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Themístocles Sávio e o ensino em geografia: um militar da Primeira República escritor de livros didáticos

[Themístocles Sávio and teaching geography: military figure of the First Republic and textbook author

RESUMO

Objetiva-se neste estudo, utilizando a teoria do campo de Pierre Bourdieu, demonstrar que já existia no Brasil do início do século XX um campo da geografia ligado ao ensino de geografia e às sociedades geográficas. Para tanto, busca-se traçar a trajetória de vida de Themístocles Sávio, um militar que participou da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e escreveu um livro didático de repercussão, adotado em vários colégios, em um momento em que o ensino de geografia não era uniforme em todo o país. Sua obra cobre uma gama de preocupações comum aos membros do campo, por exemplo, a produção de conhecimentos úteis e práticos, o avanço do conhecimento cartográfico e a exaltação do nacionalismo, propostas que se subordinam à seleção de autores canônicos, vistos universalmente como os principais teóricos da geografia.

PALAVRAS-CHAVE
Ensino de geografia; sociedades geográficas; militares

ABSTRACT

The aim of this study, using Pierre Bourdieu’s field theory, is to demonstrate that in early 20th century Brazil there already existed a field of geography connected to the teaching of geography and geographical societies. To do so, is sought to trace the life trajectory of Themístocles Sávio, a military figure who participated in the Rio de Janeiro Geographic Society and authored a widely influential textbook, adopted by several schools at a time when geography education was not uniform nationwide. His work covers a range of concerns common to field members, such as the production of useful and practical knowledge, the advancement of cartographic knowledge, and the exaltation of nationalism – proposals that are subordinated to the selection of canonical authors, universally seen as the main theorists of geography.

KEYWORDS
Teaching of geography; geographical societies; military

Na antiga rua Riachuelo, no coração do centro histórico da capital gaúcha, na proximidade de vários prédios históricos, da catedral metropolitana e dos principais edifícios da governança do poder estadual, encontramos um antigo prédio que abriga o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS). Tal instituição, criada em 1920, teve como um de seus sócios fundadores o professor de geografia Afonso Guerreiro Lima (1870-1959), cuja carreira docente foi longa e bem-sucedida, tendo por muitos anos lecionado no Instituto de Educação General Flores da Cunha, além de publicar uma série de livros didáticos pela editora Livraria do Globo de Porto Alegre. Para o bem da história da geografia, sua biblioteca, que compreende cerca de 1.800 livros, está depositada no IHGRGS e está sendo, aos poucos, catalogada.

Qualquer interessado pela história da geografia ficará arrebatado pelo contato com a biblioteca de Lima: seu manuseio causará, decerto, fascinação devido à riqueza e à pluralidade do acervo, a maioria das obras publicadas entre os anos de 1860 e 1950. A biblioteca é reflexo do gosto eclético de Lima e de sua atividade profissional – lá se encontram obras sobre religião, maçonaria, espiritismo, educação, história, geografia, escrituração mercantil, romances, poesia, livros de alfabetização e uma enorme gama de livros didáticos de história e geografia.

Ao se observarem superficialmente os livros didáticos de geografia, nota-se que, no início do século, nas mais diversas regiões do país e mesmo no estrangeiro – a coleção de Lima é extensa –, os livros têm características similares: muitos manuais didáticos de geografia são produzidos por professores das escolas normais, cujo breve currículo está quase sempre exposto em suas folhas de rosto; para alguns casos, os livros são numerados e assinados pelos autores para assegurar sua autenticidade e evitar cópias indevidas. Outrossim, grande parte desses manuais são impressos e distribuídos por editoras regionais, geralmente, no estado de atuação do professor ou no centro regional mais próximo. Por exemplo, encontra-se lá depositado o livro de Motta Albuquerque Filho, intitulado Geographia elementar para as escolas primárias, publicado por Ramiro Costa & Cia., no Recife, sem data, sendo que o autor é descrito como “bacharel em direito, bibliotecário do Ginásio pernambucano, livre docente de geografia e cosmografia na Escola Normal Pinto Júnior e Ginásio Oswaldo Cruz e História e Sociologia na academia Santa Gertrudes e Colégio S. José equiparados ao Colégio Pedro II do Rio de Janeiro”.

Igualmente, lá está o livro de Carlos de Novaes, Geographia secundária, dos editores Francisco Alves & Cia., Aillaud, Alves & Cia., publicado no Rio de Janeiro e em São Paulo, no ano de 1914, em que o autor se descreve como sócio benemérito da Sociedade de Geografia, Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, National Geographic Society, lente do Ginásio Paes de Carvalho, lente de corografia do Brasil no curso anexo da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, professor de geografia da Escola Normal do Distrito Federal.

O hábito não se restringe ao Brasil, pois o acervo de Lima possui o livro de Carlos M. Biedma, Geografía de la República Argentina – primeiro ano, publicado por M. Biedma y Hijo, em Buenos Aires, no ano de 1909. O autor é catedrático no Colegio Nacional Sud da capital federal, membro do Instituto Geográfico Argentino e da Sociedade Geográfica de Paris. Assim se sucede com dezenas de livros de autores e regiões diferentes do Brasil e alguns dos países vizinhos, a maior parte deles catedráticos ou lentes das escolas normais e congêneres, quase sempre membros e/ou correspondentes de institutos históricos e geográficos e/ou da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, ou mesmo de sociedades geográficas do exterior. A esse fato, se acrescenta o hábito de, geralmente, se incluírem no início do livro pareceres técnicos oficiais e/ou notícias de jornais que versem sobre o livro, sejam eles positivos ou negativos (estes últimos frequentemente acompanhados por uma resposta do autor).

Ora, ao se analisar tal cenário, parece evidente o fato de existir, efetivamente, um campo, no sentido bourdieusiano, do termo geográfico no Brasil, muito antes da institucionalização, associado a essas sociedades científicas e ao sistema de ensino – existem atores, um corpo institucional, com comportamento mais ou menos homogeneizado, e o reconhecimento dos que se envolviam com história e geografia. Machado (2000)MACHADO, Lia O. História do pensamento geográfico no Brasil.Terra Brasilis, n. 1, 2000, p. 1-17.https://doi.org/10.4000/terrabrasilis.295.
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, em célebre publicação, já constatava a necessidade de se debruçar sobre essas geografias produzidas pelos órgãos oficiais e pelas sociedades geográficas antes do processo de institucionalização.

Moraes (2005)MORAES, Antonio Carlos R. Território e história no Brasil. São Paulo: Annablume, 2005. constituiu uma breve história da geografia brasileira, destacando suas principais instituições, personagens e características antes da institucionalização universitária. O que se quer deixar patente com os fatos apresentados é que a produção da geografia escolar anterior à institucionalização não estava dissociada das sociedades dos sábios e dos institutos históricos e geográficos. Ademais, além de um campo, se evidencia igualmente a existência de um habitus na forma de apresentar os livros didáticos e, sobretudo, na posição dos professores, muitos bacharéis em direito, mas que se preocupavam em se apresentar como membros ativos de sociedades científicas nacionais e estrangeiras, que, com o cargo que ocupavam no ensino, ofereciam um crivo de qualidade aos manuais didáticos e acadêmicos.

Da mesma feita, se nota claramente a distribuição de um capital cultural, ou seja, de autores renomados, cuja obra tem maior projeção e reconhecimento, muitos deles por estarem próximos das sociedades científicas e poderem ser agraciados por uma confirmação da qualidade do seu trabalho, que por veios comunicantes políticos, culturais e científicos poderia se converter em uma aprovação tácita da excelência didática referendada pelo Estado – daí talvez estar no Distrito Federal seria uma vantagem. Nossa personagem, Themístocles Sávio, tem seu livro premiado pelo governo federal e pela Escola de Engenharia e Artilharia, além da aprovação de uso pelo Conselho Superior de Instrução do Distrito Federal e pela Congregação do Colégio Militar. Em suma, nos parece que os professores do Rio de Janeiro, talvez do Colégio Pedro II, em especial, ocupam um lugar de destaque por atuarem em uma instituição que sempre foi referência no ensino de geografia, entretanto, alguns são capazes de furar a bolha regional e ter livros consumidos Brasil afora.

