao coronel Tamarindo (...) Em seguida o coronel Tamarindo évarado por uma bala, os condutores de feridos abandonaram estes que são sacrificados”

(O PAIZ, 1897O PAIZ. A Catastrophe. Rio de Janeiro, 8 de março de 1897, n. 4539, p. 1. In: HEMEROTECA DIGITAL BRASILEIRA. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/178691/per178691_1897_04539.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://memoria.bn.br/pdf/178691/per17869...
, p. 1).

Se o capitão Salomão figurou como o grande herói da terceira expedição, sacrificando-se resignadamente em meio aos canhões, sabe-se que toda a guarnição de apoio sediada na base de Monte Santo fugiu para a base de Queimadas assim que soube do desastre em Canudos pelo alferes Atto Batista, o primeiro a chegar, no meio-dia do dia 5. Tinha lá seus motivos, não passava “de platônica guarnição de 80 doentes e 70 crianças” alistadas à força por Moreira César, tão fracos que não aguentaram seguir viagem para Canudos; e efetivamente havia sério risco de uma invasão (CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 431). Depois de abandonar a base de apoio às pressas, seu comandante, o coronel Francisco Agostinho de Melo Souza Menezes, chegou a Queimadas no dia 6 e de lá tomou um trem imediatamente para a capital. No dia 7, o Ministério da Guerra comunicou oficialmente à imprensa o desastre que, no dia seguinte, estamparia os jornais do Brasil e de todo o mundo.

Posteriormente, Cunha Matos negaria ser o autor de um relatório citado na reportagem “A CATASTROPHE”, informando que só teria alcançado o arraial de Cumbe na noite do dia 5, “estropiado”, sem cabeça nem “recursos de escritório indispensáveis” para escrever um documento oficial. Disse que rabiscou apenas um bilhete apressado, avisando Souza Menezes do revés. Seu relatório oficial teria sido escrito apenas em 10 de março e, “no intuito de evitar seu extravio”, entregue pessoalmente por ele ao general Cantuária, em Salvador (FONTES, 1996FONTES, Oleone Coelho. O Treme-Terra: Moreira Cesar, a República e Canudos. São Paulo: Vozes, 1996., p. 332), mas por algum motivo não foi tornado público.

O governo federal criou dois inquéritos militares para esclarecer dúvidas e lacunas sobre o fracasso da terceira expedição. Personagem-chave, Cunha Matos não foi ouvido, embora tenha solicitado um Conselho de Guerra. O Exército preferiu enviá-lo de volta a Canudos. Bilhete ou documento oficial, uma frase intriga no relato que Cunha Matos enviou para Souza Menezes ainda no dia 5: “O coronel não imagina como estou, e estamos todos, com o grande desastre; mas também estou certo de que não encontrará dificuldades em descobrir o culpado. E mais nada” (ARARIPE, 1985ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedições militares a Canudos e seu aspecto militar: seu aspecto marcial. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército – Bibliex, 1985 [1960]., p. 66).

Sobre a referência ao primeiro-tenente Alfredo Teixeira Severo no telegrama criptografado, sabe-se que, ao ver a tropa debandando, foi contaminado pelo pânico, em mais um exemplo de que a cena do sacrifício da “guarnição estoica” de Salomão da Rocha não aconteceu exatamente conforme foi registrada pela história. Assim como os artilheiros Villela Jr. e Paula Freitas, fugiu, deixando o capitão ferido para trás.

O autor do telegrama parece estranhar que Severo já tivesse ido embora de Monte Santo quando lá chegou. “Acreditou-se que todo o pessoal da artilharia houvesse sido trucidado quando tentava salvar os canhões condenados, mas em vez desse sacrifício inútil muitos tinham seguido o exemplo dos seus companheiros das outras armas”, desmerece Dantas Barreto (DANTAS BARRETO, 1905DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos). Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/c...
, p. 163).

Por mais de uma vez o tenente Severo e o alferes Paula Freitas detiveram alguns soldados que passavam pelos flancos para guarnecer os canhões e tirá-los a pulso, como último recurso, mas em seguida esses homens pávidos deixavam tudo e punham-se a correr, a correr, no prolongamento da estrada, alucinados pelo medo crescente. Os feridos, confiados ainda à piedade dos companheiros, foram também abandonados e mortos a couce d’arma ou a golpes de facão e de cacete, porque os fanáticos já não gastavam a sua munição com essa fraqueza do governo, como diziam quando se referiam ao pessoal de qualquer das expedições

(DANTAS BARRETO, 1905DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos). Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/c...
, p. 153-154).

Um relatório do primeiro-tenente Marcos Pradel de Azambuja parece indicar que pode ter sido ele o autor do telegrama criptografado em que são citados o tenente Severo e o major Cunha Matos. Em Expedições militares a Canudos e seu aspecto militar, Tristão de Araripe Alencar recupera a informação de que, visivelmente incomodado, Cunha Matos repassou o relatório de Pradel ao general Artur Oscar, eximindo-se de qualquer explicação. “Não só porque meus brios assim o exigem, mas também porque poderiam os meus superiores tomar como insinuação os meus comentários”, murmura Cunha Matos no bilhete que enviou ao comandante da quarta expedição, junto com o depoimento do subordinado (apud ARARIPE, 1985ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedições militares a Canudos e seu aspecto militar: seu aspecto marcial. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército – Bibliex, 1985 [1960]., p. 67). No seu relatório, Pradel diz que ele e outros oficiais não foram consultados sobre a retirada no dia 4 e que, assim como Moreira César, achavam que não havia por que retroceder.

