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Dois episódios petronianos em “Ci, Mãe do Mato”: um estudo de recepção dos clássicos em Macunaíma

[Two Petronian episodes in “Ci, Mãe do Mato”: a study on classical reception in Macunaíma

RESUMO

Propõe este artigo um estudo de recepção dos clássicos no capítulo “Ci, Mãe do Mato”, da rapsódia de Mário de Andrade, Macunaíma, de 1928, particularmente de dois episódios do Satyricon, de Petrônio, o importante romance latino do século I d.C: o do efebo de Pérgamo (Sat. 85-87) e o de Crotona (Sat. 116-141). Atentando-se para sua estrutura e conteúdo, analisa-se como eles são incorporados na fatura do capítulo, através de um complexo processo de adaptação em que se dissolvem as fronteiras entre mito ameríndio, literatura clássica e literatura brasileira.

PALAVRAS-CHAVE
Recepção dos clássicos; Satyricon; Macunaíma

ABSTRACT

This article proposes a study of the reception of classical literature in the chapter “Ci, Mãe do Mato”, from Mário de Andrade’s rhapsody Macunaíma, 1928, particularly of two episodes from Petronius’s Satyricon, the important first-century AD Latin novel: the boy from Pergamum (Sat. 85-87) and Crotona (Sat. 116-141). By examining its structure and content, this analysis explores how they are incorporated into the composition of the chapter through a complex process of adaptation, thereby dissolving the boundaries between Amerindian myth, classical literature, and Brazilian literature.

KEYWORDS
Classical reception; Satyricon; Macunaíma

Não fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres.

(“Prefácio Interessantíssimo”, Pauliceia desvairada in: ANDRADE, 1987, p. 63ANDRADE, Mário de. Poesias completas. 1. ed. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.)

Em um episódio bastante conhecido de Macunaíma, o herói da nossa gente, passeando pelo centro de São Paulo em um dia de feriado, é abordado por uma vendedora que lhe oferece uma flor por mil-réis. Inicialmente, a proposta causa-lhe incômodo, já que o herói não consegue lembrar-se do nome, em português, do lugar em que a flor deveria ser inserida, a “botoeira”. Sem achar a palavra adequada, e depois de considerar chamá-la simplesmente “orifício”, o que considera inadequado, diz-lhe Macunaíma: “– A senhora me arrumou com um dia-de-judeu! Nunca mais me bote flor neste... neste puíto, dona!” (ANDRADE, 2017, p. 108ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.)2 2 Em todas as citações dessa edição foram mantidas a grafia e a pontuação originais. . Algum tempo depois, Macunaíma, em mais um dia de feriado, sai para passear com a alemã Fräulein. Emocionada com os galanteios do nosso herói, segundo o narrador, a moça “se virou e perguntou pra ele si deixava ela fincar aquela margarida no puíto dele” (ANDRADE, 2017, p. 109ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.). À indignação imediata de Macunaíma segue-se, então, uma grande gargalhada, esclarecido o herói do novo significado que aquela “palavra-feia” adquirira entre paulistas:

Mas o caso é que “puíto” já entrara pras revistas estudando com muita ciência os idiomas escrito e falado e já estava mais que assente que pelas leis de catalepse elipse síncope metonímia metafonia metátese próclise prótese aférese apócope haplogia etimologia popular, todas essas leis, a palavra “botoeira” viera a dar em “puíto”, por meio duma palavra intermediária, a voz latina “rabanitius” (botoeira-rabanitius-puíto), sendo que rabanitius embora não encontrada nos documentos medievais, afirmaram os doutos que na certa existira e fora corrente no sermo vulgaris. (ANDRADE, 2017, p. 109ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.).

Sob certo ângulo, a história do “puíto” é, em si mesma, um caso de recepção de um elemento – falsamente – clássico em Macunaíma, rapsódia publicada por Mário de Andrade em 1928. Sem saber nomear “botoeira”, o herói da nossa gente emprega um termo chulo, próprio de sua cultura, o qual, por sua vez, será recebido – e explicado – como se se originasse do latim, alcançando o vernáculo através dos processos mais cientificamente esdrúxulos. Da “botoeira” ao “puíto”, através do fictício “rabanitius”, observa-se na cena a fusão do mito indígena do puíto – conservado por Koch-Grünberg (2022, p. 77)KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Do Roraima ao Orinoco: resultados de uma viagem no Norte do Brasil e na Venezuela nos anos de 1911 a 1913. Vol. II: mitos e lendas dos índios Taulipáng e Arekuná. Tradução de Cristina Alberts-Franco. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp; Editora UEA, 2022. – com um elemento clássico, forjado satiricamente, como “palavra intermediária” entre três contextos culturais distintos: o ameríndio, o clássico e o brasileiro.

De fato, a presença clássica na rapsódia de Mário de Andrade é um elemento já destacado pela crítica. Sobressai, nesse sentido, o capítulo medial da obra, “Carta pras icamiabas”, em que, além de expressões latinas de uso corrente e personagens históricas da Antiguidade, há citação direta a versos de Virgílio – “horresco referens” (Aen. 2.204; ANDRADE, 2017, p. 93ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.); “per amica silentia Lunae” (Aen. 2.255; ANDRADE, 2017, p. 98ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.) – e de Horácio – “modus in rebus” (Sat. 1.1.106; ANDRADE, 2017, p. 96ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.). Analisando-a na perspectiva da tradição clássica, Maria Augusta Fonseca (1994)FONSECA, Maria Augusta. Macunaíma, Horácio e Virgílio. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 36, 1994, p. 67-79. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i36p67-80.
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chega a tais conclusões acerca dessas citações na “Carta pras icamiabas”:

O diálogo entre textos, como hipótese do trabalho, trouxe a memória literária usada a partir de duas perspectivas: [no caso de Virgílio] fórmula congelada, estropiada ou descontextualizada de um passadismo erudito, de gosto canonizado, e [no caso de Horácio] o transporte da memória ao presente, como recordação, estímulo à reflexão, em que a literatura discute seu fazer. (FONSECA, 1994, p. 78-79FONSECA, Maria Augusta. Macunaíma, Horácio e Virgílio. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 36, 1994, p. 67-79. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i36p67-80.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X....
).

Nem fórmula congelada de um passadismo erudito, nem transporte passivo do passado para o presente, a presença dos clássicos em Macunaíma, de modo geral, e em “Ci, Mãe do Mato”, de modo específico, pode ser compreendida sob outra perspectiva, se analisada, não do ponto de vista da tradição clássica, mas sim dos estudos de recepção dos clássicos. Mais do que sátira contra um elemento falsamente clássico, a história do puíto, com sua suposta origem em “rabanitius”, abre assim a possibilidade de compreender a recepção dos clássicos, na obra, como elemento estruturante de sua fatura. Fazê-lo de modo algum trai o espírito da rapsódia, afinal, como argumenta Gilda de Mello e Souza em O tupi e o alaúde (2023, p. 80)SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades e Editora 34, 2023., “o núcleo central de Macunaíma, não obstante os mascaramentos de toda ordem que despistam ininterruptamente o leitor, permanece europeu”.

RECEPÇÃO DOS CLÁSSICOS: POSSIBILIDADES E DEFINIÇÕES3 3 Nesta seção, apresenta-se apenas o conceito a ser mobilizado no artigo, a saber, adaptação. Para uma discussão mais aprofundada dos estudos de recepção dos clássicos, bem como da inserção do Brasil neles, sugere-se a leitura de Sano (2024). Todas as traduções do inglês são de minha autoria.