O caso de Guerreiro Lima é interessante: autor de livros didáticos de história e geografia, o professor gaúcho também escreve Noções de cosmografia, abordando conteúdos de astronomia, todas essas publicações lançadas pela célebre editora Livraria do Globo de Porto Alegre. Seu livro Noções de história do Brasil teve sete edições, contabilizando 35 mil exemplares, ao mesmo tempo que a primeira parte de seu livro Noções de geografia, que aborda o Rio Grande do Sul, teve uma tiragem de 40 mil livros, o que mostra a magnitude do impacto de sua obra (LIMA, 1935LIMA, A. G. Obras didáticas. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1935.).

Apesar disso, toda essa geração do fin de siècle que acompanhou um processo inicial de crescimento do sistema de ensino foi descartada como “diletante”, seja por não ter uma formação profissional do curso universitário de geografia e história, seja pelo ofuscamento produzido pela chegada de Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig, vistos frequentemente como os verdadeiros precursores da inseminação de uma geografia moderna no Brasil. Tal julgamento, na nossa opinião, é um anacronismo, uma vez que, mesmo após a criação dos cursos universitários, o campo da geografia continua a agregar profissionais que não têm o diploma de geógrafo.

Ademais, os autores de livros didáticos e/ou membros das sociedades científicas se comportam de acordo com as regras e com as expectativas de um mundo pré-universitário, mas que tinha um habitus próprio, um campo reconhecido, um capital cultural distribuído. Ressaltamos que os autores citados por aqueles que disputavam espaço nesse campo em formação são os mesmos consagrados pela geografia universitária (É. Reclus, F. Ratzel, A. von Humboldt etc.).

Na nossa opinião, essa visão é equivocada e unilateral, pois, apesar da importância dos geógrafos franceses como Monbeig e Deffontaines, eles por si sós não foram capazes de alicerçar um campo científico ou instituições, nem ao menos encontraram no Brasil um estado total de incultura, no entanto, como atores advindos de um contexto dominante do ponto de vista cultural, conseguiram reproduzir e produzir um vasto capital cultural como especialistas do mundo tropical, ao mesmo tempo que chancelaram o “surgimento” de uma ciência geográfica moderna. Se admitimos, como Bourdieu (2010)BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis: Vozes, 2010., que a ciência é sempre um processo social em disputa, ou ainda como Gomes (1995)GOMES, Paulo César da Costa. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995., que a ciência frequentemente usa o discurso no “moderno” e do “novo” para impor e naturalizar as formas de fazer ciência, é natural que a geografia universitária reforce sua própria trajetória institucional em detrimento das sociedades de geografia, mesmo que tais sociedades tenham fundamental importância para a consolidação da geografia universitária e que ambas compartilhem muitas das referências, espaços de debate, agendas de pesquisa, metodologias etc.

Cardoso (2013, p. 194)CARDOSO, L. P. C. O lugar da geografia brasileira:a sociedade de geografia do Rio de Janeiro entre 1883-1945. São Paulo: Annablume, 2013. nos lembra que o bacharel em direito José Carlos de Macedo Soares foi escolhido para ser o presidente da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro entre 1944 e 1945. Soares, que era diplomata e político, ocupou ainda a presidência do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1939-1968), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE por duas vezes (1936-1951 e 1955-1956) e do Instituto Panamericano de Geografía e Historia – IPGH (1944-1949). Em suma, é interessante nos perguntarmos sobre a geografia antes da geografia, do ponto de vista não apenas da produção do discurso científico, mas do funcionamento de suas instituições, o que oferece um caminho verdadeiro para o estabelecimento da gênese do campo geográfico do Brasil, em contraposição à hipótese centrada na chegada redentora dos estrangeiros.

Ora, o que não se nota, no entanto, é que, no Rio de Janeiro, importante centro cultural e intelectual brasileiro do início do século XX, existiram alguns “diletantes” que não apenas conseguiram abandonar a pecha, mas se consagraram como autênticos geógrafos modernos. Talvez os casos mais óbvios sejam Carlos Delgado de Carvalho (1884-1980) e Everardo Backheuser (1879-1951), autores que conseguiram passar pela revolução simbólica da institucionalização e ser reconhecidos mesmo sem ter diploma de geógrafo. Sua atuação foi múltipla, envolveu as sociedades geográficas, o debate sobre ensino de geografia e mesmo sobre a organização territorial brasileira (CARDOSO, 2013CARDOSO, L. P. C. O lugar da geografia brasileira:a sociedade de geografia do Rio de Janeiro entre 1883-1945. São Paulo: Annablume, 2013.).

Devemos ter clareza então, de que “A institucionalização universitária deve ser interpretada como o remate do processo de especialização dos saberes e da individualização crescente das disciplinas, e não como o seu nascimento” (SÁ, 2006, p. 16SÁ, Dominichi Miranda de. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil (1895–935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.), ou seja, trata-se de um processo complexo, multifacetado, envolvendo muitas instituições e atores, que vai muito além da descoberta do Brasil pelos geógrafos franceses. Recentemente, uma publicação sobre a institucionalização da história no Brasil, dedicou um capítulo a Delgado de Carvalho destacando sua trajetória de relevo para a compreensão do campo acadêmico da história (FERREIRA, 2013FERREIRA, M. de M. A história como ofício: a constituição de um campo disciplinar. São Paulo: Editora da FGV/Faperj, 2013.), o que demonstra a complexidade dessa história e a possibilidade de avanços e de acúmulo de capital cultural em uma situação primeva de formação dos campos de história e geografia, em paralelo à revolução simbólica da institucionalização. Ressalto ainda que Monbeig (1940, p. 290)MONBEIG, Pierre. Ensaios de geografia humana brasileira. São Paulo: Martins, 1940. reconheceu Delgado de Carvalho como “pioneiro da geografia moderna no Brasil”.

Ao contrário do que poderiam supor alguns que mais contemporaneamente identificam uma disputa entre a geografia paulista e a carioca, aqueles que se propuserem a folhear os primeiros números do Boletim Geográfico do IBGE perceberão que a presença da geografia paulista é forte. Ademais, fica patente o intuito do Boletim de ser um grande concentrador, catalisador e noticiador de todo tipo de associação interessada em produzir e promover o conhecimento geográfico no Brasil. Ou seja, não há solapamento ou esquecimento, há memória e incentivo, busca-se a cooperação e o fortalecimento do campo, mesmo que as sociedades geográficas e equivalentes não tenham se adequado perfeitamente aos parâmetros “profissionais” estabelecidos pela geografia universitária, que funda novos habitus – por exemplo, uma homogeneização do ponto de vista da formação profissional – para os geógrafos e redistribui o capital cultural a partir da emissão dos títulos universitários. Bourdieu e Passeron afirmam:

Numa formação social determinada, as instâncias que pretendem objetivamente o exercício legítimo de um poder de imposição simbólico, e que tendem assim a reivindicar o monopólio da legitimidade, entram necessariamente em relações de concorrência. Isto é, em relações de força e relações simbólicas cuja estrutura exprime segundo sua lógica o estado da relação de força entre os grupos ou as classes.

