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Uma releitura do “Brasil colonial” a partir da obra de António Manuel Hespanha

A rereading of “colonial Brazil” based on the work of António Manuel Hespanha

RESUMO

O intuito do presente artigo é ressaltar o mérito e a abrangência da influência da obra de António Manuel Hespanha no sentido da ruptura de uma abordagem clássica da historiografia brasileira sobre o período colonial, ou seja, do estabelecimento de um novo paradigma historiográfico por meio da operacionalização de novas categorias e conceitos. Na segunda parte, iniciamos com um rápido balanço da atual discussão historiográfica sobre Estados e monarquias na Europa moderna. Com isso, pretendemos contribuir para a discussão da historiografia sobre a sociedade dos trópicos entendida como parte da monarquia pluricontinental portuguesa.

PALAVRAS-CHAVE
António Manuel Hespanha; Antigo Regime; sociedades ultramarinas

ABSTRACT

The purpose of this article is to recognize the merit and scope of the influence of António Manuel Hespanha, whose work broke with a classic approach of Brazilian historiography of the colonial period, that is, he established a new historiographical paradigm through the operationalization of new categories and concepts. In the second part, we begin with a brief assessment of the current historiographical discussion on states and monarchies in modern Europe. By doing so, we intend to contribute to the discussion of the historiography on the society in the tropics understood to be part of the Portuguese pluricontinental monarchy.

KEYWORDS
António Manuel Hespanha; Ancien regime; overseas societies

O artigo “Uma leitura do Brasil Colonial”, publicado no já longínquo ano de 2000 e, no ano seguinte, o livro O Antigo Regime nos Trópicos tiveram por base em grande medida as propostas impactantes, para os historiadores brasileiros, de António Manuel Hespanha. Esse foi o caso, por exemplo, do uso do conceito seminal de sociedade corporativa e polissinodal (HESPANHA, 1994HESPANHA, Antônio Manuel. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal – século XVII. Lisboa: Almedina, 1994.) – ao invés de Estado absolutista – para entender a monarquia portuguesa da época moderna. E, claro, a partir do mesmo conceito, reinterpretar as possessões americanas e suas relações com a Coroa. De acordo com aquele conceito, a América lusa, então enquadrada como colonial, era entendida como uma sociedade formada por comunidades políticas com a possibilidade de negociarem com a metrópole. No arcabouço teórico fornecido por Hespanha, a Coroa continuava a ser o centro da monarquia, mas deixava de ser o monstro bíblico Leviathan capaz de descerebrar as populações dos trópicos. Como no reino, nas conquistas – não mais colônias – o rei compartilhava sua autoridade com outros poderes. “Uma leitura do Brasil colonial”, além do conceito acima, valeu-se da discussão de Hespanha sobre a dádiva, retirada da obra de Marcel Mauss (2003)MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosacnaif, 2003, p. 183-315., para analisar a monarquia da época moderna. Tratava-se de um rei capaz de distribuir dádivas pelos serviços prestados à monarquia, no âmbito de uma economia do dom (XAVIER; HESPANHA, 1993XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, Antônio Manuel. As redes clientelares. In: HESPANHA, Antônio M. (Coord.). História de Portugal. Antigo Regime, vol. IV. Lisboa: Ed. Estampa, 1993, p. 339-349.). Por meio de tal economia, a Coroa distribuía riquezas materiais e simbólicas, e com isso construía sua autoridade sobre os agraciados (sobre os diferentes grupos sociais) e, a partir deles, sobre o conjunto da sociedade, despertando nos súditos o sentimento de pertencimento.

O livro O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII) (FRAGOSO, BICALHO, GOUVÊA, 2001FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa, séculos XVI-XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.) reuniu estudos que propunham uma nova perspectiva historiográfica. Os capítulos que compõem a obra visavam apresentar uma outra abordagem do que até então se convencionou chamar de “Brasil-Colônia”, procurando percebê-lo como parte constitutiva do império português. Seus autores dedicavam-se a compreender a sociedade escravista na América como resultado de dinâmicas – econômicas, políticas e culturais – de Antigo Regime. As principais questões propostas no livro podem se resumir às seguintes indagações:

Como desfazer uma interpretação fundada na irredutível dualidade econômica entre a metrópole e a colônia? Como esquecer que, ao lado dos – e, às vezes, simultaneamente aos – conflitos entre colonos e Coroa, inúmeras foram as negociações que estabeleceram e que ajudaram da dar vida e estabilidade ao império? Como tecer um novo ponto de vista, ou um novo arcabouço teórico e conceitual que, ao dar conta da lógica do poder no Antigo Regime, possa explicitar práticas e instituições presentes na sociedade colonial?

(FRAGOSO; BICALHO; GOUVÊA, 2001, p. 21-22).

Nesse livro sobressaiu-se o capítulo de António Manuel Hespanha, provocando um verdadeiro reboliço entre os historiadores e acadêmicos – professores e alunos – no Brasil. “A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes” – esse é o título do capítulo – foi e continua sendo importantíssimo para a renovação do paradigma historiográfico de análise não apenas da sociedade dita colonial, mas do conjunto do império português na época moderna, assim como para a própria produção historiográfica brasileira nas universidades e, sobretudo, nos programas de pós-graduação de norte a sul do país. Com sua obra, e com esse artigo em específico, Hespanha provocou um profundo deslocamento na interpretação então dominante na historiografia brasileira, propondo um modelo de análise que se distancia dos imaginários nacionalistas, incorporando perspectivas mais atuais, até então tímidas nos horizontes dos estudos sobre o “Brasil colonial”.

É possível afirmar que António Manuel Hespanha foi um dos grandes responsáveis pela difusão na comunidade acadêmica brasileira de conceitos e perspectivas já então correntes na historiografia política italiana e ibérica, apresentando-nos os estudos de autores como Bartolomé Clavero (1996)CLAVERO, Bartolomé. La grâce du don: anthropologie catholique de l’economie moderne. Paris: Albin Michel, 1996. e Pablo Fernández Albaladejo (1992)ALBALADEJO, Pablo Fernández. Fragmentos de monarquia: trabajos de historia política. Madrid: Alianza Editorial, 1992., incentivando jovens pesquisadores brasileiros a reverem categorias como Estado, centralização, poder absoluto, assim como sua centralidade e eficácia na análise das monarquias europeias de Antigo Regime e de seus domínios ultramarinos.