De fato, os estudos de recepção dos clássicos surgem em contraposição à noção de tradição clássica. Como destaca Charles Martindale (2007, p. 298)MARTINDALE, Charles. Reception. In: KALLENDORF, Craig. W. (Org.). A companion to classical tradition. 1. ed. Malden, MA, e Oxford: Wiley-Blackwell, 2007, p. 297-311., a recepção dos clássicos envolve a participação ativa dos/as leitores/as e artistas, através da qual passado clássico e presente de recepção são postos em diálogo mútuo, dissipando-se suas fronteiras: “a distinção entre o mundo antigo ‘em si mesmo’ e a maneira pela qual ele foi recebido e compreendido em séculos posteriores é, desse modo, borrada, ou mesmo dissolvida” (MARTINDALE, 2007, p. 298MARTINDALE, Charles. Reception. In: KALLENDORF, Craig. W. (Org.). A companion to classical tradition. 1. ed. Malden, MA, e Oxford: Wiley-Blackwell, 2007, p. 297-311.). Com efeito, “quando textos são relidos em novas situações, eles adquirem novos significados; nós não temos que privilegiar os significados que eles tiveram em seu contexto primeiro, ‘original’ (mesmo assumindo que eles seriam, em princípio, recuperáveis)” (MARTINDALE, 2007, p. 298MARTINDALE, Charles. Reception. In: KALLENDORF, Craig. W. (Org.). A companion to classical tradition. 1. ed. Malden, MA, e Oxford: Wiley-Blackwell, 2007, p. 297-311.). Segundo Martindale, o objetivo dos estudos de recepção dos clássicos é, portanto, o de contrapor-se ao processo incontestado, estático, de sua transmissão, expresso pelos conceitos de apropriação e tradição clássica:

Mas devemos lembrar que “recepção” foi adotada precisamente para enfatizar o aspecto dinâmico e dialógico da leitura (de fato, “apropriação”, tornar algo próprio, minimiza a possibilidade de diálogo, a capacidade do texto de resistir às nossas tentativas de dominá-lo, sua capacidade de modificar nossa sensibilidade). “Tradição”, por contraste, poderia sugerir que o processo de transmissão é convenientemente incontestado. (MARTINDALE, 2007, p. 300MARTINDALE, Charles. Reception. In: KALLENDORF, Craig. W. (Org.). A companion to classical tradition. 1. ed. Malden, MA, e Oxford: Wiley-Blackwell, 2007, p. 297-311.)

Considerada uma das fundadoras dos estudos de recepção, define-a Lorna Hardwick a partir de três pressupostos: em primeiro lugar, os “processos artísticos e intelectuais envolvidos na seleção, imitação ou adaptação de trabalhos antigos”, isto é, “como o texto foi ‘recebido’ e ‘reconfigurado’ pelo/a artista, escritor/a ou designer; como o trabalho posterior se relaciona com a fonte”; em segundo lugar, a “relação entre esse processo e os contextos nos quais aconteceram”, ou seja, os fatores externos às fontes antigas que “contribuem para sua recepção e às vezes introduzem novas dimensões”, como “o conhecimento que o autor/a-receptor/a tem de sua fonte”; finalmente, a “finalidade e a função para a qual a nova obra ou apropriação de ideias ou valores foi feita” (HARDWICK, 2003, p. 5HARDWICK, Lorna. I. From the classical tradition to reception studies. New Surveys in the Classics, n. 33. Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 1-11. https://doi.org/10.1017/S0533245100030765.
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).

Ao contrário da noção de tradição clássica, as formas de recepção dos clássicos são marcadas, nas palavras de Hardwick (2003, p. 1)HARDWICK, Lorna. I. From the classical tradition to reception studies. New Surveys in the Classics, n. 33. Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 1-11. https://doi.org/10.1017/S0533245100030765.
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, por uma “extraordinária diversidade”, a qual requer instrumentos apropriados de investigação. Em vista disso, propõe a autora um “vocabulário de trabalho para os estudos de recepção”, que busca mapear alguns conceitos para compreender “como a recepção sob análise e seu contexto se relacionam com a fonte clássica e o contexto dela” (HARDWICK, 2003, p. 9HARDWICK, Lorna. I. From the classical tradition to reception studies. New Surveys in the Classics, n. 33. Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 1-11. https://doi.org/10.1017/S0533245100030765.
https://doi.org/10.1017/S053324510003076...
). Para os propósitos deste artigo, interessa particularmente o conceito de adaptação, compreendida como “versão de uma fonte desenvolvida para uma finalidade diferente, ou insuficientemente próxima, para contar como tradução” (HARDWICK, 2003, p. 9HARDWICK, Lorna. I. From the classical tradition to reception studies. New Surveys in the Classics, n. 33. Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 1-11. https://doi.org/10.1017/S0533245100030765.
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). O conceito de adaptação, proposto por Hardwick, pressupõe, dessa forma, um processo ativo de reconfiguração de um texto-fonte clássico por um autor/a posterior, de modo que o primeiro, sem ser traduzido, se torne elemento estruturante da fatura do segundo, o texto-receptor.

“CI, MÃE DO MATO”: ESTRUTURA E GÊNESE DO CAPÍTULO

Definidor para a estrutura da rapsódia de Mário de Andrade (CAMPOS, 1973, p. 123-140CAMPOS, Haroldo de. A parte preparatória: proibições/infrações. In: CAMPOS, Haroldo. Morfologia de Macunaíma. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 123-140.), o capítulo “Ci, Mãe do Mato” narra, em linhas gerais, o encontro entre Ci, Mãe do Mato e chefe das icamiabas, e Macunaíma, que, seduzindo-a, se torna o Imperador do Mato-Virgem. Afastada sua resistência inicial, a Mãe do Mato apaixona-se pelo herói da nossa gente, e três cenas sexuais são narradas. Após um tratamento contra a impotência de Macunaíma, nasce-lhes um filho, que é morto pela Cobra Preta, após esta ter envenenado o único seio pelo qual Ci amamentava. Morto o filho, Ci, entristecida, presenteia Macunaíma com a muiraquitã, subindo a seguir com o auxílio de um cipó para o céu, onde se torna a estrela Beta do Centauro. Nesse terceiro capítulo de Macunaíma, apresentam-se assim dois elementos centrais para o desenvolvimento do livro: a busca pela muiraquitã, a qual, perdida por Macunaíma na fuga contra Capei no capítulo seguinte, será levada para São Paulo, onde Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã, a comprará, convertendo-se em antagonista do herói da nossa gente; e as “sodades” melancólicas por Ci, que motivarão Macunaíma a subir aos céus em busca da amada, ao fim da rapsódia, tornando-se a constelação da Ursa Maior.