Escólio 1. Essa concorrência é sociologicamente necessária pelo fato de que a legitimidade é indivisível: não há instância a legitimar as instâncias de legitimidade, porque as reivindicações de legitimidade retêm sua força relativa, em última análise, da força dos grupos ou classes da qual elas exprimem, direta ou indiretamente, os interesses materiais e simbólicos. (BOURDIEU; PASSERON, 2010, p. 39BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis: Vozes, 2010.).

Sendo assim, o poder simbólico das sociedades científicas poderia ser um concorrente para o das universidades, o que explicaria a predominância do sistema universitário em contraposição às sociedades. Mesmo que elas existam até hoje, são as universidades que possuem a legitimidade para emitir diplomas e títulos, por exemplo. Talvez a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) seja uma exceção por já nascer visando à profissionalização, a um método, a um parâmetro científico em comum, de certa forma, com uma vinculação com a universidade que só se aprofundou até 1978 (ANTUNES, 2023ANTUNES, C. da F. A Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB: origens e transformações. Rio de Janeiro: Consequência/Faperj, 2023.).

É pouco observado que Monbeig, um dos incentivadores da AGB, tenha publicado uma série de textos no final de sua coletânea Ensaios de geografia humana brasileira (1940), um deles comentando o Conselho Nacional de Geografia do Brasil e outro, sintomaticamente, intitulado “A geografia – ciência de utilidade pública”,em que, após criticar o ensino enfadonho e mnemônico da geografia, afirma:

[...] em países como os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Itália, a Alemanha, a Bélgica, a Romênia, o Egito, as sociedades de geografia, animadas de um espírito moderno, reúnem homens de profissões extraordinariamente variadas; recebem o apoio não somente dos governos mas também dos sindicatos de agricultores, das sociedades industriais, das câmaras de comércio. Por quê? Porque a investigação geográfica é para um grande país do século XX o que foi a investigação histórica no último século: os “Monumenta Historiae Patriae” desempenharam um papel considerável na formação intelectual da unidade alemã e da unidade italiana: um Michelet, um Quinet ajudaram largamente a unidade do povo francês em torno da república. Nos nossos dias, as questões econômicas tomaram a dianteira sobre as emoções históricas: um povo não se contenta mais em saber que teve um grande passado, quer conhecer seu patrimônio, sua riqueza de hoje e a de amanhã. (MONBEIG, 1940, p. 283MONBEIG, Pierre. Ensaios de geografia humana brasileira. São Paulo: Martins, 1940.).

Mesmo que Monbeig reconheça o papel das sociedades geográficas em um período primevo da institucionalização, a preocupação com sua utilidade para a economia e para a política é enfatizada, mesmo que ele reafirme em seguida: “o papel do Instituto Brasileiro de Geografia é de ajudar o funcionamento das sociedades científicas, de apoiá-las, e também de encorajar o ensino e as investigações desinteressadas e exclusivamente científicas” (MONBEIG, 1940, p. 283MONBEIG, Pierre. Ensaios de geografia humana brasileira. São Paulo: Martins, 1940.).

Dessa feita, novamente, vem à baila a ideia de que o surgimento do sistema universitário representou uma revolução simbólica que alterou a forma de produzir conhecimento geográfico, com repercussão no ensino e na produção de livros didáticos. Entretanto, nos parece que essa revolução foi, até certo ponto, silenciosa, na medida em que os atores hegemônicos foram aqueles que lançaram as bases do ensino de geografia renovada: destaca-se aqui o interesse de Delgado de Carvalho e Backheuser pela Escola Nova (PEREIRA, 2019PEREIRA, Diego Carlos. Movimento Escola Nova e Geografia Moderna Escolar em manuais para o ensino secundário brasileiro (1905-1941). Tese (Doutorado em Geografia). Instituto de Geociências e Ciências Exatas do Câmpus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2019., PEREIRA; ZUSMAN, 2000PEREIRA, Sergio N.; ZUSMAN, P. Delgado de Carvalho e a orientação moderna no ensino da geografia escolar brasileira.Terra Brasilis, n. 1, 2000, p. 1-21. https://doi.org/10.4000/terrabrasilis.293.
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), uma preocupação com a metodologia de ensino, mesmo que não levada a cabo às últimas consequências, além do importante papel de Aroldo de Azevedo como produtor de livros didáticos e “discípulo-herdeiro” de Monbeig.

O escolanovismo se colocaria como uma novidade, contrapondo-se ao ensino de geografia de então, visto como retrógrado, descritivo, mnemônico etc. – classificações e violências simbólicas que, por sinal, são bastante recorrentes na história da geografia desde sua institucionalização, talvez devido ao caráter enciclopédico e abrangente da disciplina. Porém, essa história da geografia tem nuances curiosas, por exemplo: tanto Delgado de Carvalho – apesar do escolanovismo – quanto Guerreiro Lima – um autor periférico – foram influenciados pelo francês Maurice Fallex em termos de concepção e estratégias didáticas de seus livros didáticos (CABRAL, 2022bCABRAL, Thiago M. História da geografia escolar no período Vargas (1930-1945): discurso escolar moderno e identidade territorial a partir das temáticas físico-naturais. Tese (Doutorado em Geografia). Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, 2022b.).

Contudo, o que mais nos chamou atenção na biblioteca de Guerreiro Lima foi o livro de uma figura de uma geração anterior, o professor Themístocles Sávio (1859-1909), autor do Curso elementar de geografia. Sávio é um “diletante” que nos oferece a possibilidade de pensar a dinâmica da geografia em um período anterior à dupla revolução, a promovida pela instituição do ensino universitário de geografia e pela instrumentalização da geografia incentivada pelo primeiro governo de Getúlio Vargas. Dessa forma, a análise da trajetória intelectual de Sávio nos revela alguns aspectos ainda pouco elucidados sobre esse processo de formação do campo da geografia, seja no que diz respeito às suas origens sociais, seja na repercussão de sua obra. Bourdieu coloca que:

A história estrutural de um campo – tratando-se do campo das classes sociais ou de qualquer outro campo – periodiza a biografia dos agentes comprometidos com ele (de modo que a história individual de cada agente contém a história do grupo a que ele pertence). Na sequência, em uma população, só é possível recortar gerações – por oposição a simples faixas etárias arbitrárias – com base em conhecimento da história específica do campo em questão: de fato, somente as mudanças estruturais que afetam tal campo possuem o poder de determinar a produção de gerações diferentes, transformando os modos de geração e determinando a organização das biografias individuais e a agregação de tais biografias em classes de biografias orquestradas e ritmadas segundo o mesmo tempo. Apesar de seu efeito consistir em sincronizar, durante um período mais ou menos longo, os diferentes campos e confundir, no espaço de um momento, a história relativamente autônoma de cada um desses campos em uma história comum, os grandes acontecimentos históricos – revoluções ou mudanças de regime –, que são, quase sempre, utilizados como referências na periodização dos campos de produção cultural, introduziram frequentemente cortes artificiais e desestimularam a busca das descontinuidades próprias de cada campo. (BOURDIEU, 2008, p. 426BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento.São Paulo: Edusp/Zouk, 2008.).

Tentar remontar a história de Sávio é, de certa forma, buscar um lampejo do que era a geografia no início da Primeira República brasileira. Dito isso, realizamos um esforço em recuperar fragmentos que permitam vislumbrar sua trajetória social e profissional no momento anterior à ruptura, mais preocupados em verificar quem era essa figura do que explicar qual era exatamente sua abordagem no ensino de geografia. Por fim, comentamos a carta prefácio do livro de Sávio, escrita em 1907 por Francisco Pinheiro Guimarães, lente do Ginásio Nacional e autor do livro O ensino público.

