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Um quê a mais: uma proposta interpretativa da subjetividade brasileira a partir da Dialética da malandragem, de Antonio Candido

Something else: an interpretative proposal of the Brazilian subjectivity from “Dialectic of malandragem”, by Antonio Candido

RESUMO

A partir de uma interpretação da Dialética da malandragem, de Antonio Candido, é possível pensar a formação da subjetividade brasileira. Para tanto, o método de “redução estrutural” da sociedade na obra literária, e vice-versa, é o cerne por meio do qual se pode refletir acerca das possibilidades de formação subjetiva. Isso especialmente caso se avance em direção à obra de Machado de Assis. Nesse âmbito, a “malandragem” ganha em qualidade interpretativa: não se trata mais somente da contingência do trânsito individual entre as esferas de ordem e desordem, mas de necessidade social desse ir e vir constante.

PALAVRAS-CHAVE
Antonio Candido; Dialética da malandragem; método; Machado de Assis; subjetividade

ABSTRACT

Starting from an interpretation of “Dialectic of malandragem”, by Antonio Candido, it is possible to think the formation of Brazilian society. Therefore, the “structural reduction” method of society in the literary work and vice-versa is the central point through which is possible to reflect on the possibility of subjective formation. That is true especially in the case of a step forward towards Machado de Assis’s work. In that context, the “malandragem” gains in interpretative quality: it is not anymore about the contingency of individual traffic between the spheres of order and disorder, but the social necessity of this constant forth and coming.

KEYWORDS
Antonio Candido; Dialectic of malandragem; method; Machado de Assis; subjectivity

A malandragem, aventada por Antonio Candido no ensaio clássico de 1970CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de milícias).Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 8, 1970, p. 67-89. 2 2 A primeira versão desse ensaio saiu em 1970, na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (CANDIDO, 1970). A versão aqui utilizada é da quinta edição de O discurso e a cidade (CANDIDO, 2015). , foi constantemente tratada como um traço de caráter do brasileiro. Nela se conjugam formulações que levaram em conta a formação da subjetividade mediada pela, e mediando a, produção objetiva da realidade brasileira3 3 Sérgio Buarque de Holanda, em seu clássico Raízes do Brasil (1976), tratou da questão da cordialidade e, entre outras coisas, das relações íntimas e familiares que tomaram a esfera pública em detrimento da formação de uma publicidade, de cunho burguês. Roberto Schwarz (2012), na mesma linha e partindo de Machado de Assis, identifica na ideologia do favor, nas relações que relegam certa isenção própria à esfera pública, a constituição tanto da Nação quanto dos sujeitos. Francisco de Oliveira (2018) reitera a posição e acrescenta que tais relações, além de guiadas pelos interesses de classes, são intrínsecas à classe dominante brasileira e legadas às classes dominadas. Todavia, geralmente se toma o “jeitinho” como um traço puramente subjetivo e abstrato, sem precedentes ou naturalizado, no brasileiro. Esses textos, então, invariavelmente são lidos à luz do caráter subjetivo nacional, sem as devidas mediações histórico-sociais e em detrimento completo destas, como se se tratasse de um conjunto de características naturalizadas ou sem fundamentos, surgindo aleatória e contingentemente de qualquer situação na qual o centro seja o Brasil e o brasileiro, em abstrato. O presente artigo pretende se opor às interpretações de caráter que o consideram como traço distintivo natural e/ou que prescindem das mediações históricas que o engendram. . Contudo, vista como traço de caráter, priorizou-se, por outro lado, uma interpretação a-histórica: em primeiro lugar, relegando as mediações específicas das relações sociais oitocentistas, especialmente da camada de indivíduos livres e pobres - que é o que trata o ensaio de Antonio Candido -, e, em seguida, como elemento imediato, quase natural, do Brasil e de seu povo. De tal modo,

Entendida exclusivamente como traço cultural brasileiro, a malandragem tende a ser desvinculada do quadro determinado da organização econômico-social. Desse modo, contudo, a relação entre as Memórias e a sociedade brasileira, tal como apresentada por Candido, fica atenuada (ou talvez mesmo neutralizada). Isso porque a relação entre a obra e a sociedade passa a restringir-se à simples correspondência entre a malandragem literariamente figurada no romance e o comportamento malandro existente na realidade, sem que, no entanto, a própria malandragem real seja entendida em seus fundamentos histórico-sociais (apenas se constata a sua existência no plano da realidade, como um fato autoevidente que parece não exigir outra explicação para além do impalpável ethos nacional). (OTSUKA, 2007OTSUKA, Edu Teruki. Espírito rixoso: para uma reinterpretação das Memórias de um sargento de milícias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 44, fev. 2007, p. 105-124. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901x.v0i44p105-124.
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, p. 107-108).

Há, no entanto, algo que o ensaio aponta, deixando entrever, que pode ser mais explorado levando-se em consideração o próprio século XIX e as relações ali existentes. Para isso, é preciso, igualmente, considerar elementos que Candido aborda no texto a fim de que se revelem as mediações. Portanto, não se trata de refazer exaustivamente o percurso do ensaio. Antes, a partir dele, desdobrar nexos fundamentais que sustentam a formação da individualidade.

Antonio Candido e a forma da crítica

Antonio Candido lança mão do método de “redução estrutural”, pelo qual é possível ver características da sociedade dando forma ao romance - estas, mediadas pela imaginação do autor e pela capacidade de reformular à sua vontade aspectos sociais específicos, ainda que, talvez, não completamente consciente. Candido não trata o romance de Manuel Antônio de Almeida4 4 As Memórias de um sargento de milícias são de 1852 (ALMEIDA, 2013). - nem outros, como O cortiço, de Aluísio de Azevedo, que aborda no ensaio “De cortiço a cortiço” (CANDIDO, 2015a_____. De cortiço a cortiço. In: _____. O discurso e a cidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015a, p. 107-132.) - como documento de fiel retrato da sociedade da época. Redução estrutural, diz ele, por ser “construído segundo o ritmo geral da sociedade [...]. E sobretudo porque dissolve o que há de sociologicamente essencial nos meandros da construção literária” (CANDIDO, 2015_____. Dialética da malandragem. In: _____. O discurso e a cidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015, p. 17-47., p. 39). Assim, “[...] o que interessa à análise literária é saber [...] qual a função exercida pela realidade social historicamente localizada para constituir a estrutura da obra, isto é, um fenômeno que se poderia chamar de formalização ou redução estrutural dos dados externos” (CANDIDO, 2015_____. Dialética da malandragem. In: _____. O discurso e a cidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015, p. 17-47., p. 28). Em outra passagem, o autor reitera isso:

[...] é provável que a impressão de realidade comunicada pelo livro não venha essencialmente dos informes, aliás relativamente limitados, sobre a sociedade carioca do tempo do Rei Velho. Decorre de uma visão mais profunda, embora instintiva, da função, ou destino das pessoas nessa sociedade; tanto assim que o real adquire plena força quando é parte integrante do ato e componente das situações. Manuel Antônio, apesar da sua singeleza, tem uma coisa em comum com os grandes realistas: a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade -, elemento oculto que age como totalizador dos aspectos parciais. (CANDIDO, 2015_____. Dialética da malandragem. In: _____. O discurso e a cidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015, p. 17-47., p. 31).

De tal maneira, a reflexão estética levada adiante por Antonio Candido não suprime a possibilidade de interpretação da experiência brasileira - pelo contrário, abre-lhe uma porta. Todavia, não se pode perder de vista mediações, nexos fundamentais5 5 Os “nexos fundamentais”, categoria dialética da mediação por excelência, são muito bem explanados por Theodor W. Adorno (2015), entre outros textos, no ensaio “Sobre a relação entre sociologia e psicologia”. , sínteses históricas, tampouco o movimento mediado esteticamente que faz a sociedade figurar como forma, não simplesmente como assunto. O traço que configura o indivíduo de modo objetivo, seja a alternância entre esferas de ordem e desordem, sejam as rixas com fim em si mesmas - “a tendência para a discórdia pessoal [...] [é] um padrão de comportamento que se manifesta em praticamente todas as relações interpessoais [do romance]” (OTSUKA, 2007OTSUKA, Edu Teruki. Espírito rixoso: para uma reinterpretação das Memórias de um sargento de milícias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 44, fev. 2007, p. 105-124. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901x.v0i44p105-124.
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, p. 112) -, acarreta na astúcia metodológica da dialética em refletir sobre o sujeito como também mediado, como objeto que se constitui dentro de uma constelação histórica, visto a partir de uma perspectiva que tenha uma totalidade social específica, e suas mediações e nexos, como norte (cf. ADORNO, 1995ADORNO, Theodor W. Sobre sujeito e objeto. In: _____. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Trad. M. H. Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 181-201., p. 181 e ss.). Tanto o ensaio “Duas vezes ‘A passagem do dois ao três’” (CANDIDO, 2002_____. Duas vezes “a passagem do dois ao três”. In: _____. Textos de intervenção. Seleção, apresentações e notas de Vinicius Dantas. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 51-76.) quanto os demais aqui referidos exploram questões de método e abrem possibilidade de explanações novas, tanto no âmbito da interpretação da experiência de formação das subjetividades e objetividades brasileiras, quanto no domínio da literatura.