Centrado no encontro com as icamiabas, o capítulo tem origem em um mito ameríndio, narrado a Koch-Grünberg por Mayuluaípu, que trata “das mulheres sem homens” (KOCH-GRÜNBERG, 2022, p. 116KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Do Roraima ao Orinoco: resultados de uma viagem no Norte do Brasil e na Venezuela nos anos de 1911 a 1913. Vol. II: mitos e lendas dos índios Taulipáng e Arekuná. Tradução de Cristina Alberts-Franco. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp; Editora UEA, 2022.). Conservado em Do Roraima ao Orinoco, estudo etnográfico que Mário de Andrade reconhecidamente utilizou como fonte para a escrita de Macunaíma (SÁ, 2017SÁ, Lúcia. Macunaíma e as fontes indígenas. In: ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017, p. 223-240.), convém citar integralmente o trecho, que recebe o título “40. As Amazonas”:

Ulidžán, as mulheres sem homens, antigamente eram gente. Agora estão transformadas em mauarí (demônios das montanhas). Antes elas viviam na serra Ulidžán-tepẹ, perto da serra Murukú-tepẹ no Paríma. Mais tarde, metade delas se mudou para uma outra serra no lado oriental do Tacutu. A outra metade ficou até hoje na sua antiga morada. Quando um homem chega à maloca delas e pede permissão para dormir lá, elas o deixam dormir com elas. Elas têm kewéi, chocalhos de cascas de frutos, pendurados em suas redes de dormir. Quando uma delas dorme com um homem, o chocalho faz barulho para que as outras mulheres fiquem sabendo. Então deixam os homens voltarem para casa. Se nascer um filho, elas o matam. Só deixam as filhas viverem e as criam. Quando uma das mulheres fica velha, elas a matam e a enterram. Não são casadas. São muito bonitas e têm cabelo comprido. Fazem todo o trabalho de um homem, plantam roça, caçam e pescam. (KOCH-GRÜNBERG, 2022, p. 116-117KOCH-GRÜNBERG, Theodor. Do Roraima ao Orinoco: resultados de uma viagem no Norte do Brasil e na Venezuela nos anos de 1911 a 1913. Vol. II: mitos e lendas dos índios Taulipáng e Arekuná. Tradução de Cristina Alberts-Franco. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp; Editora UEA, 2022.).

Do mito ameríndio narrado a Koch-Grünberg por Mayuluaípu, como se lê, essas “mulheres sem homens” (chamadas de “ulidžán” pelo nativo, mas de “amazonas” pelo etnógrafo alemão) possuem como características não terem homens e não serem casadas; o fato de terem sido humanas, mas agora serem divindades; o hábito de autorizarem momentaneamente o sexo com homens, e usarem os kewéi para anunciá-lo às demais mulheres; a prática de matarem filhos e idosas; o fato de serem belas e fazerem o trabalho masculino. Dessas características, Mário de Andrade conserva poucos elementos, como a beleza das mulheres, o fato de não casarem (a relação de Macunaíma e Ci não perdura), de não gerarem filhos (o filho de Macunaíma e Ci morre, e Jiguê não é capaz de desposar as demais icamiabas) e de exercerem atividades consideradas masculinas, como a guerra. Ao invés de “mulheres sem homens”, a versão que Mário de Andrade apresenta das ulidžán as nomeia de “mulheres sozinhas” (ANDRADE, 2017, p. 29ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.), adaptação muito próxima ao mito de partida. As inovações, de fato, são mais expressivas. Como se nota, nem as “mulheres sem homens” são chamadas de icamiabas no mito, nem Ci é mencionada e muito menos o tom erótico está explicitamente presente como em “Ci, Mãe do Mato”. Macunaíma, herói dos mitos taulipáng e arekuná, também não é mencionado. Segundo registra Cavalcanti Proença (1974, p. 136-137)PROENÇA, Manuel Cavalcanti. III – Ci, Mãe do Mato. In: PROENÇA, Manuel Cavalcanti. Roteiro de Macunaíma. 3. ed. Brasília: Civilização Brasileira, 1974, p. 134-141., tanto o nome Ci como também o enredo são frutos da invenção de Mário de Andrade, que, baseando-se nesse mito narrado a Koch-Grünberg por Mayuluaípu, expande-o a partir de outras referências literárias, sobretudo coloniais. Trata-se, portanto, de uma adaptação mais inovadora do que conservadora.

A presença do tema das amazonas, por certo, reforçaria um possível diálogo com a Antiguidade Clássica. De fato, dois trabalhos recentes (REDEL, 2016REDEL, Elisangela. Ci, Mãe do Mato: o mito das amazonas às avessas em Macunaíma e o projeto modernista. Manuscrítica: Revista de Crítica Genética, São Paulo, n. 30, 2016, p. 32-46. https://doi.org/10.11606/issn.2596-2477.i30p32-46.
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; ZUKOSKI; SILVA, COQUEIRO; 2023ZUKOSKI, Ana Maria Soares; SILVA, Miriam Cardoso da; COQUEIRO, Wilma dos Santos. Intersecções entre o mito das amazonas e a lenda das icamiabas em terras tupiniquins: Ci, a Mãe do Mato. Ideação. Revista do Centro de Educação, Letras e Saúde, Foz do Iguaçu, v. 25, n. 2, 2023, p. 315-333. https://doi.org/10.48075/ri.v25i2.30789.
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) propuseram que, em “Ci, Mãe do Mato”, Mário de Andrade teria se aproveitado do mito clássico das amazonas, desconstruindo-o em uma leitura que consideram antropofágica. Para argumentar a favor da suposta desconstrução das amazonas, as autoras necessitam de que o texto-fonte de Mário de Andrade seja europeu, ignorando, portanto, seu emprego de Do Roraima ao Orinoco, no qual Koch-Grünberg registrou o mito ameríndio das “mulheres sem homens” narrado por Mayuluaípu. Acima de tudo, uma leitura atenta de “Ci, Mãe do Mato” notaria que, em momento algum, se emprega a palavra “amazonas” no capítulo. Ao contrário, ao descrever Ci, afirma o narrador que ela “fazia parte dessa tribo de mulheres sozinhas” (ANDRADE, 2022, p. 29 – grifos meus), expressão muito próxima à que Mayuluaípu narrou a Koch-Grünberg, conforme visto anteriormente.

DOIS EPISÓDIOS PETRONIANOS EM “CI, MÃE DO MATO”

Do ponto de vista das cenas sexuais de “Ci, Mãe do Mato”, nota-se, portanto, um hiato entre o mito ameríndio e a redação do capítulo. A chave deve ser procurada em outro lugar. Um indício interessante, nesse sentido, foi apresentado por Gilda de Mello e Souza, no já mencionado O tupi e o alaúde (2023)SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades e Editora 34, 2023.. Em certa altura de seu livro, a autora, analisando o que chama de “carnavalização do herói do romance de cavalaria” (SOUZA, 2023, p. 77SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades e Editora 34, 2023.) operada pela rapsódia, cita como exemplo desse processo a relação entre Macunaíma e Ci. Embora sem desenvolvê-la, apresenta a autora a seguinte sugestão a respeito do capítulo:

Aliás, o modelo do trecho referido – avesso do idílio cavaleiresco – talvez deva ser procurado em certas cenas do Satyricon de Petrônio, que Mário de Andrade parece ter fundido à tonalidade pornográfica das lendas ameríndias e às descrições de cenas eróticas recolhidas pelos cronistas. (SOUZA, 2023, p. 77SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades e Editora 34, 2023.)

Não se trata de proposta desarrazoada: Mário de Andrade conhecia o Satyricon. Com efeito, menções diretas a Petrônio podem ser rastreadas na obra do autor pelo menos a partir de 1922, quando publica Pauliceia desvairada (ANDRADE, 1987ANDRADE, Mário de. Poesias completas. 1. ed. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.). Fundindo as “romas” de Petrônio com referências ao cinema, no poema “Domingo”, por exemplo, lê-se:

Central. Drama de adultério.
A Bertini arranca os cabelos e morre.
Fugas... Tiros... Tom Mix!
Amanhã fita alemã... de beiços...
As meninas mordem os beiços pensando em fita alemã...
As romas de Petrônio...
E o leito virginal... Tudo azul e branco!
Descansar... Os anjos... Imaculado!
As meninas sonham masculinidades...
Futilidade, civilização.

