Open-access De Rosa aos rolês: itinerários críticos

Em seu número 75, a Revista do Instituto de Estudos Brasileiros leva aos leitores um conjunto impressionante composto de nove artigos, duas resenhas e uma importante contribuição na seção Documentação. Impressionante não só pela qualidade dos textos, mas, paralelamente, pela diversidade de abordagens, inovadoras tanto no sentido dos temas, como também de novas leituras e interpretações de autores e problemáticas recorrentes no contexto acadêmico.

O universo rosiano – no sentido mais amplo possível – é recuperado e (re)visto a partir de diferentes olhares e saberes. Tânia Biazioli, doutora em Psicologia Social pela USP, tendo por base a história da alimentação, nos apresenta as “Receitas para o amor, por Aracy e João Guimarães Rosa”. De um lado, os cadernos de receitas de Aracy (mantidos no acervo rosiano do IEB), de outro, a obra Noites do sertão, de João, de entremeios com a relação amorosa do casal.

No artigo “Ambivalências humanas e não humanas em ‘Meu tio o Iauaretê’, de Guimarães Rosa”, os autores propõem, a partir do referido conto (ROSA, 1969), repensar o “encontro entre as noções de humanidade e animalidade”, de maneira a problematizar o que seriam os limites do civilizado e do selvagem. Gustavo de Castro e Silva e Vanessa Daniele de Moraes – respectivamente, professor de Estética da Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) e doutora em Comunicação pela mesma instituição – colocam em discussão a suposta oposição entre “humanidade” e “animalidade”, recuperando, para além da prosa do nosso autor, os mitos e as narrativas anteriores à colonização das Américas, bem como tradições rabínicas seculares.

Mas o perscrutar da fortuna rosiana vai ainda mais longe. No artigo “Grande sertão: veredas, um inventário da avifauna”, Klaus F. W. Eggensperger, professor de Estudos Culturais e Literários da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Willian Dolberth, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Letras da mesma universidade, objetivam apresentar “uma alternativa de leitura ecologicamente consciente que se opõe à perspectiva antropocêntrica que retrata os elementos da natureza de forma opaca e pitoresca”. Para tanto, partem dos vocábulos utilizados por Guimarães Rosa (1956) para descrever flora e fauna, com especial atenção para as aves, atentando para os elementos masculino, feminino, temporal e de vocalização.

Adelia Bezerra de Meneses, professora colaboradora do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, em seu artigo “Sereias: sedução e saber”, apresenta uma instigante re(leitura) do romance Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector (1993), em contraponto com a Odisseia, de Homero (2011), mas também do texto bíblico, em particular do Genesis. Viagem, sedução e saber, como coloca a autora, se inter-relacionam na “busca de uma identidade configurada, de uma individuação a ser conquistada [...] metafórica do homem ocidental em busca da constituição do sujeito”.

Se o antigo testamento é recuperado no texto anterior, o novo testamento povoa o artigo “No lugar dos pastores: sobre algumas obras esparsas de Ariano Suassuna”. Fábio José Santos de Oliveira, professor na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), recupera uma faceta menos conhecida do escritor, a de artista plástico, com destaque para suas iluminogravuras, “produções de caráter intersemiótico”, cuja inspiração partia das iluminuras medievais. Para tanto, analisa “O presépio e nós – Poema de Natal” e duas versões cromáticas da iluminogravura, termo utilizado pelo autor para “batizar estes textos que são não apostos a uma ilustração, mas que se fundem com ela numa obra de arte só”.

Da estética armorial, passamos a outras expressões artísticas em Pernambuco. No artigo “Um oásis num sistema poluído: rock e mediações cosmopolitas no Recife dos anos 1970 e 1980”, os autores, visando a superar uma visão da década de 1980 como década perdida, um suposto hiato entre a geração udigrúdi e o mangue-beat, se dedicam a analisar a “importância que teve o processo de circulação de bens culturais gestado nos anos 1970 para a formação e a institucionalização de espaços” em que floresceram os gêneros musicais rock/metal no Recife. Amilcar Almeida Bezerra e Daniela Maria Ferreira, respectivamente, professor do Núcleo de Design e Comunicação da UFPE e vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Música da mesma instituição, partem de nove depoimentos e trazem à tona a centralidade de Humberto Brito (1949-2013) na “formação de um gosto musical e de uma identidade roqueira” na cidade.

