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Um passeio pelo espírito da época

A walk through the spirit of time

BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 168 p

RESUMO

Trata-se de resenha a respeito da coletânea de contos Anos de chumbo e outros contos (2021), de Chico Buarque. Cantor, compositor e ficcionista, ganhador do Prêmio Camões pelo conjunto de sua obra (2019), o autor estreia no gênero textual curto. Se o título do conjunto remete a nosso passado traumático, a tessitura narrativa acaba por revelar sobretudo sua contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE
Chico Buarque; conto; literatura brasileira contemporânea

ABSTRACT

This is the literary review of Chico Buarque’s collected short stories Anos de chumbo e outros contos (2021). Singer, song writer and writer, winner of Camões Prize for his overall work (2019), he starts in short textual genre. If the title of this work refers to our traumatic past, the narrative fabric reveals specially its contemporary traces.

KEYWORDS
Chico Buarque; short stories; Brazilian contemporary literature

Em resenha clássica sobre Estorvo (1991), romance de estreia de Chico Buarque, Roberto Schwarz (1999, p. 181)SCHWARZ, Roberto. Um romance de Chico Buarque. In: SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 178-181. avalia: essa “disposição absurda de continuar igual em circunstâncias impossíveis é a forte metáfora inventada para o Brasil contemporâneo, cujo livro [Chico Buarque] talvez tenha escrito”. O crítico vai além e chega a se referir ao atônito protagonista como, talvez, um “veterano de 68” (SCHWARZ, 1999SCHWARZ, Roberto. Um romance de Chico Buarque. In: SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 178-181., p. 180). A análise tem longo alcance, haja vista a produção romanesca subsequente do escritor, que trouxe à tona, entre outras questões, as peculiaridades da chamada Nova República (1988-...)2 2 Para outros detalhes, ver: Welter (2017). . Mas, se o confuso personagem de Estorvo poderia ser visto como um sobrevivente dos anos 1960, o que dizer de uma seleção de contos que tem como título Anos de chumbo e outros contos?

Ainda que o título crie certa expectativa no leitor, não estamos diante de um livro sobre a ditadura militar brasileira. Mesmo o conto homônimo não é um texto que assume perspectiva comum sobre o regime. E essa escolha fora do esperado para representar nossa história recente cria certa sombra em todos os contos: a representação é incomum, entretanto as cenas retratadas são de um cotidiano que em uma crescente nos leva a seu oposto. E esse me parece ser o grande mérito da escrita buarquiana.

Assim, se há banalidade nos enredos, um casal isolado no sítio, uma obsessão por Clarice Lispector, um encontro com Neruda em sonhos, ou mesmo encontros fortuitos com uma moradora de rua, o que chama atenção, nos pontos altos do conjunto, é certo desconforto. Mas o mal-estar não está nos personagens ou no narrador, ele está na aparente normalidade com a qual aqueles sujeitos lidam com as situações. Cabe dizer que a força da narrativa também se faz no majoritário uso da primeira pessoa, o que intensifica o descompasso entre o que se narra e o que lemos. Junto a isso, uma miríade de personagens pouco louváveis com um universo que abarca desde o tio que mantém relações sexuais com a sobrinha adolescente até o adolescente com sequelas da poliomielite que coloca fogo na própria casa assassinando seus pais - não por menos, dois jovens narradores -, passando pelo “grande artista”vingativo, entre uma gama de sujeitos que não primam pela confiabilidade e/ou pelo bom-mocismo.