(ANDRADE, 1987, p. 91ANDRADE, Mário de. Poesias completas. 1. ed. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.).

Que Mário conhecesse a obra de Petrônio e pudesse aproveitá-la em sua rapsódia, é, portanto, inquestionável. Garantido o conhecimento do Satyricon no momento da escrita de Macunaíma, como no caso do puíto, pode-se rumar, em diálogo com Mello e Souza, do mito ameríndio à Antiguidade Clássica. Mais do que mera sugestão, a proposta de Mello e Souza converte-se, desse modo, em verdadeira hipótese de trabalho. Porém, uma vez que a autora não desenvolve a análise entre Mário de Andrade e Petrônio, não são identificadas quais poderiam ser as tais “certas cenas do Satyricon” que o autor teria aproveitado, nem é analisado como esse aproveitamento – como sua adaptação, para recorrer ao conceito de Hardwick – opera.

Com efeito, localizar quais trechos do Satyricon são adaptados por Mário de Andrade é uma matéria, ao mesmo tempo, simples e complexa por um único motivo: pelo fato de que, nas palavras de Amy Richlin (2009, p. 82)RICHLIN, A. Sex in the Satyrica: outlaws in the Literatureland. In: PRAG, J.; REPATH, I. (Org.). Petronius: a handbook. Oxford: Wiley-Blackwell, 2009, p. 82-100., “pode parecer que um dos objetivos do romance [de Petrônio] é discorrer acerca de todas as formas possíveis de comportamento sexual”. De fato, muitos trechos – se não toda a obra – de Petrônio poderiam ser aproximados do capítulo “Ci, Mãe do Mato”. Neste artigo, serão destacados dois episódios particulares que podem ter sido empregados: o do efebo de Pérgamo (Sat. 85-87) e o de Crotona (Sat. 116-141), em que se destaca a relação entre Circe e Polieno, remediada por Proselenos e Enoteia. Justificam-se ambos por serem, além dos mais conhecidos, os mais densos em matéria erótica na obra petroniana. Porém, será a análise dos elementos extraídos dos próprios textos literários – sua estrutura e seu conteúdo – que confirmará ou rejeitará a possibilidade de sua adaptação em “Ci, Mãe do Mato”.

O episódio do efebo de Pérgamo (Sat. 85-87), uma fábula milésia narrada pelo poeta Eumolpo, gira em torno do encontro do poeta, narrador e personagem da matéria, com um jovem, que, sendo belo, lhe desperta interesse sexual. Trata-se de uma história isolada, sem repercussão geral para o enredo do Satyricon. Passando-se por uma figura respeitável, Eumolpo consegue a confiança dos pais do menino, que o contratam para seu preceptor. Prometendo-lhe presentes cada vez mais caros, Eumolpo consegue auferir do aluno prazeres cada vez mais complexos. Entretanto, como não é cumprida a última promessa, o efebo decide vingar-se, e encerra-se a história com a inversão cômica dos papéis sexuais. Ao comparar o episódio de Petrônio com “Ci, Mãe do Mato”, serão analisados, em ambos os textos, quatro elementos: como ocorre o encontro das personagens envolvidas, o primeiro contato sexual, o desenvolvimento dessa relação estabelecida e o seu desfecho.

No romance de Petrônio, o encontro entre Eumolpo e o efebo ocorre de modo fortuito. Estando “na Ásia a serviço de um questor”, especificamente em Pérgamo, narra o poeta que “a casa em que morei era confortável, e o filho do dono, então, era uma beleza fora de série” (Sat. 85.1)4 4 Todas as citações de Petrônio são traduções de Claudio Aquati (PETRÔNIO, 2008). Por imposição do limite do texto, não foram citados os originais latinos. . Logo que se instala no seio daquela família, incitado pela beleza do filho do casal, Eumolpo arma um estratagema para convencer os pais de sua boa – porém, falsa – reputação, para com isso tornar-se preceptor do efebo e seduzi-lo:

Logo pensei numa maneira de me tornar namorado dele sem levantar as suspeitas do pai. Então, durante o jantar, todas as vezes que se mencionava algo a respeito de casos com rapazes bonitos, eu me inflamava de uma forma tão veemente, eu me negava a violentar meus ouvidos com palavras obscenas, mostrando uma tristeza tão profunda que principalmente a mãe do moço via-me como se fosse eu um dos antigos filósofos. Logo, a fim de que nenhum sedutor se infiltrasse em casa, eu já havia passado a levar o adolescente ao ginásio, a organizar os estudos dele, a ensiná-lo e orientá-lo. (Sat. 85.1-3).

Da cena inicial, observa-se a presença de três elementos no episódio petroniano: o acaso do encontro, ocorrido à noite em uma região distante; o interesse sexual imediato, despertado pela beleza do rapaz; o estratagema para possibilitar a realização sexual. Na rapsódia de Mário de Andrade, observa-se a mesma situação na cena do encontro entre o herói da nossa gente e a icamiaba Ci. Em primeiro lugar, o encontro é igualmente fortuito e ocorrido à noite em região distante. Com efeito, vagavam Macunaíma, seus irmãos Maanape e Jiguê, bem como a companheira deste último, Iriqui, quando, “riscando a noite do silêncio com um gesto imenso de alerta” (ANDRADE, 2017, p. 29ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.), Macunaíma pressente algo. Afastada Iriqui por cautela, “légua e meia adiante Macunaíma escoteiro topou com uma cunhã dormindo. Era Ci, Mãe do Mato. Logo viu pelo peito destro seco dela, que a moça fazia parte dessa tribo de mulheres sozinhas parando lá nas praias da lagoa Espelho da Lua, coada pelo Nhamundá” (ANDRADE, 2017, p. 29ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.). Em segundo lugar, como no caso do efebo de Pérgamo, também a beleza de Ci chama a atenção de Macunaíma, despertando-lhe o desejo sexual: “A cunhã era linda com o corpo chupado pelos vícios, colorido com jenipapo. O herói se atirou por cima dela pra brincar. Ci não queria” (ANDRADE, 2017, p. 29ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.). Por fim, o terceiro elemento do encontro entre as personagens – o estratagema que possibilita a realização sexual – faz-se necessário, no caso da rapsódia, não pela presença de pais cautelosos, como no romance de Petrônio, mas pela resistência da própria icamiaba. Assim, Macunaíma arma-se e tenta tomá-la à força, mas, resistindo Ci, o “herói apanhava” (ANDRADE, 2017, p. 29ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.). Depois de muito levar da icamiaba, Macunaíma, recorrendo aos irmãos, cria finalmente seu próprio estratagema para violentamente possuí-la:

Afinal se vendo nas amarelas porque não podia mesmo com a icamiaba, o herói deitou fugindo chamando pelos manos:

– Me acudam que sinão eu mato! me acudam que sinão eu mato!

Os manos vieram e agarraram Ci. Maanape trançou os braços dela por detrás enquanto Jiguê com a murucu lhe dava uma porrada no coco. E a icamiaba caiu sem auxílio nas samambaias da serrapilheira. Quando ficou bem imóvel, Macunaíma se aproximou e brincou com a Mãe do Mato. (ANDRADE, 2017, p. 30ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.).