No ensaio em questão - “Dialética da malandragem” -, o nexo fundamental, que organiza o romance e é um dos aspectos sociais ocultos extraídos pela crítica, é a dialética de ordem e desordem, que, nas Memórias, “manifesta concretamente as relações humanas no plano do livro, do qual forma o sistema de referência. O seu caráter de princípio estrutural [...] é devido à formalização estética de circunstâncias de caráter social profundamente significativas como modos de existência” (CANDIDO, 2015_____. Dialética da malandragem. In: _____. O discurso e a cidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015, p. 17-47., p. 31). A circunstância que leva a sociedade a ser refletida na obra é de ordem formal, não documental6 6 Quanto a essa questão, e às relações entre a crítica de Antonio Candido e Roberto Schwarz, é de grande interesse o livro de Waizbort (2007). .

No Brasil da época, a camada de homens livres e pobres vivia numa corda bamba. Limitavam-se, de um lado, os campos de ação pela falta de perspectiva de inserção social real, de qualquer estabelecimento ordenado e fixado que pudesse ser seguido sem a necessidade da burla; de outro, as relações de favor, a sobrevivência como agregado de algum proprietário, eram imperativas à sobrevivência desse conjunto de pessoas - inclusive dos proprietários, ainda que em outra chave7 7 Os senhores também se formaram nesse processo, não tendo o tipo de “autonomia abstrata” que muitas vezes lhes atribuem. Quanto a isso, cf.: Hegel (2008) - especialmente a “dialética do senhor e do escravo”, na qual a formação do senhor é mediada pela atividade do escravo e, em última instância, pela totalidade engendrada por essa atividade; Cardoso (2003), principalmente p. 336 e ss., em que explora a relação formativa da sociedade escravista gaúcha e vê o senhor de escravos dependente de relações que lhe escapam; e Tomich (2011, p. 69-97), sobretudo sua teorização sobre “A ‘segunda escravidão’” (p. 81-97). Cabe lembrar, para fins deste artigo, que essa ordem, a totalidade, é produzida pelo espectro da escravidão que determina as relações, mesmo aquelas que lhe parecem distantes, ou que com elas não possuem relações diretas e concretas, pelo menos no âmbito da aparência imediata. . A dialética existente entre os domínios da ordem e da desordem e a constante fluidez dos indivíduos que passam de uma a outra conforme suas perspectivas de realização, ou na tentativa de fugir de uma anomia completa, agiam como mediação fundamental. Isso fazia com que tal camada tivesse de viver, via de regra, “num espaço social intermediário e anômico, em que não era possível prescindir da ordem nem viver dentro dela” (SCHWARZ, 2006SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da malandragem”. In: _____. Que horas são?: ensaios. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 129-55., p. 138).

Todavia, em relação à forma, há outras mediações que é preciso levar em conta. Em primeiro, o estrato abordado no romance e analisado por Candido - o dos homens livres pobres - dependia, para sua existência objetiva, de uma ordem maior estabelecida. Esta, ainda que não apareça no romance a não ser indiretamente, é que compunha a estrutura social mais ampla e que fornecia elementos para as mediações. Uma metaordem que, logicamente, é síntese formal das relações de trânsito entre ordem e desordem; formada por tais relações e as precedendo, constituindo-as. Nesse sentido, há subordinação daquela constelação a um princípio norteador abstrato8 8 A categoria abstração, na dialética, não implica em metafísica. Antes, é uma característica das formas, produto de uma realidade social específica. . Pois,

[...] além de transitarem livremente entre as esferas da ordem e da desordem, os personagens apresentam, de maneira sistemática, comportamentos fortemente marcados por traços mais ou menos assemelhados, como a maledicência, a zombaria, o achincalhe, a rivalidade e sobretudo a vingança; assim, os relacionamentos interpessoais que predominam no universo social das Memórias configuram uma estrutura peculiar, sendo governados por uma inclinação geral, comum aos personagens, a que se poderia chamar de espírito rixoso. (OTSUKA, 2007OTSUKA, Edu Teruki. Espírito rixoso: para uma reinterpretação das Memórias de um sargento de milícias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 44, fev. 2007, p. 105-124. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901x.v0i44p105-124.
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, p. 112).

Mais adiante, diz que “Um efeito disso é que o padrão de rixas parece [...] autonomizar-se, como que se reproduzindo indefinidamente por si só” (OTSUKA, 2007OTSUKA, Edu Teruki. Espírito rixoso: para uma reinterpretação das Memórias de um sargento de milícias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 44, fev. 2007, p. 105-124. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901x.v0i44p105-124.
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, p. 113). Os personagens do romance de Manuel Antônio, que transitam fluida e livremente pelas esferas da ordem e da desordem, buscam uma “supremacia qualquer”, na qual a rixa, autonomizada, ainda que à revelia de uma racionalização fortemente capitalista - existente, mas precária e em confluência com escravidão9 9 Quanto à totalização da escravidão, como sociedade em seu movimento endógeno e como momento da economia-mundo ou sistema-mundo, e todas as vicissitudes a isso relacionadas, cf.: Tomich (2011, p. 69-97), Cardoso (2003), Arrighi (2013), Schwarz (2012), Fernandes (2006). -, funciona como fim de si mesma. Corroborando com a tese aqui intentada, o mesmo autor diz que a composição das rixas, possibilitada por uma estrutura baseada na lógica do favor comum à lógica da sociedade fundada na escravidão, colabora para a manutenção e reprodução de uma ordem social opressora. Mesmo a satisfação do indivíduo pobre por conta de seu triunfo pessoal “não deixa de ser também o seu fracasso (no plano coletivo), pois a luta pela sobrevivência acaba por contribuir para a reprodução da ordem social que o oprime. Assim, a rixa revela na malandragem a sua dimensão sombria” (OTSUKA, 2007OTSUKA, Edu Teruki. Espírito rixoso: para uma reinterpretação das Memórias de um sargento de milícias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 44, fev. 2007, p. 105-124. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901x.v0i44p105-124.
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, p. 122).

Ainda que não seja o princípio capitalista-liberal em seu estado de “pureza” (ideológica), que racionaliza as relações a partir da forma-mercadoria, nela refletida a complexidade de uma totalidade social fragmentada, reificada e unificada a partir dessa mesma forma10 10 À noção aqui explorada como forma e método, ainda que no caso presente as mediações não sejam as mesmas e específicas ao objeto ora estudado, são interessantes a “Introdução” dos Grundrisse, de Marx (2011), na qual são abordadas questões de método, forma, mediações e especificidade do objeto; e os textos de Adorno (1995; 2003). Além desses, os textos de Postone (2014) e Negt e Kluge (1999), que levam a cabo uma interpretação do movimento do capital, da abstração da forma-mercadoria e sua “dominação abstrata” na sociedade capitalista tardia. Além desses autores, interessam as formas interpretativas - que aqui se seguiram mais ou menos de perto - de autores que tomam o método de Marx - a dialética - como forma para interpretações inovadoras, seja da sociedade brasileira, da escravidão ou do mundo capitalista (cf. CARDOSO, 2003; TOMICH, 2011; WOOD, 2014; ARRIGHI, 2013). , tornando os sujeitos quase completamente heterônomos dentro dessa ordem, há uma ordem no entrelaçamento entre liberalismo - específico e bastante peculiar - e escravidão: relações de favor convivendo com necessidade de racionalização econômica; monarquia e princípio liberal; burguês e senhor de escravo etc. Em suma, as ideias fora do lugar que engendram uma forma peculiar para que sobrevivam e ordenem a realidade de tal jeito, ainda que à revelia das práticas e da ideologia liberal oficial europeia11 11 Quanto à discussão sobre “As ideias fora do lugar” (SCHWARZ, 2012), se estariam mesmo fora - a partir do debate levado a cabo por Maria Sylvia de Carvalho Franco (1976) -, veja-se o artigo de Júlio Cezar Bastoni da Silva (2015), no qual o autor aborda a história do referido debate de modo bem elaborado, trazendo outros diversos autores que também versaram sobre a questão. Também interessa a retomada do próprio Roberto Schwarz sobre a questão, num texto de 2009 no qual fala, grosso modo, sobre o absurdo das interpretações que levaram seu título - Ideias fora do lugar - ao pé da letra, não percebendo a incongruência social e teórica de uma tese de teor literal sobre a “discrepância” e o “anacronismo” entre ideias e realidade; aliás, a ironia fina do título remete, igualmente, à ironia machadiana (cf. SCHWARZ, 2012b). . Ou seja, como diz Schwarz (2012, p. 20)_____. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 6. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012.:

No momento da prestação e da contraprestação - particularmente no instante-chave do reconhecimento recíproco - a nenhuma das partes interessa denunciar a outra, tendo embora a todo instante os elementos necessários para fazê-lo. Esta cumplicidade sempre renovada tem continuidades sociais mais profundas, que lhe dão peso de classe: no contexto brasileiro, o favor assegurava às duas partes, em especial à mais fraca, de que nenhuma é escrava. Mesmo o mais miserável dos favorecidos via reconhecida nele, no favor, a sua livre pessoa, o que transformava prestação e contraprestação, por modestas que fossem, numa cerimônia de superioridade social, valiosa em si mesma. Lastreado pelo infinito de dureza e degradação que esconjurava - ou seja a escravidão, de que as duas partes beneficiam e timbram em se diferençar - este reconhecimento é de uma conivência sem fundo, multiplicada, ainda, pela adoção do vocabulário burguês da igualdade, do mérito, do trabalho, da razão.