Já conhecíamos no Brasil seu livro seminal, Às vésperas do Leviathan (HESPANHA, 1994HESPANHA, Antônio Manuel. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal – século XVII. Lisboa: Almedina, 1994.), assim como Poder e instituições no Antigo Regime (HESPANHA, 1984HESPANHA, António Manuel. Poder e instituições no Antigo Regime. Lisboa: Gulbenkian, 1984.), embora o acesso a esses livros e sua circulação fossem ainda restritos entre nós. Da mesma forma que autor e obra influenciaram, em Portugal, toda uma plêiade de jovens historiadores, também aqui, artigos e livros de António Manuel Hespanha, assim como suas conferências e aulas em diversas universidades e centros de pesquisa – quer na área de história, quer na do direito – formaram mais de uma geração de estudiosos.

Seria importante voltar a ressaltar o mérito e a abrangência dessa influência no sentido da ruptura, ou seja, do estabelecimento de um novo paradigma historiográfico por meio da operacionalização de novas categorias e conceitos para a interpretação de antigos documentos no intuito de compreender a matriz cultural católica da monarquia portuguesa, e, sobretudo, refletir sobre a arquitetura, as configurações, as dinâmicas, as práticas e representações do império português. Esse é o intuito do presente artigo.

Em relação às interpretações clássicas na historiografia brasileira sobre a administração colonial (PRADO JR., 1942PRADO JÚNIOR, Caio. O sentido da colonização. In: PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 15. ed. São Paulo: Brasiliense, 1977, p. 19-32.; FAORO, 1984FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 6. ed. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1984.), Hespanha demonstrou que uma suposta ineficiência não era uma característica singular da administração portuguesa na América, mas um traço estrutural das dinâmicas políticas de Antigo Regime, no reino e no ultramar. Uniformidade e poder ilimitado característico de Estados centralizados não existiram nesse tipo de império, mas sim justaposição institucional, pluralidade de modelos jurídicos, diversidade de limitações constitucionais do poder régio e o consequente caráter mutuamente negociado de vínculos políticos. Enfim, também nos territórios ultramarinos coexistia a formação compósita e complexa das comunidades políticas do início da época moderna (CARDIM; MIRANDA, 2014CARDIM, Pedro; MIRANDA, Susana M. A expansão da Coroa portuguesa e o estatuto político dos territórios. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima S. O Brasil colonial (1580-1720). V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 51-106.).

António Manuel Hespanha defendeu o quadro atomístico da expansão portuguesa, a inexistência de um projeto colonial, de uma constituição colonial unificada, de um modelo ou estratégia geral abrangendo todo o império – pelo menos até meados do século XVIII –, assim como de um único estatuto da população que vivia nos territórios ultramarinos. Se a heterogeneidade do estatuto político dos vassalos criou uma pluralidade de tipos de laços políticos, a heterogeneidade dos mesmos laços impedia o estabelecimento de uma regra uniforme de governo, ao mesmo tempo que criava limites ao poder da Coroa e de seus delegados. Demonstrou, enfim, a falta de homogeneidade, de centralismo absoluto e de hierarquias rígidas na arquitetura do poder nas conquistas.

Chamou igualmente atenção para o caráter pluralista do direito. Sobretudo para o fato de que o pluralismo e a fluidez eram um reflexo da inconsistência jurídica da própria configuração do direito comum europeu, erguido sobre o princípio de que as regras particulares (costumes locais, estilos locais de decisão em tribunais, privilégios etc.) desbancavam as regras gerais. O direito era assim constituído por um sistema de normas pluralísticas e casuísticas, múltiplos estatutos e/ou privilégios particulares, os quais tinham eficácia na limitação da ação real. Essa característica do ius commune europeu resultou numa vantagem essencial quando os portugueses tiveram de lidar com um mundo complexo e em constante movimento e mutação, como o dos territórios, domínios e populações ultramarinas.

Alertou-nos sobre a dinâmica administrativa centrífuga do império, sobre a autonomia dos poderes na hierarquia política imperial. Fez-nos ver que, apesar do estilo altamente detalhado das cláusulas regimentais e da obrigação de, para certos casos, consultarem o rei, o Conselho Ultramarino e/ou os secretários de Estado, os vice-reis e governadores nas conquistas gozavam de uma grande autonomia. Seu palco de atuação não era o mundo estabilizado da política dos reinos europeus, em que a justiça e o governo se enraizavam em tradições e fórmulas fixadas pelo tempo. Pelo contrário, eles atuavam num mundo estranho e não balizado, ele próprio subvertido nos seus estilos pela erupção dos europeus.

Não deixou de lado os poderes locais, em especial as câmaras municipais, que, para além de instrumentos eficientes na organização política das elites ultramarinas – que as utilizaram para legitimar sua liderança na defesa de seus interesses e no estabelecimento, ampliação e fortalecimento de suas redes sociais –, eram talvez, o mais eficaz contraponto do processo de centralização monárquica ou do “absolutismo” que porventura pudesse caracterizar o topo. Já em Às vésperas do Leviathan, Hespanha afirmava que “a manifestação porventura mais clara, ao nível institucional, da existência de comunidades dotadas de larga margem de auto-governo foi o fenómeno concelhio” (HESPANHA, 1994HESPANHA, Antônio Manuel. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal – século XVII. Lisboa: Almedina, 1994., p. 352). No que diz respeito ao ultramar, destacou o papel das câmaras ao realizarem o “bem comum” e desenvolverem políticas voltadas para seus desígnios e das elites que representavam.