O que posso, entretanto, adiantar e isto não só por informações prestadas por oficiais de infantaria, como também pelo que vi na estada, quando retirei, é que essa arma (infantaria) contava ainda na madrugada desse dia com o cinquenta mil cartuchos e um pessoal pronto que podia atingir facilmente ao número de um mil homens, aptos para combater, não contando a bateria de artilharia, que dispunha de quase todo o seu pessoal, inclusive munição para sessenta tiros, mais ou menos

(apud ARARIPE, 1985ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedições militares a Canudos e seu aspecto militar: seu aspecto marcial. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército – Bibliex, 1985 [1960]., p. 69).

Ainda no relatório, aparentemente escrito a pedido do próprio Cunha Matos, Pradel de certa forma acusa o major de ter fugido de suas responsabilidades, ao comandar a vanguarda da coluna que “avançava sempre, e como sempre, deixava em sua retaguarda um número enorme de feridos”, com medo de enfrentar um “um grupo de 200 homens, mais ou menos, que fez uma verdadeira caçada nessa massa de soldados” (apud ARARIPE. 1985ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedições militares a Canudos e seu aspecto militar: seu aspecto marcial. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército – Bibliex, 1985 [1960]., p. 70). Em sua opinião, um novo ataque teria resultado em perdas bem menores do que a retirada desastrada. “A maior parte do pessoal que perdemos, quer de oficiais, quer de soldados, não foi morto em combate regular; foi cortado a facão pelos fanáticos de Antonio Conselheiro, porque, sem meios de retirada, achavam-se abandonados na estrada” (apud ARARIPE, 1985ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedições militares a Canudos e seu aspecto militar: seu aspecto marcial. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército – Bibliex, 1985 [1960]., p. 70-71).

Pradel vai dar nova versão sobre a morte de Tamarindo em seu depoimento. Diz que, depois de caído do cavalo, ferido, implorou à força que passava que formasse um quadrado, como o originalmente combinado, para resistir aos jagunços. “Esta, porém, não atendia e, sem comando, posso dizer, porquanto já estáveis próximo ao Rosário, avançava sempre, em completa desordem”, diz, dirigindo-se a Cunha Matos, indiretamente acusando o major de ter sido um dos primeiros a fugir. Penalizados, alguns oficiais teriam levado Tamarindo ainda com vida a uma casa próxima, em pouco minutos invadida por um bando de jagunços, que retalharam o corpo do coronel a facão, “como fizeram ao bravo coronel Moreira Cesar, e aos infelizes companheiros que, com vida ou sem ela, foram ficando pela estrada” (apud ARARIPE, 1985ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedições militares a Canudos e seu aspecto militar: seu aspecto marcial. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército – Bibliex, 1985 [1960]., p. 71).

Conclusão: o que aconteceu com Moreira César?

O pânico que em poucas horas tomou conta da terceira expedição a Canudos é visível nos quatro telegramas criptografados: eles confirmam que, atacados pelos jagunços, os soldados deixaram o corpo de Moreira César para trás, na beira da estrada, sem ter tido tempo de enterrá-lo. Surpreendentemente, um desses telegramas informa ainda que alguns oficiais teriam sido aprisionados pela tropa de Conselheiro. No entanto, nunca se soube de reféns ou prisioneiros dos jagunços.

É possível que não tenham tido morte imediata, alguns deles levados a Belo Monte e só depois sacrificados? Ou mesmo mudado de lado? Pode ser apenas mais um dos mitos da Guerra de Canudos, como o das balas explosivas dos jagunços, que incendiaram a imaginação de militares e jornalistas. Mas, em suas memórias, o tenente Henrique Duque-Estrada Macedo Soares, que atuou na quarta expedição, faz referência a soldados que eventualmente teriam servido como instrutores de tiro e de estratégia militar para os seguidores de Conselheiro (MACEDO SOARES, 1903MACEDO SOARES, Henrique Duque-Estrada de. A Guerra de Canudos. Rio de Janeiro: Compositora Gráfica, 1903. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasgerais/drg1313065/drg1313065.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acer...
).

Os desertores instruíam os fanáticos no manejo das carabinas modernas e lhes ministravam pequenas noções de tática na ordem dispersa, aliás, instintiva no sertanejo, sendo que, à proporção que se apoderavam do armamento deixado pelos soldados da expedição desbaratada, dele serviam-se imediatamente, com todo o conhecimento e ótimas pontarias, demonstrando assim que naquela época já existia em Canudos um bom núcleo de indivíduos, conhecedores das modernas carabinas, cujo uso demanda certa prática

(MACEDO SOARES, 1903MACEDO SOARES, Henrique Duque-Estrada de. A Guerra de Canudos. Rio de Janeiro: Compositora Gráfica, 1903. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasgerais/drg1313065/drg1313065.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acer...
, p. 39).

