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“Terzo Mondo” em transe: Antonio Candido em Gênova e depois

“Terzo Mondo” in trance: Antonio Candido in Genoa and later

RESUMO

O objetivo do artigo é discutir a relação entre a participação de Antonio Candido no congresso “Terzo Mondo e Comunità Mondiale” (Itália, 1965), e um esboço de mudança teórico-conceitual de sua obra a partir da segunda metade dos anos 1960, especialmente no ensaio “Literatura de dois gumes” (1966). Esse evento foi fulcral na articulação das nações terceiro-mundistas daquele contexto por contar com a presença de importantes intelectuais africanos e latino-americanos e pelo ensaio de uma crítica pós-colonial ao eurocentrismo. Nossa hipótese é que, nos anos seguintes, Candido incorpora às suas leituras parte das discussões realizadas no encontro a partir de uma reformulação de algumas de suas categorias analíticas e perspectivas teórico-conceituais e da expansão do escopo de análise do Brasil para a América Latina.

PALAVRAS - CHAVE
Antonio Candido; literatura; Terceiro Mundo

ABSTRACT

The aim of the present article is to discuss the relationship between the participation of Antonio Candido in congress “Terzo Mondo and Comunità Mondiale” (Italy, 1965) and the theoretical-conceptual change of his work from the second half of the 1960s, especially in the essay “Literatura de dois gumes” (1966). This event was pivotal in the articulation of the third world nations of that context because it counted with the presence of important intellectuals from Africa and Latin America and for the essay of a post-colonial critique of Eurocentrism. Our hypothesis is that, in the following years, Candido incorporates part of the discussions held at the meeting into his readings, starting from a reformulation of some of his analytical categories and theoretical-conceptual perspectives and from the expansion of the scope of analysis from Brazil to Latin America.

KEYWORDS
Antonio Candido; literature; Terceiro Mundo

[...] o Columbianum foi um dos maiores agentes de intercomunicação dos intelectuais e artistas da América Latina, e em seguida destes com os da África. E também da divulgação das respectivas culturas na Europa, bastando citar a difusão que empreendeu o Cinema Novo brasileiro. No referido congresso eu me vi de repente, pela primeira vez, próximo de colegas de toda a nossa América e da África – de Miguel Ángel Astúrias a Alioune Diop, de Juan Rulfo a Mahmanou M’Bye, de José Maria Arguedas a Samuel Alemayehou, de Ernesto Sábato a Albert Tevoedjre, de Ciro Alegría a Senghor e assim por diante

(CANDIDO apud DANTAS, 2002DANTAS, Vinicius. Bibliografia de Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2002., p. 112)

Assim Antonio Candido de Mello e Souza definiu, em breves linhas, a experiência de participação no “Terzo Mondo e Comunità Mondiale” e Quinta “Rassegna del Cinema Latino-Americano”, encontro organizado, em 1965, pelo Instituto Columbianum, entidade cultural criada pelo padre jesuíta Angelo Arpa, crítico de cinema, escritor e produtor de filmes, além de membro da Companhia de Jesus da Igreja Católica. Esse evento em geral, e a participação do crítico brasileiro em especifico, raramente foram objetos de análise da história da crítica e da historiografia literária. Sobre a obra e a trajetória de Candido, em geral, recaem duas atitudes que, salvo engano, se retroalimentam: de um lado, são reatualizas múltiplas análises sobre alguns de seus textos de mais impacto e circulação, como Formação da literatura brasileira (CANDIDO, 1959CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1750-1880). São Paulo: Livraria Martins Editora, 1959. 2 v.); ao mesmo tempo, ensaios e artigos de menor impacto são esquecidos e, quando analisados, são sempre vistos pelo mesmo prisma e pela mesma tendência que vincula seu interesse às questões meramente brasileiras.

Nessas perspectivas, a obra de Candido fica restrita a um recorte espaço-temporal muito específico, o Brasil dos anos 1950. Os debates travados acerca dos “sentidos da formação”, da “crítica dialética”, do “sequestro do barroco” e da construção de uma “tradição literária nacional”, na ânsia por atacar uma das bases de sustentação de sua vasta reflexão, acabam por soterrar textos e discussões que, em grande medida, representam uma inflexão na própria forma como o crítico identificava os objetos da cultura, em especial a literatura. A persistência e o vigor da associação da obra candidiana a uma sondagem das “questões nacionais”, a nosso ver, torna rarefeita a tarefa fundamental, no horizonte da história intelectual, de desnaturalizar e deslocar sentidos usuais de ideias e pensamentos cristalizados nos imaginários historiográficos.