Não conseguimos reunir informações sobre Guimarães, no entanto, a leitura do prefácio surpreende, pois como demonstraremos abaixo, ele reproduz ideias e concepções sobre a geografia que se tornam moeda corrente dentre os geógrafos universitários. Indagamo-nos, portanto: tais permanências seriam mero fruto do acaso? Temos que ter sempre em conta que a construção do conhecimento científico é um processo social e que, por nos enfocarmos nos estrangeiros que vieram para o Brasil, talvez nos tenhamos esquecido de ter um olhar mais atento para uma comunidade engajada na produção da geografia, que certamente contribuiu para a estruturação do campo geográfico no país.

QUEM ERA THEMÍSTOCLES?

Themístocles Nogueira Sávio e Guerreiro Lima têm algo em comum. Apesar de desconhecidos no campo acadêmico, ambos foram agraciados com a honra de darem nome a ruas das cidades em que viveram: a rua Themístocles Sávio se localiza no bairro Magalhães Bastos, na cidade do Rio de Janeiro, e a rua Prof. Guerreiro Lima está no bairro Partenon, em Porto Alegre. Isso denota um reconhecimento social de ambos, que certamente foram figuras de destaque em seu tempo, provavelmente associados à educação, e, possivelmente, tiveram algum tipo de influência política. Não obstante, hoje são desconhecidos. Não temos indícios claros de suas origens sociais, mas certamente sua condição de intelectual deriva de algum tipo de capital cultural e/ou econômico herdado.

Apesar disso, é muito difícil encontrar fontes de informação sobre Sávio – para conhecer um pouco mais sobre nossa personagem tivemos que recorrer à Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional e a alguns parcos documentos digitalizados que estão disponíveis na internet. Contamos ainda com alguns registros enviados gentilmente pela equipe do Colégio Militar do Rio de Janeiro. Ao fim e ao cabo, conseguimos juntar fragmentos de sua história, sendo que Themístocles era um oficial da Marinha do Brasil, tendo falecido precocemente, em 1909, detendo a patente de capitão de fragata (oficial superior, equivalente a tenente-coronel no Exército e na Aeronáutica). Uma nota de falecimento publicada no jornal O Paiz em 7 de novembro de 1909 informa que seu ingresso na Marinha do Brasil ocorreu em 1879, quando ele tinha, portanto, 20 anos, ocupando a patente de guarda-marinha, geralmente reservada aos aspirantes ao oficialato.

O próprio nome do autor, que remonta ao político da Atenas antiga Themístocles, célebre por vencer os persas na batalha naval de Salamina, pode denotar que sua família tinha ligação com a Marinha ou que havia uma expectativa de que ele seguisse carreira nessa instituição.

De acordo com seu prontuário militar, Sávio é natural do estado do Maranhão, tendo sido aprovado no Colégio Naval em 1877, então com 18 anos. No mesmo documento ainda constam suas mudanças de patente e fatos relevantes sobre sua vida militar. Ainda como guarda-marinha, Sávio participou de viagens de instrução, primeiro, no Brasil, com o seguinte itinerário: Rio de Janeiro, Fernando de Noronha, Pernambuco, Ceará, Pará, Pernambuco, Maceió, Bahia e Santa Catarina; e, alguns anos mais tarde, para o exterior, passando por Bahia, Pernambuco, Fernando de Noronha, Barbados, Nova York, Plymouth, Brest, Lisboa, Cádiz, Gibraltar, Barcelona, Toulon, Spezia, Nápoles, Malta, Túnis, Argel, Gibraltar, Tânger, Tenerife e São Vicente.

Curiosamente, no início de seu manual de geografia, ele escreve que “os livros suprem o meio mais completo e mais prático de uma sólida instrução geográfica – que são as viagens, por causa da dificuldade de realizá-las, do tempo, dos incômodos e despesas em que importam” (SÁVIO, 1971, p. 23), o que demonstra sua concepção de valorização do trabalho de campo. Não se sabe a data de seu casamento, mas ele era cunhado do vice-almirante (correspondente a general de divisão do Exército) Eliezer Coutinho Tavares, falecido em 1900, como informado no Jornal do Brasil de 12 de novembro (VICE-ALMIRANTE..., 1900VICE-ALMIRANTE Eliezer Tavares. Jornal do Brasil, segunda-feira, 12 de novembro de 1900, p. 2. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional.).

Em 1884, com a patente de segundo-tenente, Sávio lecionava aulas de primeiras letras no Batalhão Naval e atuou na Repartição de Hidrografia da Marinha do Brasil, além de frequentar a Escola Prática de Artilharia e Torpedos onde se diplomou instrutor. Devemos lembrar que os militares naquela época tinham uma forma de atuação bastante distinta da que têm na atualidade. Segundo McCann (2007, p. 15)MCCANN, F. D. Soldados da Pátria: história do exército brasileiro 1889-1937. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.:

Oficiais governavam as cidades de fronteira estratégica, mapeavam o país, demarcavam as fronteiras, construíam estradas e linhas telegráficas e férreas, quartéis, comandavam as forças policiais e o corpo de bombeiros no Rio de Janeiro e em outras cidades, intervinham na política local por ordem federal e faziam cumprir ordens legais. Também dirigiam arsenais, uma usina siderúrgica, prisões e programas de aprendizado em orfanatos, além de [...] e lecionar e administrar o sistema educacional do Exército.

O mesmo autor ressalta que as escolas militares só teriam um currículo homogêneo após a criação da Academia Militar das Agulhas Negras, em 1944, e que soldados e cabos eram oriundos das classes populares, geralmente integrados ao exército como parte do sistema penal, sendo frequentemente indivíduos sem formação. Dessa feita, talvez as aulas de primeiras letras que iniciaram a carreira docente de Sávio fossem destinadas a adultos. Curiosamente, as primeiras letras eram um tema de interesse dos diletantes.Novamente vem à baila a falta de especialização dos campos da época – Guerreiro Lima, por exemplo, também produziu livros de alfabetização, com forte cunho nacionalista e histórico. De forma geral, nota-se que os livros de geografia eram escritos por professores que se dedicavam a desenvolver também manuais de história, primeiras letras, escrituração mercantil, álgebra e até mesmo astronomia, como vimos no caso de Guerreiro Lima. Outro caso paradigmático é o do professor carioca Mário da Veiga Cabral (1894-1973)2 2 Como Mário da Veiga Cabral estudou no Colégio Militar e na Escola de Guerra do Realengo, ele poderia ter sido aluno de Sávio. , outro diletante, autor de livros de história, geografia e primeiras letras.

Além de suas atividades didáticas, encontramos registros de suas atribuições como oficial da Marinha: existe uma referência de que Sávio teria visitado a Repartição Hidrográfica dos Estados Unidos, segundo relato do almirante Barão de Teffé no relatório do ministro da Marinha de 1887 (SURGEM..., s. d.). Em 1889, como primeiro-tenente, Sávio foi designado para confeccionar a planta da baía do Rio de Janeiro e, pouco tempo depois, para fazer o levantamento hidrográfico da costa norte entre Belém e Maranhão. Como demonstrado por Beltrão (2000)BELTRÃO, Jane Felipe A arte de curar dos profissionais de saúde popular em tempo de cólera: Grão-Pará do século XIX. História, Ciência, Saúde – Manguinhos, v. VI (suplemento), set. 2000, p. 833-866. https://doi.org/10.1590/S0104-59702000000500005.
https://doi.org/10.1590/S0104-5970200000...
, Sávio, sob o comando do capitão-tenente Francisco Calheiros da Graça, a bordo da canhoneira Guarani, foi responsável pela elaboração da planta hidrográfica do porto do Pará entre a Fortaleza da Barra e a Boca do Rio Guamá, documento publicado no ano de 1889. Curiosamente, encontramos uma notícia da época da declaração da República que dá conta de que Sávio, no Pará, foi um republicano de primeira hora, apoiando a queda do regime monárquico:

Na ordem do dia, o comandante-chefe das forças no Pará conclamou as tropas a jurar que derramariam a última gota de sangue pela República Brasileira e pelo grande cidadão Marechal Fonseca.

