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As pontas esgarçadas da vida em Órfãos do Eldorado e Leite derramado

The frayed ends of life in Órfãos do Eldorado and Leite derramado

RESUMO

O propósito deste texto é desenvolver o confronto de dois romances, narrados em primeira pessoa, Órfãos do Eldorado (2008), de Milton Hatoum, e Leite derramado (2009), de Chico Buarque, cujas vozes que conduzem os enredos não se apresentam como confiáveis. Pretendemos investigar os recursos hermenêuticos que perpassam a relação entre escrita e memória de dois imponentes autores contemporâneos das letras nacionais, considerando os mecanismos que envolvem a construção da inconfiabilidade de narradores-personagens imersos nas enfermidades da memória.

PALAVRAS-CHAVE
Primeira pessoa; inconfiabilidade; memória enferma

ABSTRACT

The purpose of this text is to develop the confrontation of two novels narrated in the first person, Orphans of Eldorado (2008), by Milton Hatoum, and Spilt milk (2009), by Chico Buarque, whose voices that drive the plots do not present themselves as trustworthy. We investigated the hermeneutic resources that permeate the relationship between writing and memory of two imposing contemporary authors in national literature, considering the mechanisms that involve the construction of the unreliability of narrator-characters immersed in the illnesses of memory.

KEYWORDS
First person; unreliability; memory disorders

GUIAS NARRATIVOS NÃO CONFIÁVEIS: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES

Arminto Cordovil, um velho miserável, que vive em uma tapera amazônica, carrega em suas memórias a sombra do império econômico construído por seu pai: “Até a Primeira Guerra, quem não tinha ouvido falar de Arminto Cordovil? Muita gente conhecia meu nome, todo mundo tinha ouvido falar da riqueza e da fama do meu pai, Amando filho de Edílio” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 13). Segundo o seu relato, o pai, que morreu subitamente em seus braços, vítima de um provável infarto, construiu grande riqueza no povoado às margens do rio Amazonas exportando produtos da floresta pelas vias fluviais. Edificou a residência da família, o palácio branco, na avenida Beira-Rio:

Amando Cordovil seria capaz de devorar o mundo. Era um homem destemido: homem que ria da morte [...]. Quis apagar o passado, a fama do meu avô Edílio. Não conheci esse Cordovil. Dizem que ele ignorava o cansaço e a preguiça, e trabalhava que nem um cavalo no calor úmido da terra. Em 1840, no fim da guerra dos Cabanos, plantou cacau na fazenda Boa Vida, a propriedade na margem direita do Uaicurapá, a poucas horas de lancha daqui. Mas morreu antes de realizar um sonho antigo: a construção do palácio branco nesta cidade. Amando inaugurou a casa quando casou com minha mãe. E passou a sonhar com rotas ambiciosas para os seus cargueiros. (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 15).

Arminto, que, segundo o pai, era “louco pelas indiazinhas” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 24), vislumbrou pela primeira vez, no enterro de Amando, Dinaura, uma das órfãs acolhidas pela congregação do Sagrado Coração de Jesus, que exerceria sobre a sua existência um fascínio sobrenatural: “Quando decidi viver com minha amada no palácio, ela sumiu deste mundo. Diziam que morava numa cidade encantada” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 14). Contudo, ninguém se dispõe a ouvir as suas histórias ou confere credibilidade às palavras do velho Arminto, estigmatizado como louco. O único interlocutor das memórias narradas em Órfãos do Eldorado é um viajante que passa por sua tapera e, paciente e incrédulo, ouve o seu testemunho: “Ninguém quis ouvir essa história. [...] Aí tu entraste para descansar na sombra do jatobá, pediste água e tiveste paciência para ouvir um velho. Foi um alívio expulsar esse fogo da alma. A gente não respira no que fala?” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 103).

No leito de morte o centenário Eulálio Montenegro d’Assumpção (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.), descendente de uma tradicional família brasileira, que exerceu influência política tanto no Império como na Primeira República, reconstitui, por intermédio de suas memórias profundamente alteradas em decorrência de uma doença neurológica degenerativa, a gênese de seus antepassados. Seus interlocutores, reais e hipotéticos, na pobre enfermaria do hospital onde está internado, são múltiplos e abrangem os profissionais de saúde que exercem cuidado sobre o enfermo, passando por familiares, dentre os quais muitos já estão mortos. A narrativa de Eulálio, que de modo conciso atravessa gerações, justapõe ao arquivo memorialístico familiar a história do Brasil, transcorrida nos últimos dois séculos:

Meu avô foi um figurão do Império, grão-maçom e abolicionista radical, queria mandar todos os pretos brasileiros de volta para a África, mas não deu certo. Seus próprios escravos, depois de alforriados, escolheram permanecer nas propriedades dele. Possuía cacauais na Bahia, cafezais em São Paulo, fez fortuna, morreu no exílio e está enterrado no cemitério familiar da fazenda raiz da serra, com capela abençoada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro. Seu ex-escravo mais chegado, o Balbino, fiel como um cão, ficou sentado para sempre sobre a tumba dele. Se você chamar um táxi, posso lhe mostrar a fazenda, a capela e o mausoléu. (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 15-16).

Na igreja da Candelária, por ocasião da missa de seu pai, o senador da República Eulálio d’Assumpção, violentamente assassinado, o jovem Eulálio vislumbra, com uma atenção peculiar, a figura de Matilde, com quem virá a se casar e, apesar do seu desaparecimento prematuro, é a mulher que mais influência exercerá sobre a sua psique e sentimentos: “Ela estava no coral que cantava o Réquiem [...]. Eram as exéquias do meu pai, no entanto eu não saberia mais me libertar de Matilde” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 30).

São inúmeros os aspectos narrativos que aproximam os enredos de Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum, publicado em 2008, e Leite derramado, que Chico Buarque trouxe ao público no ano seguinte. Publicados pela Companhia das Letras, ambos os romances, cujos respectivos escritores foram agraciados com o prêmio Jabuti, têm em comum o fato de serem narrados em primeira pessoa, conduzidos cada qual por uma voz masculina advinda de família detentora do poder político e econômico no espaço geográfico em que o enredo memorialístico se desenvolve, ou seja, no Amazonas, entre Manaus e o interior do estado, e no Rio de Janeiro. Ambos os narradores perderam o pai de forma súbita e trágica na juventude; conheceram, de modo místico, as mulheres que nortearam as suas vidas amorosas por ocasião dos atos fúnebres paternos; experimentaram a decadência econômica, o abandono e a mais profunda solidão. Sobretudo, a suposta loucura de Arminto e a degeneração neurológica de Eulálio os tornam, à sombra da herança machadiana, narradores que, conforme Paul Ricoeur (2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 278) demonstra no capítulo “Mundo do texto e mundo do leitor”, no terceiro volume de Tempo e narrativa, são inconfiáveis, pois “diferentemente do narrador digno de confiança, que assegura ao seu leitor que ele não fará uma viagem na leitura com esperanças vãs e falsas crenças [...], o narrador indigno de confiança bagunça essas expectativas, deixando o leitor na incerteza quanto a saber aonde ele quer finalmente chegar”. Acerca da simbiose literária entre os enredos de Hatoum e Chico, que chegou a levantar, reciprocamente, suspeita de plágio, os autores se pronunciaram por ocasião de um debate que aconteceu na 7ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip):