No Satyricon, de Petrônio, ao encontro não se sucede imediatamente o primeiro contato sexual, como no caso de Macunaíma. Se na rapsódia marioandradiana o herói recorre aos irmãos para possuir Ci com violência, no romance petroniano o poeta recorre à intercessão da deusa Vênus, para que, através de promessas, consiga gradualmente realizar seus desejos sexuais dirigidos ao efebo. Ao longo de três noites, Eumolpo oferecerá presentes crescentemente mais caros, para que consiga favores sexuais cada vez mais prazerosos. Na primeira noite, promete Eumolpo um “casal de pombos” em troca de beijos do efebo, “sem que ele perceba” (Sat. 85.5): “Bastou ouvir o preço dos meus desejos, o menino começou a roncar” (Sat. 85.6). Na segunda noite, são prometidos “dois galos dos mais brigões” em troca de carícias, sob a condição de “ele não perceber” (Sat. 86.1). Na terceira noite, desejoso finalmente do prazer supremo, promete-lhe Eumolpo “um formidável trotador da Macedônia”, mas com esta condição: “se ele não perceber” (Sat. 86.4). Como afirma o poeta, “Nunca o menino dormiu um sono mais profundo” (Sat. 86.5). Iniciado por um estratagema em que se apresenta como filósofo confiável, as primeiras relações sexuais – estruturadas ternariamente – de Eumolpo com o efebo acabam em um engodo, já que o poeta não pode pagar o preço prometido: “Você sabe que é mais fácil comprar pombos e galos que um cavalo trotador” (Sat. 86.6).

O desenvolvimento da relação estabelecida entre Eumolpo e o efebo ocorre, portanto, sob o signo de uma promessa não cumprida, geradora de frustração e de vingança. Momentaneamente afastados, o poeta busca dissipar o descontentamento do rapaz. Deve-se notar, aqui, a repetição da estrutura ternária notada no primeiro, e gradativo, encontro sexual. Inicialmente, a aproximação de Eumolpo ocorre com relutância e protestos do efebo:

Mas ele, nitidamente zangado, não dizia outra coisa que não fosse o seguinte:

– Dorme, ou vou já dizer a meu pai.

Mas nada é tão difícil que um mau caráter não arranque. Enquanto ele dizia “Vou acordar meu pai”, eu, a despeito de tudo, me introduzi sorrateiramente e arranquei prazer de sua mal fingida relutância. De sua parte, ele não pareceu desapontado com minha lascívia e depois de algum tempo reclamando de ter sido enganado e ter se tornado alvo de risadas entre seus colegas, a quem contara minha promessa, disse:

– É, mas você vai ver: eu não serei como você. Se quer, faz de novo.

Já que não havia mais ressentimento, voltei às boas com o garoto e, depois de aproveitar sua boa vontade, caí no sono. (Sat. 87.2-6).

Se aqui é Eumolpo quem age, a situação altera-se a seguir, quando o próprio efebo pede uma segunda relação. Começa-se, assim, a inverter o jogo sexual, de modo que o rapaz, antes objeto dos desejos de Eumolpo, passa a sujeito da ação:

Mas não se contentou com mais essa vez o menino, que estava na flor da juventude e numa idade em que é muito forte o desejo de se entregar. Assim, ele me tirou do sono dizendo:

– Será que você não quer mais?

É claro que o presente ainda não era de todo mau. Suspiros, suores... Embora eu estivesse moído, ele teve o que pedia, e eu caí de novo no sono, derreado de prazer.

(Sat. 8 7.7-8).

Finalmente, com a terceira proposta do rapaz, completa-se a inversão de papéis através de um desfecho cômico. Tornado objeto de desejo sexual do efebo, Eumolpo devolve-lhe suas próprias palavras iniciais:

Menos de uma hora depois, ele voltou a me cutucar com a mão, dizendo:

– Por que a gente não faz de novo?

Então, depois de acordar tantas vezes, eu é que fiquei danado da vida e acabei lhe devolvendo as próprias palavras:

– Ou você dorme, ou eu direi já a seu pai! (Sat. 87.8-9).

Por sua vez, o desenvolvimento da relação estabelecida entre Macunaíma e Ci não ocorre sob um signo negativo, como no caso de Eumolpo e do efebo. Consumado imediatamente o primeiro contato sexual, Macunaíma e seu séquito – Ci, Maanape, Jiguê e sua companheira Iriqui – atravessaram “a cidade das Flores evitaram o rio das Amarguras passando por debaixo do salto da Felicidade, tomaram a estrada dos Prazeres e chegaram no capão de Meu Bem que fica nos cerros da Venezuela” (ANDRADE, 2017, p. 30ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.), trajeto simbólico que alude à conversão de Ci aos amores de Macunaíma. Cada vez mais distante do Uraricoera, foi “de lá que Macunaíma imperou sobre os matos misteriosos, enquanto Ci comandava nos assaltos as mulheres empunhando txaras de três pontas” (ANDRADE, 2017, p. 30ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.). No início uma violência, o primeiro contato sexual de Macunaíma com Ci converte-se, por fim, em algo positivo.

Como no episódio de Eumolpo e do efebo de Pérgamo, estrutura-se o desenvolvimento da relação de Macunaíma e Ci igualmente de modo ternário. Ausente o signo negativo da promessa não cumprida e as consequentes frustração e vingança, deve-se notar que não é apenas a estrutura que Mário de Andrade aproveita de Petrônio. A essa altura, tanto Ci já não rejeita Macunaíma, como ainda trança para ele uma rede com seus próprios cabelos. No “capão de Meu Bem”, invertem-se os papéis sexuais. Inicialmente objeto sexual do herói da nossa gente, Ci converte, progressivamente, Macunaíma em seu próprio objeto de desejo, inversão similar à ocorrida entre Eumolpo e o efebo. Na primeira das três relações, Macunaíma está descansando quando Ci chega e toma a iniciativa:

O herói vivia sossegado. Passava os dias marupiara na rede matando formigas taiocas, chupitando golinhos estalados de pajuari e quando agarrava cantando acompanhado pelos sons gotejantes do cotcho, os matos reboavam com doçura adormecendo as cobras os carrapatos os mosquitos as formigas e os deuses ruins.

De-noite Ci chegava recendendo resina de pau, sangrando das brigas e trepava na rede que ela mesmo tecera com fios de cabelo. Os dois brincavam e depois ficavam rindo um pro outro.

Ficavam rindo longo tempo, bem juntos. Ci aromava tanto que Macunaíma tinha tonteiras de moleza.

– Puxa! como você cheira, benzinho!

que ele murmuriava gozado. E escancarava as narinas mais. Vinha uma tonteira tão macota que o sono principiava pingando das pálpebras dele. (ANDRADE, 2017, p. 30ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.).

Não satisfeita, Ci imediatamente quer mais. Se naquele primeiro momento Macunaíma ainda estava desejoso de ter relações, na segunda vez sua vontade oscila, de modo que vai se tornando, a contragosto, objeto de Ci:

Porém a Mãe do Mato inda não estava satisfeita não e com um jeito de rede que enlaçava os dois convidava o companheiro pra mais brinquedo. Morto de soneira, infernizado, Macunaíma brincava para não desmentir a fama só, porém quando Ci queria rir com ele de satisfação:

– Ai! que preguiça!...

que o herói suspirava enfarado. E dando as costas pra ela adormecia bem. (ANDRADE, 2017, p. 30 e 32ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.).

Ci insiste uma vez mais, e Macunaíma só cede às brincadeiras – pela terceira vez – porque a icamiaba empunha contra ele sua txara, completando-se com a arma a inversão de papéis:

Mas Ci queria brincar inda mais... Convidava convidava... O herói ferrado no sono. Então a Mãe do Mato pegava na txara e cotucava o companheiro. Macunaíma se acordava dando grandes gargalhadas estorcegando de cócegas.

– Faz isso não, oferecida!

– Faço!

– Deixa a gente dormir, seu bem...