O conto que abre a coletânea, “Meu tio”, tem como enredo um passeio tio-sobrinha que envolve praia e uma “suíte Premium do motel Dunas” (p. 20) depois. Se há algo de bastante indigesto já no resumo do conto, isso é acentuado tanto a partir da construção dos personagens quanto da estrutura. De um lado, o tio, alguém detentor de certo poderio dado pelo dinheiro, o que vem acompanhado da postura autoritária e de uma masculinidade exacerbada. Isso significa dizer que seu comportamento é assinalado pela falta de limites, sejam de educação, éticos ou mesmo do comportamento esperado em sociedade: corrida de carro na avenida, quase atropelamentos por pura diversão, estacionamento em local proibido, grosserias com vendedores e, é claro, sexo com a sobrinha. Tudo bancado pela certeza de nenhum ônus. Estamos em frente a um indivíduo dominante e confiante que reina pelo poder do dinheiro e da violência. Claro que esse reinado é uma posição diante do outro que se dá a partir da condição de classe, mas não estamos falando aqui de uma aristocracia carioca (decadente) ou mesmo de certa burguesia moderna com fachada de civilizada, pelo contrário: estamos falando de uma posição social assinalada pela ilegalidade sugerida ao longo das muitas menções às notas de cem reais carregadas e distribuídas pelo tio - dinheiro da milícia? Se não há uma resposta direta, a distribuição de maços de dinheiro a trabalhadores da construção em bairro suburbano parece dar pistas que corroboram essa possibilidade.

Contudo, é sob o ponto de vista narrativo que a violência se cristaliza: quem narra é a sobrinha, ou seja, é a partir daquela que é vítima que temos acesso a todas essas informações. “Quando saí do mar ele disse que sentiu vontade de comer o meu rabinho” (p. 16) ou “Sem tirar os óculos escuros, comeu meu rabinho me mordendo a cabeça” (p. 21), ela relata. O que chama a atenção, junto ao uso afetivo do diminutivo, que marca certa infantilidade, é a normalidade do que é contado. Há uma cotidianidade no abuso, feito com cumplicidade da família, pois “só me faltava essa de engravidar, pois meu tio era casado e não ia querer encrenca com a esposa” (p. 22), fala “mamãe”; ou ainda, “Segundo meu papai, eu faria um belo de um favor ao meu tio se o livrasse daquela piranha” (p. 23). Ao mesmo tempo que há abuso, conivência - com a família funcionando como um cafetão da menina -, há o dado das escolhas lexicais “rabinho”, “papai”, “mamãe”; que idade tem essa menina? Importante marcar que ainda que seja em primeira pessoa não há reflexões da narradora, nós não conhecemos a personagem de fato, apenas sabemos o que acontece no passeio, assumindo ela quase uma posição de terceira pessoa sobre si mesma. Esse afastamento corrobora a normalização da situação, criando um efeito de sentido de absurdo e de uma violência extrema que cabem apenas aos olhos daqueles que leem. E esse é o grande mérito do conto e um dos pontos mais altos do conjunto. E essa desmesura está, é claro, tanto na relação tio-sobrinha quanto no comportamento desse personagem, espécie de protótipo de certa masculinidade.

Se o primeiro conto nos incomoda, o segundo, “O passaporte”, nos dá um respiro aparente: um “grande artista” perde o passaporte no aeroporto minutos antes do seu embarque para Paris. Como se trata de narrador em terceira pessoa, com alguma mudança de foco narrativo, poderemos acompanhar parcialmente o outro lado da história: enquanto um se dava conta do que havia perdido, “não podia adivinhar que naquele instante” (p. 27) outro passageiro, por pura antipatia e ocasionalidade, colocara seu documento no lixo deliberadamente. Encontrado o passaporte, a viagem transcorrerá aparentemente sem maiores problemas, até a chegada ao destino.