Por isso, trazer à discussão “Literatura de dois gumes”2 2 Como Candido não pode comparecer ao evento, foi traduzido e apresentado, na ocasião, por Celso Lafer. Em inglês, foi publicado na Luso-Brazilian Review (CANDIDO, 1968). Depois, em português, no Suplemento Literário de Minas Gerais com o nome de Literatura e consciência nacional, em 1969. Utilizaremos a versão publicada em A educação pela noite (CANDIDO, 2011). , texto produzido para um evento realizado na Cornell University, nos Estados Unidos da América, em 1966, pode ser importante para desestabilizar certas ideias arregimentadas nos seio dos estudos de história da crítica literária. Nesse ensaio, Candido apresenta a ideia de que a “literatura brasileira” (e latino-americana, por extensão) foi o resultado direto de uma tensão entre, de um lado, a influência das sociedades metropolitanas, fruto de uma “transposição das criações do humanismo renascentista de fontes greco-latinas”, e, de outro, uma espécie de “pulsão nacional” (CANDIDO, 2011_____. Literatura e subdesenvolvimento. Argumento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, n. 1, 1973, p. 6-24. , p. 198). Esse argumento foi apresentado a partir de uma mudança importante: a empreitada colonial, que era lida até aquele momento como uma mera “imposição europeia” recebida, nas colônias, de forma apática, acaba por tornar-se, nesse texto, um processo de experimentação que criou apropriações, trocas, recepções e modificações. Essa desnaturalização do processo colonial enxerga o colonialismo europeu como uma “dominação ideológica” (LOTUFO, 2019LOTUFO, Marcelo. “O nacional e o global em Antonio Candido: uma leitura de” Formação da literatura brasileira” e” Literatura e subdesenvolvimento”.” Nau Literária, p 45-61, 2019.), não um simples processo de “aculturação”, termo que invocava uma perda costumaz dos caracteres locais no momento mesmo do contato com o repertório externo.

Segundo Anita Moraes,

[...] ao invés de povos jovens e velhos, temos colonizados e colonizadores; os homens cultos agora fazem parte da classe dominante, estando a literatura implicada em práticas de conquista, opressão, violência. O que na Formação é “transplante” da cultura europeia, neste ensaio posterior é “processo colonizador”. [...] Nota-se que o estudioso mantém sua tese da tensão entre tendências universalistas e particularistas, ou seja, da adaptação das formas europeias para o tratamento da realidade local. Não se trata mais, porém, de um processo gradual (e penoso) de aclimatação, mas de um episódio da colonização.

(MORAES, 2015_____. Literatura de dois gumes. In: _____. Para além das palavras: representação e realidade em Antonio Candido. São Paulo: Editora Unesp, 2015, p. 69-76., p. 69).

Neste artigo, pretendemos traçar algumas linhas de força que impulsionaram essa mudança importante no pensamento de Candido. O que pretendemos mostram aqui é uma experiência esquecida: a participação do crítico no “Terzo Mondo”, evento que reuniu intelectuais latino-americanos e africanos em um momento de fortalecimento da narrativa “terceiro-mundista”, termo comum à época. Nossa hipótese é que os debates travados no encontro reverberaram de forma substancial em “Literatura de dois gumes” (1966) tanto em termos conceituais e vocabulares, quanto no próprio escopo de análise, estendido à América Latina, fazendo com que a colonização perca seu sentido quase harmonioso e “natural” e adquira uma feição autoritária e imperativa.

“Terzo Mondo” em transe

O “Terzo Mondo e Comunità Mondiale” e a Quinta “Rassegna del Cinema Latino-Americano” contou com um conjunto de debates e discussões, além de uma grande mostra cinematográfica. Fundamental não somente pela divulgação das produções das figuras presentes no encontro, serviu também para vocalizar e colocar em questão as ideias de um conjunto de intelectuais “terceiro-mundistas”, fortalecendo os vínculos políticos entre regiões periféricas do cenário mundial da época. De críticos literários a escritores, de historiadores a antropólogos, de filósofos a ensaístas, o evento reuniu o que havia de mais expressivo no pensamento africano, latino-americano e europeu.