Em trabalhos que se seguiram, igualmente publicados no Brasil, em razão do acirrado debate que o livro O Antigo Regime nos Trópicos suscitou, António Manuel Hespanha viria a criticar a utilização do conceito de “pacto colonial”, tal como definido nos anos de 1970 (NOVAIS, 1979NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979.). Em suas palavras,

[...] há que rever o recurso à palavra “pacto”, tão usada em muita literatura sobre a Constituição colonial de Antigo Regime. Não no sentido de a expulsar do vocabulário historiográfico brasileiro, nem sequer no sentido de – associada à palavra “colonial” – lhe negar virtualidades conceptuais num sentido bem localizado e razoavelmente efémero no tempo, mas no sentido de expandir o seu significado estrutural na compreensão das sociedades de Antigo Regime, mesmo as coloniais.

(HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Porque é que foi “portuguesa” a expansão portuguesa? Ou o revisionismo nos trópicos. In: SOUZA, Laura de Mello; BICALHO, Maria Fernanda; FURTADO, Júnia F. (Org.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda Editorial, 2009, p. 39-62., p. 49)

Ao tecer uma genealogia do ato de pactuar, realça a existência de uma concepção antiga de pacto extensiva aos domínios ultramarinos, que não se diferenciava da ideia de que a constituição das monarquias europeias se fundava em múltiplos pactos, com deveres recíprocos e variáveis. A seu ver, o conceito de pacto colonial – assim como o termo colônia – além de uma novidade, é impróprio, referindo-se, em sua enunciação, a uma realidade muito pouco pactícia ao exprimir a exploração colonial em benefício da acumulação capitalista metropolitana. Em seus termos:

Num sentido lato, a ideia de “pacto colonial” apareceu para resolver a questão da legitimidade da conquista e manutenção das colónias, nomeadamente como argumento suplementar ou vicariante do argumento da conquista ou da doação papal. A sua formulação mais recente encontra-se em Montesquieu (De l’esprit des lois, liv. XXI, cap. 21). [...] Trata-se, como se vê, de um argumento político, e não económico, em que o pacto reproduz, de certa forma, o que, nas sociedades europeias se estabelecia continuamente entre os potentiores e os humiliores – e, desde logo, entre os vassalos e os reis (pactum subjectionis, combinado com o pactum protectionis) –, em que se comprava a protecção com o serviço.

(HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Porque é que foi “portuguesa” a expansão portuguesa? Ou o revisionismo nos trópicos. In: SOUZA, Laura de Mello; BICALHO, Maria Fernanda; FURTADO, Júnia F. (Org.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda Editorial, 2009, p. 39-62., p. 49-50).

Não havia, no aspecto político, uma distinção fundamental entre pactos estabelecidos no reino e no ultramar no que dizia respeito aos vínculos entre vassalos e Coroa. Em suas palavras,

As semelhanças eram as mesmas quanto aos vínculos com a coroa: nada de uma concepção absolutista do poder, mas antes a habitual e pervasiva figura do pacto entre o rei e as comunidades, pacto cuja principal consequência era a de uma limitação mútua do poder do rei e dos súbditos, cuja violação por parte do rei justificava toda uma série de reacções, que iam desde múltiplas representações dos corpos ou indivíduos agravados, até à revolta, passando por toda a classe de negociações e, até, pela suspensão da decisão real (se obedece, pero no se cumple). Ou seja: não uma situação colonial única, regida por um único pacto, mas uma pluralidade imensa de pactos, entre uma pluralidade imensa de instâncias, desembocando numa variabilidade imensa dos deveres e dos direitos, mutuamente invocáveis.

(HESPANHA, 2009HESPANHA, António Manuel. Porque é que foi “portuguesa” a expansão portuguesa? Ou o revisionismo nos trópicos. In: SOUZA, Laura de Mello; BICALHO, Maria Fernanda; FURTADO, Júnia F. (Org.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda Editorial, 2009, p. 39-62., p. 50-51).

Em capítulo publicado no livro Monarquia ibéricas em perspectiva comparada (XAVIER; PALOMO; STUMPF, 2018XAVIER, Ângela Barreto; PALOMO, Federico; STUMPF, Roberta (Org.). Monarquias ibéricas em perspectiva comparada (sécs. XVI-XVIII): dinâmicas imperiais e circulação de modelos administrativos. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2018.), António Manuel Hespanha e Pedro Cardim se perguntam: “Qual foi a designação que portugueses e espanhóis deram aos conjuntos territoriais resultantes dos seus processos expansivos?”. E respondem que no léxico português dos séculos XVI e XVII tornou-se muito frequente o uso da expressão “conquista ultramarina” para qualificar, em termos gerais, os territórios situados fora da Europa. O adjetivo “ultramarino” refletia o ponto de vista europeu sobre essas terras separadas por mar. Quanto ao termo “conquistador”, afirmou-se como o vocábulo que designava aqueles que tinham protagonizado os primeiros momentos do governo dos novos espaços por parte dos europeus, mesmo naqueles casos que, em rigor, não tinham sido objeto de uma “conquista” propriamente dita, mas sim de uma ocupação mais ou menos gradual. “Conquista ultramarina” ou simplesmente “conquista” foram, assim, as expressões que acabaram por se impor, ainda que se tratasse de termos que evocavam a dimensão violenta da apropriação de terras e de pessoas. Portanto, desde os primeiros anos do século XVI assistiu-se à elaboração, em Portugal, de um discurso de dominação imperial fundamentalmente suscitado pela expansão “ultramarina” (CARDIM; HESPANHA, 2018CARDIM, Pedro; HESPANHA, António Manuel. A estrutura territorial das monarquias ibéricas. In: XAVIER, Ângela Barreto, PALOMO, Federico; STUMPF, Roberta (Org.). Monarquia ibéricas em perspectiva comparada (sécs. XVI-XVIII): dinâmicas imperiais e circulação de modelos administrativos. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2018, p. 51-95., p. 75-81).