Sabemos assim que houve uma escolha racional daquele que planeja a perda do voo do “grande artista”, em um lampejo de mau-caratismo por simples antipatia. Esse universo de personagens canalhas, para usar termo repetido à exaustão no conto, é bem buarquiano: há uma gama de personagens pouco louváveis nos seus romances, sejam eles protagonistas ou secundários3 3 No romance Estorvo (BUARQUE, 1991), marcado pelo atordoamento do protagonista, esse movimento se dá também pelo choque com um universo degradado, composto de sujeitos degradados; Benjamim, protagonista de romance homônimo (BUARQUE, 1995), é um sujeito apatetado mas também, e por isso mesmo, marcado por uma delação na ditadura militar; já Eulálio, de Leite derramado (BUARQUE, 2009), é um aristocrata decadente, assinalado pela desfaçatez de classe, condição dada tanto pela classe quanto pela quase morte - acamado em um hospital, já idoso, relembra a história da família. , e na sua coletânea de contos não é diferente. O próprio uso do “grande artista” é assinalado por certa ironia: viajando sozinho, não é importunado por fãs em nenhum momento. Concomitantemente, há certa melancolia e decadência na sua descrição, “o grande artista se olhou no espelho bem no momento em que estava envelhecendo” (p. 30), ou, ainda, “o grande artista se olhou no espelho bem no momento em que se transformava ele próprio num canalha” (p. 36). Se o uso do espelho remete ao duplo da própria imagem - a que ele vê e a que o outro enxerga, o que reforça a sua crise identitária -, o reconhecimento de si mesmo como um canalha dá o tom da vingança em curso: rasga o passaporte daquele que, pensa ele, era seu algoz. A reviravolta se dará na descoberta do engano, pois aqueles vistos como responsáveis eram na verdade grandes admiradores seus. O grand finale se dará na revelação gratuita e abusada do verdadeiro carrasco: “da próxima vez eu taco fogo” (p. 46), diz o responsável pelo acontecido desembarcando despreocupadamente em Paris. Há um toque de humor na banalidade, mas também certa construção de um ambiente execrável e infantil, no sentido da falta de controle de impulsos quase instintivos, como se certa ordem civilizada não regesse aquele espaço. Ou, melhor, até há uma ordem, mas ela também é quebrada, e na banalidade.

É possível pensar ainda em certo índice de autorreferencialidade tendo em vista a longa carreira de Chico Buarque. Ainda que pareça impensável falarmos de forma irônica em “grande artista” aos nos referenciarmos a ele, é possível articular esse lugar solitário de fim de carreira entre o olhar bem-humorado e debochado de quem o estetiza.

O terceiro conto, “Os primos de Campos”, retoma o tom do primeiro, com certa carioquice contemporânea dada não só pelo cenário, mas também, e agora de forma explícita, pela presença da milícia. O mote narrativo são as visitas semestrais dos primos, o “caçula” e o “mais velho”, que vêm passar as férias no Rio de Janeiro, onde encontram a tia e os primos, o “mais velho”, hábil jogador de futebol de areia sempre hostil à figura dos primos de Campos; e o “caçula”, narrador da história, marcado pela enurese nervosa e memória não confiável: “Não é a primeira vez que apago da memória um acontecimento extraordinário” (p. 60). Do lado de lá, a não presença da mãe, do lado de cá a não presença do pai - no desenrolar da narrativa a revelação da fuga dos cunhados em conjunto.

Mas a trivialidade vai dando lugar a um crescente de tensão, gatilho dado a partir da prisão dos primos em uma brincadeira: enquanto o primo caçula do Rio de Janeiro toma uns sopapos e é liberado, os primos de Campos, segundo o narrador, “ficaram nus e apanharam com barras de ferro na sola dos pés, mas não sei explicar por que não foram soltos comigo” (p. 57). Eles serão soltos com ajuda do delegado amigo da tia, o que dá o índice de certas relações que vão se configurando, ou melhor, se explicitando. Junto a isso, a ojeriza do irmão mais velho pelos primos de Campos fica evidenciada na saída de casa deste a partir da chegada em definitivo do primo mais velho: assassinado o caçula pela milícia de Campos em uma chacina, irá se refugiar na casa dos parentes cariocas. Esses acontecimentos vão sendo revelados de forma aparentemente banal, entrecortados com uma outra enurese do narrador, o que dá indícios de uma angústia não revelada - ou mesmo não compreendida.