o primeiro evento, não de cunho apenas regional, mas abrangendo os intelectuais de toda a “nuestra America” de que participei foi o congresso Terzo Mondo e Communita Mondiale, realizado na cidade de Genova em 1965 pela instituição Columbianun criada e dirigida pelo benemérito padre Angelo Arpa e dedicada a promover o intercâmbio entre a Europa e o Terceiro Mundo. Foi um acontecimento memorável, que reuniu intelectuais e artistas africanos e latino-americanos. Entre estes últimos, Miguel Angel Asturias, Juan Rulfo, Carlos Pellicer, Leopoldo Zea, Juan Marinello, Roberto Fernandez Retamar, Jose Maria Arguedas, Ciro Alegria, Josefina Pla, Angel Rama, Emir Rodriguez Monegal, Ernesto Sabato, Jose Luiz Martinez e outros, inclusive os brasileiros Murilo Mendes e Joao Guimaraes Rosa. Foi, repito, um acontecimento memorável e, para mim, uma extraordinária experiencia de encarnação de nomes que eu lia e de repente vi transformados em pessoas

(CANDIDO, 1999_____. Sérgio em Berlim e depois. Novos Estudos, n. 3, 1982, p. 4-9., p. 264, grifo meu)

Na ocasião, Candido apresentou, em versão francesa, o texto “Nature, elements et trajectoire de la culture brésilienne” (1967). Nessa intervenção, debateu conceitos e categorias como cordialidade, realismo, utopia, representação. O ponto central foi a tentativa de opor, na história da cultura brasileira, duas tendências importantes: uma chamada de “genealógica”, cuja operação primordial, até o século XVII, era uma “seleção do passado”; e outra, já forte no século XIX, chamada de “realista-descritiva”, que tentou expressar de forma direta os elementos que compunham o mosaico nacional. O grande fio condutor que atravessa toda a discussão é a luta constante entre uma força de dependência cultural, que submeteria o Brasil, de um lado, à idealização europeizante feita através da importação ou imposição do repertório externo à luz do processo colonizador; de outro, à própria tendência mais localista, que deu sentido a uma “constatação objetiva” da própria realidade da nação (SIEGA, 2017SIEGA, Paula Regina. Antonio Candido, Eduardo Lourenço e Lino Micciché: a literatura brasileira no circuito da recepção externa do Cinema Novo. FronteiraZ – Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária, 2017, p. 163-180., p. 171).

Inscrito no contexto da Guerra Fria, a ideia de reunir majoritariamente africanos, asiáticos e latino-americanos indicava, em primeiro lugar, uma tentativa de desvincular-se das grandes zonas de influência da disputa geopolítica bipolarizada. Além disso, a própria posição de assumir a condição de “terceiro-mundistas”, ampliando a semântica do termo usado pela primeira vez em pelo francês Alfred Sauvy (1952)ALFRED, SAUVY. Trois mondes, une planète. L’Observateur, v. 118, p. 14, 1952., apontava um auto-reconhecimento das tradições, valores e elementos comuns às nações que sofreram os impactos diretos da colonialidade. Em outros termos, a questão que se colocava tinha a ver com a força que certa empreitada política, intelectual e social ganhava ao defender a necessidade de pensar projetos de sociedade desde a periferia do sistema, não mais apenas a partir dos centros do capitalismo mundial. À época, essa identificação se dava pelo cruzamento, de um lado, entre a capacidade destrutiva das ditaduras latino-americanas, por exemplo, que investiam em toda sorte de violência, repressão e exceção, e, de outro, a potencialidade contida nas emancipações formais dos países africanos pós Conferência de Bandung (1955).

O evento, portanto, foi feito em meio a uma atmosfera de tensão e ebulição que estruturou os sentimentos subjetivos e coletivos (GUMBRECHT, 2014GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre o potencial oculto da literatura. Tradução Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC Rio, 2014.), ampliando a necessidade de atuação letrada e intelectual mais incisiva na esfera pública. Nesse período, houve um aumento considerável do número de publicações em revistas e jornais na tentativa de conectar figuras de vulto do pensamento latino-americano e africano em busca de soluções comuns para problemas considerados também comuns. Também se proliferaram congressos, colóquios e seminários cujo objetivo era discutir especificamente a condição da América Latina e da África naquele momento, à época fortemente atravessadas por uma série de dinâmicas políticas e afetivas ligadas tanto à esperança de um futuro promissor e emancipador quanto à constatação da persistência dos problemas catastróficos no presente (BARBOSA, 2019).