O mais revelador dos telegramas criptografados sugere a indignação de alguns oficiais com a opção pela retirada, fazendo críticas específicas ao major Cunha Matos. Teria o comandante do 7 Batalhão repetido Tamarindo e indicado que dali em diante era “cada um por si”, correndo para salva a própria pele e deixado a artilharia, na retaguarda, ser sacrificada? Possível autor do telegrama, o tenente Pradel lembrou, em seu depoimento, um detalhe intrigante: a maior parte das baixas não teria acontecido em combate, mas durante o abandono dos feridos pela tropa em fuga.

Outra testemunha ocular, o então sargento Villela Jr. teria ouvido do próprio capitão Salomão que a munição da infantaria era pouca e que a da artilharia não daria para meio dia de bombardeio. Villela Jr. afirma em suas memórias que moral da tropa era muito baixa, diante do grave ferimento do comandante, da fome, da sede e da exaustão. O clamor por uma ordem de retirada era geral. O pânico, generalizado. “Não se admire Va. As. se amanhã ficarmos sós com estes canhões”, vaticinou para Salomão (VILELA JR., 1988, p. 24). Foi exatamente o que aconteceu.

É fácil julgar quem não pode se defender. Sabe-se que o próprio Cunha Matos não hesitou em pôr a culpa do fracasso em Moreira César, apesar de ser um de seus homens de confiança. Num telegrama ao general Dionísio de Cerqueira, então ministro do Exterior, datado de 13 de março, afirmou que “era o único a quem o coronel Moreira Cesar ouvia às vezes; que só com muito jeito conseguira por mais de uma ocasião fazê-lo modificar ordens inconvenientes” (apud MILTON, 2003MILTON, Aristides Augusto. A campanha de Canudos. Brasília: Senado Federal, 2003 [1901]. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/1070. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id...
, p. 84). Entre os conselhos não ouvidos estava o de dar descanso à tropa antes de empreender o ataque. Outro erro estratégico teria sido colocar toda a brigada em linha, sem reserva para apoio. Segundo Cunha Matos, “o inimigo, bem resguardado, dentro de meia hora pusera metade dos assaltantes fora de combate, e fizera a outra metade recuar para o barranco do Vaza-Barris” (apud MILTON, 2003MILTON, Aristides Augusto. A campanha de Canudos. Brasília: Senado Federal, 2003 [1901]. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/1070. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id...
, p. 84). Com a morte de Moreira César e a apatia do coronel Tamarindo, a retirada acabaria se dando “no meio da confusão e da desordem”, com desobediência total. Cunha Matos teria até mesmo ameaçado os fugitivos com seu revólver, segundo seu relato, mas nada impediu que abandonassem os retardatários.

Em Expedições militares contra Canudos e seu aspecto marcial, Tristão de Alencar Araripe vai acusar o major de fazer referências “venosas” ao comandante: “Os táticos e estrategistas das mesas dos cafés e dos jornais escolheram Moreira César para ‘bode expiatório”. Para isso, segundo ele, “muito contribuíram as insinuações do major Cunha Matos” (ARARIPE, 1985ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedições militares a Canudos e seu aspecto militar: seu aspecto marcial. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército – Bibliex, 1985 [1960]., p. 73). Araripe considera que as acusações “levianas” do major serviram aos anseios daqueles que buscavam negar que o governo e o povo baiano eram simpatizantes de Conselheiro. “Daí a sanha com que investiram contra a memória de Moreira César”, critica, sem esconder uma certa simpatia pelo coronel. “Procuravam ver erros em todas as providências adotadas, e por fim, deram-no como doente mental” (ARARIPE, 1985ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedições militares a Canudos e seu aspecto militar: seu aspecto marcial. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército – Bibliex, 1985 [1960]., p. 74).

A morte trágica transformou o polêmico Moreira César num herói nacional, mas não universal. No Nordeste, a poesia popular o eternizou sob o apelido de “Corta-cabeças”. No Rio, Moreira César ficou marcado pelo assassinato do jornalista Apulcro de Castro, em 1884, esfaqueado pelas costas. Em Santa Catarina, onde foi nomeado governador, em 1894, seu renome vinha da brutalidade com que debelou a Revolução Federalista. “Em ponto algum do nosso território pesou tão firme e tão estrangulador o guante dos estados de sítios”, narra Euclides da Cunha, que faz um retrato muito negativo do mártir da terceira expedição em Os Sertões. “Os fuzilamentos que ali se fizeram, com triste aparato de imperdoável maldade, dizem-no de sobra” (CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 427).

Justificam-se os que o aplaudiam e os que o invectivavam. Naquela individualidade singular entrechocavam-se, antinômicas, tendências monstruosas e qualidades superiores, umas e outras no máximo grau de intensidade. Era tenaz, paciente, dedicado, leal, impávido, cruel, vingativo, ambicioso. Uma alma proteiforme constrangida em organização fragílima

(Cunha, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]., p. 423).