– Vamos brincar.

– Ai! que preguiça!...

E brincavam mais outra vez. (ANDRADE, 2017 p. 32ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.).

A leitura comparada do episódio do efebo de Pérgamo, de Petrônio, e de “Ci, Mãe do Mato”, de Mário de Andrade, aponta para uma adaptação que, ao mesmo tempo, conserva elementos da obra clássica e introduz inovações. Inicialmente, os episódios seguem a mesma sequência. Em primeiro lugar, há o encontro, no qual se observam, em Petrônio e em Mário de Andrade, os seguintes fatos: de ocorrer à noite em um local distante (Pérgamo e as praias da lagoa Espelho da Lua, respectivamente); de a beleza de quem é encontrado/a (o efebo e Ci, respectivamente) despertar o desejo sexual de quem o/a encontra (Eumolpo e Macunaíma, respectivamente); e de haver a necessidade de um estratagema que efetive o primeiro contato sexual (presentes prometidos e o auxílio dos irmãos, respectivamente), embora por motivos diversos (pais cautelosos ou resistência pessoal, respectivamente). Trata-se, portanto, de uma adaptação conservadora, haja vista que tanto a estrutura quanto o conteúdo são recebidos sem a introdução de inovações significativas.

Em segundo lugar, ocorre o primeiro contato sexual, em que se observa uma maior liberdade na adaptação: ao passo que o primeiro contato sexual de Eumolpo com o efebo ocorre em três momentos, através da persuasão gradual e de presentes prometidos, em “Ci, Mãe do Mato”, Macunaíma imediatamente o realiza com Ci, através do recurso à violência e do auxílio de seus irmãos, Maanape e Jiguê. Assim, Mário de Andrade não apenas condensa a estrutura petroniana do primeiro contato sexual – reduzindo sua gradativa estrutura ternária e eliminando a persuasão e os presentes prometidos –, como ainda lhe confere um matiz de violência ausente do episódio petroniano. Trata-se, portanto, de uma adaptação inovadora, visto que tanto a estrutura quanto o conteúdo são significativamente alterados.

Em terceiro lugar, o desenvolvimento da relação estabelecida aponta, simultaneamente, para a conservação e para a inovação de certos elementos. Em Petrônio, a relação de Eumolpo com o efebo desenvolve-se sob o signo da frustração e da vingança deste em relação àquele, de modo que se processa gradualmente, através de três encontros sexuais, uma inversão de papéis sexuais; em Mário de Andrade, ausente o elemento da frustração e da vingança, ocorre a mesma inversão gradual de papéis sexuais, e também através de uma estrutura ternária, de modo que Ci submete Macunaíma, tornando-o seu objeto de desejo. Trata-se, portanto, de uma adaptação conservadora no que diz respeito à estrutura, mas inovadora quanto ao conteúdo.

Finalmente, em quarto lugar, há o desfecho do episódio. No romance de Petrônio, a inversão de papéis, uma vez completa, implica o fim cômico do episódio do efebo de Pérgamo, que não repercute decisivamente no enredo do Satyricon. Em “Ci, Mãe do Mato”, não há desfecho cômico após o desenvolvimento da relação estabelecida entre a icamiaba e o herói da nossa gente. Ao contrário, a história segue, acentua-se a inversão de papéis sexuais, e a relação de Macunaíma e Ci adquire função estruturante para a rapsódia Macunaíma. Portanto, tal supressão permite a Mário de Andrade converter aquilo que, em Petrônio, é um episódio isolado, sem influência decisiva para o desenvolvimento do enredo, em parte integral, decisiva mesmo, da história do herói da nossa gente. Nem estrutura e nem conteúdo são, assim, adaptados de Petrônio, observando-se, no lugar, uma completa inovação por Mário de Andrade. Eliminado o desfecho, se se perde, por um lado, o elemento cômico, ganha-se, por outro, no desenvolvimento da obra.

Também aqui, Petrônio pode ter desempenhado papel importante no desenvolvimento da história de Macunaíma e Ci. Nesse ponto, convém analisar o segundo episódio petroniano possivelmente empregado por Mário de Andrade em “Ci, Mãe do Mato”. Trata-se do episódio de Crotona (Sat. 116-141), em que se destaca a relação entre Circe e Polieno, remediada por Proselenos e Enoteia. Tendo alcançado a cidade de Crotona fortuitamente devido a um naufrágio, Encólpio, Eumolpo, Gitão e

Córax, armam por sugestão do poeta um estratagema para obter benefícios naquela localidade habitada por caçadores de heranças (Sat. 116.1-117.13). Assumindo o papel de um senhor rico, sem herdeiros e recém-naufragado, Eumolpo propõe que os companheiros se passem por escravos, plano que obtém sucesso (Sat. 124.2-125.4). Assim, Encólpio assume uma persona servil chamada Polieno, e passa a manter – ou tentar manter – relações sexuais com diversas personagens. Após três casos de impotência (Sat. 128.1-2, 128.7 e 132.2-5), Polieno é submetido a três rituais (Sat. 131.4-6, 134.3-6 e 138.1-2) para tentar reverter sua situação pouco propícia. Os tratamentos são ineficazes, já que Polieno se verá impotente uma nova vez (Sat. 140.11), tendo suas forças finalmente reconstituídas de modo miraculoso por ação do deus Mercúrio (Sat. 140.12-13).

O primeiro caso de impotência que acomete Polieno ocorre em relação a Circe. Devido a uma lacuna na transmissão do texto petroniano, a situação só é conhecida a partir da reação de ambos:

– O que é que há? – disse ela. – Será que meu beijo te desagrada? Será que meu hálito, sem frescor, cheira a jejum? Será o suor desleixado das axilas? Se não são essas coisas, penso eu, será que você tem medo de Gitão?

Tomado de alto a baixo por um indisfarçável rubor, perdi minha força, se é que tivera alguma, e com o corpo todo meio frouxo, eu disse:

– Eu peço, ó minha rainha, não tripudies sobre minha infelicidade. Fui vítima de um filtro. (Sat. 128.1-2).

A segunda impotência de Polieno, devido a mais uma lacuna no episódio, também só é conhecida indiretamente. Dessa vez, é através de Gitão que ficamos sabendo do caso: “– Assim, em nome disso eu te agradeço, porque você me ama segundo os moldes socráticos. Nem Alcebíades se deitou tão intacto na cama de seu mestre” (Sat. 128.7). A seguir, novamente devido a uma lacuna textual, a terceira impotência de Polieno é conhecida através da reação de Circe, segundo refere o narrador do romance:

A matrona, vexada pelos patentes ultrajes, recorre enfim à vingança: chama os criados de quarto e manda que me surrem. Não contente com injuriar-me tão gravemente, a mulher chama as fiandeiras todas e a corja mais repulsiva de toda a escravaria, e manda que escarrem sobre mim. Ponho as mãos sobre os olhos, sem lançar nenhum pedido de perdão, porque sabia o que eu tinha merecido, e com pancadas e escarros fui arremessado pela porta. Também Proselenos é expulsa, Críside apanha, e toda a escravaria, acabrunhada, resmunga entre si e procura descobrir quem perturbara o bom humor da patroa. (Sat. 132.2-5).

A última impotência de Polieno, também referida pelo narrador, ocorre no episódio da matrona Filomela e seus filhos. Observando a relação sexual de Eumolpo com a filha de Filomela, Polieno tenta engraçar-se com o irmão dela, mas sem sucesso:

E assim eu também, para que não perdesse o costume por ficar sem fazer nada, enquanto o irmão espiava os repetidos movimentos de sua irmã pelo buraco da fechadura, acerquei-me dele, na tentativa de ver se ele aceitava uma investida. E o rapaz, já bem traquejado, nem se incomodava com as carícias. Mas também ali a divindade, minha inimiga, foi me encontrar... (Sat. 140.11).