O “Terzo Mondo”, nessa direção, vai cumprir função primordial. No encontro de 1965, Glauber RochaROCHA, Glauber. Uma estética da fome. Revista Civilização Brasileira, n. 3, julho, 1965. apresentou, na seção intitulada “Quinta Resenha do Cinema Latino-americano”, suas reflexões sobre a “Uma estética da fome” (1965), escrita “no bojo de um amplo debate acerca da libertação nacional dos povos colonizados” (CARVALHO e DOMINGUES, 2017CARVALHO, Noel dos Santos; DOMINGUES, Petrônio. A representação do negro em dois manifestos do cinema brasileiro. Estudos Avançados, v. 31, n. 89, p. 377-394, 2017.: p. 379). Conforme observa Ismail Xavier:

Da fome. A estética. A preposição “da”, ao contrário da preposição “sobre”, marca a diferença: a fome não se define como tema, objeto do qual se fala. Ela se instala na própria forma do dizer, na própria textura das obras. Abordar o Cinema Novo do início dos anos 1960 é trabalhar essa metáfora que permite nomear um estilo de fazer cinema. Um estilo que procura redefinir a relação do cineasta brasileiro com a carência de recursos, invertendo posições diante das exigências materiais e as convenções de linguagem próprias ao modelo industrial dominante. A carência deixa de ser obstáculo e passa a ser assumida como fator constituinte da obra, elemento que informa a sua estrutura e do qual se extrai a força da expressão, num estratagema capaz de evitar a simples constatação passiva (“somos subdesenvolvidos”) ou o mascaramento promovido pela imitação do modelo imposto (que, ao avesso, diz de novo “somos subdesenvolvidos”). A estética da fome faz da fraqueza a sua força, transforma em lance de linguagem o que até então é dado técnico. Coloca em suspenso a escala de valores dada, interroga, questiona a realidade do subdesenvolvimento a partir de sua própria prática.

(XAVIER, 1983XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983., p. 9).

Essa percepção glauberiana e cinemanovista de caráter anticolonial aponta a ideia de que toda a cultura das nações subdesenvolvidos “não poderia ser representada com os recursos [...] linguísticos da cultura dita ‘avançada’, mas deveria encontrar na própria exasperante realidade, na própria deficiência de meios, os temas e formas com os quais expressar-se.” (SIEGA, 2014SIEGA, Paula Regina. Antonio Candido, Eduardo Lourenço e Lino Micciché: a literatura brasileira no circuito da recepção externa do Cinema Novo. FronteiraZ – Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária, 2017, p. 163-180., p. 156). Por isso, a “Uma estética da fome” se apresenta não como uma forma específica de olhar e falar sobre as mazelas do mundo, mas sim como um lugar de enunciação singular de brasileiros e, por extensão, de latino-americanos e terceiro-mundistas em geral. Essa visão que estrutura a própria condição social acaba por se instalar na forma mesma do enunciado crítico ou do objeto estético produzida a partir dessas regiões. A questão da “condição de atraso” das culturas tidas como periféricas é entendida não mais como mera matéria de análise da produção cinematográfica, acadêmica e intelectual ou como um “tema” de pesquisa, por exemplo, mas sim como local de onde se pode falar e produzir um pensamento crítico válido e capaz, inclusive, de questionar frontalmente a realidade na qual está imerso o próprio narrador de determinado discurso. É, portanto, uma postura também ético-política desse artista ou intelectual periférico, que sempre vai se pronunciar estética ou conceitualmente a partir da fome, entendida enquanto alegoria de sua própria condição periférica.

Alguns anos antes, em 1960, Otto Maria Carpeaux havia publicado, no Suplemento Literário da Folha de S. Paulo, o texto “América Latina e Europa”, em que apresentou uma visão bastante crítica à realização da mesa-redonda “Mondo latino americano e responsabilità dela cultura europea” – organizada pelo mesmo Columbianum e realizada em 1958, na Itália, um protótipo do “Terzo Mondo” –, na qual estavam presentes figuras importantes como Roger Bastide, Jean Cassou, Julian Gorkin, Victor Haya de la Torre e Ugo Spirito. O debate se concentrou especialmente na questão da dominação de caráter colonial do “centro sobre a periferia”, com suas consequências culturais e estéticas. O centro do argumento carpeauxiano, entretanto, orbita em torno da ideia de que as relações entre América Latina e Europa, por se pautarem em princípios de equilíbrio e equidade, tinham gerado, no fim das contas, um saldo extremamente positivo do ponto de vista literário, econômico e superestrutural (CARPEAUX, 1960CARPEAUX, Otto Maria. América Latina e Europa. Folha de S.Paulo, n. 185, Suplemento Literário, 11 de junho de 1960., p. 1). Nesse sentido, a proposta central do Columbianum de colocar em discussão o que há de especial na condição latino-americana e terceiro-mundista fruto da negatividade colonial era, para ele, um falso problema ou um engodo, isto é, uma forma acrítica e anti-histórica de discutir a questão da emancipação dos povos das zonas tidas como periféricas.