Um dos motivos pelos quais isso se dava era porque se tratava de uma “ordem dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma desordem vivaz [...]. Sociedade na qual uns poucos livres trabalhavam e os outros flauteavam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificências, da sorte ou do roubo miúdo” (CANDIDO, 2015_____. Dialética da malandragem. In: _____. O discurso e a cidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015, p. 17-47., p. 38). Uma “ordem dificilmente imposta e mantida” não é uma ordem, mas um aspecto formal e parcial - um momento, dialeticamente falando - de algo maior.

Desse modo, o que cabe, aqui, é pensar como o que se chamou de metaordem - a ordenação universal e abstrata daquela sociedade - compôs um traço de caráter histórico e objetivo dos indivíduos e como, por ser objetivo, aparece como estrutura constitutiva, como nexo mediador, em outros textos literários.

Na análise de O cortiço (1997), de Aluísio de Azevedo, Antonio Candido (2015a)_____. De cortiço a cortiço. In: _____. O discurso e a cidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015a, p. 107-132. se vale do mesmo método de redução estrutural. Contudo, agora a dialética social em jogo é a do espontâneo e dirigido12 12 É importante observar que O cortiço é de 1890, época na qual as relações de cunho capitalista já estavam razoavelmente mais presentes (não quer dizer mais desenvolvidas), isso tomado em relação às Memórias de um sargento de milícias, que é de 1852. . Aí entra em jogo a racionalização capitalista, dada na figura do português João Romão. Todavia, parece que a dialética aí estruturante - do espontâneo e do dirigido - é entrecortada pela dialética da ordem e da desordem13 13 Ambas as formas dialéticas de interpretação podem se entrelaçar, sem se confundirem, e agir unidas numa mesma situação - seja na composição da forma literária ou, vice-versa, na interpretação da realidade social. Quanto a isso, cf. Candido (2000, p. 5-35). . No dito dos três pês, que é um achado de Antonio Candido (2015, p. 111)_____. Dialética da malandragem. In: _____. O discurso e a cidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015, p. 17-47. - “para português, negro e burro, três pês: pão para comer, pano para vestir, pau para trabalhar” -, uma troça racista e xenófoba da época, não se pode dizer que a rixa, a necessidade de uma supremacia qualquer, com fim em si mesma, tem lugar? Não há, igualmente, uma carência de uma espécie de reconhecimento, ainda que podado na raiz já que suas consequências para a formação da subjetividade não existem socialmente e não há qualquer avanço em relação à sociabilidade14 14 Sobre o reconhecimento recíproco intersubjetivo e suas possibilidades de efetivação na sociedade capitalista, cf. Xavier (2014; 2015; 2015a). Quanto ao mesmo assunto, só que na realidade brasileira, cf. Schwarz (2012). ? Além disso, João Romão para “ganhar a vida”, no sentido capitalista, oscila entre a ordem e a desordem: “João Romão é um taverneiro português, fanaticamente acumulador, que não tem medo de trabalhar pesado, de se privar de tudo, de roubar o que for possível, ou de amigar-se com uma escrava, a quem usa de todas as maneiras” (SCHWARZ, 2014_____. Adequação nacional e originalidade da crítica. In: _____. Sequências brasileiras: ensaios. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 27-53., p. 43). O elemento capitalista - a sociabilidade capitalista e a determinação abstrata e objetiva do capital em relação às condutas e à formação das subjetividades - é reorganizado conforme padrões e determinações locais - e sob as relações desordenadas que se desenvolveram e deram forma ao Brasil da época15 15 Não se trata, aqui, de desdobrar o debate, de longo alcance, sobre se havia capitalismo no Brasil Imperial. O que se considera é que havia formas espirituais, uma totalidade que compunha, por dentro, as relações sociais. Além disso, como dito acima (cf. notas 9 e 10), deve-se considerar a inserção do Brasil na economia-mundo capitalista, sendo composto, igualmente, por forças sociais do capitalismo mundial. Ainda que isso não impactasse tão direta e concretamente nas relações sociais, incidia na configuração do sistema escravista como um todo e, consequentemente, na totalidade brasileira (cf. ARRIGHI, 2013; TOMICH, 2011; WOOD, 2014; FERNANDES, 2006). .

Levando o indivíduo a querer sair por cima, triunfar de alguma maneira, angariar algum benefício de modo lícito ou ilícito, o dito dos três pês, diz Antonio Candido, revela mais em si do que se poderia captar à primeira vista:

O tipo de gente que o enunciava sentia-se confirmada por ele na sua própria superioridade. Essa gente era cônscia de ser branca, brasileira e livre, três categorias bem relativas, que por isso mesmo precisavam ser afirmadas com ênfase, para abafar as dúvidas num país onde as posições eram tão recentes quanto a própria nacionalidade, onde a brancura era o que ainda é (uma convenção escorada na cooptação dos “homens bons”), onde a liberdade era uma forma disfarçada de dependência.

Daí a grosseria agressiva da formulação, feita para não deixar dúvidas: eu, brasileiro nato, livre, branco, não posso me confundir com o homem de trabalho bruto, que é escravo e de outra cor; e odeio o português, que trabalha como ele e acaba mais rico e mais importante do que eu, sendo além disso mais branco. Quanto mais ruidosamente eu proclamar os meus débeis privilégios, mais possibilidades terei de ser considerado branco, gente bem, candidato viável aos benefícios que a Sociedade e o Estado devem reservar aos seus prediletos.

Se estiver na camada de cima, asseguro deste modo a minha posição e desmascaro os que estão por baixo: portugueses pobres, gente de cor, brancos do meu tipo que podem cobiçar o meu lugar. Se estiver em camada inferior, devo gritar ainda mais alto, para me fazer como os de cima e evitar qualquer confusão com os que estão mais abaixo. Por isso eu empurro o meu vizinho de baixo e sou empurrado pelo de cima, todos querendo sofregamente ganhar o direito de serem reconhecidos nos termos implícitos do dito espirituoso. Uma espécie de brincadeira grossa de gata-pariu, onde cada um procura desalojar o vizinho e da qual saem sempre expulsos o mais fraco, o menos branco, o que se envolve mais pesadamente no processo de produção. Sórdido jogo, expresso neste e outros mots d’esprit [a piada dos pês], que formam uma espécie de gíria ideológica de classe, com toda a tradicional grosseria da gente fina. (CANDIDO, 2015a_____. De cortiço a cortiço. In: _____. O discurso e a cidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015a, p. 107-132., p. 115).

Quanto ao tratamento que Antonio Candido dá às Memórias é interessante notar alguns aspectos: 1) mesmo aqueles que ocupam o campo da ordem transitam ao oposto quando necessário - e necessidade, aqui, pode ser uma contingência pessoal; 2) o major Vidigal que, segundo Candido (2015, p. 36)_____. Dialética da malandragem. In: _____. O discurso e a cidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015, p. 17-47., “é a encarnação da ordem, sendo manifestação de uma consciência exterior”, cede ao mundo da desordem quando algum benefício particular - e ilícito - lhe acena; comete mais outros atos ilícitos por conta daquele suposto benefício que tais atos lhe trariam; 3) Leonardo, o herói, afinal se estabelece no plano da ordem; entretanto somente enquanto aquilo satisfizer suas necessidades (ou quase suas, pois os livres e pobres estão sempre na dependência de uma situação que não controlam, mas precisam, em última instância, sobreviver, custe o que custar).

Qual, então, a consciência exterior que se manifesta no major Vidigal, senão uma ordem acima da ordem encarnada por ele mesmo? Além disso, aquela ordem, na qual as coisas em maior ou menor grau se autonomizam, carrega em si alguma possibilidade de experiência formativa da subjetividade - ainda que unidimensional na medida em que as escolhas individuais feitas são limitadas pela lógica do favor, da dependência, da configuração específica das relações sociais etc., isto é, limitadas pelo movimento em falso da sociedade da época?

Da “Dialética da malandragem” não é possível extrair uma racionalização maior da malandragem. Ali, “a leitura da ficção sobre fundo real e vice-versa encontra o seu limite, do lado real, na simpatia de Antonio Candido pelo universo que estuda” (SCHWARZ, 2006SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da malandragem”. In: _____. Que horas são?: ensaios. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 129-55., p. 152). Ou, dito de outro modo: “Candido respeita tanto o brasileiro pobre que aborda as figuras populares com uma reverência quase mística” (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, Francisco de. Jeitinho e jeitão. In: _____. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 137-46., p. 139). Mesmo assim, é preciso lembrar que o romance de Manuel Antônio, ainda que permita entrever a sociedade em sua forma, não dá respaldo para generalizações de cunho sociológico e totalizante sobre o caráter subjetivo do brasileiro - embora no fim do ensaio Antonio Candido tenha intentado algo nesse sentido16 16 Às observações de Antonio Candido, um tanto otimistas e que parecem relegar a própria teorização anterior do ensaio sobre a burla etc., pode-se contrapor a análise de Schwarz (2006). .