As páginas de Os Sertões ressaltaram o lado doentio de Moreira César, com descrição de ataques epiléticos durante a viagem a Canudos que teriam comprometido sua capacidade de decisão. “Tinha o temperamento desigual e bizarro de um epilético provado, encobrindo a instabilidade nervosa de doente em placidez enganadora” (Cunha, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 424). Ainda coberta de preconceitos e desconfianças, a epilepsia de Moreira César foi exagerada por Euclides como sendo a raiz de uma espécie de psicopatia. Assim, a expedição de Moreira César teria falhado porque foi liderada por um louco. Em Epilepsia e crime, publicado logo após a guerra, o médico Afrânio Peixoto viu na violência que o coronel demostrou em Santa Catarina um exemplo de “insensibilidade moral ao extremo”, com desejos irrefreáveis, “que a obediência ou terror de seus comandados não sabe de modo algum recusar”, relacionando essas características à doença (PEIXOTO, 1898PEIXOTO, Afrânio. Epilepsia e Crime. Bahia: V. Oliveira & Comp., 1898. Disponível em: https://www.obrasraras.fiocruz.br/media.details.php?mediaID=483. Acesso em: 23 jun. 2023.
https://www.obrasraras.fiocruz.br/media....
, p. 195).

Realmente, a epilepsia alimenta-se de paixões; avoluma-se no próprio expandir das emoções subitâneas e fortes; mas, quando, ainda larvada, ou traduzindo-se em uma alienação apenas afetiva, solapa surdamente as consciências, parece ter na livre manifestação daquelas um derivativo salvador atenuando os seus efeitos. De sorte que, sem exagero de frase, se pode dizer que há muitas vezes num crime, ou num lance raro de heroísmo, o equivalente mecânico de um ataque. Contido o braço homicida, ou imobilizado, de chofre, o herói no arremesso glorioso, o doente pode surgir, ex-abrupto, sucumbindo ao acesso. Daí esses atos inesperados, incompreensíveis ou brutais, em que a vítima procura iludir instintivamente o próprio mal, buscando muitas vezes o crime como um derivativo à loucura.

Durante longo tempo numa semiconsciência de seu estado, numa série de delírios breves e fugazes, que ninguém percebe, que nem ela às vezes percebe, sente crescer a instabilidade da vida. E luta tenazmente. Os intervalos lúcidos fazem-se-lhe ponto de apoio à consciência vacilante à procura de motivos inibitórios numa ponderação cada vez mais penosa das condições normais ambientes. Aqueles, entretanto, a pouco e pouco se enfraquecem. A inteligência abalada afinal mal se subordina às condições exteriores ou relaciona os fatos e, em contínuo descair, baralha-os, perturba-os, inverte-os, deforma-os. O doente cai, então, no estado crepuscular, segundo uma expressão feliz, e condensa no cérebro, como se fosse a soma de todos os delírios anteriores, instável, pronto a desencadear-se em ações violentas, que o podem atirar no crime ou, acidentalmente, na glória, o potencial da loucura.

Cabe à sociedade, nessa ocasião, dar-lhe a camisa de força ou a púrpura

(CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 428-430).

Mas teria a epilepsia esse poder? A neurologista Elza Márcia Targas Yubian analisou a natureza da doença, com base na descrição do biógrafo do militar, Oleone Coelho Fontes, como caracterizada por “crises focais com alucinações visuais elementares e complexas seguidas de déficit de linguagem e episódios de crises parciais complexas e crises com generalizações secundárias” (YACUBIAN, 2003YACUBIAN, Elsa Márcia Targas. Quando a epilepsia pode ter mudado a história: Antônio Moreira César no comando da terceira expedição na Guerra de Canudos. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, São Paulo, v. 61 (2B), jun. 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/anp/a/PZ9vgB5QzgH6jhjSzzm38Nd/abstract/?stop=next&format=html⟨=pt#. Acesso em: 23 jun. 2023. DOI: https://doi.org/10.1590/S0004-282X2003000300035.
https://www.scielo.br/j/anp/a/PZ9vgB5Qzg...
). Haveria relação da epilepsia com alguma desordem de personalidade, como a paranoia? É difícil dizer, argumenta a especialista, uma vez que a epilepsia era fortemente relacionada ao conceito de degenerescência na época.

Por ter sido temido e odiado por tantos, quem matou Moreira César é um dos grandes enigmas da História. “Dir-se-ia que nunca tantos mataram um só”, ironizou José Calasans no prefácio de O Treme-Terra: Moreira Cesar, a República e Canudos (FONTES, 1996FONTES, Oleone Coelho. O Treme-Terra: Moreira Cesar, a República e Canudos. São Paulo: Vozes, 1996.).

No imaginário popular, a bala que liquidou Moreira César veio de pontos diferentes, de armas diversas, contratadas por inimigos sem conta. Muita gente encomendou o fim do famoso paulistano, por causas bem diversas. Como figura sempre no linguajar sertanejo: foi uma morte de encomenda (FONTES, 1996FONTES, Oleone Coelho. O Treme-Terra: Moreira Cesar, a República e Canudos. São Paulo: Vozes, 1996., p. 13).