Bem no início de 1965, o jornal Diário Carioca publicou, no dia 9 de janeiro, o texto “Latinos se reúnem na Itália”, no qual se ressaltou a realização de um “colóquio de escritores” sobre a “Formação, Desenvolvimento, Originalidade e Vinculação da Cultura e da Arte Latino-Americana” (LATINOS se..., 1965LATINOS se reúnem na Itália. Diário Carioca, n. 11.289, 9 de janeiro de 1965, p. 9.)3 3 Segundo o jornal, estavam presentes figuras como Jean Paul Sartre, Salvador Madariaga, Damaso Alonso, Roger Caillois, Jean Cassou, Roger Bastide, dentre os europeus; e Miguel Angel Asturias, Alejo Carpentier, Jorge Luis Borges, Ciro Alegria, Eduardo Mallea, Juan Rulfo, Jaime Torres Bodet, Gilberto Freyre, João Guimarães Rosa, Alceu de Amoroso Lima, Jorge Amado e Érico Veríssimo, dentre os latino-americanos. . Segundo Miriam Alencar, em sua coluna intitulada Letreiro, publicada no Jornal do Brasil (RJ) em 1964, o evento a ser realizado no início do ano seguinte seria divido em duas seções: duas mesas-redondas, uma sobre o lançamento de uma revista trimestral e outra sobre a cultura negro-africana e suas expressões cinematográficas; e a “Rassegna” propriamente dita, que abrigaria uma série de debates sobre o Cinema Novo Brasileiro, além de sediar a habitual mostra competitiva de filmes (ALENCAR, 1964ALENCAR, Miriam. Cinema Novo na Itália. Coluna Letreiro. Jornal do Brasil, n. 270, 15 de novembro de 1964, p. 15.).

Ángel Rama escreveu de forma bastante detalhada sobre o evento. Em longo texto intitulado “Coloquio de Genova: dos tareas que valen un viaje”, publicado em Marcha em 26 de fevereiro de 1965, ou seja, logo após o evento, ressalta a pluralidade de perspectivas políticas e ideológicas presentes.

Allí estaban los cubanos, con su teórico marxista Juan Marinello y los representantes de dos posiciones muy diferentes: Roberto Fernandez Retamar, como ejemplo de intelectual incorporado al movimento revolucionario, y Cintio Vitier, católico, quien podría definirse como um exiliado interior. Allí estaban los comunistas (Elvio Romero, Franco Mogni, Argueles Morales, Rafael Alberti) y los de una posición centrista, como Ciro Alegría (disputado en el movimento de Belaúnde Terry), Augusto Céspedes (embajador boliviano en Paris), Carlos Pellicer (el gran poeta católico mexicano) y las figuras de una izquierda independente (Roa Bastos, Salazar Bondy, José Luis Romero) y los hombres de la derecha (Alejandro Magnet, embajador del Chile en la OEA [Organização dos Estados Americanos], Joao Guimaraes Rosa, alto funcionario de Itamaraty).

(RAMA, 1965RAMA, Ángel. Coloquio de Genova: dos tareas que valen un viaje. Marcha, Montevideo, n. 1245, 26 de febrero de 1965, p. 28-29.).

A dificuldade de fazer um balanço geral do colóquio, segundo ele, se deve ao fato de que a distribuição dos participantes em comissões dispersas acabou por isolá-los de alguns debates maiores em âmbito coletivo. No grupo do qual participou, foram discutidas questões relacionadas à contradição, na América Latina, entre o universo jurídico-político e as estruturas econômico-sociais; à importação de ideologias do centro do sistema e à tentativa de convertê-las em instrumentos de libertação; à vinculação, naquele momento, da história latino-americana à crise do capitalismo industrial e ao impacto das inovações técnicas diante do crescimento da sociedade de massas; e, por fim, àquilo que vai ressoar de forma mais importante tanto nos estudos de Rama quanto nos de Candido: o apego da formação do continente aos elementos da cultura europeia não de forma mecânica, mas sim transfigurativa, o que parece potencializar a

[...] creación original en el arte y en la cultura. Una literatura carecerá de realidade y de autonomía en cuanto no encuentre su contexto genuíno. Existe una unidad subyacente a la pluralidad cultural latinoamericana, comprobada en los grandes sacudimientos: emancipación de 1810, revolución mexicana de 1910 y actual estado de conmoción social, uno de cuyos aspectos es la revolución cubana de 1959.