[...] ambos reconheceram semelhanças em seus livros. Num caso de simbiose, Órfãos do Eldorado, de Hatoum, e Leite derramado, de Buarque, eram pensados ao mesmo tempo com objetivo parecido: usar a memória centenária de um narrador para traçar um panorama histórico do País. O livro de Hatoum foi publicado antes e Chico revelou que, ao ler a história [...] sua reação foi: “Diabos, esse cara copiou o meu livro”. Depois se deu conta de que Leite Derramado nem tinha título e ainda estava sendo escrito. Hatoum teve reação semelhante quando saiu o livro de Buarque: “Mas essa é a história que eu contei para o Chico”. Não se trata de plágio. Os dois contaram histórias um para o outro em ocasiões anteriores, esqueceram-se, voltaram a lembrar e adaptaram os episódios mais interessantes. No caso de Hatoum, a recomendação da editora escocesa que lhe encomendara a novela tinha sido clara: queria que fosse baseada num mito amazônico. Buarque não tinha compromisso com a editora brasileira de ambos, a Companhia das Letras. Passou ano e meio pesquisando e lembrando histórias contadas pelo pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda. Como Hatoum, buscou a concisão [...]. (GONÇALVES FILHO, 2009GONÇALVES FILHO, Antonio. Livros de Chico e Hatoum são exemplos de simbiose literária. Estadão, São Paulo, 4/7/2009. Disponível em: https://www.estadao.com.br/emais/livros-de-chico-e-hatoum-sao-exemplos-de-simbiose-literaria. Acesso em: 9 out. 2023.
https://www.estadao.com.br/emais/livros-...
, s/p).

Há, nesse sentido, evidentes semelhanças nos enredos de Órfãos do Eldorado e Leite derramado, bem como nas trajetórias literárias de seus autores. Embora a interpretação desse segundo aspecto não configure, de forma preponderante, os nossos propósitos analíticos neste texto, convém destacar que Hatoum e Buarque, embora apresentem origens distintas, obtiveram posições muito próximas e semelhantes dentro daquilo que Pierre Bourdieu (1996BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 24) define como trajetória literária ao destacar que o percurso trilhado por um indivíduo no interior do espaço social é marcado, além de suas disposições individuais, pelo capital herdado, que favorece a definição das possibilidades que lhe são destinadas nesse campo. Ainda que os autores apresentem as suas idiossincrasias, um padrão tem se repetido no decorrer de suas vidas literárias, pois ambos começaram a publicar na mesma época e a sua produção tem se estendido até a atualidade pela mesma editora; receberam o mais importante prêmio literário nacional, o Jabuti, além do Prêmio Portugal Telecom; apresentam sucesso entre a crítica universitária e consolidaram uma importante carreira internacional, com livros traduzidos no estrangeiro em diversos idiomas. Além disso, seus romances foram adotados por inúmeros vestibulares públicos e privados do sistema de ensino brasileiro e, também, já receberam adaptações para o cinema e televisão (ABREU, 2013ABREU, Jane Gabriele de Souza. O caminho das letras: um estudo das trajetórias de Milton Hatoum e Chico Buarque. 2013. 83 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Escola de Artes, Ciências e Humanidade da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013., p. 65).

Na literatura brasileira a tradição da inconfiabilidade narrativa, consagrada a partir das publicações de Machado de Assis, conserva nesses dois romances o espectro do Bruxo do Cosme Velho, pois, à maneira de Bentinho, que buscou em suas memórias “atar as duas pontas da vida” (ASSIS, 2019ASSIS, Machado. Dom Casmurro [recurso eletrônico]. Prefácio de Ana Maria Haddad Baptista. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. (Série prazer de ler, n.7 e-book). Disponível em: file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio/Downloads/Dom_Casmurro_Assis_2ed.pdf. Acesso em: out. 2023., p. 14), Arminto e Eulálio realizam uma imersão no passado, trazendo para a superfície de seus relatos a configuração biográfica de seus destinos, cujo enredo se assemelha em muitos pontos. Se o discurso unilateral da personagem machadiana, que, aparentemente, atinge a velhice de forma lúcida e cética, é falível em muitos pontos, o que inviabiliza a crença em sua narrativa, os personagens de Hatoum e Buarque sofrem de enfermidades que, do mesmo modo, comprometem a possibilidade de o leitor confiar na veracidade de suas memórias (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. São Paulo: Unicamp, 2007., p. 83).

Arminto, ainda que apresente uma narrativa linear e coesa, em inúmeras passagens confessa a seu interlocutor a fama que recai sobre si:

[...] eu mostrava a fachada do palácio branco e dizia que a casa havia pertencido a minha família. Depois contava o sumiço de Dinaura, mas acho que não acreditavam em mim, pensavam que eu fosse doido. (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 89).

Diferente do personagem de Hatoum, que conta linearmente a sua história, o centenário Eulálio está internado, e as alterações da sua consciência, decorrentes da medicação e da enfermidade neuropsicológica, são frequentemente aludidas:

[...] e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 4);

[...] a senhora não escreve nada, a senhora abana a cabeça e me olha como se eu falasse disparates” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 78);

Mas você perdeu lances fundamentais da minha vida. Do jeito que anda relapsa, quando você compilar minhas memórias vai ficar tudo desalinhado, sem pé nem cabeça. (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 155).

Ricoeur, ao retomar os aspectos defendidos por Wayne Booth em seu clássico texto Retórica da ficção (1980), observa que a teoria da leitura se adentra no campo da retórica na proporção em que esta se apresenta como uma reação à arte, mediante a qual o orador objetiva persuadir a sua plateia. Diante da noção conexa de “narrador digno de confiança (reliable) ou não digno de confiança (unreliable)” (RICOEUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p, 275), o filósofo francês admite que o romance moderno vai desenvolver melhor o seu papel de crítica da moral convencional, não excluindo, eventualmente, sua provocação ou insulto, como bem executam as vozes que conduzem os enredos de Órfãos do Eldorado e Leite derramado. Dessa forma, quanto mais o narrador é suspeito e o autor apagado, essas duas ferramentas da retórica de dissimulação se fortalecem de modo mútuo. Ricoeur (2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 278-279), portanto, adverte: “Que a leitura moderna é perigosa é algo incontestável. A única resposta digna da crítica que ela suscita, e que tem Wayne Booth como um dos seus mais estimáveis representantes, é que essa literatura venenosa exige um novo tipo de leitor: um leitor que responda”. Para esse autor, assim, “a leitura deixa de ser uma viagem tranquila feita em companhia de um narrador digno de confiança, e se torna um combate com o autor implicado, um combate que o reconduz a si mesmo” (RICOEUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 279).