Calasans reúne referências de que o tiro fatal teria sido dado por um subordinado, como vingança pela atuação do governador militar de Santa Catarina, durante a Revolução Federalista, quando Moreira César mandou matar centenas de revoltosos que se renderam após um acordo de paz (CALASANS, 1979CALASANS, José. Moreira Cesar, quem foi que te matou? Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 324, jul./set. 1979. Disponível em: http://josecalasans.com/downloads/artigos/27.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://josecalasans.com/downloads/artigo...
). O biógrafo Oleone Coelho Fontes lembra que Moreira César também não gozava de boa reputação entre os políticos baianos, por ter contribuído para a derrubada do governador José Gonçalves, quando comandou um batalhão em Salvador em 1891, “seguramente criando inimizade que não terminaria senão com a morte de um ou de outro” (FONTES, 1996FONTES, Oleone Coelho. O Treme-Terra: Moreira Cesar, a República e Canudos. São Paulo: Vozes, 1996., p. 364). Vários amigos do barão de Jeremoabo, latifundiário local e gonçalvista declarado, se referem a Moreira César em termos nada lisonjeiros em suas cartas: “homem malvado, sanguinário por índole” (SAMPAIO, 1999SAMPAIO, Consuelo Novais (org.). Canudos: Cartas para o Barão. São Paulo: EDUSP, 1999., p. 143), “o homem mais cruel que veste a farda do exército” (SAMPAIO, 1999SAMPAIO, Consuelo Novais (org.). Canudos: Cartas para o Barão. São Paulo: EDUSP, 1999., p. 142). “O assassino dos infelizes prisioneiros da Ilha do Governador e de Santa Catarina vai fazer uma carnificina medonha nos maltrapilhos e quase inermes fanáticos de Canudos” (SAMPAIO, 1999SAMPAIO, Consuelo Novais (org.). Canudos: Cartas para o Barão. São Paulo: EDUSP, 1999., p. 64), apieda-se Francisco Pires. “Posso garantir a V Exa. que se o Cesar cercar os Canudos, manda matar até as crianças e as mulheres. Não estou fantasiando, foi isso que se deu em Santa Catarina”, prevê Ubaldo Soares da Silva (SAMPAIO, 1999SAMPAIO, Consuelo Novais (org.). Canudos: Cartas para o Barão. São Paulo: EDUSP, 1999., p. 143).

Antero Galo escreveu ao barão uma carta contando que tinha informações, “com provas evidentes que os coronéis César e Tamarindo foram traídos” (apud SAMPAIO, 1999SAMPAIO, Consuelo Novais (org.). Canudos: Cartas para o Barão. São Paulo: EDUSP, 1999., p. 160). Entre as caixas que guardam a memória da Guerra de Canudos, no AHEx, há uma investigação sobre um cabo identificado apenas como Manoel, do 7º Batalhão de Infantaria, acusado de ter matado o coronel Tamarindo, não Moreira César, por ordem de um capitão. O documento é classificado como reservado5 5 Ofício da sala das sessões do Conselho de investigações na Vila de Santo Antônio das Queimadas, destinado ao general de Brigada Arthur Oscar de Andrade Guimarães. Documento sobre investigação do cabo Manoel, do 7º Batalhão de Infantaria, suspeito do assassinato do coronel Tamarindo, por ordem de um capitão. Relata também a decisão de deslocar o conselho de investigação para a capital, a fim de ouvir testemunhas sobre o caso. O ofício éassinado pelo coronel presidente do Conselho de Investigações, Francisco de Abreu Lima, em 25 de maio de 1897. Observação: o documento é classificado como reservado. In: LIMA, Francisco de Abreu. Ofício da sala das sessões do Conselho de investigações na Vila de Santo Antônio das Queimadas, destinado ao General de Brigada Arthur Oscar de Andrade Guimarães, de 25 de maio de 1897. In: BR RJ AHEx RI CCan Of 14. .

Mesmo o sobrenatural é invocado para explicar a morte do militar. Segundo Calasans, a uma viúva de um médico morto em Santa Catarina teria ido pessoalmente à Bahia e jogado uma praga para Moreira Cesar, quando ele saiu de Salvador em direção a Canudos: “Irás, mas não voltarás” (apud CALASANS, 1979CALASANS, José. Moreira Cesar, quem foi que te matou? Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 324, jul./set. 1979. Disponível em: http://josecalasans.com/downloads/artigos/27.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://josecalasans.com/downloads/artigo...
). Outra praga teria sido obra do vigário de Cumbe, padre Vicente Sabino dos Santos, supostamente obrigado a marchar na frente dos soldados em direção a Canudos, sob acusação de ser simpático a Conselheiro. Calasans reuniu várias histórias como esta.

Posto em liberdade após tanta humilhação, jurou vingança. Correu para sua igreja convocando os fiéis imediatamente, que surpreendidos tiveram de assistir a um ofício divino. O vigário celebrou missa de corpo presente por Antonio Moreira César. Foi tiro e queda. O agoiro pegou. Nenhum vivo sobrevive a uma missa de corpo presente. Uma estória, como tantas outras, do ciclo folclórico de Canudos. Não encontrei o menor indício da violência de Moreira César contra o vigário Sabino. Porém, a “novidade” ainda viceja no sertão

(CALASANS, 1979CALASANS, José. Moreira Cesar, quem foi que te matou? Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 324, jul./set. 1979. Disponível em: http://josecalasans.com/downloads/artigos/27.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://josecalasans.com/downloads/artigo...
).