(RAMA, 1965RAMA, Ángel. Coloquio de Genova: dos tareas que valen un viaje. Marcha, Montevideo, n. 1245, 26 de febrero de 1965, p. 28-29.).

A ideia de uma unidade continental, portanto, aparece de forma decisiva. Outro aspecto interessante do encontro, ainda no bojo desta questão, foi a tentativa de construir uma revista especializada na cultura latino-americana, que se chamaria simplesmente America Latina. Seria publicada na própria cidade de Gênova nas línguas espanhola e portuguesa, além de contar com alguns resumos em francês, italiano e inglês, e com centros de distribuição no México e na Argentina. Teria Miguel Ángel Asturias e Amos Segala como diretores e Fernand Braudel, Antonio Candido, Leopoldo Zea, José Luis Romero e Alejo Carpentier como assessores. A publicação focaria especialmente no exame crítico das “sociedades americanas”, debatendo questões que vão desde a escravidão africana, passando pela situação do romance, pelo regime de distribuição de terras ao largo dos processos de colonização, os projetos de desenvolvimento socioeconômico etc.

Outro projeto costurado no encontro foi a criação da “Comunidade Latino-americana de Escritores”, um organismo supranacional que reuniria escritores de todo o continente. A inspiração vinha sobretudo da Comunidade Europeia de Escritores, que à época era presidida por Giuseppe Ungaretti, importante poeta e crítico italiano que inclusive chegou a lecionar na Universidade de São Paulo (USP) no final dos anos 1930. A proposta de realização de um congresso anual no México foi amplamente aprovada, e a criação de um manifesto chamado “Declaración Latinoamericana de Génova” (1965) obteve a assinatura de diversos delegados, exceto Alejandro Magnet, do Chile, e João Guimarães Rosa, do Brasil, enviado oficial da ditadura civil-militar instalada com o golpe de 1964.

Se trata de un intento con amplias proyecciones de futuro, en cuanto permitiría un contacto más asiduo de los intelectuales latinoamericanos, una comunicación de sus respectivos aportaciones, una elaboración en común de la cultura de “nuestra América”. Sólo este proyecto es suficiente para justificar el viaje a Génova, si no fuera porque además se alcanzó un debate adulto sobre la problemática latinoamericana y se contribuyó al lanzamiento de una revista que puede ser un instrumento enriquecedor de las distintas líneas de acción intelectual de un continente al que se exige que entre en escena.

La Comunidad de Escritores es un organismo nascido incidentalmente en la reunión de Génova y por lo tanto independiente del Columbianum. Por ahora es un deseo más que una realidad, y su verdadera contextura se conocerá a partir del Congresso de México que lo dotará de estatutos y lo pondrá en marcha.

(RAMA, 1965RAMA, Ángel. Coloquio de Genova: dos tareas que valen un viaje. Marcha, Montevideo, n. 1245, 26 de febrero de 1965, p. 28-29.).

O texto do crítico uruguaio desenha a atmosfera do Terzo Mondo: a reunião de intelectuais, escritores e críticos das regiões latino-americanas e africanas impulsionou o estreitar de laços de culturas antes díspares, pouco conectadas e, em alguns casos, mutuamente desconhecidas, cuja marca de distinção em relação à matriz europeia é aquilo que Walter Mignolo (2007)MIGNOLO, Walter. La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa Editorial, 2007. chamou de “ferida colonial”. Os eixos centrais a partir dos quais orbitaram as discussões – a saber, a autodeterminação dos povos colonizados e a tentativa de integração dessas regiões periféricas – fizeram com que a cultura tomasse a centralidade dos debates.

A literatura de dois gumes

“Literatura de dois gumes” (1966) foi escrito ao longo do ano seguinte ao encontro de Gênova, ou seja, no “calor do momento”. Em grande medida, é possível identificar, nesse texto, uma apropriação ampla de formulações intelectuais, críticas e literárias produzias no evento, impactando diretamente na forma como Candido vai passar a entender o vínculo entre as culturas periféricas e os elementos da cultura europeia. Esse relacionamento de feição colonial agora é lido na chave da complexidade de relações que se constroem não de maneira mecânica e meramente impositiva; antes, ressalta-se, mesmo em meio à violência da exploração europeia, a potencialidade criativa e transfigurativa que há nos choques decorrentes da colonização, abrindo espaço para a formação de uma cultura singular.