Em outra chave interpretativa, ainda que sobre o mesmo tema - a dubiedade da subjetividade brasileira em relação à objetividade que lhe dá respaldo -, Francisco de Oliveira fez progredir sua interpretação de modo objetivo, de uma perspectiva histórico-sociológica, levando em consideração mediações objetivas que dariam bases para a formação da subjetividade brasileira. Em suma, a burla foi a saída dúbia das classes dominantes brasileiras para alavancar o capitalismo de molde europeu sem os respaldos formais e legais de uma revolução burguesa que poderia trazer não só as “benesses” do processo capitalista, mas suas formalidade e legitimidade civilizacionais17 17 É claro que essa formulação é sumária, não captando a complexidade do processo como um todo. Sobre esse processo, sobre o qual aqui não cabe discussão aprofundada por fugir ao tema, e acerca da revolução burguesa no Brasil, também ela específica e feita à imagem da classe dominante brasileira - a aristocracia latifundiária e congêneres -, dando um jeitinho, veja o clássico de Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil (2006), especialmente os capítulos 2, 4 e 5. . Assim, diz ele: “o jeitinho é um atributo das classes dominantes brasileiras transmitido às classes dominadas” (OLIVEIRA, 2018OLIVEIRA, Francisco de. Jeitinho e jeitão. In: _____. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 137-46., p. 139).

Avançando em relação à teorização de Candido, pode-se conceber algo como uma racionalização da malandragem. Se o jeitinho é um atributo da classe dominante legado às classes dominadas, racionalizado de uma forma peculiar naquela e nestas, pode-se dizer que há uma consciência sobre a escolha, sobre a fluidez entre as esferas de ordem e desordem. Mesmo os dependentes e dominados reelaboram a realidade conforme suas próprias necessidades individuais, ainda que dentro de limites que os transcendem, e fazem uso consciente das opções que lhes são dadas. Nada de subjetivo indica que tenha de haver, apesar da forma das determinações objetivas e do ritmo geral da sociedade, uma escolha pelo trânsito - resoluções e ações ora no plano da ordem, ora no da desordem. Se for plausível a ideia de que se reelaboram as possibilidades de ação, ainda que dentro de limites socialmente estabelecidos, então é igualmente aceitável pensar que a malandragem, esse esgueirar-se entre os planos para, entre outras coisas, sobreviver de um modo específico - mas, reiterando, não único -, ganha em qualidade. Um plus na malandragem, um mundo com culpa internalizada, já que o indivíduo sabe quando está fora da ordem, ainda que para cumpri-la. A decisão acerca das possibilidades - reforçando: limitada pelas configurações sociais e de classes -, o trânsito consciente que visa uma supremacia ou um benefício qualquer, coloca a malandragem em outro patamar. Ela não é um movimento automático; tampouco uma imposição social absoluta. A malandragem vai para além do trânsito necessário entre ordem e desordem, entre esferas díspares entre si e mutuamente condicionantes. A malandragem é ação consciente do indivíduo, uma formação dependente de sua ação, razoavelmente calculada. Depende, é claro, das configurações de estamentos e classes sociais. Sendo forma mais que conteúdo, a malandragem pode adquirir diversas figuras de acordo com cada situação. De todo modo, a culpa internalizada se esvanece, pois é assim que a coisa acontece e é preciso que se aja de acordo. Ao mesmo tempo sabe-se, ainda que não se tenha consciência completa das consequências, que as idas e vindas aos domínios da ordem e da desordem são culpabilizáveis e trazem a marca da desordem geral; as imprescindíveis idas e vindas, apesar de trazerem as marcas da organização da sociedade, são compensadas, e justificadas suas desculpas, pelo ganho individual e por coadunar, formalmente, com aquela metaordem.

Volubilidade e racionalidade: uma reformulação da malandragem

Em Machado de Assis18 18 Interessante notar, grosso modo - ainda que este não seja o foco do artigo -, que, na Formação da literatura brasileira (CANDIDO, 2014), páginas 436-437, especialmente, Antonio Candido vê Machado de Assis como a forma acabada do desenvolvimento formativo da literatura brasileira. , a redução estrutural dessa malandragem a mais se dá na medida em que a forma literária reflete e reelabora a estrutura da sociedade, especialmente em seus romances e contos da fase pós Memórias póstumas19 19 Memórias póstumas de Brás Cubas (ASSIS, 2001) marca, a partir de 1880-1881, a virada machadiana de maturidade (cf. SCHWARZ, 2012; 2012a). . Schwarz (2012a)_____. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012a. desenvolve isso sob o signo da “volubilidade”. O amálgama de ambas - malandragem e volubilidade - desemboca nessa malandragem racionalizada que aqui está se propondo. Isso porque não se trata de ações e formas de vida que desconsideram a vontade individual, mesmo que não se limite a ela. Toma-se a vontade individual como produto da sociabilidade oitocentista e da limitação estrutural da sociedade.

Nesse âmbito, a cena final do conto “Pai contra mãe” (ASSIS, 2008a_____. Pai contra mãe. In: _____. Páginas recolhidas; Relíquias de casa velha. Edição preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes, 2008a, p. 113-30.) reflete a consciência sobre a ação e suas consequências, a “supremacia qualquer” sobre outro qualquer e a justificativa, se não legitimação, do ato. Cândido Neves, após capturar uma escrava fugida, receber a recompensa prometida na entrega ao dono e reaver seu filho que iria para a “roda dos enjeitados” por conta de sua situação financeira adversa, “abençoava” a fuga da escrava por ter-lhe propiciado a captura - a contingência que lhe deu a possibilidade do ganho - e “não se lhe dava do aborto”, que a escrava havia sofrido no meio do castigo (espancamento) que recebia do dono. A expressão final é lapidar: “‘Nem todas as crianças vingam’, bateu-lhe o coração” (ASSIS, 2008a_____. Pai contra mãe. In: _____. Páginas recolhidas; Relíquias de casa velha. Edição preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes, 2008a, p. 113-30., p. 130). Ora, mas por que tudo isso? Por qual motivo Candinho havia se regozijado, aliviando-se?

Cândido Neves - em família, Candinho - é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade [...]. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante [...]. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos. (ASSIS, 2008a_____. Pai contra mãe. In: _____. Páginas recolhidas; Relíquias de casa velha. Edição preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes, 2008a, p. 113-30., p. 115-116).

Candinho, expressão acabada de certa volubilidade (SCHWARZ, 2012a_____. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012a.) no andar de baixo; expressão, esta, de acordo com as condições de classe, da organização social da época. Aqui são interessantes alguns aspectos: projetava o enriquecimento fácil e rápido - frustrado pela configuração das condições sociais; não se atinha a nada, exatamente pela “vontade” de rapidez no ganho; passou a capturar escravos fugidos por conta tanto do ganho fácil, quanto pela irregularidade do serviço (certa liberdade; capacidade de ser o chefe de si mesmo, dependendo somente de si, ainda que ligado a certo gosto em servir - marca distintiva de prestígio social dos agregados; pela glória momentânea e remunerada quando da entrega do fugido; etc.). Volubilidade e fluidez de caráter e de ações que se mantêm exatamente pelo seu contrário: pela fixidez de algo abstrato - nesse caso, o sonho de enriquecimento rápido e fácil, sem muito esforço; e a manutenção, ainda que inconsciente, da ordem social. “Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa [...] por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.” (ASSIS, 2008a_____. Pai contra mãe. In: _____. Páginas recolhidas; Relíquias de casa velha. Edição preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes, 2008a, p. 113-30., p. 121).

A “formalização estrutural” da sociedade no conto remete à ligação do fim com o início, além do entrecho20 20 Machado, geralmente colocado como aquele que transitou livremente, em seus romances e contos, pela alma da burguesia/aristocracia, aqui muda o foco. Isso possibilita, inclusive, ver aquilo que Chico de Oliveira diz sobre o legado da classe dominante às dominadas e, além disso, perceber que tal legado não é apenas direto e concreto, como modos de ser e de se portar; antes, são formas abstratas que, diluídas e perfazendo o núcleo da totalidade social constituída, condicionam - se não determinam - os indivíduos a certos modos, impõem-lhes certos limites, conferem dadas expectativas e possibilidades de ser; em suma, mesmo a dependência pessoal cria uma atmosfera espiritual na qual aquilo que é não precisa ser dito. É a partir desse aspecto, apesar de tudo, das formas abstratas que estão postas nuclearmente na totalidade social e irradiam para todos os lados, que é, inversamente, possível naturalizar os dados, dizer que o caráter não é construção histórico-social, anulando mediações - que é um dos motes da ideologia (num sentido adorniano - a ideologia sendo a própria sociedade). A título de exemplo, no conto “O espelho” (MACHADO, 2005b), da década de 1880, a farda de alferes - “Alferes da Guarda Nacional (a tropa de reserva que no Brasil imperial se tornou bem cedo um simples pretexto para dar postos e fardas vistosas a pessoas de certa posição)” (CANDIDO, 2011, p. 24) - conferia ao personagem reconhecimento social à frente do espelho, isto é, sozinho. Certa “integridade psicológica” dele dependia disso - de uma abstração, ligada ao favor, ao reconhecimento, à “supremacia qualquer” (nesse caso, supremacia qualquer igualmente abstrata, pois pressupunha os outros ao mesmo tempo que dispensava sua presença física). . Logo nas primeiras linhas se diz: “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais” (ASSIS, 2008a_____. Pai contra mãe. In: _____. Páginas recolhidas; Relíquias de casa velha. Edição preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes, 2008a, p. 113-30., p. 113). Isto é: a escravidão levou consigo algumas coisas. Mas, modos de ser, tipos de relação, em suma, formas, mantiveram-se e estão aí, vivas. São elas que perfazem o enredo do conto e, ainda mais, apontam para um dado extraliterário.