Sobre o corpo em si, sobreviventes se dividem, tentando explicar por que o homem que era considerado por Conselheiro como o Anticristo não estava entre os decapitados exibidos no caminho para Canudos. Uma trova encontrada numa trincheira dos jagunços e recolhida por um militar dizia que Moreira Cesar foi a Canudos “dar carne aos urubus” (Exército do Brasil, 1997EXÉRCITO DO BRASIL. Informações. A Defesa Nacional - Revista de Assuntos Militares e Estudo de Problemas Brasileiros, Rio de Janeiro, ano LXXXIII, n. 778, out./nov./dez. 1997. Disponível em: http://www.ebrevistas.eb.mil.br/ADN/article/view/6846/5912. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://www.ebrevistas.eb.mil.br/ADN/arti...
, p. 141). Outra, recolhida por Euclides da Cunha em sua caderneta de campo, também faz referência a essa hipótese.

José Morera Sezar
14 batalhas vencêo,
Nas 15 vêo a Bello Monte
E ozurubú o comeu
(CUNHA, 2009CUNHA, Euclides da. Caderneta de campo. Introdução, notas e comentário de Olímpio de Souza Andrade. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2009. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_obrasgerais/drg1283650.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/d...
, p. 151).

No entanto, Os Sertões reservará um fim menos tenebroso para o líder da terceira expedição: “O cadáver de Moreira Cesar foi abandonado durante a retirada e tomado pelos fanáticos que o incineraram” (CUNHA, 2018CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902]. [1902], p. 487). Alguns sobreviventes corroboraram essa versão, outros dizem que Moreira César foi enterrado. Mas, entre os documentos recolhidos no arquivo do Exército pelo tenente José de Macedo Braga, em 1941, há o depoimento de duas moradoras de Canudos presas, informando que Conselheiro proibiu expressamente que enterrassem o corpo do coronel. O documento é parte de um dossiê com o inquérito policial-militar sobre o padre Martinho Codêzo y Martinez, arrolado num processo sobre seu envolvimento com Antonio Conselheiro e propriedade de uma fábrica clandestina de pólvora na Missão do Saí e de um depósito em Vila Nova, no interior da Bahia (SAMPAIO NETO et al., 1986SAMPAIO NETO, José Augusto Vaz et al. (org.). Canudos: subsídios para a sua reavaliação histórica. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986. Disponível em: http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/FCRBbases/FCRB_canudos_subsidios_para_a_sua_reavaliacao_historica.zip. Acesso em: 23 jun. 2023.
http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dado...
, p. 100) (ver Figura 10).

Figura 10
Página de rosto do inquérito policial-militar sobre o padre Martinho Codêzo y Martinez

“É triste mas é verdade – o coronel Antonio Moreira Cesar, depois de morto, foi devorado pelos urubus!!!”, espanta-se o responsável por datilografar a documentação que serviria para contar, do ponto de vista da História Militar, o que efetivamente aconteceu em Os Sertões (MACEDO BRAGA, 1941MACEDO BRAGA, José de. Inquérito policial-militar sobre o padre Martinho Codêzo y Martinez. 1941. In: BR RJ AHEx CCan IPM 02.). Verdade ou não, ela não foi propagada pelos militares.

  • 1
    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e a bibliografia utilizadas são referenciadas.
  • 2
    Doutora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora de pós-doutorado no Departamento de Espanhol e Português da Universidade da Califórnia/Davis, sob supervisão do professor Leopoldo Bernucci. Professora associada do curso de Jornalismo da Escola de Comunicação, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
  • 3
    Doutor em Engenharia de Sistemas e Computação pela COPPE da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor emérito da Seção de Engenharia de Computação do Instituto Militar de Engenharia, Rio de Janeiro, Brasil.
  • 4
    Telegramas de 7 a 19 de março de 1897, expedidos pelo coronel Siqueira de Menezes; e de 7 a 13 de abril, pelo general Arthur. Conteúdo: telegramas codificados; disposição das forças e seus respectivos comandos; lista dos médicos em Sergipe; pedido de reforços; pedido de cavalos; falta de materiais de guerra; falta de oficiais; pedido de quantificação do efetivo; pedido de provimentos; questões sobre companhia telegráfica inglesa na Bahia. In: BR RJ AHEx CCan T 05.
  • 5
    Ofício da sala das sessões do Conselho de investigações na Vila de Santo Antônio das Queimadas, destinado ao general de Brigada Arthur Oscar de Andrade Guimarães. Documento sobre investigação do cabo Manoel, do 7º Batalhão de Infantaria, suspeito do assassinato do coronel Tamarindo, por ordem de um capitão. Relata também a decisão de deslocar o conselho de investigação para a capital, a fim de ouvir testemunhas sobre o caso. O ofício éassinado pelo coronel presidente do Conselho de Investigações, Francisco de Abreu Lima, em 25 de maio de 1897. Observação: o documento é classificado como reservado. In: LIMA, Francisco de Abreu. Ofício da sala das sessões do Conselho de investigações na Vila de Santo Antônio das Queimadas, destinado ao General de Brigada Arthur Oscar de Andrade Guimarães, de 25 de maio de 1897. In: BR RJ AHEx RI CCan Of 14.