É precisamente o elemento da impotência sexual que Mário de Andrade adaptará, do episódio de Crotona, para dar prosseguimento à relação entre Macunaíma e Ci. Ao passo que Polieno se vê impotente em quatro situações diversas, Macunaíma é acometido por dificuldades uma única vez, em um dia de muita bebida:

Porém nos dias de muito pajuari bebido, Ci encontrava o Imperador do Mato-Virgem largado por aí num porre mãe. Iam brincar e o herói se esquecia no meio.

– Então, herói!

– Então o quê!

– Você não continua?

– Continua o quê!

– Pois, meus pecados, a gente está brincando e vai você para no meio!

– Ai! que preguiça!...

Macunaíma mal esboçava de tão chumbado. E procurando um macio nos cabelos da companheira adormecia feliz. (ANDRADE, 2017, p. 32ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.)5 5 Note-se que, ao condensá-las, Mário de Andrade conserva, de certa forma, a divisão quaternária das impotências de Eumolpo: primeira, “‘– Então, herói!’/ ‘– Então o quê!’”; segunda, “‘– Você não continua?’/ ‘– Continua o quê!’”; terceira, “‘– Pois, meus pecados, a gente está brincando e você vai para no meio!’/ ‘– Ai! que preguiça!...”; quarta, “Macunaíma mal esboçava de tão chumbado. E procurando um macio nos cabelos da companheira adormecia feliz”. .

Em ambas as histórias, a impotência das personagens implica na necessidade de tratamento. No caso de Polieno, haverá três tentativas – sem sucesso – de reverter sua má condição. Na primeira delas, sob ordem de Circe, é Proselenos quem realiza o ritual: “A outra [Proselenos] retirou de junto do seio um cordão trançado com fitas de várias cores e amarrou-me o pescoço. Em seguida, com o dedo médio, pegou pó misturado com cuspe e fez-me na fronte um sinal repugnante” (Sat. 131.4). Após uma lacuna, o trecho segue:

Concluído esse encantamento, ela me mandou cuspir três vezes, e três vezes jogar junto ao seio pedrinhas previamente encantadas, que ela mesma envolvera em púrpura. E metendo mãos à obra, pôs-se a experimentar as forças de meu membro. Dito e feito, meus nervos obedeceram ao comando, e com um movimento brusco encheram as mãos da velhinha. (Sat. 131.5-6).

O restabelecimento de Polieno é apenas momentâneo, já que, posteriormente, ele é submetido a um novo ritual por Proselenos, dessa vez no templo do deus Priapo:

E, sem que eu oferecesse qualquer resistência, [Proselenos] levou-me de novo para a cela da sacerdotisa e me empurrou para cima da cama. Arrancou uma vara da porta e, sem qualquer reação da minha parte, maltratou-me de novo. E se ao primeiro golpe, por ter se quebrado, a vara não fizesse com que a mulher diminuísse o ímpeto do castigo, talvez até os meus braços e a minha cabeça ela quebrasse. Mas eu gemi principalmente por causa de uma masturbação e, com as lágrimas brotando abundantemente, deitei sobre o travesseiro com a cabeça protegida pelo braço direito. Ela sentou-se em outra parte do pequeno leito e, não menos desfeita em prantos, passou a acusar-se com voz trêmula da duração de sua longa vida. (Sat. 134.3-6).

Por fim, será através de Enoteia, sacerdotisa de Priapo, que Polieno receberá seu terceiro tratamento: “Enoteia sacou um falo de couro que untou com óleo e pimenta moída com semente de urtiga triturada. Devagar, começou a introduzir em meu ânus. Com esse molho, a crudelíssima velha depois espargiu minhas coxas” (Sat. 138.1-2). Há uma lacuna no trecho, que segue: “[Enoteia] Misturou suco de mastruço com abrótano e, com meu sexo todo borrifado, apanhou um maço de urtigas verdes e começou lentamente a fustigar com a mão tudo o que ficava abaixo do umbigo” (Sat. 138.2). Tratamento igualmente ineficaz, Polieno só terá suas forças restauradas por intercessão divina do deus Mercúrio, mas também aqui, uma vez que não se conhece a continuação do romance lacunar de Petrônio, não se pode afirmar categoricamente a efetividade da restauração de suas forças:

– Maiores são os deuses, que me devolveram integralmente. Ah, foi Mercúrio. Ele, que costuma levar e trazer as almas, devolveu-me por bondade aquilo que uma colérica mão havia cortado, para que você saiba que eu fui mais agraciado que Protesilau ou qualquer outro dos antigos.

Tendo falado isso, ergui a roupa, e me deixei examinar todo por Eumolpo. Mas ele primeiro se assustou, depois, para não haver dúvidas, apalpou com ambas as mãos a dádiva dos deuses. (Sat. 140.12-13).

Da mesma maneira que Polieno, Macunaíma será igualmente submetido a tratamento com vistas a restaurar suas forças. Através de um preparo – como em Petrônio – de urtigas, aplicado nas partes sexuais de Macunaíma mas também nas suas, Ci reconstituirá as forças do herói da nossa gente:

Então pra animá-lo Ci empregava o estratagema sublime. Buscava no mato a folhagem de fogo da urtiga e sapecava com ela uma coça coçadeira no chuí do herói e na nalachítchi dela. Isso Macunaíma ficava que ficava um lião querendo. Ci também. E os dois brincavam que mais brincavam num deboche de ardor prodigioso. (ANDRADE, 2017, p. 32ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.).

Como no caso anterior, a leitura comparada do episódio de Crotona, de Petrônio, e de “Ci, Mãe do Mato”, de Mário de Andrade, aponta para uma adaptação que, ao mesmo tempo, conserva elementos da obra clássica e introduz inovações. Dos amores de Circe e Polieno, dois aspectos são adaptados: a impotência sexual e seu tratamento. No caso da impotência de Polieno, observa-se a ocorrência de quatro situações, narradas sob diversos pontos de vista (de Circe, de Gitão e do próprio Polieno), com três personagens diferentes (Circe, Gitão e o filho de Filomela), cuja origem é explicada religiosamente (um filtro ou a perseguição de uma divindade). Em todas as quatro vezes em que se vê impotente, Polieno sente-se vexado. Por sua vez, em “Ci, Mãe do Mato” observa-se não somente uma simplificação estrutural – há apenas um caso narrado, referente a uma única companheira, a própria Ci –, como também uma inovação quanto ao conteúdo – o motivo da impotência é o excesso de pajuari bebido, o ponto de vista é apenas de Ci. Ao contrário de Polieno, o caso de impotência de Macunaíma desperta-lhe, não a vergonha, mas a indiferença e o sono. Alterando tanto a estrutura quanto o conteúdo, trata-se, portanto, de adaptação marcadamente inovadora.