A partir do assassinato, outras pistas do mote narrativo vão se configurando: “Ele retira do envelope uma foto, que ato contínuo tenta esconder, mal me dando tempo de ver a cara do caçula, pequenino ainda, no colo de uma escurinha que a princípio tomo por uma babá” (p. 62). Cabem duas sinalizações aqui, pelo menos: a linguagem erudita daquele que narra, havendo algo de metalinguagem na construção narrativa, haja vista que o narrador, em função de seus lapsos de memória, começa a escrever para lembrar - tudo isso influenciado pela namorada, que quer estudar letras e jornalismo e namora ele e um professor de história ligado aos movimentos sociais; o uso do termo “escurinha”, que marca esse preconceito bem brasileiro, entre o velado, o não uso da palavra “negro”, entendida como depreciativa por aquele que diz, e o escrachado, ao usar um “atenuante”, revela a magnitude do seu racismo. A questão racial adentra a história e ganha até certo ar cômico: “O que de fato me surpreendia num primeiro momento, sempre que eles chegavam para as férias, era vê-los um pouco mais morenos do que eu os recordava” (p. 63). Ou seja, há um lugar de ingenuidade do narrador no meio de uma tensão que parece evidente a todos, “Mas é lógico que são afrodescendentes, segundo minha namorada, que já publicou no jornal do grêmio estudantil um artigo sobre a negritude” (p. 63). Ou seja, a racialidade só não é evidente para ele. Cabe ressaltar também a marcação da nomenclatura usada pela namorada, futura estudante de humanas, com o uso do “afrodescendente”, marcando a sua posição ideológica em relação aos outros personagens. Mas aqui não há qualquer louvor à personagem em si na construção narrativa, há algo de farsesco também nessa composição - meio militante, meio poliamor.

Esse universo em degradação, das relações familiares, das relações sociais, causa um desconforto, mais uma vez, para retomar o conto primeiro, não diretamente naquele que narra, e sim naquele que lê: a milícia, o racismo, a violência. E, mais uma vez, é mérito daquele que compõe. Uma cartada final, dada no último período do texto, aponta para o alcance simbólico das violências: se o narrador se lembra vagamente de uma Copa do Mundo como memória mais tenra da infância, no desfecho do conto, ao decidir ir embora da casa - de uma casa tomada pela milícia a partir do irmão e do delegado amante de sua mãe - com o primo para a Colômbia (reencontrar o pai), repara “No asfalto da rua, olhando bem, dá para vislumbrar os vestígios de uma superbandeira do Brasil” (p. 72). Não há como passarmos ilesos a uma bandeira do Brasil desde 2013. Assim, a partir da imagem que finaliza o conto somos remetidos àquele microcosmo familiar como um microcosmo do próprio Rio de Janeiro e, em larga escala, do país.

Já “Cida”, um dos contos mais enxutos da coletânea, nos apresenta uma moradora de rua homônima que se torna próxima do narrador, um homem do qual não temos grandes informações fora o fato de ser um morador da zona sul carioca (com toda informação precedente que possamos ter). Esse cenário carioca, com raras exceções, está sempre presente. Entre os dois se dá uma espécie de amizade, mas sempre mediada por aquele que detém o poder, o narrador, que dá os limites dessa proximidade: enquanto as histórias que ela conta servem ao seu entretenimento, há uma complacência, o que muda conforme ela se aproxima demais. Grávida, Cida conta sobre o pai da criança, Ló, um ser extraterreno que mora em Labosta. Essas descrições são dadas em tom de comédia, mas sem espezinhar, o que permite ao narrador que ele ainda seja visto como um bom sujeito por si mesmo. Com a iminência do nascimento do bebê, momento em que o narrador ainda tenta ajudá-la, segundo ele, ela desaparece, retornando anos depois com Sacha, sua filha então com cinco anos, e aqui há um rompimento definitivo: Cida garante que veio deixar-lhe a menina conforme combinado, estando ela de partida para Labosta para viver com Ló. Aturdido, o narrador termina por chamá-la de louca. Mais uma lacuna temporal, e o narrador encontra Sacha, a filha, vivendo como a mãe, ou seja, na mendicância.