Ao hastear a bandeira republicana a bordo da canhoneira Guarany, o comandante Themístocles Sávio se dirigiu à tripulação com o que se segue: “Alegrem-se, vocês não são mais escravos de uma velha e esfarrapada monarquia; vocês agora são os dignos e valiosos soldados da grande Confederação Brasileira”. “Vivas” então foram dados para o general Fonseca e para a República Federal. (THE STANDARD, 15 jan. de 1890STANDARD. Buenos Aires, quarta-feira, 15 de janeiro de 1890. – tradução nossa).

Não sabemos ao certo qual a condição de seu engajamento nas missões, mas a notícia do jornal The Standard, que era publicado em inglês na cidade de Buenos Aires, deixa clara sua filiação ao movimento político da Proclamação da República. Pode ser que sua designação para missão no norte no Brasil seja reflexo de seu envolvimento com o movimento republicano. Assim:

Quando o Império foi derrubado, em 1889, os oficiais e seus aliados civis republicanos quiseram tomar o poder em um sistema social e econômico essencialmente intacto para nele exercer influência; desejavam mudar a fachada política, mas não as estruturas básicas. (MCCANN, 2007, p. 17MCCANN, F. D. Soldados da Pátria: história do exército brasileiro 1889-1937. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.).

É conhecida a influência do positivismo no movimento e dentre os militares, inclusive com a ideia de que o progresso racional da humanidade poria fim aos conflitos militares. Entretanto, os militares continuaram a ser figuras-chave do início da Primeira República, e, após os conflitos enfrentados no final do século XIX e início do XX (Revolta da Armada, Canudos, Contestado, Primeira Guerra Mundial etc.), existiu um movimento para modernizar e profissionalizar as Forças Armadas do Brasil.

Fato é que Sávio, como consta em nota do periódico O Paiz de 10 de novembro de 1909, foi professor do Colégio Militar desde o dia 2 de abril de 1890–.Curiosamente, não encontramos esse registro em seu prontuário militar, entretanto, no almanaque da Marinha, nas menções ao seu nome durante a atuação no colégio aparece como integrante ora da reserva militar, ora do quadro extraordinário. Nesse período, aparentemente, Sávio participou ou, pelo menos, foi acusado de se engajar na Revolta da Armada, um movimento político em que a liderança da Marinha quis aumentar sua influência no regime republicano recém-formado, em detrimento da ascendência do Exército:

Constatou-se que, longe de formar um grupo coeso e homogêneo, as Forças Armadas abrigavam profundas diferenças que permaneceriam, ao menos na primeira fase republicana. Além das rivalidades entre o Exército e a Marinha, pois, enquanto o Exército tinha sido ator fundamental para a implementação do novo regime, a Armada, cuja oficialidade desfrutara de prestígio desde o início do período imperial, era vista como ligada à monarquia (FAUSTO, 2002:140), e sentia-se, por sua vez, negligenciada e ressentida pela posição inferior ocupada na República. O governo republicano aumentara os soldos militares de forma desigual, promovera oficiais do Exército em número maior do que na Marinha, afora os cargos políticos que contemplam os primeiros muito mais do que os segundos. (CUNHA, 2011CUNHA, Beatriz Rietmann da Costa e. O Colégio Militar do Rio de Janeiro: o modelo para a expansão do ensino secundário militar (1889-1919). In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, 26. Anais..., São Paulo, jul. 2011, p. 1-16. Disponível em: https://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300572385_ARQUIVO_Trabalho.pdf. Acesso em: fev. 2024.
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).

Sávio foi preso por um curto período e demitido, mas depois foi reintegrado. O documento de sua defesa dá provas de sua conduta legalista, mas não tivemos acesso à acusação (AÇÕES..., 1895AÇÕES de Nulidade no juízo secional. Rio de Janeiro: Tipografia particular, 1895.). De todo modo, McCann (2007)MCCANN, F. D. Soldados da pátria. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. indica que nesse contexto os estudantes das escolas militares apoiaram os florianistas contra Prudente de Morais, sendo que vários discentes foram expulsos e não ocorreram aulas no Colégio Militar em 1894. O mesmo autor indica que esse episódio inicia uma tradição de anistia às sublevações e revoltas nas Forças Armadas, uma vez que os estudantes foram reintegrados, vários dos quais não estavam mais em idade escolar. De toda feita, nos anos seguintes, Sávio, reincorporado ao Colégio como professor de geografia geral, continuou a fazer trabalhos técnicos, tanto na Repartição de Hidrografia, quanto na Comissão da Carta Marítima.

Assim, é a partir de 1895 que temos o período em que nosso autor se dedica ao Colégio Militar do Rio de Janeiro e à produção intelectual, seja didática, seja de técnica militar. Paralelamente, nesse meio-tempo, Sávio se torna conselheiro da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, participando da comissão que trata da geografia matemática, que poderia se aproximar do que hoje chamamos de geodésia e/ou cartografia sistemática, o que é compatível com sua atuação na Marinha.

Como demonstrou Cardoso (2013)CARDOSO, L. P. C. O lugar da geografia brasileira:a sociedade de geografia do Rio de Janeiro entre 1883-1945. São Paulo: Annablume, 2013., a Sociedade era um ninho de fidalgos, ou seja, muitos de seus membros eram aristocratas brasileiros, mas que souberam se adaptar ao novo regime republicando após o golpe de 1889 e continuaram a produzir conhecimento geográfico, ao mesmo tempo que se engajaram na onda nacionalista e de valorização do saber científico. Cardoso nos lembra que os primeiros anos da república brasileira suscitaram uma preocupação com a ampliação do oferecimento do ensino, algo que geralmente vinha acompanhado de certo ufanismo. A ideia de que o verdadeiro cidadão republicano é alguém que tem uma formação básica, que permite compreender o mundo, é relevante, mesmo que na prática o ensino público tenha se expandido pouco. Dado o contexto, de engajamento no movimento republicano, supomos que Sávio também era entusiasta da democratização do conhecimento.

Temos notícia de que, em 1899, Sávio participou do Congresso Nacional de Educação ao lado de Raja Gabaglia – provavelmente, Fernando Antônio Raja Gabaglia – que atuava na Faculdade livre de ciências jurídicas e sociais, além do dr. Eugênio de Barros Raja Gabaglia – pai de Fernando –, professor da Escola Naval, e seus camaradas de Colégio Militar, o coronel Alípio da Fontoura Costallat, o barão Homem de Melo e o capitão Sebastião Francisco Alves (CONGRESSO..., 1899CONGRESSO Nacional de Educação. Gazeta de notícias, n. 312, quarta-feira, 8 de novembro de 1899, p. 1. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional.). A notícia termina dando o tom do que foi o tal furor nacionalista republicano, pois o evento atenderia “os altos interesses da República, porque sem povo culto e consciente de seus direitos e de seus deveres não há repúblicas fortes, felizes e respeitadas”. O artigo de jornal evoca ainda a derrota da França na batalha de Sedan, em 1870, ressaltando a necessidade de um sistema educacional satisfatório também para a defesa nacional, caminho escolhido pelo país europeu que modernizou seu ensino e ressurgiu como potência.