Com efeito, observa-se a mesma liberdade na adaptação, igualmente pouco conservadora, do tratamento dado à impotência. Em Petrônio, ocorrem três tentativas de restaurar as forças sexuais de Polieno – todas realizadas em contexto ritualístico e compreendidas por ele como tortura –, as duas primeiras oficiadas por Proselenos, sob ordem de Circe, e a terceira por Enoteia. Recorrendo-se a plantas (em especial, urtigas) e objetos e gestos sagrados, em nenhum caso, porém, a restauração é efetivada com sucesso duradouro. A alteração final de sua condição ocorre por intervenção de Mercúrio, mas mesmo aqui, visto o caráter lacunar do texto, não se pode afirmar com certeza que tenha havido sucesso duradouro. Em “Ci, Mãe do Mato”, por sua vez, há uma única tentativa de restaurar as forças de Macunaíma, na qual Ci, ausente qualquer caráter religioso, aplica no herói da nossa gente – e em si mesma – urtigas. Não somente o cuidado de Ci é efetivo e duradouro, como ainda é gerador de prazer a ambos. Também aqui, alterados estrutura e conteúdo, a adaptação efetuada por Mário de Andrade ocorre de maneira acentuadamente inovadora.

Como parte de um episódio nodal para a rapsódia de Mário de Andrade, o restabelecimento das forças de Macunaíma é fundamental para o desenvolvimento de sua história. Através dele, o herói da nossa gente engravidará Ci, a qual, morto o filho, entregará ao companheiro a muiraquitã, cuja busca ensejará sua vinda à taba do igarapé Tietê (São Paulo) e os conflitos com Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã. Não à toa, a reconstituição das forças de Macunaíma reintroduz, de certo modo, o gozo na ordem cósmica:

Mas era nas noites de insônia que o gozo inventava mais. Quando todas as estrelas incendiadas derramavam sobre a Terra um ólio calorento que ninguém não suportava de tão quente, corria pelo mato uma presença de incêndio. Nem a passarinhada aguentava no ninho. Mexia inquieta o pescoço, voava pro galho em frente e no milagre mais enorme deste mundo inventava de supetão uma alvorada preta, cantacantando que não tinha fim. A bulha era tremenda o cheiro poderoso e o calor inda mais.

Macunaíma dava um safanão na rede atirando Ci longe. Ela acordava feito fúria e crescia pra cima dele. Brincavam assim. E agora despertados inteiramente pelo gozo inventavam artes novas de brincar. (ANDRADE, 2017, p. 33ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o heróisem nenhum caráter. Estabelecimento do texto Telê Porto Ancona Lopez. 1. ed. São Paulo: Ubu, 2017.).

Restabelecimento cósmico, aliás, que não difere da união hierogâmica que Polieno expressa, em versos, quando se deita com Circe pela primeira vez:

Flores quais derramara do ápice do monte Ida,/ verteu-as a Terra mãe quando Júpiter se juntou ao seu lídimo amor,/ e por todo o peito sentiu brotarem chamas:/ desabrocharam rosas e violetas, e a junça macia;/ destacando-se do verde prado, sorriram os brancos lírios;/ foi assim que, para suas tenras ervas, a Terra atraiu Vênus./ E o dia, mais luminoso, favoreceu nosso amor secreto. (Sat. 127.9).

Conclusão

Baseado teoricamente nos estudos de recepção dos clássicos, propôs este artigo analisar a adaptação de dois episódios do Satyricon, de Petrônio, em “Ci, Mãe do Mato”, importante capítulo de Macunaíma, a rapsódia de Mário de Andrade. Central na estrutura do livro, viu-se que “Ci, Mãe do Mato” tematiza o mito ameríndio, registrado por Koch-Grünberg em Do Roraima ao Orinoco, das ulidžán, das “mulheres sem homens”, ao invés do mito clássico das amazonas, conforme argumenta parte da crítica. Observou-se que o emprego do uso ocorreu de forma inovadora, acrescentando a “Ci, Mãe do Mato” elementos novos, particularmente seu matiz explicitamente erótico.

No hiato entre o mito ameríndio, que não contém um matiz erótico preponderante, e sua versão definitiva, de acentuado erotismo, algo mais deve ter sido empregado por Mário de Andrade na fatura de “Ci, Mãe do Mato”. Convertendo a sugestão de Gilda de Mello e Souza em hipótese de trabalho, buscou-se neste artigo analisar “certas cenas” do Satyricon, de Petrônio, que Mário de Andrade poderia ter empregado na elaboração do capítulo. Com apoio nos estudos de recepção dos clássicos, foi possível, através da análise de determinados elementos extraídos das próprias obras literárias - sua estrutura e seu conteúdo -, não somente propor quais cenas foram adaptadas pelo autor, mas sobretudo analisar, comprovando-a, como opera a adaptação dos episódios do efebo de Pérgamo e dos amores não consumados de Circe e Polieno em “Ci, Mãe do Mato”.

Como no caso do puíto, entre o mito ameríndio e a redação do capítulo, o elemento clássico funcionou como intermediário. Ora mais conservadora, ora mais inovadora, a adaptação dos episódios - sem ser suficientemente próxima para contar como tradução, segundo Hardwick - não se revela como mera presença satírica, no capítulo, da tradição clássica, mas como fonte de elementos que - dinamicamente trabalhados através de um processo complexo de análise, seleção e expansão ou condensação do texto petroniano - foram incorporados na própria estrutura do texto-receptor, dissolvendo, como indica Martindale, as fronteiras entre mito ameríndio, literatura clássica e literatura brasileira. Por meio de Macunaíma, miram-se Eumolpo e Polieno; através de Ci, insinuam-se Circe, o efebo de Pérgamo, Gitão, Proselenos e Enoteia. Recorrendo aos dois episódios petronianos, Mário de Andrade não fugiu do ridículo, pois encontrou em Petrônio um companheiro ilustre.

Este artigo é fruto da disciplina FLC6415 Recepção da Literatura Grega e Latina, ministrada pela prof. dra. Adriane da Silva Duarte no Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da USP, oferecida pela primeira vez em 2023, no encalço da recente criação da linha de pesquisa em estudos de recepção. Agradeço a Adriane da Silva Duarte, Julio Cesar Magalhães de Oliveira, Maria Cristina Correia Leandro Pereira, Heloísa Schiavo e Matheus Dallaqua pela leitura, correção e sugestões. Agradecimentos à Fapesp pelo financiamento da pesquisa (processo n. 2023/05053-7).

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    Em todas as citações dessa edição foram mantidas a grafia e a pontuação originais.
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    Nesta seção, apresenta-se apenas o conceito a ser mobilizado no artigo, a saber, adaptação. Para uma discussão mais aprofundada dos estudos de recepção dos clássicos, bem como da inserção do Brasil neles, sugere-se a leitura de Sano (2024)SANO, Lucia. Recepção clássica no Brasil: entre o local, o universal e o global. Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, v. 20, n. 1, 2024, p. 1-35. https://doi.org/10.35699/1983-3636.2022.52542.
    https://doi.org/10.35699/1983-3636.2022....
    . Todas as traduções do inglês são de minha autoria.
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    Todas as citações de Petrônio são traduções de Claudio Aquati (PETRÔNIO, 2008PETRÔNIO. Satíricon. Tradução e posfácio de Claudio Aquati. Apresentação de Raymond Queneau. 1. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2008.). Por imposição do limite do texto, não foram citados os originais latinos.
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    Note-se que, ao condensá-las, Mário de Andrade conserva, de certa forma, a divisão quaternária das impotências de Eumolpo: primeira, “‘– Então, herói!’/ ‘– Então o quê!’”; segunda, “‘– Você não continua?’/ ‘– Continua o quê!’”; terceira, “‘– Pois, meus pecados, a gente está brincando e você vai para no meio!’/ ‘– Ai! que preguiça!...”; quarta, “Macunaíma mal esboçava de tão chumbado. E procurando um macio nos cabelos da companheira adormecia feliz”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2024
  • Aceito
    21 Jul 2024
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