No parágrafo anterior àquele no qual se mostra a não fixidez e a fluidez consciente de Candinho, há outras implicações interessantes:

Ora, pegar escravos fugidos era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem. (ASSIS, 2008a_____. Pai contra mãe. In: _____. Páginas recolhidas; Relíquias de casa velha. Edição preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes, 2008a, p. 113-30., p. 115 - grifos meus).

A parte trágica da oscilação ordem-desordem é a manutenção da ordem opressora (OTSUKA, 2007OTSUKA, Edu Teruki. Espírito rixoso: para uma reinterpretação das Memórias de um sargento de milícias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 44, fev. 2007, p. 105-124. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901x.v0i44p105-124.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-901x....
, p. 122). Embora a consciência existente não dê conta de compreender as relações e suas consequências nefastas por e para si mesma, é ela quem aceita e leva a cabo as determinações sociais, ainda que opressoras e prejudiciais também para aquele que age. Um ciclo dialético: uma necessidade, socialmente criada, gera outra necessidade que, por sua vez, retroalimenta a primeira da série. O “pôr ordem à desordem”, no fim das contas, sustém a sociedade tal como está, inclusive ampara e mantém a situação abissal, no conto, do personagem principal e sua família.

Por seu turno, Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó (ASSIS, 2012_____. Esaú e Jacó. Introdução e notas Hélio Guimarães. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.), não são formas de um caráter objetivo fluido? De uma volubilidade elevada à objetividade social? Formas quase irreconciliáveis, convivendo numa harmonia truncada? São gêmeos, e poderiam ser um só: a monarquia e o liberalismo, a violência e a dissimulação, a racionalidade e a mistificação vinculadas de modo dissonante, contudo unidas umbilicalmente. Imagens da ordem e da desordem, do espontâneo e do dirigido que não precisam ser resolvidas: não se trata de escolher entre um e outro; é a convivência da harmonia dissonante, gêmea, sob o mesmo teto, mesmo sangue, com mesmo caráter etc., filhos da mesma mãe - mãe, aliás, muito devota que vai à cabocla (cf. SCHWARZ, 2014a_____. Dança de parâmetros. Novos Estudos Cebrap, v. 100, nov. 2014a, p. 163-68. https://doi.org/10.1590/s0101-33002014000300009.
https://doi.org/10.1590/s0101-3300201400...
) -, mesmo pai - que, não obstante, racionaliza quase todos seus passos, porém é ingênuo: calcula a missa do parente para que não se dê à vista de nenhum conhecido, e se abre ao Conselheiro Aires sobre a consulta à cabocla e extrai a conclusão que quer daquela conversa insipiente e retórica do Aires. Aliás, Aires é um pouco da encarnação dos conselhos que são dados a Janjão na “Teoria do medalhão” (ASSIS, 2005a_____. Pai contra mãe. In: _____. Páginas recolhidas; Relíquias de casa velha. Edição preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes, 2008a, p. 113-30.), expressão maior da consciência e do cálculo da ação malandra: não se envolve profundamente em nenhum assunto nem toma partido, ainda que participe de todas as conversas etc.:

Aires não pensava nada, mas percebeu que os outros pensavam alguma coisa, e fez um gesto de dois sexos. Como insistissem, não escolheu nenhuma das duas opiniões, achou outra, média, que contentou a ambos os lados, coisa rara em opiniões médias. Sabes que o destino delas é serem desdenhadas. Mas este Aires - José da Costa Marcondes Aires - tinha que nas controvérsias uma opinião dúbia ou média pode trazer a oportunidade de uma pílula, e compunha as suas de tal jeito, que o enfermo, se não sarava, não morria, e é o mais que fazem pílulas. Não lhe queiras mal por isso; a droga amarga engole-se com açúcar. Aires opinou com pausa, delicadeza, circunlóquios, limpando o monóculo ao lenço de seda, pingando as palavras a graves e obscuras, fitando os olhos no ar, como quem busca uma lembrança, e achava a lembrança, e arredondava com ela o parecer. Um dos ouvintes aceitou-o logo, outro divergiu um pouco e acabou de acordo, assim terceiro, e quarto, e a sala toda.

Não cuides que não era sincero, era-o. Quando não acertava de ter a mesma opinião, e valia a pena escrever a sua, escrevia-a. Usava também guardar por escrito as descobertas, observações, reflexões críticas e anedotas, tendo para isso uma série de cadernos, a que dava o nome de Memorial. (ASSIS, 2012_____. Esaú e Jacó. Introdução e notas Hélio Guimarães. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012., p. 56-7).

Aires não é a expressão de uma volubilidade acabada? A oscilação, da classe dominante, não entre ordem e desordem, mas entre manutenção de si e das condições que a projetam e a sustentam, razoavelmente isenta de valoração e de querelas, por um lado e, por outro, inócua, não causando nada de prático, nenhuma mudança substantiva - mudança que poderia, inclusive, abalar sua própria posição?

Pedro e Paulo podem ser a inconciliável conciliação brasileira da segunda metade do século XIX: monarquista e liberal convivendo sobre base escravista. Liberalismo que se fazia valer com as condições locais e não prescindindo destas, até as aprofundando; monarquismo que visava mercado externo, inserção no capital internacional, expansão do comércio etc.

O pai, Santos, também encarna a oscilação entre esferas aparentemente díspares. É banqueiro - isto é, racional, pelo menos instrumentalmente (para usar um anacronismo) - e, ao mesmo tempo, crê na cabocla e nas “coisas futuras”21 21 Quanto a isso, veja-se também o conto “A cartomante” (ASSIS, 2004), especialmente a passagem final. . Além do mais, a cena em que passa pelo Palácio Nova Friburgo é emblemática tanto da fluidez de caráter - fluidez e fixidez concomitantemente - quanto do egoísmo, do autocentramento e da utilização da esfera pública e do espaço público: o palácio era para ser visto e invejado, mais ainda seu dono e habitante. Em “O alienista”22 22 Aliás, “O alienista” é recheado de episódios exemplares. Não é a intenção aqui explorar à exaustão. Todavia, dois desses episódios são emblemáticos. No primeiro, no capítulo VII, “O inesperado” (ASSIS, 2005, p. 48-53), o barbeiro, líder da “revolta dos Canjicas”, ao tomar o poder, muda completamente seu caráter, seus objetivos, os objetivos populares etc., por conta da “casca” nova que envergava. Por fim, deposto, tudo volta a ser como era, como antes. O segundo episódio se dá ao fim, no capítulo XIII, “Plus ultra!” (ASSIS, 2005, p. 75-83): Bacamarte interna a si próprio por constatar que era o único... normal! Ora, a constatação era de que qualquer que fosse a configuração da sociedade, somente aqueles que oscilassem constantemente entre esferas contrapostas, seja de ordem moral, psíquica ou política, é que conseguiriam viver. Bacamarte, único são, morre sete meses depois. há cena semelhante: Mateus, que constrói uma casa suntuosa e toda dissonante - mobília da Hungria e da Holanda na casa de um fazedor de selas de cavalo de carga23 23 Esse tipo de dissonância é um tema recorrente em Machado. Veja-se, por exemplo, a breve análise que Roberto Schwarz faz, em “Duas notas sobre Machado de Assis” (2006a, p. 170), sobre o pavão no quintal de Barbacena. : “Agora lá está o Mateus a ser contemplado, diziam à tarde” (ASSIS, 2005_____. O Alienista. In: _____. Papéis avulsos. Edição preparada por Ivan Teixeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5-83., p. 31). No capítulo IX de Esaú e Jacó:

Ao passar pelo Palácio Nova Friburgo, levantou os olhos para ele com o desejo do costume, uma cobiça de possuí-lo, sem prever os altos destinos que o palácio viria a ter na República; mas quem então previa nada? Quem prevê coisa nenhuma? Para Santos a questão era só possuí-lo, dar ali grandes festas únicas, celebradas nas gazetas, narradas na cidade entre amigos e inimigos, cheios de admiração, de rancor ou de inveja. Não pensava nas saudades que as matronas futuras contariam às suas netas, menos ainda nos livros de crônicas, escritos e impressos neste outro século. Santos não tinha a imaginação da posteridade. Via o presente e suas maravilhas.

[...] Oh! gozo infinito! Santos imaginava os bronzes, mármores, luzes, flores, danças, carruagens, músicas, ceias... Tudo isso foi pensado depressa, porque a vitória, embora não corresse (os cavalos tinham ordem de moderar a andadura), todavia, não atrasava as rodas para que os sonhos de Santos acabassem. (ASSIS, 2012_____. Esaú e Jacó. Introdução e notas Hélio Guimarães. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012., p. 49-50 - grifos meus).