Há muito de trivialidade no “relato” feito, como um causo vivido por aquele que conta, sem qualquer envolvimento afetivo ou mesmo pesaroso, configurando assim um afastamento entre aquele que narra e aquele que é narrado. E é esse afastamento o incômodo que o texto traz como efeito de sentido mais latente. Contudo, diferentemente dos contos anteriores em primeira pessoa, em que certo afastamento da narrativa sobre si mesmo acabava por criar um incômodo que intensificava o efeito da violência e seu falseamento de trivialidade, aqui estando a perspectiva naquele que não é necessariamente um antagônico, mas também não é o que sofre, a distância do problema e de sua magnitude acaba por recair também no resultado estético. Ou seja, é como se o ponto de vista do meio do caminho emperrasse o resultado final.

“Copacabana” é um dos contos mais singulares, haja vista que é atravessado pelo universo onírico daquele que narra. Assim, o simbólico se estrutura a partir das referências de uma geração: Pablo Neruda perdido na noite carioca, Ava Gadner subindo o Morro da Babilônia com o chefe do tráfico, um flerte com Romy Schneider. Mas esses sonhos, mais próximos de pesadelos, vale referenciar, são sempre marcados por certa sensação de realidade, até que o narrador, em primeira pessoa, nos lembra que “Infelizmente, não tive o prazer de conhecer...” (p. 91) ou “Infelizmente nunca estive com...” (p.95), fazendo assim com que acompanhemos certo aturdimento do protagonista. Tem algo da própria falibilidade da voz narrativa, pois é aparentemente impossível crer naquilo que é narrado - em larga medida, algo que está diluído também na coletânea, a autenticidade daquele que narra, tendo em conta, por exemplo, o narrador com problemas de memória em “Os primos de Campos” ou mesmo o narrador que rememora coisas do passado em “Cida”, questão essa que será retomada nos dois contos posteriores, como veremos. É possível dizer que o próprio exercício da metalinguagem é imprimido no universo buarquiano4 4 Assunto tratado especialmente em Budapeste (BUARQUE, 2003) e Essa gente (BUARQUE, 2019). desde seus romances, não por acaso muitos dos protagonistas são escritores/artistas ou estão escrevendo o texto que lemos. A novidade parece posta no universo desse delírio do que é real e do que é o inconsciente trabalhando, especialmente a partir do desfecho, com um “encontro com um general de nome basco, Etchegoyen5 5 Cabe lembrar que o sobrenome Etchegoyen é conhecido no Exército brasileiro: Sérgio Etchegoyen é um general do Exército brasileiro, que foi ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência do Brasil no governo Michel Temer(2016-2019), seu pai, seus tios e seu avô, foram oficiais do Exército.Para outros detalhes, ver: Godoy (2014). ou Etcheverría” (p. 96), já conhecido de 40 anos atrás, quando fora entrevistado “por andar com comunistas” (p. 96). Informação aparentemente gratuita, mas que se intensifica com o desfecho na imagem final, com uma pista de patinação de gelo abarrotada de pessoas olhando para um corpo morto, “acho que era o Pablo Neruda” (p. 96).

Se a sugestão da nossa ditadura está dada a partir do encontro com o general, a morte do poeta chileno também carrega o dado autoritário, já que o poeta morre dias antes do golpe chileno (1973) e há uma disputa sobre a sua real causa mortis, com desconfianças sobre envenenamento de terceiros6 6 Para detalhes, ver: Poeta chileno... (2023). . Afora questões do enredo, o texto carrega uma espiralidade de tensão, de sonho em sonho, de um encontro com um Neruda desaparecido - estaria ele em um boteco tomando cachaça? -, até o encontro com seu corpo morto. Se há uma angústia própria dos sonhos ruins ao início, ao final há o apontamento para uma materialidade, na medida da realidade que o sonho simboliza.