Ora, é preciso lembrar que os Raja Gabaglia foram também fundamentais para a discussão sobre o ensino de geografia – como demonstrou Cabral (2022a)CABRAL, Thiago M. Fernando Antônio Raja Gabaglia – um intelectual entra a política, a ciência e o ensino de Geografia. Terra Brasilis, n. 17, 2022a, p. 1-19. https://doi.org/10.4000/terrabrasilis.11582.
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–, uma temática que também interessou Delgado de Carvalho e Backheuser, o que os encaminhou para o escolanovismo, além de congressos e associações preocupadas com o ensino. Encontramos então esse contexto comum, que se prolongará nas décadas seguintes, ou seja, uma preocupação com a modernização do ensino e, em especial, ensino de geografia. Ademais, Sávio contribuiu, desde 1902, na Revista Didática, de acordo com nota publicada no Jornal do Brasil de 6 de dezembro.

Outrossim, já notamos que Sávio era produtor de conhecimentos estratégicos para o Estado – cartografava a costa brasileira – e, paralelamente, lembremos que Delgado de Carvalho, Backheuser e mesmo Fernando A. Raja Gabaglia estavam preocupados diretamente com a geopolítica, em especial, a do Brasil. Fernando Raja Gabaglia leciona a aula intitulada Contribuição ao Ensino: a Geopolítica em curso no Conselho Nacional de Geografia (CABRAL, 2022a, p. 13CABRAL, Thiago M. Fernando Antônio Raja Gabaglia – um intelectual entra a política, a ciência e o ensino de Geografia. Terra Brasilis, n. 17, 2022a, p. 1-19. https://doi.org/10.4000/terrabrasilis.11582.
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). Pode-se concluir então que a defesa nacional, a valorização da pátria e o republicanismo não estão dissociados do ensino de geografia, sendo que um mesmo grupo de interessados se preocupava com esse tema e frequentava pelo menos um lugar em comum: a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, como bem demonstrou Cardoso (2013)CARDOSO, L. P. C. O lugar da geografia brasileira:a sociedade de geografia do Rio de Janeiro entre 1883-1945. São Paulo: Annablume, 2013..

Dito isso, vamos compreender melhor o local de exercício docente de Sávio, pois é razoável deduzir que seus manuais tenham derivado de sua prática docente. O Colégio Militar foi uma instituição criada ainda no regime monárquico (1889), em um empenho de modernização do Exército brasileiro após a Guerra do Paraguai, tendência que se consolidou depois da própria revolta da Armada e da Guerra de Canudos (1896-1897). Apesar da famosa Reforma Mallet de modernização militar, foi apenas a partir de 1905, na presidência de Afonso Pena, sendo Hermes da Fonseca o ministro da Guerra, que tal impulso ganhou força e produziu resultados práticos. Segundo Cunha (2011)CUNHA, Beatriz Rietmann da Costa e. O Colégio Militar do Rio de Janeiro: o modelo para a expansão do ensino secundário militar (1889-1919). In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, 26. Anais..., São Paulo, jul. 2011, p. 1-16. Disponível em: https://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300572385_ARQUIVO_Trabalho.pdf. Acesso em: fev. 2024.
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, os egressos do Colégio tinham preferência no ingresso às escolas militares, em alguns casos nas de engenharia e, por um período, os discentes formados também poderiam exercer a profissão de agrimensor.

Lembremos que essa modernização do ensino militar envolveu uma série de críticas à instrução consolidada durante os primeiros anos da república, quando o positivismo exercia grande influência em figuras-chave das Forças Armadas. Na virada do século, alguns vão se referir à formação de oficiais como um “bacharelismo” na medida em que predomina uma educação teórica e pouco afeita à prática militar, quadro que se transforma no decorrer do início do século XX diante dos conflitos e desafios enfrentados pelas Forças Armadas do Brasil. Aparentemente, Sávio se preocupa com a modernização tanto do ensino em geral, quanto com a da formação dos oficiais da Marinha, ou seja, ele aspira a uma profissionalização das Forças Armadas.

Cabe ressaltar que Sávio foi redator da Revista Marítima Brasileira, publicação ligada à Marinha, tendo assinado os seguintes artigos: “Um espírito uniforme de direção naval” (dezembro de 1906), “Provimento dos efetivos de esquadra” (setembro de 1906), “O preparo profissional dos nossos oficiais de Marinha” (outubro de 1906), “Novos e velhos moldes” (novembro de 1906), “Artilharia” (março de 1907), “Construções navais alemãs” (agosto de 1907) e “Canhão automático Krupp para artilharia de bordo, de costa e de fortaleza” (1909). De acordo com McCann (2007)MCCANN, F. D. Soldados da pátria. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., no início do século XX, as Forças Armadas adotaram o modelo alemão para reorganizar seu Estado-Maior, além de se aproximarem da Alemanha para se modernizarem, o que talvez explique algumas abordagens de seus textos militares. Destaca-se ainda que alguns trechos desses artigos foram republicados na mesma revista entre os anos 2006 e 2007. Fica latente a preocupação operacional com a técnica militar e, igualmente, com a formação dos oficiais e com o espírito de corpo militar.

Como Lacoste (1988)LACOSTE, Y. A geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1988. havia ressaltado em relevante ensaio, existe uma diferenciação entre a geografia do Estado-Maior, a geografia escolar e a geografia do mass media, sendo que comumente temos a análise do envolvimento dos militares com a questão da geopolítica e seu valor estratégico para pensar a questão nacional. Contudo, Sávio era militar da Marinha e teve um papel importante ao escrever um livro didático que repercutiu fora dos meios militares. Certamente, é no mesmo período daquelas produções na Revista da Marinha Brasileira que Sávio redige e publica seu Curso elementar de geografia, cuja primeira edição data de 1907.

Como se depreende de um extrato dos anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Geografia, ocorrido no Rio de Janeiro em 1909 e publicado na Revista Marítima Brasileira, os livros didáticos do dr. Carlos Novaes – Geografia elementar e secundária – e de Themístocles Sávio – Geografia elementar –“são trabalhos valiosos e que prestam reais serviços ao ensino” (REVISTA..., 1909, p. 662REVISTA Marítima Brasileira. Primeiro Congresso Brasileiro de Geografia, n. 55, v. 1, 1909.). O extrato é longo e esclarece que Sávio comporia a comissão de geografia matemática, além de destacar algumas deliberações do Congresso, finalizando com o desejo de “que a mesma sociedade se empenhe junto ao governo para a criação de uma cadeira de geografia física nos cursos universitários”.

Sávio participou, como noticiado em O Paiz de 14 de setembro de 1909, do Primeiro Congresso Brasileiro de Geografia, que, segundo Cardoso (2013, p. 171)CARDOSO, L. P. C. O lugar da geografia brasileira:a sociedade de geografia do Rio de Janeiro entre 1883-1945. São Paulo: Annablume, 2013., foi exitoso, diferentemente do Segundo, que enfrentou problemas em função da Primeira Guerra Mundial. Entretanto, devido ao seu precoce falecimento, Sávio não estaria no Segundo Congresso, contudo, sua contribuição foi efetiva, pois temos notícia, publicada em O Paiz de 7 de fevereiro de 1909, de que seu livro se esgotou rapidamente, e uma segunda edição, melhorada, com melhor papel e impressão, foi lançada em 1909. O exemplar da Gazeta de Notícias de 8 de fevereiro de 1909 reafirma que a primeira edição esgotou e que o livro foi adotado no Colégio Militar, no Ginásio Nacional, na Escola Nacional e em outros estabelecimentos.