Referências

  • AHEX. Arquivo Histórico do Exército. Telegramas de 6 a 16 de março de 1897 [a]. Campanha de Canudos. In: BR RJ AHEx CCan T 07.
  • AHEX. Arquivo Histórico do Exército. Telegramas de 7 a 19 de março de 1897 [b]. Campanha de Canudos. In: BR RJ AHEx CCan T 05.
  • COSTALLAT, Bibiano Sérgio Macedo de Fontoura. Telegrama n° 886 da estação de Quartel Rio n° 588, de 24 de março de 1897. In: BR RJ AHEx CCan T 05 de 17/03 a 13/04/1897.
  • GUIMARÃES, Arthur Oscar de Andrada. Telegrama n° ٨٨٣ da estação de Quartel Rio, de ٢٤ de março de ١٨٩٧. In: BR RJ AHEx CCan T 05, 03/1897.
  • LIMA, Francisco de Abreu. Ofício da sala das sessões do Conselho de investigações na Vila de Santo Antônio das Queimadas, destinado ao General de Brigada Arthur Oscar de Andrade Guimarães, de 25 de maio de 1897 In: BR RJ AHEx RI CCan Of 14.
  • MACEDO BRAGA, José de. Inquérito policial-militar sobre o padre Martinho Codêzo y Martinez 1941. In: BR RJ AHEx CCan IPM 02.
  • BOXENTRIQ. Cryptogram Solver. Disponível em: https://www.boxentriq.com/code-breaking/cryptogram Acesso em: 23 jun. 2023.
    » https://www.boxentriq.com/code-breaking/cryptogram
  • DCODE.FR. Solveurs, Crypto, Maths, Codes, Calculs en Ligne. Disponível em: https://www.dcode.fr/ Acesso em: 23 jun. 2023.
    » https://www.dcode.fr/
  • FREQUENCY ANALYSIS. Enigmator. Disponível em: https://merri.cx/enigmator/cryptanalysis/frequency_analysis.html Acesso em: 23 jun. 2023.
    » https://merri.cx/enigmator/cryptanalysis/frequency_analysis.html
  • PLANETCALC. Index of Coincidence. Disponível em: https://planetcalc.com/7944/ Acesso em: 23 jun. 2023.
    » https://planetcalc.com/7944/
  • ARARIPE, Tristão de Alencar. Expedições militares a Canudos e seu aspecto militar: seu aspecto marcial. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército – Bibliex, 1985 [1960].
  • BOMBINHO, Manuel Pedro das Dores. Canudos, história em versos São Paulo: Editora Hedra, 2002.
  • CALASANS, José. Moreira Cesar, quem foi que te matou? Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 324, jul./set. 1979. Disponível em: http://josecalasans.com/downloads/artigos/27.pdf Acesso em: 23 jun. 2023.
    » http://josecalasans.com/downloads/artigos/27.pdf
  • COSTA, Cristiane; BREY, Maria Luise; AZEVEDO, Luana Neves. Anatomia de uma teoria da conspiração: O papel de Euclides da Cunha na divulgação de que Canudos seria o epicentro de um movimento de restauração monarquista patrocinado por potências internacionais. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, 2022, p. 213-237. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27904/15307 Acesso em: 23 jun. 2023. DOI: 10.29146/ecops.v25i2.27904.
    » https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27904/15307
  • CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. João Tomás de Cantuária Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2009. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/CANTU%C3%81RIA,%20Jo%C3%A3o%20Tom%C3%A1s%20de.pdf Acesso em: 23 jun. 2023.
    » https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/CANTU%C3%81RIA,%20Jo%C3%A3o%20Tom%C3%A1s%20de.pdf
  • CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Bibiano Costallat Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2009. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/COSTALLAT,%20Bibiano.pdf Acesso em: 23 jun. 2023.
    » https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/COSTALLAT,%20Bibiano.pdf
  • CUNHA, Euclides da. Caderneta de campo Introdução, notas e comentário de Olímpio de Souza Andrade. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2009. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_obrasgerais/drg1283650.pdf Acesso em: 23 jun. 2023.
    » http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_obrasgerais/drg1283650.pdf
  • CUNHA, Euclides da. Os Sertões (Campanha de Canudos). Edição, Prefácio, Cronologia, Notas e Índices: BERNUCCI, Leopoldo. São Paulo: Ateliê Editorial, SESI-SP editora (coedição), 2018 [1902].
  • DANTAS BARRETO, Emídio. Acidentes de guerra (operações de Canudos) Rio Grande do Sul: Editora Livraria Rio Grandense, 1905. Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf Acesso em: 23 jun. 2023.
    » https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Accidentes_da_guerra.pdf
  • DANTAS BARRETO, Emídio. Última expedição a Canudos. Porto Alegre: Editores Franco & Irmão, 1898.