Neste ensaio, portanto, sob uma perspectiva comparatista voltada para a inconfiabilidade do narrador (BOOTH, 1980BOOTH, Wayne. Retórica da ficção. Trad. Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa: Arcádia, 1980.; RICOEUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010.), vamos analisar, no primeiro momento, a decadência econômica e física de Arminto e Eulálio, homens advindos de famílias tradicionais, influentes no poder político na região amazônica e na antiga capital brasileira, cujas fortuna e influência socioeconômica ruíram sob ambos. Outro aspecto a ser contemplado é a forma como duas mulheres centrais na existência dos protagonistas de Hatoum e Buarque, concebidas pelas personagens de forma mítica, se esvaem, de modo enigmático, da diegese narrativa.

(DES)APROPRIAÇÕES DA TRADIÇÃO E PODER: AS VIAS DA DECADÊNCIA

Miserável, vivendo em uma tapera e subjugado pela fama de louco, Arminto Cordovil realiza um movimento similar ao narrador de Dom Casmurro e, de forma linear, do passado em direção ao presente, conta o enredo de sua existência. No posfácio do livro saberemos que Arminto narrou apenas uma vez a sua história e se recusou a repeti-la quando o neto de seu único interlocutor, instigado pelo relato que ouvira do avô, resolveu localizá-lo:

Quando meu avô me contou a história dos órfãos, eu quis saber onde ele havia escutado. Anos depois, ao viajar pelo Médio Amazonas, procurei o narrador na cidade indicada. Ele morava na mesma casa que meu avô tinha descrito, e estava tão velho que nem sabia a sua idade. Ele se recusou a contar a história [...]. (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 106).

Na última declaração de Arminto há, aparentemente, a consciência de que os rastros inscritos em sua memória sucumbem (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. São Paulo: Unicamp, 2007., p. 428), e, portanto, ele não deseja mais empreender qualquer esforço na tentativa de resgatar as inscrições mnemônicas do passado (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. São Paulo: Unicamp, 2007., p. 27). Diferente de Hatoum, Buarque investe em uma técnica narrativa muito mais experimental, e o protagonista de Leite derramado, o centenário Eulálio, portador de uma doença degenerativa em estágio avançado, também empobrecido e sozinho em um leito de hospital, apresenta aos seus múltiplos interlocutores, profissionais que cuidam da sua saúde, a história de sua vida, na qual os dados supostamente factuais entrelaçam-se ao devaneio. Desse modo, a narrativa de Eulálio não segue nenhuma ordem cronológica, e os episódios passados se apresentam à medida que algum dispositivo estimule o acesso ao seu arquivo memorialístico (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. São Paulo: Unicamp, 2007., p. 176).

Ninguém acreditava em Arminto, já velho e empobrecido, quando dizia ter sido descendente da família que construíra o palácio branco, inaugurado quando o pai, o ambicioso Amando, casara-se com sua mãe, que ele não chegara a conhecer, pois morrera em seu parto: “Entre nós dois havia a sombra de minha mãe: o sofrimento que ele suportava desde a morte dela. Para Amando, eu era algoz de uma história de amor” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 27). Narrando o que “a memória alcança, com paciência” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 15), Arminto revela a seu interlocutor que o pai, que sonhara com rotas ambiciosas para os seus cargueiros, morreu com a expectativa de grandeza, pois “um dia vou concorrer com a Booth Line e o Lloyd Brasileiro, dizia meu pai. Vou transportar borracha e castanha para o Havre, Liverpool e Nova York” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 15). Cisões marcam o relacionamento entre Amando e Arminto. O filho foi amamentado por uma índia tapuia e, desde o nascimento, entregue aos cuidados de amas, até a chegada de Florita, que se tornaria uma das pessoas mais próximas em sua vida: “Ela vai cuidar de ti. Florita nunca mais arredou o pé de perto de mim” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 16). Se a distância que Amando demarcou em relação ao filho foi consequência da mágoa gerada em decorrência da morte da esposa ao dar à luz, ou decorrente da conduta irresponsável do filho, que culminou na decisão de levá-lo para Manaus, aos 20 anos, e instalá-lo precariamente - “Vais morar na pensão Saturno. E tu sabes por quê” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 15) -, o advogado Estiliano, único amigo de Amando e que também passou a ser a pessoa mais próxima de Arminto, depois de Florita, é o responsável por mediar a reaproximação entre pai e filho, com a expectativa de que este se torne o condutor dos empreendimentos paternos: “É a oportunidade da tua vida. Ele está envelhecendo, e tu és o único filho” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 23). Amando, instigado pela possibilidade desse reencontro, deixa Manaus e segue em direção ao interior do Amazonas:

Mas o fato é que viajei com a expectativa de conversar com o meu pai. Desembarquei em Vila Bela às duas horas da tarde de 24 de dezembro e, quando avistei o palácio branco, senti a emoção e o peso de quem volta para casa. Aqui eu era outro. Quer dizer, eu mesmo: Arminto, filho de Amando Cordovil, neto de Edílio Cordovil, filhos de Vila Bela e deste rio Amazonas. (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 25).