O livro em si parece ser bastante descritivo, dispondo um texto explicativo seguido de exercícios ao final das lições. Ele chama atenção pela sua abrangência geográfica e sua preocupação com a cartografia, além de abordar todos os continentes e as “terras polares”3 3 O sumário traz os seguintes capítulos ou lições: Prefácio; Geografia; Divisões da Geografia; Forma da Terra; Tamanho da Terra; Movimento Diurno e Noturno; Movimento Anual da Terra; Dias e Noites; estações; Representação da Terra; a Escala das Cartas; Distâncias (exercícios nas cartas); Reduções Métricas; os Pontos no Horizonte; Posições (exercícios nas cartas); Orientação; Orientação (exercícios no lugar); Superfície da Terra; Ventos. Chuvas. Clima; Terras Planas; Terras Elevadas; Águas Continentais; os Lagos; os Rios; Deltas e Estuários; Terminologia Brasileira; Quedas D’água; Continentes e Ilhas; Recortes da Terra Firme; Divisões e Formas do Mar; o Oceano; o Hemisfério Oriental; o Hemisfério Ocidental; os dois Hemisférios (comparações); os Oceanos; Correntes Oceânicas; exercícios no mapa-múndi; Viagens; América do Sul (preliminares); Idem (config. horizontal); Idem (config. vertical); Idem (hidrogr. interior); Idem (clima e produções); Idem (noção política, econômica e social); os Estados Unidos do Brasil; Idem (noção histórica); Idem (constituição); Idem (divisões do território); Idem (os estados); Idem (conclusão); países da América do Sul; Europa; Ásia; África; Oceania; Terras polares. . Ademais, o livro é ilustrado com mapas coloridos, o que reforça a necessidade da aprendizagem de geografia ser acompanhada de cartas diversas, além de imagens. Não obstante, o trecho abaixo ilustra a tônica do livro com uma descrição detalhada:

Marrocos ou Marrakéch, interior (ao S.), outra residência do sultão e sua corte; e – Tanger, porto de mar, é a entrada do estreito de Gibraltar, residência do corpo diplomático e consular europeu: é o principal porto de comércio do império, em constantes relações marítimas com Gibraltar e Cádiz (na Espanha).

É por este porto que Marrocos expede para a Inglaterra, Espanha e França principalmente, os seguintes produtos mais importantes de sua ainda atrasada indústria: gado lanígero e lã bruta, tâmaras e outras frutas, peles de cabra e de carneiro, marfim, goma, penas de avestruz, marroquins, tapetes, armas brancas, etc. (SÁVIO, 1917, p. 517SÁVIO, Themístocles. Curso elementar de geografia. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Paris, Lisboa: Francisco Alves & Cia.; Aillaud, Alves & Cia, 1917 [1907]).

Sávio não abusa das estatísticas, prefere a narrativa com ênfase nos fatos mais relevantes, e os questionários no fim de cada capítulo basicamente revisam a matéria abordada. O autor, no entanto, é didático, busca dialogar com o mundo das crianças, quando, por exemplo, compara o formato da Terra a uma bola de borracha e, a seguir, de maneira mais exata, a uma laranja, que ilustra o formato do planeta com achatamento nas regiões polares. As explicações sobre geodésia e cartografia acompanham esquemas ilustrativos.

Igualmente interessante é sua concepção de geografia, exposta no início do manual: “a geografia é a descrição científica da superfície atual da Terra nas suas relações com o homem e sua atividade” (SÁVIO, 1917, p. 21SÁVIO, Themístocles. Curso elementar de geografia. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Paris, Lisboa: Francisco Alves & Cia.; Aillaud, Alves & Cia, 1917 [1907]), concepção que é complementada por um debate sobre os subcampos da geografia, que se divide em geografia astronômica, cosmografia ou geografia matemática; geografia física, dedicada aos rios, mares e montanhas; geografia econômica, preocupada com os meios de transporte, produção, alimentação e comunicação; geografia histórica, que se debruça sobre as migrações e mudanças do meio; e a geografia política, cuja concepção não é estranha ao pensamento de um F. Ratzel:

Quando a geografia, considerando a Terra como morada do homem, estuda as divisões de sua superfície em estados ou nações habitados por sociedades ou raças da grande família humana, que possuem línguas, costumes, tradições e crenças religiosas mais ou menos diferentes, e menciona o modo por que são estas nações governadas, os lugares principais que nelas existem, etc., denomina-se – geografia política. (SÁVIO, 1917, p. 22SÁVIO, Themístocles. Curso elementar de geografia. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Paris, Lisboa: Francisco Alves & Cia.; Aillaud, Alves & Cia, 1917 [1907]).

Como o próprio prefaciador de Sávio denota, a influência da escola alemã de geografia sob seu pensamento é grande. O livro tem uma lição sobre história do Brasil, sobre sua Constituição e ainda sobre economia, política e sociedade brasileira. No questionário sobre a Ásia, Sávio (1917, p. 512)SÁVIO, Themístocles. Curso elementar de geografia. Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Paris, Lisboa: Francisco Alves & Cia.; Aillaud, Alves & Cia, 1917 [1907] pergunta quais são os países, quais suas capitais, quais regiões dispõem de estrada de ferro, portos de mar, quais os acidentes geográficos e indaga o que os estudantes sabem sobre os habitantes dessa região do mundo. Decerto, um olhar bastante enciclopédico, com toques de uma preocupação estratégico-militar, além de ser um manual bastante descritivo em um contexto cuja circulação do conhecimento, imagens, dados e mapas era mais dificultosa. Para os temas ligados à cartografia e localização geográfica, o livro dispõe de atividades práticas, o que talvez ecoe uma resposta às críticas ao bacharelismo, entretanto, apesar de sua preocupação, seu livro resguarda uma abordagem erudita, o que poderia resultar na sua menção honrosa no Primeiro Congresso de Geografia, além de sua citação por figuras como Delgado de Carvalho, por exemplo. Por fim, Sávio, que falece em 1909, não assistiu à profissionalização da geografia, nem do campo militar, mas sua obra teve uma repercussão relevante para a época.

O sucesso do livro didático de Sávio, independente de seus méritos acadêmicos, também pode ser entendido na chave do protagonismo das Forças Armadas na Primeira República, que no longo prazo representaram uma classe média urbana, que gradualmente foi se contrapondo aos interesses dos “coronéis” do interior, em um contexto de modernização promovido pela Proclamação da República (MCCANN, 2007MCCANN, F. D. Soldados da pátria. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.). A presença dos militares na vida civil era forte, aspecto que merece ser mais bem entendido do ponto de vista da história da geografia e, como tentamos demonstrar, tem ilações com o ensino da geografia, o nacionalismo, a geopolítica e a meditação sobre um projeto de nação.

Diante do exposto, podemos nos indagar até que ponto a participação dos militares no debate sobre geografia foi estrutural, visto que Antunes (2023)ANTUNES, C. da F. A Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB: origens e transformações. Rio de Janeiro: Consequência/Faperj, 2023. ressalta essa participação no início da Associação dos Geógrafos Brasileiros e demonstra que, por dois mandatos consecutivos (1967-1968 e 1968-1969), Ney Strauch, membro do IBGE e professor da Escola Naval, foi presidente dessa instituição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão nos cabe comentar o prefácio do livro, de autoria de Francisco Pinheiro Guimarães, um texto francamente laudatório sobre o livro didático de Sávio, mas que espanta pela sua erudição e pela sua apreciação acerca da história da geografia. Devemos lembrar da obra clássica de Gomes (1995)GOMES, Paulo César da Costa. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995., que ressaltou o papel da novidade modernizadora para compreender a história da geografia, uma novidade que, como nos coloca Bourdieu (2008)BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento.São Paulo: Edusp/Zouk, 2008., é sempre uma meia revolução, ou seja, os modernos, para se imporem com sucesso, devem negociar com a tradição ou, no mínimo, provar que a dominam. Nesse sentido, Guimarães remete à tradição da Antiguidade e da cosmografia para fazer franca crítica ao processo de fragmentação e especialização da geografia – e mesmo de uma separação entre a geografia física e a humana. A perda mais grave seria a do ensino de astronomia para as crianças, algo que o livro de Sávio contempla, bem como a geodésia e uma aproximação prática da localização geográfica como se destacou anteriormente.