“Para Clarice Lispector, com amor”, sexto conto da coletânea, é um texto-homenagem a partir da obsessão de um jovem poeta, I. J., pela escritora. Narrado em terceira pessoa, com alguns insights da biografia de Clarice - a mão queimada em um incêndio, por exemplo -, acompanhamos I. J. em sua busca pela leitura de seus escritos, o que nunca irá de fato acontecer. Muitos encontros e conversas cifradas - levando-o a ser conhecido na faculdade de letras como “o amante secreto de Clarice Lispector” (p. 112), título que ele alimenta, é claro -, mas que nunca resultarão em um reconhecimento dele como escritor. Em certo momento, os encontros cessarão por vontade dela, e em um salto temporal chegaremos a um presente narrativo solitário e obsessivo, com o protagonista com mais de 70 anos, vivendo com a mãe, terminando seus dias nas migalhas do que sobrou da fama da escritora. O salto de humor é a sua falsificação nas assinaturas de Clarice em poemas feitos por ele mesmo. Ainda que possa ser visto dentro do âmbito de autorreferencialidade - Chico e Clarice mantiveram convivência -, por isso sua ligação tão evidente com a homenagem, o conto destoa do restante do conjunto. Todavia, de alguma maneira, funciona como um alento antes dos próximos contos, que nos trarão de volta para o real.

Se no conto anterior, ainda que o narrador assumisse o distanciamento pelo uso da terceira pessoa, o protagonista era um poeta, ainda que malfadado, corroborando com esse universo intelectualizado explorado por Chico em suas narrativas, agora, em “O sítio”, o narrador-protagonista é um escritor de contos. Com certo ar distópico - não percamos de vista que há uma contemporaneidade prevista tanto aqui quanto em “Meu tio”: a pandemia de covid-197 7 No primeiro conto da coletânea há algumas menções ao uso de máscaras. Ainda que não seja explorado, fica evidente certo negacionismo dos personagens centrais, haja vista que são sempre os outros que fazem uso da proteção. Somado a isso o universo degradante da violência, pensamos não ser equivocado o uso do termo negacionista como forma de ajudar a entender o personagem. . Acompanhamos a princípio o idílico isolamento de um escritor e uma atriz por mais de três meses em um sítio isolado na serra da Mantiqueira. Como companhia, o caseiro, coberto de marcas de varíola e sem o braço direito, e um cachorro. Se há algo de romântico e bucólico na composição, a imagem logo é recomposta pelo abandono e pela presença de urubus, primeiro comendo um tatu, depois, o corpo de uma pessoa. Essa ideia de morte presente contrasta com o envolvimento entre a personagem e o espaço, e com o envolvimento do narrador com a personagem: conforme o tempo passa, ele começa a desenvolver certo ciúme-obsessão para com ela, o que dá certa aura de suspense, como se algo terrível fosse acontecer a qualquer momento. Ao mesmo tempo, há certo humor tragicômico a partir da figura um tanto asquerosa do caseiro a partir da pele marcada, da falta do braço direito e da presença de uma prótese de braço esquerdo que ele quer usar, da ereção grotesca a partir do toque da personagem, das páginas de revista Playboy expostas em seu quarto.

É a partir do caseiro, único a ter contato com o mundo externo - importante lembrar que não há sinal de celular no lugar, que há uma expectativa de que “a peste estaria sob controle ainda naquele outono” (p. 126) -, que eles ficam sabendo, mas sem entender, que “não há mais covas para enterrar os mortos” (p. 144). Se os urubus e os corpos devastados, somados ao local ermo onde eles estão, compõem o universo de certo suspense, com o sumiço do caseiro (ao que tudo indica, ele morreu - teria sido morto pela “peste”?), o conto ganha em tensão, pois a iminência de algo mais trágico parece se concretizar não na morte, que ronda, mas no abandono que o narrador sofre: deixado sozinho e sem carro pela mulher naquele lugar isolado logo após a grande revelação de seu amor por ela - que, fica evidente aos leitores,se dá muito mais no campo de uma ideia fixa. Sozinho, confundido ele mesmo com um caseiro na chegada de novo casal ao lugar, o conto fecha com o total abandono do espaço por todos, como um lugar amaldiçoado. Escrito a posteriori pelo narrador, como um exercício metalinguístico, o conto introjeta em sua estrutura certa claustrofobia do isolamento, que não se faz ver nos personagens, por exemplo, um mérito do texto, ainda que seu final pareça abrupto.

