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Te conto poemas

I tell you poems

RESUMO

A seção Criação tem por objetivo publicar textos e materiais inéditos de escritores e/ou artistas, fotógrafos, desenhistas, além de documentos inéditos encontrados no Arquivo do IEB/USP. “Te conto poemas” reúne dois textos de Jé Oliveira, “Zoom nos ouvidos e nos olhos” e “As águas e os olhos”. Ator, diretor, dramaturgo e escritor, Oliveira é um dos fundadores do Coletivo Negro. Publicou, com o grupo, o livro Negras dramaturgias (COLETIVO NEGRO, 2015COLETIVO NEGRO. Negras dramaturgias. São Paulo: Coletivo Negro, 2015.). O texto do espetáculo teatral Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos e homens (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, Jé. Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos e homens. Belo Horizonte: Javali, 20), de sua autoria, foi semifinalista do prêmio Oceanos em 2019.

PALAVRAS-CHAVE
Jé; Oliveira; contos; literatura brasileira; literatura brasileira contemporânea.

ABSTRACT

The Creation section has the objective of publish unpublished texts and materials by writers and/or artists, photographers, designers, as well as unpublished documents found in the USP IEB Archive. “I tell you poems” gathers two tales by Jé Oliveira, “Zoom nos ouvidos e nos olhos” and “As águas e os olhos”. Actor, director, playwright and writer, Oliveira is one of the founders of Coletivo Negro. With this group, he published the book Negras dramaturgias (COLETIVO NEGRO, 2015COLETIVO NEGRO. Negras dramaturgias. São Paulo: Coletivo Negro, 2015.). The text of the play Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos e homens (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, Jé. Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos e homens. Belo Horizonte: Javali, 20), which he wrote, was a semi-finalist for the Oceanos award in 2019.

KEYWORDS
Jé; Oliveira; tales; Brazilian literature; contemporary Brazilian literature.

Zoom nos ouvidos e nos olhos

Estava parado esses dias perto de um banco: observando o movimento, o entra e sai da agência, de bobeira conjeturando conversas cotidianas comigo mesmo. Não me tem agradado o tanto de conversas cotidianas descompromissadas e surdas que cabem em apenas um dia:

- Nossa, dormi tão mal essa noite.

- Eu também, esses dias, não conseguia pregar o olho.

- Que bom, batata souté, adoro.

- Não gosto muito de salada de chicória.

- Esses dias fui ao banco e tava uma fila.

- Meu cartão é ouro.

Então, tendo a guardar para mim mesmo esse tipo de coisa-comentário, já que o meu cérebro não falará o que fala comigo agora para vocês e nem para ninguém. Dessa forma fica segredado o que se passa dentro, conosco.

Enfim, o leitor deve identificar e acrescentar mais exemplos a esse tipo de situação de conversas cotidianas, pois intuo que também as tem ouvido e, se assim for, provavelmente seguirá por toda a vida...

Mas, voltemos a minha observação do movimento do banco: dois negros andam e conversam, e gesticulam, parece algo importante, nada dessas conversas que não levam a lugar algum. A porta do banco estava aberta para que uma senhora deficiente pudesse entrar sem ter que passar pela “autônoma” porta giratória. Ao se aproximarem:

- A entrada é por lá. Falou com medo nos olhos e de modo ríspido, a funcionária.

A porta, seguindo a ordem das mãos, se apressou em deslizar fechando a passagem e interrompendo a andada, o papo e a conversa, mas não os gestos dos negros.

Um deles, prontamente:

- Mais gentileza, não é assim que se fala.

Acompanhando o som das palavras: os corpos...

Um deles entra no banco.

O outro fica fora: braços cruzados, olhos de zoom de câmera de segurança sob a agência.

Chega uma mulher e uma criança.

Elas também são negras.

A mulher tira algo da bolsa e dá para a menina, ela está com uniforme de escola. A mulher, pela postura instrutiva, parece ser a mãe. Ela entra no banco com algo que tirou da bolsa.

A menina fica pra fora: olhos de zoom de câmera de segurança sob a agência.

Um pouco depois, sentou-se na porta do banco a menina: segura de si, como se é apenas quando já se é mulher.

Alguém sai do banco: bate, com força, no ombro da menina com a delicadeza própria de quem anda de metrô lotado, entrando no Brás, ou na Sé.