Não houve, todavia, tempo para a conversa derradeira e a reconciliação, pois Amando sucumbe mortalmente, vítima de um ataque cardíaco, no momento do reencontro, expirando nos braços do filho logo após se avistarem: “Fiquei atrapalhado, massageando o seu peito. Depois, o único abraço, no pai morto. O homem que eu mais temia estava nos meus braços. Quieto” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 27). Tempos depois da morte de Amando, a sua fortuna também principia a afundar nas águas do Amazonas. Sem ter o seguro renovado, o cargueiro Eldorado naufraga no Pará, de modo que a empresa devia ainda muito dinheiro ao banco inglês. Arminto, embora fosse auxiliado por Estiliano, mantinha-se alheio aos negócios paternos e ignorava as suas peculiaridades: “no naufrágio do Eldorado a Companhia Adler tinha perdido oitenta toneladas de borracha e castanha [...]; as taxas portuárias não haviam sido pagas [...]. Eu não consegui encarar Amando, nem na parede. Murmurei: A empresa afundou. Ouvi alguém dizer em voz baixa: Covarde” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 55 - grifos nossos). A partir desse ponto principia a gênese de degradação financeira da fortuna que havia sido construída pela família Cordovil. Para pagar o empréstimo bancário assinado por Amando, Arminto precisou desfazer-se da maior parte dos bens acumulados pela família no decorrer de décadas: “Vais ter que vender tudo: esta chácara, o edifício da empresa e o terreno de Flores” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 57). Junto com a perda dos bens, veio a descoberta de que o pai, Amando Cordovil, havia sido um contrabandista e sonegador: “Transportava a carga até outras freguesias para não pagar impostos em Vila Bela; depois desembarcava tudo numa ilha perto de Manaus e sonegava outra vez. Subornava o empregado da mesa de rendas, subornava até o diabo” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 77). E, além disso, a causa que provocou a sua morte: “Morreu porque perdeu uma licitação vantajosa, a grande concorrência antes da Primeira Guerra: borracha e mogno para a Europa. O coração não aguentou, a ganância era maior que a vida” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 77). Diante do infortúnio, desprovido de perspicácia para conduzir os negócios e reestruturar-se com o dinheiro que havia restado, a maior frustração amorosa de Arminto, desencadeada pelo desaparecimento de Dinaura, como veremos mais adiante, o leva a esbanjar os últimos bens - “Na tua cabeça só cabe fantasia, Arminto. E nos bolsos, sobrou algum dinheiro? Não sobrou nada, não é? Perdeste o palácio branco e a Boa Vida. Perdeste tudo” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 83). E, por fim, como declara ao seu interlocutor: “Com o dinheiro que sobrou, comprei esta tapera” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 84). Para além do seu próprio enredo, a única versão conhecida de Arminto é a de um velho miserável, com fama de doido em Vila Bela, de modo que as pessoas não depositam qualquer crédito em suas palavras, aspecto que o próprio narrador identifica no semblante daquele que se dispôs a ouvi-lo: “Estás me olhando como se eu fosse um mentiroso” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 103).

A hermenêutica que desordena as memórias de Eulálio Montenegro d’Assumpção, em Leite derramado (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.), acerca de sua herança genealógica, subjaz à enfermidade que o afeta e imprime a total falta de confiabilidade na narrativa da personagem (RICOEUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 277), uma vez que, do seu leito hospitalar, traz para o presente do enredo uma espécie de delírio sobre os episódios que marcaram a sua vida. A reiteração de alguns fatos, constantemente aludidos por Eulálio, evidenciam que a sua família, desde que chegou ao Brasil, esteve muito próxima das grandes figuras do Império, da República e dos principais eventos histórico-políticos transcorridos no país. Ao contrário de Arminto, que, gradativamente, de modo ordenado e cronológico, mostra ao leitor o seu processo de decadência, as lembranças de Eulálio amalgamam a consciência sobre a sua degradação física, solidão e abandono à opulência do império familiar, que, muitas vezes, ofuscam as percepções da personagem. O peso da tradição, contudo, se projeta sobre ele como um som que vai se esvaindo no decorrer das gerações: “O Eulálio do meu tetravô português, passando por trisavô, bisavô, avô e pai, para mim era menos do que um eco” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 31). A herança histórico-social, contudo, ruiu de tal forma que o próprio Eulálio, na perspectiva de seus interlocutores, confrontando a decadência presente com o passado monumental, afirma que suas palavras são passíveis de ser desacreditadas.

Observa-se, outrossim, que, à medida que as memórias de Eulálio emergem no enredo, o personagem, mesmo subjugado pela velhice miserável e indiferença de seus interlocutores, que “aumentam o volume da televisão por cima da minha voz já trêmula” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 51), não se desvincula da “visão elitista e segregacionista herdada do Império e da Velha República” (SARMENTO, 2012SARMENTO, Rosemeri. Os percalços da memória em Leite derramado, de Chico Buarque. In: GOMES, Gínia Maria (Org.). Narrativas contemporâneas: recortes críticos sobre literatura brasileira. Porto Alegre: Libretos, 2012, p. 91-108., p. 101) - seu pai e o avô, além de receberem grandes heranças e serem detentores do poder econômico, foram importantes figuras políticas, como o narrador ressalta:

Vovô era mesmo um visionário, desenhou de próprio punho a bandeira do país, listras multicores com um triângulo dourado no centro [...]. Encomendou o hino oficial ao grande Carlos Gomes [...]. Conquistou o apoio da Igreja, da maçonaria, da imprensa, de banqueiros, de fazendeiros e do próprio imperador [...]. Eu queria dizer que meu avô foi comensal de dom Pedro II, trocou correspondência com a rainha Vitória [...]. Saiba o doutor que meu pai foi um republicano de primeira honra, íntimo de presidentes, sua morte brutal foi divulgada até em jornais da Europa, onde desfrutava imenso prestígio e intermediava o comércio de café. (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 52).

Nesse âmbito, desde o nascimento e durante os primeiros anos da juventude, Eulálio usufrui de todos os privilégios que a família, detentora do poder econômico e político, proporciona: “Se me desse na veneta, poderia morrer na mesma cama do Ritz onde dormi quando menino porque nas férias de verão o seu avô, meu pai, sempre me levava à Europa de vapor” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 11). Todavia, ao contrário de Arminto, que é penalizado por Amando por atribuir ao filho a morte da mãe, o pai de Eulálio, sem nenhuma contenção financeira, é responsável por introduzi-lo no universo da luxúria e dos vícios:

[...] papai me chamou ao seu quarto, sentou-se numa chaise longue e abriu um estojo de ébano. Mas o que é isso, meu pai? É a neve, ora bolas [...]. Com uma miniespátula separou o pó branquíssimo em quatro linhas [...]. Mas não se trata dessa porcaria que idiota cheira por aí, era cocaína da pura, que só tomava quem podia. Não tratava a boca, não tirava a fome, nem brochava, tanto é verdade que em seguida ele mandou subir as putas. (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 35-36).

Ainda adolescente, Eulálio perde o pai, vítima de um violento assassinato: “foi metralhado ao entrar em sua garçonnière” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 36). Segundo boatos, “tinha sido morto a mando de um corno” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 36). Todavia a imprensa veiculava que o crime era atribuído aos opositores políticos. A partir desse assassinato, a reputação do pai também passa a se degradar: “E pelos cochichos compreendi que o nome do meu pai, notável da República, caíra de um jeito grosseiro na boca do povo, Assunção, o assassino? Assunção, o corno?” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 57). E, lentamente, a fortuna da família começa a ruir. Em relação a esse aspecto, as personalidades de Arminto e de Eulálio também apresentam pontos em comum, pois este era um “marmanjo” que vivia de mesada (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 56) e, tal como a personagem de Órfãos do Eldorado, era incapaz de conduzir os negócios com perspicácia.