  • EXÉRCITO DO BRASIL. Informações. A Defesa Nacional - Revista de Assuntos Militares e Estudo de Problemas Brasileiros, Rio de Janeiro, ano LXXXIII, n. 778, out./nov./dez. 1997. Disponível em: http://www.ebrevistas.eb.mil.br/ADN/article/view/6846/5912 Acesso em: 23 jun. 2023.
    » http://www.ebrevistas.eb.mil.br/ADN/article/view/6846/5912
  • FONTES, Oleone Coelho. O Treme-Terra: Moreira Cesar, a República e Canudos São Paulo: Vozes, 1996.
  • GUIMARÃES, Carlos Eugenio. Arthur Oscar: um soldado do império e da república. Rio de Janeiro: Bbliex, 1965.
  • HORCADES, Alvim Martins. Descrição de uma viagem a Canudos Natal: Sebo Vermelho, 2011.
  • LAREW, K.; KAHN, D. The codebreakers: the story of secret writing. The American Historical Review New York: Macmillan, 1968, v. 74, n. 2.
  • MACEDO SOARES, Henrique Duque-Estrada de. A Guerra de Canudos Rio de Janeiro: Compositora Gráfica, 1903. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasgerais/drg1313065/drg1313065.pdf Acesso em: 23 jun. 2023.
    » http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasgerais/drg1313065/drg1313065.pdf
  • MANGABEIRA, Francisco. Tragédia épica (Guerra de Canudos). Bahia: Imprensa Moderna de Prudencio de Carvalho, 1900.
  • MATHEUS, Letícia C. A imprensa e o desenvolvimento do sistema telegráfico brasileiro. In: XII CONGRESSO ALAIC, 2014, Peru. Anais Lima: PUCP, 2014. Disponível em: https://congreso.pucp.edu.pe/alaic2014/wp-content/uploads/2013/09/vGT17-Leticia-Matheus.pdf Acesso em: 23 jun. 2023.
    » https://congreso.pucp.edu.pe/alaic2014/wp-content/uploads/2013/09/vGT17-Leticia-Matheus.pdf
  • MILTON, Aristides Augusto. A campanha de Canudos Brasília: Senado Federal, 2003 [1901]. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/1070 Acesso em: 23 jun. 2023.
    » http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/1070
  • O PAIZ. A Catastrophe Rio de Janeiro, 8 de março de 1897, n. 4539, p. 1. In: HEMEROTECA DIGITAL BRASILEIRA. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/178691/per178691_1897_04539.pdf Acesso em: 23 jun. 2023.
    » http://memoria.bn.br/pdf/178691/per178691_1897_04539.pdf
  • PEIXOTO, Afrânio. Epilepsia e Crime Bahia: V. Oliveira & Comp., 1898. Disponível em: https://www.obrasraras.fiocruz.br/media.details.php?mediaID=483 Acesso em: 23 jun. 2023.
    » https://www.obrasraras.fiocruz.br/media.details.php?mediaID=483
  • PERNAMBUCANO DE MELLO, Frederico. A Guerra total de Canudos 3. ed. São Paulo: Escrituras Editora, 2020 [1997].
  • RIBEIRO, Rondinele Aparecido. De O Berço do Herói a Roque Santeiro: análise da transposição do herói para a teleficção Dissertação de mestrado, Letras, FCLAS, UNESP, 2019. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/190956 Acesso em: 23 jun. 2023.
    » https://repositorio.unesp.br/handle/11449/190956
  • SALVADORI, Fausto. Nomes de Guerra. Revista Apartes, São Paulo, 06/05/2019. Disponível em: https://www.saopaulo.sp.leg.br/apartes/nomes-de-guerra/ Acesso em: 23 jun. 2023.
    » https://www.saopaulo.sp.leg.br/apartes/nomes-de-guerra/
  • SAMPAIO, Consuelo Novais (org.). Canudos: Cartas para o Barão São Paulo: EDUSP, 1999.
  • SAMPAIO NETO, José Augusto Vaz et al. (org.). Canudos: subsídios para a sua reavaliação histórica. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986. Disponível em: http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/FCRBbases/FCRB_canudos_subsidios_para_a_sua_reavaliacao_historica.zip Acesso em: 23 jun. 2023.
    » http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/FCRBbases/FCRB_canudos_subsidios_para_a_sua_reavaliacao_historica.zip
  • VILLELA JR., Marcos Evangelista da Costa. Canudos: memórias de um combatente São Paulo: Marco Zero, 1988.
  • YACUBIAN, Elsa Márcia Targas. Quando a epilepsia pode ter mudado a história: Antônio Moreira César no comando da terceira expedição na Guerra de Canudos. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, São Paulo, v. 61 (2B), jun. 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/anp/a/PZ9vgB5QzgH6jhjSzzm38Nd/abstract/?stop=next&format=html⟨=pt#. Acesso em: 23 jun. 2023. DOI: https://doi.org/10.1590/S0004-282X2003000300035.
    » https://www.scielo.br/j/anp/a/PZ9vgB5QzgH6jhjSzzm38Nd/abstract/?stop=next&format=html⟨=pt#.

Editado por

Editores Responsáveis

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2023
  • Aceito
    19 Out 2023
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História Av. Prof. Lineu Prestes, 338, 01305-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3091-3701 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@usp.br