Apesar do discurso ufanista e contrapondo-se ao fundamento da imagem de um império por demais centralizado, num momento em que a visão correspondente de uma monarquia absolutista estava sendo discutida e revista, António Manuel Hespanha fez-nos ver as vantagens, com extrema argúcia, de tal perspectiva: do ponto de vista do conquistador português, a imagem de um império centralizado era ideologicamente compensadora, pois dava crédito à vocação “metropolitana” da metrópole, permitindo que ela personificasse velhos impérios idealizados, como o romano. Defender o contrário, isto é, destacar o papel constitutivo de elementos periféricos, seria contraprodutivo e permitiria o enfraquecimento do brilho do empreendimento imperial. Do ponto de vista das elites locais na América, um império absoluto, centralizado e opressivo, justificava mais diretamente uma eterna celebração da própria identidade, da revolução emancipadora, constituindo mais um fator de autoconfiança da nova pátria.

Isso permitiu apresentar a independência – que está fazendo, neste ano de 2022, 200 anos – como uma luta heroica contra o mau governo “estrangeiro”, bem como desresponsabilizar-se pelas causas dos infortúnios pós-coloniais, remetendo-os para a responsabilidade do “colonizador” português, argumentando, sobretudo, que a pobreza, a corrupção e a má administração – inclusive atuais no Brasil – estão e continuarão sempre ligadas tanto à pretérita exploração, como aos velhos vícios importados do passado colonial. Mesmo o genocídio de povos indígenas e a escravização de africanos – dois temas tão atuais nos nossos dias – puderam, assim, ser encarados como fatos do passado, de um passado colonial e português. Uma vez absolvida de toda responsabilidade histórica, a nova nação independente pode brilhar imaculada, unida e unificada, livre da exploração, da segregação étnica e dos preconceitos. Essas escoras políticas ficaram claras no difuso discurso anticolonial de parte da mais tradicional historiografia brasileira (HESPANHA, 2001HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 163-188., p. 167-168).

Em suma, do ponto de vista das elites locais na América, um império absoluto, centralizado e opressivo, justificava a celebração da própria identidade da nova nação independente, unida e unificada, livre da exploração, da segregação étnica e dos preconceitos. Hespanha assim conclui seu capítulo no livro O Antigo Regime nos Trópicos:

O quadro acima não esgota a imagem dos equilíbrios políticos entre a metrópole e as colônias durante a época moderna. Na verdade, ele apenas fornece um rastreio dos nichos institucionais de onde o poder pode ser construído, descrevendo brevemente as virtualidades políticas de cada um deles. De certa forma, trata-se de um quadro vazio, tal como a descrição de um tabuleiro de xadrez e das suas peças. Quase nada fica dito sobre o modo, como num jogo concreto, as peças se animam e com elas se constroem estratégias. No entanto, tampouco um jogo real se pode entender sem essa descrição puramente formal.

(HESPANHA, 2001HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 163-188., p. 187).

Para além do discurso de dominação colonial ou imperial, é certamente em seu último livro, Filhos da terra: identidades mestiças nos confins da expansão portuguesa (HESPANHA, 2019HESPANHA, António Manuel. Filhos da terra: identidades mestiças nos confins da expansão portuguesa. Lisboa: Tinta da China, 2019.), que António Manuel Hespanha retoma argumentos já presentes em suas obras anteriores, e “dá o pulo do gato” não só em relação ao conceito de império – e de império português, mas também em relação a muitos de seus livros, sobretudo os que o definiam como um historiador das instituições e do direito. Ele próprio admite que

A minha perspectiva começou por ser predominantemente institucional, como era natural, dado o meu perfil de historiador. Ou seja, interessava-me, antes de tudo, a organização política destas comunidades (ultramarinas e informais) e do seu governo, bem como o tipo de relações políticas que mantinham com o império “formal”.

(HESPANHA, 2019HESPANHA, António Manuel. Filhos da terra: identidades mestiças nos confins da expansão portuguesa. Lisboa: Tinta da China, 2019., p. 13).

É, no entanto, o império informal, ou “império na sombra”, o objeto desse último livro. E seu olhar passa a se centrar nas comunidades “portuguesas” (entre aspas) para além do dito tradicional império colonial português. Recorrendo a um artigo de Luís Filipe Thomaz (1994)THOMAZ, Luís Filipe. Estrutura política e administrativa do Estado da Índia no século XVI. In: THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994, p. 207-243., Hespanha constrói seu argumento sobre a dispersão e a variedade do estatuto político dos territórios como a principal característica da expansão portuguesa. Trata-se de um “império em rede”, cuja fluidez resultava não apenas da trama das rotas oceânicas, ou da porosidade e indistinção das fronteiras, mas do fato de as redes imperiais terem sido estabelecidas sobre redes anteriores, de outro tipo e sob outras soberanias. Redes improvisadas. Enfim, segundo nosso autor, “essa natureza reticular e não territorial da colonização portuguesa, especialmente na Ásia e em África, mas também no Brasil – apesar do carácter mais ‘territorial’ do seu modelo de colonização – originou as suas características políticas e jurídicas” (HESPANHA, 2019HESPANHA, António Manuel. Filhos da terra: identidades mestiças nos confins da expansão portuguesa. Lisboa: Tinta da China, 2019., p. 22).

Indiferenças em relação à aquisição formal de territórios, diversidade de modelos de enquadramento político e jurídico dos territórios e das populações, culturas partilhadas, ambiguidade das situações políticas e estatutárias, diversidade da relação entre as zonas oficialmente integradas ao império e as que lhe escapavam foram características desse “império na sombra”, no qual os portugueses, embora não os únicos, foram também protagonistas. A partir do profícuo diálogo com as obras de Luís Felipe Thomaz (1994)THOMAZ, Luís Filipe. Estrutura política e administrativa do Estado da Índia no século XVI. In: THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994, p. 207-243., Antony Disney (1995)DISNEY, Anthony. Contrasting models of “empire”: the Estado da India in South East and East Asia in the sixteenth and early seventeenth centuries. In: DUTRA, Frank; SANTOS, João Camilo dos (Ed.). The Portuguese and the Pacific. Santa Barbara: University of California U.P., 1995, p. 26-37., George Winius (1991)WINIUS, George. Portugal’s “shadow empire” in the Bay of Bengal. Revista Cultura, n. 13-14, 1991, p. 273-287., Malyn Newitt (2001)NEWITT, Malyn. Formal and informal empire in the history of Portuguese expansion. Portuguese Studies, n. 17.1, 2001, p. 1-21. e Sanjay Subrahmanyam (1993)SUBRAHMANYAM, Sanjay. The Portuguese empire in Asia 1500-1700: a political and economic history. Londres: Longman, 1993., António Manuel Hespanha avança em direção a uma outra questão cada vez mais presente e importante no debate historiográfico atual – a da identidade e da mestiçagem, numa perspectiva não eurocêntrica. Nosso mestre inova ao nos propor um nível diferente de abordagem da história imperial. Em suas palavras:

O mérito desta abordagem é o deixar de privilegiar um enfoque “europeu” [...] preferindo destacar os contextos, funções e usos da “diferença” destas comunidades no âmbito das sociedades “de lá”. Uma diferença que era notada e que, na falta de melhor forma de falar sobre ela, era assimilada a uma “identidade portuguesa”. Com base nesta redefinição de comunidades e indivíduos pertencentes ao “império informal”, é possível construir uma configuração nova, ampliada e desformalizada desse “Império” tão pouco imperial e tão problematicamente português.

(HESPANHA, 2019HESPANHA, António Manuel. Filhos da terra: identidades mestiças nos confins da expansão portuguesa. Lisboa: Tinta da China, 2019., p. 39).

Enfim, o campo aberto pelo diálogo entre os historiadores brasileiros e a obra de António Manuel Hespanha mostrou-se imensamente fértil. Não só novas perspectivas e conceitos, mas também novos temas, apenas rascunhados em seus textos, tornaram-se objetos privilegiados de pesquisa entre nós.

Uma releitura 20 anos depois...

Entre 2000 e 2001 os argumentos de António Manuel Hespanha serviram de base à elaboração de conceitos – como os de economia do bem comum e economia política dos privilégios – como instrumentos para adentrar as lógicas do que chamaríamos de Antigo Regime nos Trópicos (FRAGOSO; BICALHO; GOUVÊA, 2000FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Uma leitura do Brasil colonial – bases da materialidade e da governabilidade no Império. Penélope – Revista de História e Ciências Sociais, n. 23, 2000, p. 67-88.). Porém, hoje, em 2022, temos a consciência de que não havia sido incorporada toda a complexidade contida na ideia de dádiva como mercê e como graça. E isso, talvez, pelo entusiasmo e alegria juvenil que os ensinamentos de Hespanha nos proporcionaram na época. O fato é que na ocasião, como António Manuel Hespanha gostava de afirmar, não complexificamos os ditos conceitos como poderíamos tê-los complexificado. Por exemplo, não tínhamos claro que a justiça distributiva fazia parte de um sistema de representações cristão a partir do qual camponeses, príncipes e mendigos – entre outros contemporâneos dos Quinhentos e Seiscentos ibéricos – compreendiam e agiam no seu cotidiano. Àquela altura não era claro para nós que a dádiva no Antigo Regime cristão fazia parte daquilo que E. Durkheim (1996)DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996. denominara de sistema de conhecimento por meio do qual os homens aprendiam a lidar e a agir na sociedade em que viviam. Da mesma forma, não percebemos que tal sistema de conhecimento era produzido – como afirmara P. Bourdieu (1992BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992., 2018)BOURDIEU, Pierre. Modos de dominação. In: BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Porto Alegre: Editora Zouk, 2018. – por intelectuais e/ou agências da sociedade: no caso, os tratadistas. Daí, depois de mais de 20 anos, reler “Uma leitura do Brasil colonial”, com olhos mais maduros, continua sendo um exercício de alegria, tal qual nas primeiras incursões aos escritos de António Manuel Hespanha.

Nesta segunda parte do artigo, iniciamos com um rápido balanço da atual discussão historiográfica sobre Estados e monarquias na Europa moderna (séculos XVI ao XVIII). Em seguida, expomos elementos do sistema de representações europeias como um encantamento, ou melhor, como um sistema a partir do qual os homens aprendiam e eram informados sobre as categorias necessárias para atuarem em suas vidas. Tudo isso numa época em que não dispunham do Estado, com sua burocracia e sistema de ensino e de mercado que lhes dessem essas informações (BOURDIEU, 1992BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992., 2018, 2021; DURKHEIM, 1996DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996.; WEBER, 1991WEBER, M. Sociologia da religião. In: WEBER, M. Economia e sociedade. v. 1. Brasília: UNB, 1991, p. 279-418.). Com isso, pretendemos contribuir para a discussão da historiografia sobre a sociedade destes trópicos entendida como parte da monarquia pluricontinental portuguesa.

Desde o Congresso Internacional de História de 1955, em Roma, foram apresentadas dúvidas acerca da pertinência da noção de absolutismo para explicar as relações entre príncipe, administração, elites e população na época moderna (VON FRIEDEBURG; MORRIL, 2017VON FRIEDEBURG, Robert; MORRIL, John. Monarchy transformed. Princes and their elites in Early Modern Western Europe. In: VON FRIEDEBURG, Robert; MORRIL, John. Monarchy transformed: princes and their elites in early modern western Europe. Cambridge University Press, 2017, p. 1-13.). Em fins da década de 1980, António Manuel Hespanha, em Às vésperas do Leviathan, defendia a hipótese de que, na época moderna, o príncipe seria incapaz de impor um sentido à sociedade, pois era desprovido de instrumentos para isso. Segundo o autor, a Coroa ainda não possuía burocracia civil e militar para mediar as relações sociais. O príncipe era a cabeça da sociedade, porém, não se confundia com ela, ou seja, com seu corpo social e político. Na verdade, o rei, embora centro político da sociedade, partilhava seu mando com poderes concorrentes: aristocracia, tribunais e conselhos, comunas urbanas, famílias etc.