As inúmeras propriedades da família, poder e prestígio político, referidos por Eulálio em suas digressões memorialísticas repletas de devaneios no leito do hospital - “Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 5) -, começam a se esvanecer, portanto, a partir do assassinato do pai, último representante da família Assumpção com perspicácia para conjugar a influência do nome no poder político e nos investimentos econômicos lucrativos, além de gozar, irrestritamente, do luxo e dos prazeres aristocráticos. Eulálio herda um império, mas, assim como Arminto, por falta de habilidade permite que o patrimônio se deteriore. Arminto termina pobre e sem descendentes. Todavia, diferente do personagem de Hatoum, Eulálio, pai de Maria Eulália, constitui uma descendência que, a cada geração, apaga as marcas do império ao qual pertenceu, conforme sintetiza Schwarz (2012SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 145):

[...] a filha baixa o nível ao casar com um filho de imigrante, o neto sai comunista da linha chinesa e o bisneto, nascido na cadeia onde o pai esteve preso e foi morto, é um crioulo, pai por sua vez de um garotão traficante de drogas, que aparecerá no Jornal Nacional de cara encoberta pela jaqueta.

Nem mesmo o jazigo da família, último monumento que deveria conservar arquivadas as marcas do que representaram o poder político e econômico do clã na sociedade brasileira, resiste à decadência patrimonial. Apagam-se, assim, todos os rastros (RICOUER, 2007, p. 428) que simbolizaram o nome e a tradição dos Assumpção:

[...] da última vez que fui ao cemitério São João Batista, no lugar do jazigo dos Assumpção encontrei um monstrengo de mármore lilás, habitado por um defunto de nome turco. Foi crueldade da minha filha, se ela vendesse o apartamento em vez da sepultura, eu me acharia menos desalojado. (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 170).

DOMÍNIO FALHO, AFETOS INSUBORDINADOS: DINAURA E MATILDE

A obsessão de Arminto e Eulálio, cada qual por uma única mulher, responsável pela mais significativa influência sobre a vida amorosa desses personagens, pois ambos, a seu modo, enalteceram-nas como o mais valioso objeto afetivo, também representa um aspecto importante no cotejo entre Órfãos do Eldorado e Leite derramado. O investimento amoroso, tanto de Arminto quanto de Eulálio, passa a se delinear, com mais precisão, no espaço do templo religioso, por ocasião dos atos fúnebres de seus respectivos pais:

As órfãs do Sagrado Coração de Jesus também estavam no cemitério [...]. Uma delas tinha jeito de moça crescida. Parecia uma mulher de duas idades. [...] De repente o olhar me encontrou e o rosto anguloso sorriu. (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 28);

[...] a surpreendi na pausa que antecedia o ofertório. [...] Eram as exéquias do meu pai, no entanto eu não sabia mais me libertar de Matilde [...]. (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 30).

Segundo o relato de Arminto, Dinaura era uma índia órfã, de origem desconhecida, abrigada pelas irmãs do Sagrado Coração de Jesus - “Uma índia? Procurei a origem, nunca encontrei” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 31) -, enquanto Matilde, no princípio do romance, é apresentada como “a mais moreninha de sete irmãs, filhas de um deputado correligionário do meu pai” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 29-30). As duas mulheres, embora tenham origem social bastante distinta, têm uma recepção depreciativa, revestida de preconceito racial, quando identificadas como alvo de afeição dos narradores de cada romance:

Quando Estiliano me ouviu falar de Dinaura, desdenhou: Essa é boa, um Cordovil embeiçado por uma mulher que veio do mato. (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 31 - grifos nossos);

[...] garanto que a convivência com Balbino fez de mim um adulto sem preconceito de cor. Nisso não puxei ao meu pai, que só apreciava as louras e as ruivas, de preferência sardentas. Nem à minha mãe, que ao me ver arrastando a asa para Matilde, de saída me perguntou se por acaso a menina não tinha cheiro de corpo. (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 20 - grifos nossos).

Órfãos do Eldorado foi escrito sob encomenda para integrar a coleção Myths, da editora escocesa Canongote, com o propósito de relançar mitos universais reescritos por autores contemporâneos de todo o mundo - e Hatoum foi escolhido para representar o Brasil nesse empreendimento. A composição da enigmática Dinaura atende a esse propósito mítico, pois desde o início da narrativa é percebida como alguém que não pertence integralmente ao espaço onde se encontra: “E Florita, sem conhecer a órfã, disse que o olhar dela era só feitiço: parecia uma dessas loucas que sonham em viver no fundo do rio” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 31).

Tudo o que cerca Dinaura é revestido por uma áurea de mistério intransponível e exerce um fascínio sobrenatural sobre Arminto, que compromete todos os seus recursos materiais, e a própria sanidade psíquica, na busca obsessiva pela mulher que ocupara o centro de suas afeições desde a sua juventude até a velhice, sem que o relacionamento seja vivido com plenitude e nem a identidade de Dinaura descortinada por inteiro. Após o breve namoro e a primeira entrega amorosa ela desaparece enigmaticamente do internato e de Vila Bela, sem deixar vestígios, desencadeando desespero em Arminto e especulações entre os habitantes da cidade, que acreditavam que a índia órfã havia retornado para a cidade encantada, no fundo do rio:

Comecei a procurar Dinaura na cidade. [...] Florita jurou que ela não estava em Vila Bela.

Como tu sabes?

Quem sonha com outro mundo não pode estar aqui. Muito menos uma amante arrependida.

Esperou o meu olhar de admiração e acrescentou: Dinaura foi morar numa cidade encantada [...]. (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 62).

Arminto não mensura esforços na busca por sua amada. Convoca os barqueiros mais hábeis, que “conheciam remansos e furos escondidos e, de tanto conviver com índios e ribeirinhos, entendiam a linguagem geral” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 62), a despeito do ciúme e contrariedades demonstradas por Florita acerca das ações em que Arminto investe na tentativa desesperada de reencontrar Dinaura: “Quando Florita viu os três barcos no meio do Amazonas, disse: Tudo isso por uma mulher que te largou” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 62). Todavia, as buscas foram vãs e nenhum dos barqueiros conseguiu encontrar Dinaura, de modo que Ulisses Tupi, o último a retornar das buscas, trouxe consigo uma história que endossava o mito que revestia a jovem:

Jurou que Dinaura estava viva, mas não no nosso mundo. Morava na cidade encantada, com regalias de rainha, mas era uma mulher infeliz. [...] Dinaura foi atraída por um ser encantado, diziam. Era cativa de um desses bichos terríveis que atraem mulheres para o fundo das águas. [...] A cidade encantada era uma lenda antiga, a mesma que eu tinha escutado na infância. [...]