O conto que fecha o conjunto e que dá nome ao livro, “Anos de chumbo”, poderia ser resumido como uma história acerca da ditadura militar, mas seu argumento não é usual: estamos diante de um menino adolescente, provavelmente, vítima da poliomielite - o que lhe acarreta certa paralisia na perna esquerda -, que narra, em primeira pessoa, parte de seu cotidiano familiar, com o pai capitão do exército, a mãe dona de casa e má cozinheira, o casal de amigos do pai, sendo ele major e superior ao seu, o amigo Luís Haroldo e as brincadeiras com soldadinhos de chumbo. A trivialidade é quebrada a partir das revelações aparentemente banais que o narrador dá a respeito das relações ali estabelecidas, seja na relação do pai com ele - “Por isso ele me arrancou da cama, me xingou de escroque e ladravaz, me deu quatro tapas na cara e dois murros na boca, me passou uma rasteira na perna boa e me fez cair com o queixo na quina da mesa, fazendo jorrar sangue e me deixando uma cicatriz” (p. 157) -, seja na violência doméstica sofrida pela mãe, seja no caso extraconjugal que ela mantém com o major. É a partir desses encontros, que ocorrem na própria casa, que temos informações sobre o trabalho do capitão: “Pelo que pude depreender, meu pai lidava com prisioneiros de guerra, criminosos que tinham sangue de verdade nas mãos” (p. 160) ou, ainda, “O major explicava a minha mãe que esses delinquentes, tanto homens quanto mulheres, ficavam horas pendurados numa barra de ferro, mais ou menos como frangos no espeto. Daí meu pai ensinava a sua equipe como introduzir adequadamente objetos naquelas criaturas” (p. 162).

Funcionando como um espião na própria casa, o que delimita o seu espaço de ação - só poderia sair sozinho para a sorveteria do bairro -, mas também a sua posição lateralizada na família, o narrador se compõe sempre à espreita, com a marcação do menosprezo de todos. Se há certa ludicidade, pelas brincadeiras de soldado de chumbo, marcando assim que sujeito é esse que narra, também é a partir daí que há marcação cronológica - 1971, 1972, 1973. Na somatória, a ludicidade se mostra farsesca por fim: em uma brincadeira final, o fogo nas cabanas de faz de conta dos Sioux se alastra pela casa toda, “ainda bem que meus pais tinham adormecido, senão eu ia apanhar na certa. Passei correndo pela sala, abri a porta blindada da rua e não sei o que tinha na cabeça quando a tranquei por fora” (p. 165-166). Os bombeiros, bem, eles “chegaram tarde demais” (p. 166), em uma violência introjetada naquele que narra, mas que está emocionalmente afastado da matéria narrada.

Se a crítica de Schwarz no romance de estreia apontava para esse veterano de 1968 ou para certa capacidade de continuar igual em circunstâncias absurdas, é exatamente nos contos que remetem a essa sensação que o conjunto ganha em fôlego, e não por acaso são contos narrados em primeira pessoa. É possível dizer que parte da qualidade aqui encontrada é aquela já vista nos romances, o domínio da linguagem, altamente fluida; os períodos longos, e certa sensação abismal dada por eles; certo humor tragicômico; narradores/personagens meio apatetados e/ou pouco confiáveis, colocando em xeque a própria narrativa.