Em grande medida, do ponto de vista teórico, o texto é uma continuidade da usual sondagem da literatura mais como “fato histórico” que como “fato estético”, que se espraia em um conceito de cultura cujo significado é amplo o suficiente para abarcar todo um sistema de produtos que são frutos das comunicações entre os seres humanos. Ao ressaltar a relação intrínseca entre arte e mundo prático-material, o argumento de Candido emoldura um processo de formação literária vinculado, por suposto, à organização social e à mentalidade que vão se desenvolver ao longo do tempo no cenário nacional, continental e internacional. O recorte do período que compreende os séculos XVI e XIX veio acompanhado de um procedimento crítico que busca, através do “sentimento dos contrários”, “ver em cada tendência a componente oposta, de modo a apreender a realidade em sua forma mais dinâmica, que é sempre dialética” (CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217., p. 198). E é nessa percepção dialética que reside um aspecto importante decorrente dos debates do “Terzo Mondo: o esforço para enxergar na formação da literatura brasileira e, por extensão, latino-americana não somente um procedimento de cópia dos moldes e modelos matriciais europeus, mas também a incidência constante da luta por uma expressão cultural autônoma, uma discussão que já se mostrava presente no clássico Formação da literatura brasileira (CANDIDO, 1959CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1750-1880). São Paulo: Livraria Martins Editora, 1959. 2 v.), mas que nesse momento vai ser ampliada e, em certa medida, aprofundada a partir também de um novo referencial vocabular e conceitual.

A discussão de abertura tem a ver com a ideia de que, no período do processo colonial, houve uma imposição cultural e, por conseguinte, uma “adaptação” dos padrões estéticos e intelectuais da Europa às condições sociais do Novo Mundo – as Américas. Esta visão dá sentido positivo à formação literária nacional por seu caráter essencialmente europeísta. Os produtos estéticos que foram gestados nessas sociedades são, portanto, meros apêndices ou “galhos” dessas tradições construídas nas metrópoles. Nesse ponto, “Literatura de dois gumes” é de fato uma continuidade de Formação da literatura brasileira, uma “passagem de tocha”, para usar a metáfora candidiana, cuja imagem é a de um encadeamento intelectual progressivo no plano das ideias, em que obras subsequentes resgatam e ampliam questões de textos anteriores.

O argumento de “Literatura de dois gumes”, entretanto, avança também em outra direção não explorada no livro clássico de 1959. Ao interpretar as características singulares dessa contato europeu com o continente americano e com os povos e etnias de cores e tradições diversas das europeias, que posteriormente vão se somar às centenas de milhares de pessoas trazidas do continente africano na condição de escravos, Candido enxerga a produção de uma ambivalência: de um lado, a tentativa de imposição, por parte dos colonizadores, do que era produzido nas sociedades do Ocidente; de outro, como consequência desse processo, explode uma necessidade quase ontológica de exprimir e representar essa nova realidade natural e humana que foi encontrada no continente “descoberto”. A consequência disso é que a cultura europeia, diante da novidade, precisou conceber uma experimentação artística nas Américas, não apenas impor seus parâmetros trazidos ao longo do processo de colonização (CANDIDO, 2011_____. Nature, elements et trajectoire de la culture brésilienne. In: Columbianum. Terzo Mondo e Comunità Mondiale: Testi delle relazioni presentate e lette ai congressi di Genova. Milão: Editore Marzoratti, 1967, p. 411-416., p. 199).

Candido procura também se colocar contrário à visão de que a literatura brasileira seria o resultado da “atuação ativa de três raças”: a do português, a do índio e a do africano. Especialmente ao longo do século XIX e início do XX, a questão do cruzamento cultural multiétnico no Brasil solidificou-se como importante tópica da historiografia nacional. A ideia de pensar o país a partir das especificidades e peculiaridades da formação, advindas sobretudo do caráter multifacetado das populações residentes ao longo de todo o território, levou à produção de ensaios, artigos, livros e obras cujos sentidos se ligavam à tentativa de produzir sínteses que fossem capazes de explicar o passado brasileiro, apontando para um horizonte de consolidação de projetos de poder político no contexto de emergência da monarquia e, depois, da república.

A análise da “mistura cultural e racial” do alemão Karl von Martius, publicada na primeira metade do século XIX, é um exemplo disso. No ano de 1844, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) realizou um concurso intitulado “Como escrever a história do Brasil”. Von Martius, declarado vencedor com uma dissertação cujo título reproduz ipsis litteris a pergunta colocada, colocou em cena uma tese:

Qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil, país que tanto promete, jamais deveria perder de vista quais os elementos que aí concorreram para o desenvolvimento do homem. São porém estes elementos de natureza muito diversa, tendo para a formação do homem convergido de um modo particular três raças, a saber: a de cor de cobre ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou etiópica. Do encontro, da mescla, das relações mútuas e mudanças destas três raças, formou-se a atual população, cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular.