Quando essas notícias se espalharam em Vila Bela, fui perseguido por um inferno de rumores. Uns diziam que Dinaura havia me abandonado por um sapo, um peixe grande, um boto ou uma cobra sucuri; outros sussurravam que ela aparecia à meia-noite num barco iluminado e dizia aos pescadores que não suportava viver na solidão do fundo do rio. (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 64-65).

Apesar da frustração por não conseguir recuperar o objeto de seu amor e nem tampouco conseguir qualquer notícia objetiva sobre o paradeiro de Dinaura - “Gastei dinheiro com os barqueiros. E o que trouxeram para mim? Mitos e meninas violentadas. Florita pediu que eu parasse com essa loucura e desistisse de vez: Dinaura nunca mais vai voltar” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 65-66) -, Arminto segue alimentando a sua obsessão:

Não desisti. E mesmo depois, quando o tempo já afogava a ânsia e a esperança, e o corpo pedia sossego, meu coração não secou. Meu pensamento corria atrás dela, corria atrás do desejo. Ia aos sábados à praça do Sagrado Coração com a esperança de vê-la no fim da tarde [...].

Quando fiquei sem dinheiro, percebi que muito tempo tinha se passado. (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 66).

Além das contrariedades que Florita apresenta - sempre argumentando que é inútil investir na busca insana pela mulher desaparecida -, que Arminto interpreta como ciúme, Estiliano, o seu amigo mais próximo, de forma velada, também demostra não consentir com o devaneio de Arminto: “O ciúme de Florita era menos estranho que o silêncio de Estiliano. Um silêncio terrível. No meu pensamento, ele não gostava de Dinaura. Birra de solteirão? Ou raiva de uma mulher que me afastou de vez da empresa e de Manaus?” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 62). Além do patrimônio de Amando ruir em decorrência da falta de habilidade do filho para conduzir os negócios, a paixão desenfreada pela órfã compromete os últimos recursos de que ele dispõe, de modo que, além de perder tudo o que os antepassados construíram, não consegue obter qualquer notícia sobre o paradeiro de Dinaura. Posteriormente, o narrador informa ao seu interlocutor que o silêncio e a falta de conivência de Estiliano para com os desvarios de Arminto configuravam-se como sensatez acerca de um segredo de Amando, que, até então, não havia sido revelado. Dinaura era protegida e sustentada por Amando. Todavia, nem ao próprio Estiliano é confessado se “era filha ou amante... Tinha idade para ser as duas coisas. No começo pensei que fosse filha dele, depois mudei de ideia. E sempre fiquei na dúvida. Foi a única vez que teu pai me confundiu e me magoou” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 98).

Após a derradeira revelação de Estiliano - “Dinaura... Minhã irmã?, eu disse, engasgado. Meio-irmã, corrigiu Estiliano. Ou madrasta. Essa é a minha dúvida” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 97-98) -, Arminto, que já estava desprovido de recursos materiais, decidiu que venderia a tapera onde morava para ir até a ilha que, conforme o relato do amigo, possivelmente havia sido o paradeiro de Dinaura. Estiliano, já em idade senil, sem herdeiros e ocupado com o destino comunitário que seus bens receberiam após a sua morte, entregou uma significativa quantia de dinheiro a Arminto, que empregou o recurso em sua última missão em busca de Dinaura, viajando para a ilha manaura, o Eldorado. Supostamente Arminto realiza esse último encontro, mas a sua narrativa se encerra de modo igualmente enigmático:

Na porta vi o rosto de uma moça e fui sozinho ao encontro dela. Escondeu o corpo e perguntei se morava ali.

Moro com a minha mãe, ela disse, esticando o beiço para o outro lado do lago.

[...]

Conhecia uma mulher... Dinaura?

Recuou um pouco, juntou as mãos, como se rezasse, e virou a cabeça para o interior da casa.

[...] Antes de eu entrar no quarto, o prático e a moça me olhavam, sem entender o que estava acontecendo, o que ia acontecer. (HATOUM, 2009, p. 103).

Matilde, ao contrário de Dinaura, é uma mulher que exala pulsão e passionalidade, divergindo exponencialmente do estereótipo projetado sobre o modelo feminino pertencente à aristocracia social do início do século XX. Sob uma série de contrariedades de ordem política, casa-se com Eulálio Assumpção aos 16 anos. A carreira parlamentar do pai de Matilde havia se medrado à sobra do pai de Eulálio e, após a sua morte, “se bandeara gostosamente para a oposição” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 71). Inicialmente o pai de Matilde tenta, oferecendo-lhe uma cadeira cativa em seu gabinete, subornar o futuro genro a apoiá-lo, o qual, persuadido pela mãe, recusa:

Fui ao meu futuro sogro, agradeci-lhe a oportunidade, mas ponderei que minhas raízes no campo conservador não me permitiriam servir a um parlamentar liberal. Ele respondeu que respeitava as minhas convicções, mas tampouco poderia confiar a mão da filha quase impúbere a um cidadão sem palavras. (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 71-72).

Matilde, que “nunca abriu mão de casar virgem” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 72), forja uma gravidez, pois, “para um deputado federal, por mais liberal que fosse, ter uma filha mãe solteira não convinha” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 72). O deputado cedeu a filha, mas a deserdou no ato do casamento, que ocorreu de forma discreta, sem vir a público. Sobre Matilde, recai a reprovação e o preconceito, sobretudo por parte da mãe do narrador, que denigre a sua cor, gostos e comportamento. Inicialmente apresentada como a mais escura entre “suas seis irmãs branquinhas” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 32), depois de um tempo surge a especulação, a qual Eulálio julgou ser “invencionice” de sua mãe, de que ela seria fruto de uma aventura extraconjugal do deputado. Anos mais tarde, quando Eulálio, movido por novos interesses políticos - “Especialmente agora que eu aspirava a um cargo de responsabilidade no serviço público, pois a mesada de mamãe não acompanhava a inflação” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 190) -, decide apresentar a filha ao avô, no palácio do Catete, não obtém a melhor recepção: “a Eulalinha, é filha sua? É a neta do senhor, Maria Eulália Vidal d’Assumpção é filha de Matilde. [...] Só que Matilde, Matilde, ele falou, e eu via nele o mesmo ar desentendido [...]. Ah, sim, Matilde, uma escurinha que criamos como se fosse da família” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 192).