Ao mesmo tempo as máscaras protetoras em referência à covid-19, o dinheiro da milícia na paisagem carioca, a bandeira do Brasil, são tantos dos dados de contemporaneidade expostos em conjunto, como em um painel. Mesmo o conto sobre a ditadura remete a nossa atualidade, não só pelo importante dado de que o passado não passa, mas pelos jogos cifrados que são montados: um menino vítima da poliomielite, doença que teve os dados manipulados durante o regime militar8 8 Para mais detalhes, ver: Veiga (2020). , mata, ainda que sem uma intencionalidade clara, queimado, um capitão do Exército. Não podemos perder de vista as simbologias aqui presentes.

Claro que há irregularidades, como espero ter deixado evidente ao longo do texto, mas o conjunto da obra mostra sua contemporaneidade e sua capacidade de captar um espírito de época - não há dúvidas de que estamos diante do Brasil do governo Bolsonaro.

  • 2
    Para outros detalhes, ver: Welter (2017)WELTER, Juliane Vargas. Onde andarão Castana, Matilde, Sergio, Domingos, Ariosto...? Os desaparecidos como princípio formal dos romances de Chico Buarque. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 66, 2017, p. 69-85. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901x.v0i66p69-85.
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-901x....
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  • 3
    No romance Estorvo (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.), marcado pelo atordoamento do protagonista, esse movimento se dá também pelo choque com um universo degradado, composto de sujeitos degradados; Benjamim, protagonista de romance homônimo (BUARQUE, 1995BUARQUE, Chico. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.), é um sujeito apatetado mas também, e por isso mesmo, marcado por uma delação na ditadura militar; já Eulálio, de Leite derramado (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.), é um aristocrata decadente, assinalado pela desfaçatez de classe, condição dada tanto pela classe quanto pela quase morte - acamado em um hospital, já idoso, relembra a história da família.
  • 4
    Assunto tratado especialmente em Budapeste (BUARQUE, 2003BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.) e Essa gente (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.).
  • 5
    Cabe lembrar que o sobrenome Etchegoyen é conhecido no Exército brasileiro: Sérgio Etchegoyen é um general do Exército brasileiro, que foi ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência do Brasil no governo Michel Temer(2016-2019), seu pai, seus tios e seu avô, foram oficiais do Exército.Para outros detalhes, ver: Godoy (2014)GODOY, Marcelo. Uma família ligada aos levantes nos quartéis há 90 anos. Reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 12 dez. 2014. Disponível em: https://encr.pw/w777f. Acesso em: 4 mar. 2024.
    https://encr.pw/w777f...
    .
  • 6
    Para detalhes, ver: Poeta chileno... (2023)POETA chileno Pablo Neruda foi envenenado, aponta estudo. 14 fev. 2023. Por O Globo e agências internacionais. Disponível em: https://acesse.one/zbEKi. Acesso em: 4 mar. 2024.
    https://acesse.one/zbEKi...
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  • 7
    No primeiro conto da coletânea há algumas menções ao uso de máscaras. Ainda que não seja explorado, fica evidente certo negacionismo dos personagens centrais, haja vista que são sempre os outros que fazem uso da proteção. Somado a isso o universo degradante da violência, pensamos não ser equivocado o uso do termo negacionista como forma de ajudar a entender o personagem.
  • 8
    Para mais detalhes, ver: Veiga (2020)VEIGA, Edison. Como Sabin foi colaborar na erradicação da pólio no Brasil - e acabou saindo pela porta dos fundos. 10 jul. 2020. De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53360353. Acesso em: 4 mar. 2024.
    https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53...
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Referências

  • BUARQUE, Chico. Estorvo São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
  • BUARQUE, Chico. Benjamim São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • BUARQUE, Chico. Budapeste São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • BUARQUE, Chico. Essa gente São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • BUARQUE, Chico. Leite derramado São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2024
  • Aceito
    11 Mar 2024
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