Por conseguinte, o rei era a cabeça pensante capaz de articular as jurisdições das várias partes que compunham o conjunto do corpo social, seja no reino, seja no ultramar. Com isso, temos a ideia de uma monarquia polissinodal e corporativa de base católica. Três anos depois, J. H. Elliott elaborava o conceito de “monarquias compósitas”. Segundo o autor, a monarquia hispânica era constituída por vários reinos previamente existentes e cada um deles conservou, em grande medida, as características de sua existência institucional prévia: corpos de leis e direitos locais (ELLIOTT, 2002ELLIOTT, John H. Una Europa de monarquias compuestas. In: ELLIOTT, John H. España en Europa: estudios de historia comparada. València: Universitat de València, 2002, p. 65-93.).

Ao contrário da monarquia dos Habsburgo ibéricos, nas terras lusas dos Avis e depois dos Bragança, havia apenas um reino e várias conquistas disseminadas pela América, África e Ásia. Como na monarquia hispânica, na portuguesa existia concorrência e negociação entre poderes. A sociedade moderna se compreendia como um corpo. Os órgãos sociais (famílias, senhorios, municípios etc.), como os órgãos do corpo e da natureza, possuíam uma função e, portanto, sua existência pressupunha uma ampla capacidade de autorregulação.

Deriva daí o fato de os órgãos sociais serem compreendidos como comunidades políticas, e sua combinação e harmonia – leia-se o “bem comum” da sociedade – serem garantidas pelo rei como cabeça daquele corpo. Daí também se infere que a concepção da função da Coroa não seja a de destruir a autonomia das corporações, mas garantir a coordenação entre elas, especialmente pela justiça e suas leis maiores. Todo esse processo implica dizer que estamos diante de um sistema polissinodal, ou seja, no qual a direção política na sociedade decorre da concorrência de poderes e, nessa dinâmica, o rei aparecia como o centro.

No reino de Portugal, os poderes concorrentes consistiam na administração da Coroa, no poder senhorial e no municipal. Já nas conquistas, o poder senhorial, na forma das donatarias, foi progressivamente eliminado por sua incorporação ao patrimônio régio. Assim, nas conquistas ultramarinas, a gestão política resultava de negociações entre os municípios e o rei (alicerçada nos Conselhos palacianos), com decisiva interferência da administração da Coroa.

As populações estavam organizadas, grosso modo, no reino e no ultramar, em municípios entendidos como repúblicas, pois eram comunidades políticas com o direito de autogoverno garantido pelos costumes e legislação e, assim, defendidas pelo rei. Em um dicionário de fins do século XVIII, o município significava cidade governada por suas leis próprias (BLUTEAU; SILVA, 1789BLUTEAU, Rafael; SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. 2 v., v. 2, p. 104).

Em texto publicado por J. H. Elliott em 2009, o historiador mais uma vez retoma suas críticas ao absolutismo. Para ele, um dos pontos positivos do interminável debate sobre a crise do século XVII foi o de chamar a atenção para as comunidades políticas locais na Europa. Esse debate evidencia a “resistência às inovações do Estado por parte das comunidades por ele pressionadas; demonstrando que as sociedades continuavam organizadas em corporações, divididas em ordens e vinculadas verticalmente por fortes laços de parentesco e de clientela” (ELLIOTT, 2009ELLIOTT, John H. La crisis general en retrospectiva: un debate interminable. In: ELLIOT, John H. España, Europa y el Mundo de Ultramar (1500-1800). Madrid: Taurus Historia, 2009, p. 87-111., p. 95-96). No início do século XXI, a crítica ao conceito de monarquia absoluta chegava a manuais como Early Modern Europe, 1450-1789 – Cambridge History of Europe (WIESNER-HANKS, 2006WIESNER-HANKS, Merry E. Absolutism in theory and practice. In: WIESNER-HANKS, Merry E. Early modern Europe, 1450–1789. Cambridge History of Europe, 2006, p. 317-320.). No capítulo “Absolutism in theory and practice”, Wiesner-Hanks sublinha que pesquisadores recentes destacam que mudanças, na teoria e na prática, para a centralização das monarquias europeias ocorreram muito mais lentamente do que o defendido por historiadores do século XIX (WIESNER-HANKS, 2006WIESNER-HANKS, Merry E. Absolutism in theory and practice. In: WIESNER-HANKS, Merry E. Early modern Europe, 1450–1789. Cambridge History of Europe, 2006, p. 317-320., p. 318). A diversidade dos sistemas legais, criminais, e a persistência de assembleias representativas locais nas distintas geografias das monarquias europeias limitavam as tentativas de maior centralização. A isso se juntavam os direitos e privilégios da aristocracia, clero e cidadãos, entendidos como costumeiros, portanto, difíceis de serem eliminados (WIESNER-HANKS, 2006WIESNER-HANKS, Merry E. Absolutism in theory and practice. In: WIESNER-HANKS, Merry E. Early modern Europe, 1450–1789. Cambridge History of Europe, 2006, p. 317-320., p. 318-319). Em outro manual de História Moderna, de 2015, The Oxford Handbook of Early Modern European History (1350-1750), no capítulo “Monarchy in Western and Central Europe”, Ronald G. Asch é mais incisivo na crítica ao conceito de absolutismo:

A number of modern text books therefore still cling to the concept of absolutism, which is after all handy in summing up these structural changes which state and monarchy underwent in this period. However a closer look not so much at legislation and proclamations but at the way government worked on a daily basis, and at the extent to which policies could actually be implemented on the ground, render older notions of the inexorable growth of the state and of monarchical authority in this period at least doubtful if not obsolete.

(ASCH, 2015ASCH, Ronald G. Monarchy in Western and Central Europe. In: SCOTT, Hamish. The Oxford Handbook of Early Modern European history, 1350-1750. v. II: Cultures and Power, 2015, p. 355-383.).