Espanta, igualmente, a quantidade de autores italianos e alemães citados, sendo que a geografia de Sávio, que busca uma totalidade, é associada à tradição alemã. Poucos autores franceses são arrolados (en passant, apenas Reclus e Levasseur, mas não Paul Vidal de la Blache), e Guimarães, no prefácio, dá mais ênfase aos debates germânicos, citando, por exemplo, Ritter, e ainda nessa linha valoriza o uso do recurso literário para a descrição das paisagens, bem como as repetições didáticas e o fato de o livro de Sávio ser mais interessante e atrativo do que o enfadonho Programa de Instrução Pública.

Para Guimarães, Sávio consegue produzir um manual brasileiro, que supera seus congêneres europeus, ou seja, não é mera cópia, é também originalidade e, como não poderia deixar de ser, o tema do nacionalismo também surge no prefácio: de um lado, a necessidade de conhecer a geografia do Brasil para poder desvelar seu futuro – uma temática bastante comum dentre os pensadores sociais no fin de siècle–, de outro, novamente, a importância da geografia para a temática da defesa nacional – a França aqui, mais uma vez, é um paradigma.

A título de comparação, Morin (2016)MORIN, Karen M. Civic discipline: geography in America, 1860-1890. New York: Routledge, 2016. analisou a vida e obra do diletante Charles Daly, um juiz e empresário que, nos Estados Unidos, também escreveu sobre geografia, história, literatura etc. e foi uma figura importante para mobilizar as sociedades geográficas daquele país. A autora do estudo demonstra que prestar atenção nessas geografias “desimportantes” é revelador, na medida que essas figuras tiveram um papel efetivo na formação do campo, na interação da geografia com os interesses sociais – Daly se interessava por comércio exterior e efetivamente não foi apenas um estudante, mas impulsionou a participação comercial dos EUA no Congo Belga e na exploração do ártico.

Lembremos ainda do clássico capítulo de Horacio Capel (1988)CAPEL, Horacio. Filosofía y ciencia en la geografía contemporánea. Barcelona: Barcanova, 1988. sobre as sociedades geográficas, em que talvez esteja delineada com mais clareza a imbricação entre os interesses sociais e a produção do conhecimento geográfico em diferentes países. No contexto brasileiro, a nação e o projeto nacional, nos parece, têm uma centralidade, sendo esparsos os debates sobre o estrangeiro, o que é sintoma de uma nação em processo de formação diante de suas dimensões continentais e dos sérios eventos políticos que a afetaram no primeiro lustro do século XX.

Ora, independente dessas elucubrações, espanta, no prefácio, que um não geógrafo tenha escrito com tanta propriedade e clareza sobre a geografia, delineando um projeto disciplinar com um objeto bem definido, remetendo críticas às posições divergentes comuns da época. O estudo da contribuição de Sávio pode revelar geografias perdidas, que não foram objeto de valorização do campo, apesar de terem tido um papel na modernização do ensino de geografia no Brasil e terem se esforçado para criar um imaginário geográfico sobre nosso país e sobre o mundo – que dialogava com a agenda do nacionalismo. Certamente, a valorização dessa perspectiva nos ajudará a ver, nas margens, a dinâmica do campo da geografia para além de uma narrativa triunfalista da geografia universitária. É preciso compreender essa mutação, ou seja, como a institucionalização criou uma barreira diferenciadora entre uma geografia “amadora” e uma “moderna e profissional”, que se só reforça com o passar do tempo e acaba se refletindo na historiografia da disciplina, além de entender por que essa diferenciação causou o enfraquecimento das sociedades geográficas. Será que, do ponto de vista do método e das agendas de pesquisa, elas eram tão distintas como se pensava? Nesse sentido, o prefácio escrito por Guimarães pode induzir a pensar que as diferenças não eram tão radicais. Quase cem anos após a fundação dos primeiros cursos universitários, Monbeig é visto como um fundador, e Delgado de Carvalho e E. Backheuser são, quando muito, raramente lembrados pelos estudantes de geografia. Sávio quase caiu no esquecimento. No entanto, salta aos olhos a chamada dominação simbólica, pois, seja dentre os “amadores”, seja dentre os profissionais, a referência da ciência europeia (alemã ou francesa) consiste em uma verdadeira fonte de legitimação do saber científico. Resta agora compreender melhor como se comporta o campo da geografia diante do processo de modernização, de institucionalização, indagando como a ciência marginal das sociedades geográficas se moveu para além dos grandes nomes.

  • 2
    Como Mário da Veiga Cabral estudou no Colégio Militar e na Escola de Guerra do Realengo, ele poderia ter sido aluno de Sávio.
  • 3
    O sumário traz os seguintes capítulos ou lições: Prefácio; Geografia; Divisões da Geografia; Forma da Terra; Tamanho da Terra; Movimento Diurno e Noturno; Movimento Anual da Terra; Dias e Noites; estações; Representação da Terra; a Escala das Cartas; Distâncias (exercícios nas cartas); Reduções Métricas; os Pontos no Horizonte; Posições (exercícios nas cartas); Orientação; Orientação (exercícios no lugar); Superfície da Terra; Ventos. Chuvas. Clima; Terras Planas; Terras Elevadas; Águas Continentais; os Lagos; os Rios; Deltas e Estuários; Terminologia Brasileira; Quedas D’água; Continentes e Ilhas; Recortes da Terra Firme; Divisões e Formas do Mar; o Oceano; o Hemisfério Oriental; o Hemisfério Ocidental; os dois Hemisférios (comparações); os Oceanos; Correntes Oceânicas; exercícios no mapa-múndi; Viagens; América do Sul (preliminares); Idem (config. horizontal); Idem (config. vertical); Idem (hidrogr. interior); Idem (clima e produções); Idem (noção política, econômica e social); os Estados Unidos do Brasil; Idem (noção histórica); Idem (constituição); Idem (divisões do território); Idem (os estados); Idem (conclusão); países da América do Sul; Europa; Ásia; África; Oceania; Terras polares.

REFERÊNCIAS

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  • BELTRÃO, Jane Felipe A arte de curar dos profissionais de saúde popular em tempo de cólera: Grão-Pará do século XIX. História, Ciência, Saúde – Manguinhos, v. VI (suplemento), set. 2000, p. 833-866. https://doi.org/10.1590/S0104-59702000000500005
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  • BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento.São Paulo: Edusp/Zouk, 2008.
  • BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis: Vozes, 2010.
  • CABRAL, Thiago M. Fernando Antônio Raja Gabaglia – um intelectual entra a política, a ciência e o ensino de Geografia. Terra Brasilis, n. 17, 2022a, p. 1-19. https://doi.org/10.4000/terrabrasilis.11582
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  • CABRAL, Thiago M. História da geografia escolar no período Vargas (1930-1945): discurso escolar moderno e identidade territorial a partir das temáticas físico-naturais. Tese (Doutorado em Geografia). Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas, 2022b.
  • CAPEL, Horacio. Filosofía y ciencia en la geografía contemporánea. Barcelona: Barcanova, 1988.
  • CARDOSO, L. P. C. O lugar da geografia brasileira:a sociedade de geografia do Rio de Janeiro entre 1883-1945. São Paulo: Annablume, 2013.
  • CONGRESSO Nacional de Educação. Gazeta de notícias, n. 312, quarta-feira, 8 de novembro de 1899, p. 1. Hemeroteca Digital Brasileira da Fundação Biblioteca Nacional.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2024
  • Aceito
    25 Jul 2024
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