A dissonância das ações - as quais tanto não possuem resolução harmônica, quanto oscilam entre esferas díspares que só podem se coadunar vista a formação em curso das relações brasileiras - se resolve num presente presentificado. Pouco importa o futuro. Também não importa que a abstração de Santos fosse relativa a qualquer futuro. A cena se dá no presente, e serve ao giro em falso de um presente que permanece. Este, então, tem sua síntese na figura do homem, é seu adorno e seu caráter que estão ali, sem precisar, aparentemente, de fundações que tanto engendrem quanto sustentem a si24 24 Quincas Borba (ASSIS, 1997) é recheado dessas imagens, de reviravoltas que Rubião, personagem principal do romance, dá em si mesmo para sempre estar no presente vivo. Apesar de acabar mal no final, são tais movimentos entrecortados que dão o tom do romance. Entre tantas imagens, a título de exemplo, no capítulo XLVII (p. 50-51) Rubião vai procurar numa memória passada, de um enforcamento de um negro em praça pública que havia assistido, regozijo para sua situação presente, como uma catarse que purifica sua atualidade. Entretanto, a cena da memória é interrompida pelo cocheiro, que o traz de volta desse sonho pessoal e singular - tudo se passou depressa para que seus sonhos acabassem, ainda que à sua revelia. Olhando brevemente o capítulo e os imediatamente anterior e posterior, vê-se que a cena do enforcamento não tem outra valia a não ser o regozijo e a afirmação da pessoa de Rubião; além disso, o presente domina com uma força tal que o personagem vê a si mesmo como centro de toda trama, como se todas as mazelas que ocorrem - mesmo um enforcamento em praça pública, que, aliás, se justifica a Rubião pela vileza do réu - fossem ressignificadas e absorvidas para sua catarse formativa. O passado importa ao presente; o futuro pouco importa. O andamento frenético - e os cocheiros dizendo do tempo que se leva de um lugar a outro atesta também isso - corrobora para o presente presentificado, para o corte ríspido da continuidade, para a escolha mais ou menos consciente acerca das possibilidades, limitadamente abertas. Por fim, para o que aqui interessa, a força do espectro da escravidão - e suas relações naturalizadas - está ali presente. A situação serve à sustentação do caráter e da sanidade de Rubião, como catarse, purificação de sua alma, recentramento de sua pessoa. . Aparentemente, pois a sustentação se dá na totalidade daquela sociedade, nos jogos de poder, na elevação da aparência ao status da única coisa que importa - aliás, o pensar sobre o futuro dos filhos se agarrava nisso -, aparência como totalidade do indivíduo, como seu caráter - tal como no conto “O espelho” (ASSIS, 2005b_____. Pai contra mãe. In: _____. Páginas recolhidas; Relíquias de casa velha. Edição preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes, 2008a, p. 113-30.)25 25 Isso indica, entre outras coisas, que há temas transversais em Machado de Assis. E os há por conta de uma formalização estrutural da sociedade em suas obras, especialmente as de maturidade. . Como toda aparência, movente, inconstante; em uma palavra, volúvel. O último grifo - “Tudo isso foi pensado depressa, [...] para que os sonhos de Santos acabassem” - destaca o cerne de volubilidade e fluidez. Estas se conciliam na convivência desarmônica entre racionalidade burguesa e esfera pública como extensão do indivíduo autocentrado (egoísta). Convivência desarmônica que não é fruto do acaso. Depende de uma estrutura - que aqui se chamou de metaordem - de produção e sustentação de relações sociais que possibilite, igualmente, uma produção específica, e objetiva, das subjetividades.

Nesse âmbito, as próprias relações que poderiam ser formalmente civilizadas, como indica Chico de Oliveira (2018, p. 139 e ss.)OLIVEIRA, Francisco de. Jeitinho e jeitão. In: _____. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 137-46., não o são por conta das mediações que as perfazem. Relações baseadas na familiaridade e no favor e fundadas no espectro da escravidão engendram um viés aparentemente mais humanizado, pela maior proximidade entre as pessoas - proximidade nada espontânea, diga-se -, porém mais nefasto. A própria esfera pública, nas quais vigorariam relações mais ou menos isentas das características privadas, é impossibilitada de se formar. Onde, nesse sentido, colocar os planos da ordem e da desordem, se inclusive eles são volúveis, alternam conforme a vontade daqueles que dão o tom da “ordem”? A tentativa de Antonio Candido ao final de seu ensaio, projetando essas características malemolentes como aspectos positivos em vista de uma sociedade mais aberta, acaba por ser falseada na medida em que o jeitinho, a volubilidade, a malandragem dependem do arbítrio do indivíduo de poder. Além do mais, as classes dominadas acabam por depender, também, do arbítrio daqueles que fazem funcionar a esfera e as relações públicas como momentos privados, extensões de seus caracteres individuais. Os de baixo, mesmo à mercê, não deixam de copiar essa volubilidade, reelaborando-a a sua maneira e dentro de seus limites, conscientemente até certo ponto. Cópia bem entendida: uma ideologia que independe do mando pessoal, ainda que o pressuponha. Talvez seja aqui que o sadismo de mando (FREYRE, 2004FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49. ed. São Paulo: Global, 2004. , p. 104 e ss.), característico de quem tem algum poder num tipo de sociedade como esta, abstrai-se e torna-se lugar-comum, pressuposto da formação e do estabelecimento individual visando a “uma supremacia ou um benefício particular qualquer”.

Por conseguinte, a forma com que, nos capítulos II e, especialmente, III, de Esaú e Jacó (ASSIS, 2012_____. Esaú e Jacó. Introdução e notas Hélio Guimarães. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012., p. 31-35), o “irmão das almas” dá uma reviravolta em si mesmo para se convencer de que a grande quantia dada em esmola por Natividade (mãe dos gêmeos) deveria ser sua é, mais uma vez, um aspecto de volubilidade e fluidez de caráter: as ideias e as normas morais, que parecem ter rigidez e que são seguidas com rigor, tornam-se maleáveis e, por fim, completamente líquidas quando encontram qualquer coisa que as possa suplantar e, ao mesmo tempo, justificar e legitimar - de maneira racional e lógica, firmada nos mesmos pressupostos sociais. Em Machado é, igualmente, esse o caso do enfermeiro ao final do conto homônimo (ASSIS, 2004b_____. O enfermeiro. In: _____. Várias histórias. Edição preparada por Hélio de S. Guimarães. São Paulo: Martins Fontes, 2004b, p. 133-149.). Com tudo isso parece haver aqui uma elevação exponencial por parte da forma narrativa machadiana em relação à convivência quase harmoniosa entre ordem e desordem.

Ora, a formalização estrutural se dá, em suma, em alguns elementos: a) uma justificação mais ou menos racional para a burla - entendendo-se por racional aquilo que coaduna com a objetividade social que, por conta de sua construção dúbia e peculiar, permite as alternâncias caso a caso; b) a ordem estabelecida e sua contrapartida engendram e são engendradas por uma ordenação abstrata, uma metaordem; c) universalização do presente - que se chamou aqui de presentificação do presente - na qual a intenção é qualquer satisfação pessoal imediata; d) supremacia sobre os demais: importam mais os ganhos individuais que satisfaçam a sede de supremacia - para os de cima, constituição de uma esfera pública como autoimagem, ou de sua autoimagem como objetivação de si; para os de baixo, um tipo de sobrevivência que se dê com algum benefício individual, ainda que ao custo de si mesmo.

Uma última imagem desse percurso pode ser vista no conto “Ideias de canário”. Trata-se de um canário supostamente falante, comprado por tal Macedo numa loja de rua, a partir de uma situação contingente. Macedo, ao saber do “poder” do canário, compra-o na intenção do ganho fácil e rápido - ganho tanto financeiro quanto, especialmente, de status: “Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com minha extraordinária descoberta”26 26 Essa ideia de sucesso por conta de algo que poderia “assombrar o século” também é recorrente em Machado. Veja-se o capítulo II, “O emplasto”, das Memórias póstumas de Brás Cubas (ASSIS, 2001, p. 71). (ASSIS, 2008_____. Ideias de canário. In: _____. Páginas recolhidas; Relíquias de casa velha. Edição preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 81-88., p. 85).

Contudo, o canário, à revelia das intenções de Macedo, além de se achar dono do mundo - isto é, tudo a sua volta era feito para si; todos estavam abaixo de si -, vivia num presente sem restrições, no qual cada definição e cada ação prescindiam de passado e futuro. Depois de ter dito, na loja na qual foi adquirido, que o mundo era aquela loja de belchior, o senhor da loja seu criado, e que o mundo se resumia àquilo, disse:

Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.

- O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira. (ASSIS, 2008,_____. Ideias de canário. In: _____. Páginas recolhidas; Relíquias de casa velha. Edição preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 81-88. p. 86).

Nada mais volúvel e malandro que o canário. Além de mudar as definições conforme o presente vivido, justifica tudo de modo racional - “tudo o mais é ilusão e mentira”: o centro do mundo é autoimagem projetada. Além disso, o narrador faz parecer que o canário se balizava por seu conhecimento acerca dos outros - e o consequente rebaixo do outro. Não falava nada ao criado que limpava sua gaiola, “como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico” (ASSIS, 2008_____. Ideias de canário. In: _____. Páginas recolhidas; Relíquias de casa velha. Edição preparada por Marta de Senna. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 81-88., p. 87).