Considerando que na Europa Moderna o Estado era incapaz de mediar as relações sociais e, portanto, de dar um sentido à sociedade, cabe perguntar: com era possível a organização da sociedade de então? Ou melhor, como era possível sua disciplina social? Para responder essa equação, parece-nos que a complexificação das questões proposta por Hespanha nos ajuda mais uma vez. Nas primeiras linhas de um artigo por ele publicado em 2011 se lê a seguinte passagem:

A sociedade do Antigo Regime era uma sociedade essencialmente controlada, ainda que o fosse de maneira muito diversa de como o haveriam de ser as sociedades totalitárias da época contemporânea.

Realmente, os mecanismos do controle não eram frequentemente visíveis e explícitos; nem sequer, frequentemente, eram tidos como tais. Tratava-se antes de um controle imaginado, incorporado no controle de si mesmo, sentido, antes de tudo, como um dever, por vezes duro, mas normalmente impiedoso, em relação ao qual só existia a obediência e a resignação.

(HESPANHA, 2011HESPANHA, António Manuel. A monarquia: a legislação e os agentes. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Coord.). História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011., p. 12).

A partir da assertiva acima pode-se explicar o Antigo Regime católico como produto, em parte, do sistema de conhecimento criado ao longo de séculos pelos tratadistas cristãos. Os homens e mulheres que viviam na sociedade de então a entendiam, parcialmente, como resultado da graça de Deus. Na base desse modelo temos a família patriarcal. Leia-se a autoridade do pater exercida sobre a parentela consistia no arquétipo da sociedade hierárquica e desigual da Europa. A partir desse modelo, temos um Deus onipotente, onipresente, para com o qual o homem tinha uma dívida eterna ou impagável. Como um pai gera o filho, em seguida sustentando-o e orientando-o, Deus assim fez com a humanidade. A observação de suas orientações – nesse continente rural, violento e sacudido por doenças – garantia boas colheitas, proteção contra as epidemias e guerras. Assim, a sujeição a Deus era desejada e transformava-se em um sentimento cardinal na ação do homem. Além disso, Deus distribui as graças conforme o comportamento do homem; com isso, Ele era justo, ou seja, realizava uma justiça distributiva.

Por conseguinte, nesse modelo, era necessário que o homem tivesse fé, não tivesse dúvida de ser criatura de Deus e, consequentemente, seguisse suas orientações. Essa introspecção de Deus, ou a fé em sua autoridade, criava um sentimento de autocontrole e, com ele, uma disciplina social na época moderna muito mais eficaz do que os aparelhos de repressão das sociedades totalitárias contemporâneas. O que acabamos de afirmar consiste em ideias preconcebidas ou ferramentas cognitivas (sistema de representações) a partir das quais os diferentes segmentos sociais interpretavam a vida ao seu redor. Afinal, a ideia de fé não compunha o DNA ou código genético dos cristãos do século XVI: as pessoas não nasciam com ela, o amor a Deus era ensinado. A partir desses princípios e dos conceitos dele derivados, camponeses, cavalheiros, damas e mendigos compreendiam seu cotidiano. Ou ainda, talvez para entender tal situação, se torne necessário insistir na ideia de encantamento (com os seus rituais, parentescos imaginados e magias), tal qual compreendido por P. Bourdieu (2021)BOURDIEU, P. O desencantamento do mundo. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2021., ou seja, diferente das sociedades atuais dominadas pelo Estado com sua burocracia e sistema de ensino.

Aqueles preceitos acima referidos funcionavam como substrato da hierarquia social e das relações pessoais e de dependência que impregnavam a ação dos homens. A obediência amorosa a Deus servia de protótipo às relações de mando do senhor diante de “suas” aldeias, ao poder do pai sobre a família e da câmara municipal sobre os citadinos. Educado nessa maneira de ver a sociedade, o camponês do século XVI entendia a aristocracia, formada por homens de carne e osso como ele, como senhores. Estes tinham o dom de conferir o sustento e a proteção militar. Porém, isso não implicava que o camponês fosse descerebrado ou sem neurônios. Da mesma forma que o rústico foi ensinado a comparar o senhor de terras a Deus, ele sabia que essa relação era uma relação e, portanto, uma reciprocidade. Com certeza uma relação desigual, porém, recíproca. O senhor, como Deus e seus coadjuvantes, devia ser obedecido, porém, tinha que garantir a existência da aldeia. Caso não o fizesse, as sublevações seriam legítimas. Além disso, nesse mundo persistiam as culturas agrárias pagãs e pré-cristãs. Parece-nos que tal modelo de sociedade, na qual a hierarquia social aparece como sentimento cardinal ou como um ideal a ser continuamente perseguido, era também o substrato da sociedade da conquista americana. Isso fica mais inteligível quando lembramos que as relações entre escravos e senhores eram reciprocidades desiguais, mas eram reciprocidades, ou ainda que ambos eram homens e mulheres ensinados a temer a Deus, embora, em sua maioria, mantivessem e atualizassem suas práticas religiosas de origem, ou seja, africanas. A dita sociedade colonial, com suas redes de paróquias disseminadas até os confins dos sertões, era uma sociedade subordinada ao que chamamos de sobrenatural. Nela o temor a Deus e, com ele “um controlo imaginado, incorporado no controlo de si mesmo, sentido, antes de tudo, como um dever” (HESPANHA, 2011HESPANHA, António Manuel. A monarquia: a legislação e os agentes. In: MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Coord.). História da vida privada em Portugal: a Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011., p. 12), materializavam-se em relações sociais nesses trópicos, a exemplo do vivido no Velho Mundo. Para tanto, não é preciso ir muito longe, basta lembrar as irmandades cristãs laicas capazes de sustentar o comércio e a produção da Bahia de todos os Santos, cabeça política do Estado do Brasil. Ou ainda das alforrias concedidas como dádivas aos escravos pela obediência, pelo amor a eles, mas também pelo temor do senhor à morte. Como se sabe, essas alforrias não raro criavam clientelas de libertos ligados à casa grande. Da mesma maneira, alguns dos forros mais adiante se transformavam em senhores de cativos, percebendo nessa transformação um fenômeno natural, pois se tratava de uma ordem social cuja perfeição era a desigualdade: como a de Deus diante dos homens.