Diz: - Sai.

A menina levanta.

O negro que ficou, diz em alto e bom som:

- Não é sai não, é licença.

Diz para a rua toda ouvir e para o zoom da câmera de segurança da agência filmar. Diz não só com a garganta, mas com o corpo todo: olhos de martelo e presença de bola.

A mãe retorna.

A menina narra o que lhe aconteceu. A mãe olha pro banco, com olhos de raio laser. Sorri pro homem negro que ficou com olhos de irmandade e vai embora com a menina...

Eu e o homem, ambos parados, corpos quietos, sem palavras, ficamos, enquanto foram, vendo as duas andando no meio daquele tanto de gente: mãos dadas e mãe conversando com filha. A menina olha para a mãe com olhos de gravador.

O outro negro retorna.

Eles vão andando no meio daquele tanto de gente: corpos falando e bocas conversando: ambos se olham com olhos de gravador.

Queria ter zoom nos olhos e nas orelhas, gravador para acompanhar as duas duplas: quem sabe meus ouvidos não ouviriam algo mais interessante do que o que têm ouvido cotidianamente em filas, ruas, padarias, etc. Talvez ouvissem coisas interessantes sobre cores, valores, negros, bancos e brancos.

As águas e os olhos

Quando chove e acaba a luz tenho pouco tempo.

Eu fecho as janelas.

Eu corro pequeno - mesmo estando dentro de casa corro como se estivesse na rua e seco e começasse a chover de repente e uniforme, que nem é quando é verão - para não molhar o chão, o colchão, a louça que já havia secado.

Penso na coragem da árvore que existe em frente à minha casa: ela recebe, ela está, ela não foge, ela não se preocupa que molhe... Ela ventila, mas também encharca, adensa o verde e empapa seu tronco para sustentar sua altura, seu tranco, o seu pranto. Ela descasca, ela destaca a sua presença de cor numa cidade sem par.

Quando tudo acalma eu arreganho as janelas: os pingos nos vidros das janelas são bons de ver e ensinar: eles deslizam, não despencam como a chuva. Garoa também: gosta de ser constante, insistente... Está tendo pouco.

Quando para de chover veneziana não dá conta, é preciso muito mundo nos olhos, só brisa não vence porque as folhas encharcaram e eu sei, eu sei, eu sei, eu sei que são elas, as folhas, que produzem o vento. Por isso balanceiam, e não o contrário. Estão encharcadas, por isso hoje, o hálito das folhas é pouco...

Se puxar o olho por cima das telhas, das telas e do longe, vais ver que existe além. Além de lá é outro lugar: outras folhas, talvez estejam até secas fazendo vento. Outros quintais, talvez até com venezianas maiores e que bastam para aquelas pessoas que vivem lá. Existem outras chuvas e outros sóis. Alguém só também há de ter. Terá também alguém correndo pequeno talvez, alguém deitado olhando para cá e contemplando indiferente o que inventamos e não lhe serviu: esse mundo, que fica, e a gente, que vai...

Quando seca dentro de nós para onde vai a chuva que tinha?

Quando chove no peito que veneziana ficou aberta?

Que janela distante é essa que não teve perna capaz de alcançar nem corrida pequena que desse conta?!

É possível encharcar ainda mais o tronco que já está mais que empapado?

Água é coisa engraçada: vem de baixo quando brota e recebe assim, recém-nascida e infinita, o nome de olho. Vem de cima com elegância quando não desaba das nuvens e quando vem em formato de chuva fina. Tem doce, tem salgada, tem caminho, mas não tem sina.

Ensina a deslizar sobre ela, ou mata, quem não entende a leveza que pede.

De nós não se alimenta, mas corre, dança, revira e se contorce feito gente.

Procura companhia mesmo sendo abundante: o doce quer o sal, o sal quer a salina e o sol.

Ela quando despenca cai em renca e não se fixa: cachoeira é desapego certo, não se agarra, não se demora, não cria raiz mas sempre está...

A natureza sabe ser e se resolver com o que é.

Referências

  • COLETIVO NEGRO. Negras dramaturgias São Paulo: Coletivo Negro, 2015.
  • OLIVEIRA, Jé. Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos e homens Belo Horizonte: Javali, 20

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2023
  • Aceito
    07 Mar 2023
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