Por fim, a última cena do conto é altamente emblemática. Após ter fugido, o canário foi reencontrado por Macedo em chácara de um amigo. Na tentativa de reaver o canário, sem sucesso, passa-se a cena final:

  • Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular...

  • - Que jardim? Que repuxo?

  • - O mundo, meu querido.

  • - Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.

  • Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior...

  • - De belchior? - trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior? (ASSIS, 2008, p. 88).

  • 2
    A primeira versão desse ensaio saiu em 1970, na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (CANDIDO, 1970CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de milícias).Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 8, 1970, p. 67-89.). A versão aqui utilizada é da quinta edição de O discurso e a cidade (CANDIDO, 2015_____. Dialética da malandragem. In: _____. O discurso e a cidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015, p. 17-47.).
  • 3
    Sérgio Buarque de Holanda, em seu clássico Raízes do Brasil (1976)_____. Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses; com a colaboração de Karl Heinz Efken e José Nogueira Machado. 5. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008., tratou da questão da cordialidade e, entre outras coisas, das relações íntimas e familiares que tomaram a esfera pública em detrimento da formação de uma publicidade, de cunho burguês. Roberto Schwarz (2012)_____. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012a., na mesma linha e partindo de Machado de Assis, identifica na ideologia do favor, nas relações que relegam certa isenção própria à esfera pública, a constituição tanto da Nação quanto dos sujeitos. Francisco de Oliveira (2018)OLIVEIRA, Francisco de. Jeitinho e jeitão. In: _____. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 137-46. reitera a posição e acrescenta que tais relações, além de guiadas pelos interesses de classes, são intrínsecas à classe dominante brasileira e legadas às classes dominadas. Todavia, geralmente se toma o “jeitinho” como um traço puramente subjetivo e abstrato, sem precedentes ou naturalizado, no brasileiro. Esses textos, então, invariavelmente são lidos à luz do caráter subjetivo nacional, sem as devidas mediações histórico-sociais e em detrimento completo destas, como se se tratasse de um conjunto de características naturalizadas ou sem fundamentos, surgindo aleatória e contingentemente de qualquer situação na qual o centro seja o Brasil e o brasileiro, em abstrato. O presente artigo pretende se opor às interpretações de caráter que o consideram como traço distintivo natural e/ou que prescindem das mediações históricas que o engendram.
  • 4
    As Memórias de um sargento de milícias são de 1852 (ALMEIDA, 2013ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Prefácio de Ruy Castro. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.).
  • 5
    Os “nexos fundamentais”, categoria dialética da mediação por excelência, são muito bem explanados por Theodor W. Adorno (2015)_____. Dialética da malandragem. In: _____. O discurso e a cidade. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015, p. 17-47., entre outros textos, no ensaio “Sobre a relação entre sociologia e psicologia”.
  • 6
    Quanto a essa questão, e às relações entre a crítica de Antonio Candido e Roberto Schwarz, é de grande interesse o livro de Waizbort (2007)WAIZBORT, Leopoldo. A passagem do três ao um: crítica literária, sociologia, filologia. São Paulo: Cosac Naify, 2007..
  • 7
    Os senhores também se formaram nesse processo, não tendo o tipo de “autonomia abstrata” que muitas vezes lhes atribuem. Quanto a isso, cf.: Hegel (2008)HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia real. Ed. José María Ripalda. México: Fondo de Cultura Económica, 1984. - especialmente a “dialética do senhor e do escravo”, na qual a formação do senhor é mediada pela atividade do escravo e, em última instância, pela totalidade engendrada por essa atividade; Cardoso (2003)CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. , principalmente p. 336 e ss., em que explora a relação formativa da sociedade escravista gaúcha e vê o senhor de escravos dependente de relações que lhe escapam; e Tomich (2011, p. 69-97)TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. Tradução Antonio de Pádua Danesi; revisão técnica Rafael de Bivar Marquese. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. , sobretudo sua teorização sobre “A ‘segunda escravidão’” (p. 81-97). Cabe lembrar, para fins deste artigo, que essa ordem, a totalidade, é produzida pelo espectro da escravidão que determina as relações, mesmo aquelas que lhe parecem distantes, ou que com elas não possuem relações diretas e concretas, pelo menos no âmbito da aparência imediata.
  • 8
    A categoria abstração, na dialética, não implica em metafísica. Antes, é uma característica das formas, produto de uma realidade social específica.
  • 9
    Quanto à totalização da escravidão, como sociedade em seu movimento endógeno e como momento da economia-mundo ou sistema-mundo, e todas as vicissitudes a isso relacionadas, cf.: Tomich (2011, p. 69-97)TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. Tradução Antonio de Pádua Danesi; revisão técnica Rafael de Bivar Marquese. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. , Cardoso (2003)CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. , Arrighi (2013)ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Tradução Vera Ribeiro; revisão de tradução César Benjamin. 9. reimp. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. , Schwarz (2012)_____. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012a., Fernandes (2006)FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006. .
  • 10
    À noção aqui explorada como forma e método, ainda que no caso presente as mediações não sejam as mesmas e específicas ao objeto ora estudado, são interessantes a “Introdução” dos Grundrisse, de Marx (2011)MARX, Karl. Grundrisse - manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. Trad. M. Duayer , N. Schneider (colaboração de A. H. Werner e R. Hoffman). São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011. , na qual são abordadas questões de método, forma, mediações e especificidade do objeto; e os textos de Adorno (1995ADORNO, Theodor W. Sobre sujeito e objeto. In: _____. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Trad. M. H. Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 181-201.; 2003)_____. O ensaio como forma. In: _____. Notas de literatura I. Trad. J. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, p. 15-45.. Além desses, os textos de Postone (2014)POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. Trad. A. Reis e P. C. Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2014. e Negt e Kluge (1999)NEGT, Oskar; KLUGE, Alexander. O trabalhador total, criado pelo capital com força de realidade, mas que é falso. In: _____. O que há de político na política?. Trad. J. Azenha Júnior; colaboração K. Zimber. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1999, p. 103-134., que levam a cabo uma interpretação do movimento do capital, da abstração da forma-mercadoria e sua “dominação abstrata” na sociedade capitalista tardia. Além desses autores, interessam as formas interpretativas - que aqui se seguiram mais ou menos de perto - de autores que tomam o método de Marx - a dialética - como forma para interpretações inovadoras, seja da sociedade brasileira, da escravidão ou do mundo capitalista (cf. CARDOSO, 2003CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. ; TOMICH, 2011TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. Tradução Antonio de Pádua Danesi; revisão técnica Rafael de Bivar Marquese. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. ; WOOD, 2014WOOD, Ellen Meiksins. O império do capital. Tradução Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2014. ; ARRIGHI, 2013ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Tradução Vera Ribeiro; revisão de tradução César Benjamin. 9. reimp. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. ).
  • 11
    Quanto à discussão sobre “As ideias fora do lugar” (SCHWARZ, 2012_____. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012a.), se estariam mesmo fora - a partir do debate levado a cabo por Maria Sylvia de Carvalho Franco (1976)FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As ideias estão no lugar. Caderno de debate 1: história do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1976, p. 61-64. -, veja-se o artigo de Júlio Cezar Bastoni da Silva (2015), no qual o autor aborda a história do referido debate de modo bem elaborado, trazendo outros diversos autores que também versaram sobre a questão. Também interessa a retomada do próprio Roberto Schwarz sobre a questão, num texto de 2009 no qual fala, grosso modo, sobre o absurdo das interpretações que levaram seu título - Ideias fora do lugar - ao pé da letra, não percebendo a incongruência social e teórica de uma tese de teor literal sobre a “discrepância” e o “anacronismo” entre ideias e realidade; aliás, a ironia fina do título remete, igualmente, à ironia machadiana (cf. SCHWARZ, 2012b_____. Por que “ideias fora do lugar”?. In: _____. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012b, p. 165-172.).
  • 12
    É importante observar que O cortiço é de 1890, época na qual as relações de cunho capitalista já estavam razoavelmente mais presentes (não quer dizer mais desenvolvidas), isso tomado em relação às Memórias de um sargento de milícias, que é de 1852.
  • 13
    Ambas as formas dialéticas de interpretação podem se entrelaçar, sem se confundirem, e agir unidas numa mesma situação - seja na composição da forma literária ou, vice-versa, na interpretação da realidade social. Quanto a isso, cf. Candido (2000, p. 5-35)_____. Literatura e sociedade. 8. ed. São Paulo: T. A. Queiroz; Publifolha, 2000. .
  • 14