A apresentação da figura de Matilde, assim como os eventos que permearam a vida de Eulálio, não obedece a uma encadeação cronológica organizada como o relato de Arminto, mas emerge na superfície do texto de forma fragmentada e, muitas vezes, contraditória, preservando a consonância com a memória enferma do narrador (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. São Paulo: Unicamp, 2007., p. 83). Há de se destacar, contudo, a sua relevância no modo como conduz a pulsão do desejo em Eulálio:

[...] urgia compreender melhor o desejo que me descontrolara, eu nunca havia sentido coisa semelhante. Se desejo era aquilo, posso dizer que antes de Matilde eu era casto. (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 32);

[...] eu agora me olhava com medo, imaginando em meu corpo toda a força e a insaciedade do meu pai. [...] tive a sensação de possuir um desejo potencial equivalente ao dele, por todas as fêmeas do mundo, porém concentrado numa só mulher. (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 33).

Na memória enferma do narrador, a figura de Matilde é evocada com a mesma passionalidade e, das entrelinhas revestidas de ironia, emerge a violência que modulou o relacionamento de ambos. Eulálio, ao descrevê-la como uma mulher que não se subjuga às convenções sociais burguesas do início do século, embora tenha recebido uma educação católica e elitizada, expressa um fascínio pelos seus modos espontâneos, que revelam uma natureza independente e impulsiva. Logo após o nascimento da filha Maria Eulália, Matilde, que ainda era uma jovem de 17 anos, se esvai da vida de Eulálio, de modo que as circunstâncias que envolveram o seu desaparecimento jamais são elucidadas:

Da babá ao portuguesinho do armazém, todos sabiam que sua mãe, desarvorada, tinha partido sem deixar um bilhete ou fazer a mala. Mas abandonar uma criança ainda lactente, pequerrucha, de se carregar debaixo do braço, isso não entrava na cabeça de ninguém, não fazia sentido, não podia ser. (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 95).

O narrador cria uma espécie de embaralhamento diegético ao apresentar ao leitor muitas versões sobre o que poderia ter acontecido com Matilde, sem que jamais fique claro se ele tinha conhecimento acerca do que de fato aconteceu ou se os múltiplos e contraditórios enredos que são tecidos a respeito do evento são alterados pela patologia memorialística que sofre (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. São Paulo: Unicamp, 2007., p. 83). No ensaio “O leite derramado de Matilde”, Leyla Perrone-Moisés (2009PERRONE-MOISÉS, Leyla. O leite derramado de Matilde. Trópico, 26 abr. 2009. Disponível em: http://www2.uol.com.br/tropico. Acesso em: 20 nov. 2023
http://www2.uol.com.br/tropico...
, p. 1) realiza uma síntese concernente às várias versões apresentadas pelo narrador, que jamais explicam, de maneira conclusiva, a razão do desaparecimento da mulher:

As cinco versões do sumiço de Matilde são as seguintes: morte de parto; morte em desastre de automóvel na antiga Rio-Petrópolis; morte por afogamento; fuga para a França com o engenheiro francês; morte por tuberculose num sanatório. As três primeiras versões são contadas à filha, segundo o próprio narrador, como “mentiras piedosas”. A fuga para a França, narrada toda no condicional, é claramente reconhecida como imaginação de um ciumento. A última parece ser a verdadeira, porque quando ela é contada à filha o narrador usa o verbo “revelar”: “revelei-lhe que...”. Mas, depois de tantas versões falsas, esta também fica sujeita a dúvida para o leitor. Ainda mais que Eulálio nunca abriu a carta do médico que narrava a doença.

As inúmeras versões apresentadas para o desaparecimento enigmático de Matilde, o qual jamais é elucidado ao leitor, não sublimam, outrossim, o desejo de Eulálio pela esposa que se esvaiu misteriosamente de sua vida, de modo que, mesmo se esforçando por esquecê-la ao buscar outras mulheres, a figura espectral de Matilde sempre se sobressai no âmbito de seus anseios, como podemos observar nessa confissão que o narrador direciona à filha: “Não vou mentir, tive outras mulheres depois dela, levei mulheres para casa. [...] Porém meu desejo pela sua mãe permanecia vivo” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 93-94).

Matilde, a mulher que desaparece sem deixar sequer um retrato, mas jamais se decompõe do desejo e da memória de Eulálio, acaba sendo apenas um nome sem corpo em uma lápide no cemitério São João Batista: “E por isso mesmo perpetuei o nome dela, sem ela, no jazigo em estilo eclético que mamãe mandara construir para o meu pai” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 190).

Arminto e Eulálio, narradores inconfiáveis pelas inúmeras razões já referidas (BOOTH, 1980BOOTH, Wayne. Retórica da ficção. Trad. Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa: Arcádia, 1980.; RICOEUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010.), conduzem o leitor pelo enredo de suas existências sob uma perspectiva unilateral, uma vez que ambas as mulheres sobre as quais projetam a emanação de seu desejo, manifestado desde o início da juventude, são encobertas por uma identidade e destino enigmáticos, sobretudo, por não terem voz nos romances e existirem, no plano diegético, condicionadas à memória enferma e ao discurso falacioso de cada narrador que as plasma no plano do enredo. Dessa forma, podemos compreender que a concepção ficcional de Dinaura e Matilde as subjuga, na dimensão do desejo investido sobre elas, a uma relação de poder que se instaura no âmbito tanto socioétnico quanto do discurso narrativo que as modula, a partir de relatos questionáveis sob o ponto de vista do devaneio enfermo, da sanidade mental e da invenção (BOOTH, 1980BOOTH, Wayne. Retórica da ficção. Trad. Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa: Arcádia, 1980.; RICOEUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010.).

COMO (NÃO) É POSSÍVEL “ATAR AS DUAS PONTAS DA VIDA”? CONSIDERAÇÕES FINAIS

A perspectiva hermenêutica, que aproxima a elaboração do enredo e a construção dos personagens de Órfãos do Eldorado e Leite derramado, aparentemente não busca manipular o leitor acerca da veracidade sobre o que é contado por Arminto e Eulálio. O projeto textual de cada romance investe claramente na intenção de edificar, diante do leitor, o descrédito da palavra veiculada por seus narradores (BOOTH, 1980BOOTH, Wayne. Retórica da ficção. Trad. Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa: Arcádia, 1980.; RICOEUR, 2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010.). Ambos os autores, embora estabeleçam um claro diálogo com a herança inscrita por Machado de Assis (2019)ASSIS, Machado. Dom Casmurro [recurso eletrônico]. Prefácio de Ana Maria Haddad Baptista. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. (Série prazer de ler, n.7 e-book). Disponível em: file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio/Downloads/Dom_Casmurro_Assis_2ed.pdf. Acesso em: out. 2023., sobretudo em Dom Casmurro, destroem as técnicas utilizadas por Bentinho para persuadir o interlocutor sobre a verdade contida na versão montada acerca de suas memórias, ou, como destaca Ricoeur (2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 279): “uma retórica da ficção centrada no autor revela o seu limite: ela só conhece uma iniciativa, a de um autor ávido em comunicar a sua visão das coisas”.