A questão das expressões artísticas no Brasil perpassa outro dos textos, no caso “A crítica engajada de Paulo Emílio: cinema, subdesenvolvimento e seus impasses”, de autoria de Mauricio Cardoso, professor do Departamento de História da USP, e Leandro Rocha Saraiva, docente da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no Departamento de Artes e Comunicação. Partindo da problemática do subdesenvolvimento, os autores contrapõem as ideias de Paulo Emílio, em seu ensaio “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” (GOMES, 1980), às considerações de Glauber Rocha, Antonio Candido e Ferreira Gullar sobre a questão, sem deixar de atentar não só à distância temporal que separa cada obra, como também às especificidades do pensamento dos autores.

O patrimônio histórico e artístico brasileiro está no centro do debate proposto por Pedro Fragelli, pós-doutorando no IEB/USP. Com o instigante título de “Tradição e revolução: Mário de Andrade e o patrimônio histórico e artístico nacional”, o artigo visa a desconstruir a “operação institucional de canonização, cujo resultado mais imediato é a composição de uma imagem tradicionalista e governamental do NonetrabalhoNone extraordinário e multifacetado que o criador de NoneMacunaímaNone realizou com a herança cultural brasileira”. Fragelli, por meio de análise detida das ideias e atuação de Mário de Andrade, reivindica que, ao longo de sua vida, desenvolve-se uma “percepção do vínculo entre revolução artística e revolução política”, isto é, que o autor de Macunaíma, ao fim e ao cabo, entendia como patrimônio “um conjunto de materiais que municia[va] a produção artística de vanguarda”.

O conjunto de artigos presentes neste número termina com um texto a seis mãos, que visa a “apresentar algumas das principais características do movimento negro brasileiro na atualidade e algumas das principais estratégias, frentes de atuação, demandas e referenciais adotados por esse movimento social”. No texto “Os ‘rolês’ do movimento negro brasileiro na atualidade, nas ‘pegadas’ da educação”, Amilcar Araujo Pereira, Thayara Cristine Silva de Lima e Jorge Lucas Maia – respectivamente, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutoranda e mestrando em Educação na mesma instituição –, a partir da recolha de dados por meio de formulários on-line e da realização de entrevistas, buscam entender como militantes vêm construindo “a luta antirracista nos mais diversos campos, especialmente na área da educação”.

A publicação de Aspectos do folclore brasileiro, de Mário de Andrade (2019), obra até então inédita, com coordenação de Telê Ancona Lopez e estabelecimento do texto, apresentação e notas de autoria de Angela Teodoro Grillo, merece duas resenhas. Marcelo Maraninchi, doutorando em Literatura Brasileira na USP, em texto intitulado “Coisas do Brasil”, e Roniere Menezes, professor do Departamento de Linguagem e Tecnologia no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG), em resenha nominada “Aspectos do folclore brasileiro: Mário de Andrade, cultura popular e questão negra”, não só apresentam ao leitor a riqueza do texto até hoje inédito, como destacam, cada um a sua maneira, a importância da publicação da obra e a contribuição de Telê Ancona Lopez e Angela Grillo em tal empreitada.

O número se encerra com a seção Documentação, que traz o texto “El fondo Aracy Abreu Amaral y la historiografía del arte de América Latina”. Renata Ribeiro dos Santos, professora do Departamento de História da Arte e Musicologia da Universidade de Oviedo (Espanha), partindo do acervo do IEB, tece considerações fundamentais acerca das “relações e trocas intelectuais entre os diferentes agentes que, juntamente com Amaral, foram decisivos para a delimitação e difusão da arte latino-americana entre os anos 1970 e 1990”.

Os editores desejam que essa viagem a temas, tempos e espaços tão distintos, povoados por seres e sentidos os mais diversos, (des)encaminhe o leitor pelo que há de mais múltiplo no universo dos saberes.

Fernando Paixão1, Luiz Armando Bagolin2, Monica Duarte Dantas3

  • 1
    Universidade de São Paulo (USP, São Paulo, SP, Brasil).
  • 2
    Universidade de São Paulo (USP, São Paulo, SP, Brasil).
  • 3
    Universidade de São Paulo (USP, São Paulo, SP, Brasil).

REFERÊNCIAS

  • ANDRADE, Mário de. Aspectos do folclore brasileiro Coordenação de Telê Ancona Lopez. Estabelecimento do texto, apresentação e notas de Angela Teodoro Grillo (Global Editora, 2019).
  • GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
  • HOMERO. Odisseia Tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011.
  • LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres 19. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
  • ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 1. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
  • _____. Meu tio o Iauaretê. In: _____. Estas estórias Nota introdutória de Paulo Rónai. Capa de Poty. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1969, p. 126-159.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2020
  • Aceito
    13 Abr 2020
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