    Sobre o reconhecimento recíproco intersubjetivo e suas possibilidades de efetivação na sociedade capitalista, cf. Xavier (2014XAVIER, Vinicius dos Santos. Trabalho e interação: a interpretação do Jovem Habermas sobre a filosofia do espírito hegeliana de Iena. Cadernos de Ética e Filosofia Política (USP), v. 25, 2014, p. 69-89.; 2015_____. Trabalho, intersubjetividade e síntese da sociedade: uma crítica ao conceito de trabalho na teoria habermasiana da década de 1960. Princípios, v. 22, 2015, p. 233-278.; 2015a_____. Um ponto cego na teoria do jovem Habermas: a problemática relação entre esfera pública e emancipação. Pensando: Revista de Filosofia (UFPI), v. 6, 2015a, p. 156-187.). Quanto ao mesmo assunto, só que na realidade brasileira, cf. Schwarz (2012)_____. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012a..
  • 15
    Não se trata, aqui, de desdobrar o debate, de longo alcance, sobre se havia capitalismo no Brasil Imperial. O que se considera é que havia formas espirituais, uma totalidade que compunha, por dentro, as relações sociais. Além disso, como dito acima (cf. notas 9 e 10), deve-se considerar a inserção do Brasil na economia-mundo capitalista, sendo composto, igualmente, por forças sociais do capitalismo mundial. Ainda que isso não impactasse tão direta e concretamente nas relações sociais, incidia na configuração do sistema escravista como um todo e, consequentemente, na totalidade brasileira (cf. ARRIGHI, 2013ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Tradução Vera Ribeiro; revisão de tradução César Benjamin. 9. reimp. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. ; TOMICH, 2011TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. Tradução Antonio de Pádua Danesi; revisão técnica Rafael de Bivar Marquese. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011. ; WOOD, 2014WOOD, Ellen Meiksins. O império do capital. Tradução Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2014. ; FERNANDES, 2006FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006. ).
  • 16
    Às observações de Antonio Candido, um tanto otimistas e que parecem relegar a própria teorização anterior do ensaio sobre a burla etc., pode-se contrapor a análise de Schwarz (2006)SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da malandragem”. In: _____. Que horas são?: ensaios. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 129-55..
  • 17
    É claro que essa formulação é sumária, não captando a complexidade do processo como um todo. Sobre esse processo, sobre o qual aqui não cabe discussão aprofundada por fugir ao tema, e acerca da revolução burguesa no Brasil, também ela específica e feita à imagem da classe dominante brasileira - a aristocracia latifundiária e congêneres -, dando um jeitinho, veja o clássico de Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil (2006), especialmente os capítulos 2, 4 e 5.
  • 18
    Interessante notar, grosso modo - ainda que este não seja o foco do artigo -, que, na Formação da literatura brasileira (CANDIDO, 2014_____. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos 1750-1880. 15. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014.), páginas 436-437, especialmente, Antonio Candido vê Machado de Assis como a forma acabada do desenvolvimento formativo da literatura brasileira.
  • 19
    Memórias póstumas de Brás Cubas (ASSIS, 2001_____. Memórias póstumas de Brás Cubas. Apresentação e notas de Antônio Medina Rodrigues. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.) marca, a partir de 1880-1881, a virada machadiana de maturidade (cf. SCHWARZ, 2012_____. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012a.; 2012a_____. Por que “ideias fora do lugar”?. In: _____. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012b, p. 165-172.).
  • 20
    Machado, geralmente colocado como aquele que transitou livremente, em seus romances e contos, pela alma da burguesia/aristocracia, aqui muda o foco. Isso possibilita, inclusive, ver aquilo que Chico de Oliveira diz sobre o legado da classe dominante às dominadas e, além disso, perceber que tal legado não é apenas direto e concreto, como modos de ser e de se portar; antes, são formas abstratas que, diluídas e perfazendo o núcleo da totalidade social constituída, condicionam - se não determinam - os indivíduos a certos modos, impõem-lhes certos limites, conferem dadas expectativas e possibilidades de ser; em suma, mesmo a dependência pessoal cria uma atmosfera espiritual na qual aquilo que é não precisa ser dito. É a partir desse aspecto, apesar de tudo, das formas abstratas que estão postas nuclearmente na totalidade social e irradiam para todos os lados, que é, inversamente, possível naturalizar os dados, dizer que o caráter não é construção histórico-social, anulando mediações - que é um dos motes da ideologia (num sentido adorniano - a ideologia sendo a própria sociedade). A título de exemplo, no conto “O espelho” (MACHADO, 2005b), da década de 1880, a farda de alferes - “Alferes da Guarda Nacional (a tropa de reserva que no Brasil imperial se tornou bem cedo um simples pretexto para dar postos e fardas vistosas a pessoas de certa posição)” (CANDIDO, 2011_____. Esquema de Machado de Assis. In: _____. Vários escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 15-33., p. 24) - conferia ao personagem reconhecimento social à frente do espelho, isto é, sozinho. Certa “integridade psicológica” dele dependia disso - de uma abstração, ligada ao favor, ao reconhecimento, à “supremacia qualquer” (nesse caso, supremacia qualquer igualmente abstrata, pois pressupunha os outros ao mesmo tempo que dispensava sua presença física).
  • 21
    Quanto a isso, veja-se também o conto “A cartomante” (ASSIS, 2004_____. A cartomante. In: _____. Várias histórias. Edição preparada por Hélio de S. Guimarães. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 5-20.), especialmente a passagem final.
  • 22
    Aliás, “O alienista” é recheado de episódios exemplares. Não é a intenção aqui explorar à exaustão. Todavia, dois desses episódios são emblemáticos. No primeiro, no capítulo VII, “O inesperado” (ASSIS, 2005_____. O Alienista. In: _____. Papéis avulsos. Edição preparada por Ivan Teixeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5-83., p. 48-53), o barbeiro, líder da “revolta dos Canjicas”, ao tomar o poder, muda completamente seu caráter, seus objetivos, os objetivos populares etc., por conta da “casca” nova que envergava. Por fim, deposto, tudo volta a ser como era, como antes. O segundo episódio se dá ao fim, no capítulo XIII, “Plus ultra!” (ASSIS, 2005_____. O Alienista. In: _____. Papéis avulsos. Edição preparada por Ivan Teixeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5-83., p. 75-83): Bacamarte interna a si próprio por constatar que era o único... normal! Ora, a constatação era de que qualquer que fosse a configuração da sociedade, somente aqueles que oscilassem constantemente entre esferas contrapostas, seja de ordem moral, psíquica ou política, é que conseguiriam viver. Bacamarte, único são, morre sete meses depois.
  • 23
    Esse tipo de dissonância é um tema recorrente em Machado. Veja-se, por exemplo, a breve análise que Roberto Schwarz faz, em “Duas notas sobre Machado de Assis” (2006a, p. 170), sobre o pavão no quintal de Barbacena.
  • 24
    Quincas Borba (ASSIS, 1997ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Quincas Borba. São Paulo: O Estado de São Paulo; Klick Editora, 1997. ) é recheado dessas imagens, de reviravoltas que Rubião, personagem principal do romance, dá em si mesmo para sempre estar no presente vivo. Apesar de acabar mal no final, são tais movimentos entrecortados que dão o tom do romance. Entre tantas imagens, a título de exemplo, no capítulo XLVII (p. 50-51) Rubião vai procurar numa memória passada, de um enforcamento de um negro em praça pública que havia assistido, regozijo para sua situação presente, como uma catarse que purifica sua atualidade. Entretanto, a cena da memória é interrompida pelo cocheiro, que o traz de volta desse sonho pessoal e singular - tudo se passou depressa para que seus sonhos acabassem, ainda que à sua revelia. Olhando brevemente o capítulo e os imediatamente anterior e posterior, vê-se que a cena do enforcamento não tem outra valia a não ser o regozijo e a afirmação da pessoa de Rubião; além disso, o presente domina com uma força tal que o personagem vê a si mesmo como centro de toda trama, como se todas as mazelas que ocorrem - mesmo um enforcamento em praça pública, que, aliás, se justifica a Rubião pela vileza do réu - fossem ressignificadas e absorvidas para sua catarse formativa. O passado importa ao presente; o futuro pouco importa. O andamento frenético - e os cocheiros dizendo do tempo que se leva de um lugar a outro atesta também isso - corrobora para o presente presentificado, para o corte ríspido da continuidade, para a escolha mais ou menos consciente acerca das possibilidades, limitadamente abertas. Por fim, para o que aqui interessa, a força do espectro da escravidão - e suas relações naturalizadas - está ali presente. A situação serve à sustentação do caráter e da sanidade de Rubião, como catarse, purificação de sua alma, recentramento de sua pessoa.
  • 25
    Isso indica, entre outras coisas, que há temas transversais em Machado de Assis. E os há por conta de uma formalização estrutural da sociedade em suas obras, especialmente as de maturidade.
  • 26
    Essa ideia de sucesso por conta de algo que poderia “assombrar o século” também é recorrente em Machado. Veja-se o capítulo II, “O emplasto”, das Memórias póstumas de Brás Cubas (ASSIS, 2001_____. Memórias póstumas de Brás Cubas. Apresentação e notas de Antônio Medina Rodrigues. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001., p. 71).

REFERÊNCIAS

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  • _____. Trio em lá menor. In: _____. Várias histórias Edição preparada por Hélio de S. Guimarães. São Paulo: Martins Fontes, 2004a, p. 107-120.
  • _____. O enfermeiro. In: _____. Várias histórias Edição preparada por Hélio de S. Guimarães. São Paulo: Martins Fontes, 2004b, p. 133-149.
  • _____. O Alienista. In: _____. Papéis avulsos Edição preparada por Ivan Teixeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5-83.
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  • AZEVEDO, Aluísio de. O cortiço 30. ed. São Paulo: Ática, 1997.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2018
  • Aceito
    16 Jul 2019
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