O personagem de Hatoum, ao apresentar o seu relato ao único homem que se dispôs a ouvi-lo, de forma reiterada observa que as pessoas não acreditam no discurso que veicula sobre o passado de sua família e, tampouco, no enredo marcado pelos elementos místicos que revestem a figura de Dinaura, por quem investe até o último recurso de que dispõe na busca obsessiva por encontrá-la. A fama de mentiroso e a suposta loucura de Arminto não emergem do texto, de modo que o leitor precise constatá-la através das ações ou do discurso do narrador, mas são veiculadas por sua própria voz ao reproduzir para o seu interlocutor as percepções que emanam do povo de Vila Bela, para quem o passado da família Cordovil, corroído pelo tempo, não subsistiu na memória de seus habitantes e, ao encerrar a sua história, possivelmente vislumbrando a expressão cética daquele que o escuta, termina o relato com a indagação: “O mesmo olhar dos outros. Pensas que passaste horas nesta tapera ouvindo lendas?” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 103).

Chico Buarque emprega a estratégia da memória enferma (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. São Paulo: Unicamp, 2007., p. 83) para construir um personagem centenário, cujas lembranças deterioradas pelo tempo, esquecimento e, sobretudo pela doença neurológica e medicamentos, se apresentam em flashs desordenados, fragmentários e, muitas vezes, contraditórios entre si, pois “são tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças, que já não sei em qual camada da memória eu estava agora. Nem sei se eu era muito moço ou muito velho” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 139). Os diversos interlocutores para os quais Eulálio se dirige não lhe dedicam atenção, e o próprio narrador, quando percebe o abismo entre o seu estado atual e a grandiosidade dos eventos que permearam a história de sua família, adverte que:

[...] minha linhagem não me faz melhor que ninguém. Aqui não gozo de privilégios, grito de dor e não me dão meus opiáceos, dormimos todos em camas rangedoras. Seria até cômico, eu aqui, todo cagado nas fraldas, dizer a vocês que tive berço. Ninguém vai querer saber se porventura meu trisavô desembarcou no Brasil com a corte portuguesa. [...] Hoje sou da escória igual a vocês [...]. (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 50).

Bentinho, convicto da verdade inscrita em suas memórias, vela o passado solitário e melancólico na casa que edificou para “atar as duas pontas da vida” (ASSIS, 2019ASSIS, Machado. Dom Casmurro [recurso eletrônico]. Prefácio de Ana Maria Haddad Baptista. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. (Série prazer de ler, n.7 e-book). Disponível em: file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio/Downloads/Dom_Casmurro_Assis_2ed.pdf. Acesso em: out. 2023., p. 14). Arminto recusa-se a repetir o seu relato quando, anos mais tarde, é procurado pelo neto de seu único interlocutor: “Já contei uma vez, para um regatão que passou por aqui e teve a gentileza de me ouvir. Agora minha memória anda apagada, sem força...” (HATOUM, 2008HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 106). O palácio Branco converteu-se em uma tapera, e, entre o nascimento e a velhice, a história desse personagem - cuja idade avançou tanto que já não é mais capaz de precisar os anos que tem - primeiro flerta com a mentira e a loucura e, depois, apaga-se pelas vias do esquecimento (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. São Paulo: Unicamp, 2007., p. 423). Ao contrário de Bentinho e Arminto, Eulálio não objetiva racionalmente reconstituir a sua história, que vai sendo apresentada, espontaneamente, a partir de um estímulo presente que aciona, de forma fragmentada e assistemática, os eventos do passado. A imponência patrimonial e a tradição da família Assumpção foram sendo demolidas, como a fazenda escravocrata na raiz da serra, o antigo casarão em Botafogo que pertenceu a sua mãe, e o chalé, de Copacabana, onde viveu com Matilde, à medida que esses espaços, que mimetizavam o poder sociopolítico e econômico do clã a qual pertenceu Eulálio, foram substituídos por modernos edifícios. As semelhanças entre os enredos de Órfãos do Eldorado e Leite derramado, portanto, dialogam ironicamente com a tradição da inconfiabilidade narrativa - ou, como destaca Ricoeur (2010RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 279), “talvez seja função da literatura mais corrosiva contribuir para fazer parecer um novo tipo, um leitor ele mesmo desconfiado” - e investem em deslegitimar a palavra dos narradores, mostrando que, na miséria, solidão e abandono que os unem, na literatura contemporânea é impossível atar as esgarçadas pontas da vida.

Referências

  • ABREU, Jane Gabriele de Souza. O caminho das letras: um estudo das trajetórias de Milton Hatoum e Chico Buarque. 2013. 83 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Escola de Artes, Ciências e Humanidade da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
  • ALVES, Cristiane da Silva. Novos tempos, vozes antigas: os narradores velhos na narrativa ficcional brasileira do século XXI ou de como ficou difícil ouvir os velhos ou de como a ficção enfrenta o tabu da velhice. 2016. 210 f. Tese (Doutorado em Letras). Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.
  • ASSIS, Machado. Dom Casmurro [recurso eletrônico]. Prefácio de Ana Maria Haddad Baptista. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. (Série prazer de ler, n.7 e-book). Disponível em: file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio/Downloads/Dom_Casmurro_Assis_2ed.pdf. Acesso em: out. 2023.
  • BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  • BOOTH, Wayne. Retórica da ficção. Trad. Maria Teresa H. Guerreiro. Lisboa: Arcádia, 1980.
  • BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • BUARQUE, Chico. Spilt milk Trad. Alison Entrekin. New York: Grove Press, 2012.
  • GONÇALVES FILHO, Antonio. Livros de Chico e Hatoum são exemplos de simbiose literária. Estadão, São Paulo, 4/7/2009. Disponível em: https://www.estadao.com.br/emais/livros-de-chico-e-hatoum-sao-exemplos-de-simbiose-literaria Acesso em: 9 out. 2023.
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  • HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • HATOUM, Milton. Orphans of Eldorado. Trad. John Gledson. Edinburgh: Canongate Books, 2010.
  • PERRONE-MOISÉS, Leyla. O leite derramado de Matilde. Trópico, 26 abr. 2009. Disponível em: http://www2.uol.com.br/tropico Acesso em: 20 nov. 2023
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  • RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. São Paulo: Unicamp, 2007.
  • RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa 3. O tempo narrado. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
  • SARMENTO, Rosemeri. Os percalços da memória em Leite derramado, de Chico Buarque. In: GOMES, Gínia Maria (Org.). Narrativas contemporâneas: recortes críticos sobre literatura brasileira. Porto Alegre: Libretos, 2012, p. 91-108.
  • SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2024
  • Aceito
    12 Jun 2024
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