Entre os conceitos contidos naquele modelo de sociedade temos, por exemplo, o de corporação. Na tratadística cristã da época e nas práticas costumeiras, como afirmamos, prevalecia a ideia de sociedade humana composta de corpos ou corporações dispostos hierarquicamente. Famílias, aldeias, senhorios, burgos eram corporações dotadas da capacidade de se autogovernarem, de viverem conforme as normas estabelecidas por suas tradições e leis. Cada um desses corpos seria dotado de uma cabeça política – pais nos domicílios, castelões nos senhorios, autoridades municipais nas vilas e cidades etc. – dirigindo-as e guardando suas normas. As famílias camponesas moravam numa aldeia e, para tanto, obedeciam às normas acordadas. Por sua vez, as aldeias respondiam à justiça de um castelão. Senhorios rurais e cidades livres compunham um reino, reconhecendo a capacidade da Coroa em dirimir conflitos. Assim, um reino reunia várias comunidades políticas com autogoverno e, ao mesmo tempo, dispostas hierarquicamente.

Na conquista americana, a exemplo do reino, temos o município como república. Dessa forma, não é de espantar sua possibilidade dada pelas leis e costumes da monarquia, da câmara municipal do Rio de Janeiro, em 1641, de, em nome do bem comum, reter as frotas reinóis caso se negassem a negociar o preço do açúcar (DF, 1935DF – DISTRICTO Federal (Prefeitura). Directoria Geral do Patrimonio, Estatistica e Acervo. O Rio de Janeiro no seculo XVII: Accordãos e Vereanças do Senado da Camara, copiados do livro original existente no Archivo do Districto Federal, e relativos aos annos de 1635 até 1650. Mandados publicar pelo Sr. Prefeito Dr. Pedro Ernesto. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1935., p. 41-42). Ou ainda da câmara de Salvador da Bahia, em 1642, apelar e ser atendida pelo governador-geral, Antônio Teles da Silva, para manter a prática do cerceio da moeda, contrariando as orientações da Coroa (AHU, 1642AHU – Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino. Carta da Câmara de Salvador para S. Majestade. Bahia, 22 de setembro de 1642. Bahia – Coleção Luísa da Fonseca. AHU_ACL_CU_005, Cx. 8\Doc. 980.; AHU, 1644AHU – Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino. Carta do governador do Brasil Antônio Teles da Silva para S. Majestade. Bahia, 28 de janeiro de 1644. Bahia – Coleção Luísa da Fonseca. AHU_ACL_CU_005, Cx. 9\Doc. 1030 a 1034.).

Por seu turno, a Monarquia portuguesa do Antigo Regime era pluricontinental, portanto, espalhava-se pelos quatro cantos da Terra. Nela tínhamos um reino e conquistas situadas em três continentes diferentes. Pelo que foi dito há pouco, percebem-se, naqueles quatro cantos do planeta, municípios entendidos como repúblicas, práticas de justiça distributiva de ofícios régios, irmandades católicas, redes paroquiais com seus curas e visitações eclesiásticas etc. Além disso, tínhamos, entre outros fenômenos comuns, de São Luís do Maranhão a Macau, no mar da China, uma hierarquia social centrada na Coroa, que, ao conceder a graça e mercês de foros de fidalgo da casa real e hábitos militares, possibilitava a promoção social, assim como a intensa circulação planetária de vassalos que viviam de serviços à Coroa. Os vassalos, dependendo de suas experiências pretéritas, de sua qualidade social e da de seus antepassados, tinham a capitania de uma das fortalezas do Índico e, em seguida, eles ou seus descendentes podiam ter a serventia da provedoria da fazenda em Benguela ou de uma das capitanias da América.

Nos atuais tempos de história global, é importante afirmar que quando sublinhamos tais fenômenos, nos anos de 2000 e 2001, temos a preocupação de destacar o pano de fundo político e social de Antigo Regime daquela monarquia pluricontinental e, consequentemente, a possibilidade de suas repúblicas, situadas nos diferentes quadrantes da Terra, compartilharem da autoridade política com o centro, leia-se, com a Coroa. Como, aliás, acima ilustramos, com o Rio de Janeiro e a Bahia. Entretanto, o fato de aquelas diferentes geografias terem traços em comum, compartilharem de instituições de Antigo Regime, isso não significa, obviamente, que tais regiões estivessem destituídas de suas dinâmicas sociais locais (LEVI, 2019LEVI, Giovanni. Frail frontiers?. Past and Present, v. 242, nov. 2019, p. 37-49.). Afinal, por exemplo, o sistema agrário das cercanias do Rio de Janeiro do século XVIII era bem distinto do presente nas redondezas de Luanda na mesma época. Com isso, pretendemos enfatizar que a monarquia pluricontinental portuguesa, além de suas bases de Antigo Regime, comportava diferentes dinâmicas sociais locais que não podem ser encerradas numa camisa de força conceitual. Aliás, quando se fala em governo no Antigo Regime, está se falando em governos locais.

Muitos se referem ainda hoje a António Manuel Hespanha como um historiador do direito. Mas podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que a influência desse historiador e de sua obra na historiografia brasileira levou a uma profunda démarche – extremamente positiva – nos estudos de história política, cultural e social, sempre atenta às especificidades locais, regionais e conjunturais, às singularidades próprias de cada espaço e tempo, assim como a seus respectivos personagens na construção do inventário das diferenças próprio do fazer historiográfico.

  • FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda. Uma releitura do “Brasil colonial” a partir da obra de António Manuel Hespanha. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 83, p. 41-56, dez. 2022.

Referências

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  • AHU – Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino. Carta do governador do Brasil Antônio Teles da Silva para S. Majestade Bahia, 28 de janeiro de 1644. Bahia – Coleção Luísa da Fonseca. AHU_ACL_CU_005, Cx. 9\Doc. 1030 a 1034.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2022
  • Aceito
    18 Nov 2022
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