(VON MARTIUS, 1845VON MARTIUS, Karl Friedrich Philipp. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista do IHGB. Rio de janeiro, 6 (24), 1845., p. 1).

A leitura não pretendia igualar, em grau de importância, a contribuição das “três raças”. No decorrer do argumento, nota-se uma preponderância da figura do homem branco europeu, que acaba por sobrepor, em primeiro lugar, a figura do índio idealizado, colocado como fator secundário da formação; e, depois, acaba por apagar a “raça negra”, nos próprios termos do alemão, que praticamente vai ter seu papel silenciado. Cabe ressaltar, porém, que von Martius lançou algumas bases de uma visão que constantemente vai ser atualizada, reapropriada e modificada, ao sabor e ao gosto de cada contexto e de cada projeto político e historiográfico, especialmente na primeira metade do século XX. Trata-se de uma posição, em certa medida, paradigmática, que deslocou de forma relativa a visão usual da univocidade heroica do colonizador português como aquele que erigiu, solitariamente, uma nação inteira, abrindo as portas para novos atores sociais4 4 Para um debate mais aprofundado sobre a importância do IHGB e das teses de Von Martius, cf. Guimarães, 2000; Schwarcz, 1997. .

Outra percepção importante que aponta para esta discussão é a de Silvio Romero. Leitura incontornável de Candido, o sergipano, no final do século XIX, procurou interpretar a composição étnica e antropológica da população brasileira a partir do parâmetro da mistura e do cruzamento de “raças”: índios, negros e brancos (ROMERO, [1888] 1953ROMERO, Silvio. (1888). História da literatura brasileira. 52. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.). No caso de Romero, porém, há uma longa discussão sobre uma inevitabilidade e uma positividade relativa dessa miscigenação, sobretudo pelo traço de originalidade local brasileira, que, com o passar dos anos e o avançar da fusão étnica, levaria a nação a consolidar uma figura singular e genuína: o mestiço.

Sabe-se que a seleção natural na mestiçagem ao cabo de algumas gerações faz prevalecer o tipo da raça mais numerosa [...] a branca. Quase não temos mais famílias extremamente arianas; os brancos presumidos abundam. Dentro de dois ou três séculos a fusão étnica estará talvez completa, e o brasileiro mestiço, bem caracterizado.

(ROMERO, [1888] 1953ROMERO, Silvio. (1888). História da literatura brasileira. 52. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953., p. 110).

Já no século XX, especialmente no decênio de 1920, a leitura sobre o passado nacional à luz das questões de caráter biológico dá lugar a algumas interpretações culturalistas, em um viés mais sociológico (SCHWARCZ ,1995SCHWARCZ, Lilia Moritz. Complexo de Zé Carioca. Sobre uma certa ordem da mestiçagem e da malandragem. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 29, n. 10, 1995, p. 17-30.). É nessa moldura que se consolida, na obra Casa grande & senzala (1933), a tese do pernambucano Gilberto FreyreFREYRE, Gilberto Freyre. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regimen de economia patriarchal, Rio de Janeiro, Maia & Schmidt, 1933., que dá à mestiçagem um caráter extremamente positivo e redentor no processo de formação da sociedade brasileira. A mistura de raças, na leitura freyriana, levaria à consolidação de um modelo democrático estável e a uma cultura homogênea e mista.

Com efeito, com esse e outros trabalhos, Freyre fazia uma apologia da civilização luso-tropical, resultado inesperado e original da estratégia lusitana de adaptar a civilização europeia aos trópicos. Tratava-se de uma civilização simbiótica – que congregava de forma sincrética e feliz negros, índios e brancos – e pioneira em função da ausência de segregação e de uma miscigenação extremada e singular.

(SCHWARCZ, 1995SCHWARCZ, Lilia Moritz. Complexo de Zé Carioca. Sobre uma certa ordem da mestiçagem e da malandragem. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 29, n. 10, 1995, p. 17-30., p. 22).

Nas teses de von Martius, Romero e Freyre, assim, ainda que de formas distintas, fixa-se a ideia de que o Brasil é composto essencialmente de três raças, que dão suas contribuições em maior ou menor grau ao concerto das civilizações e à cultura nacional. Certamente, era com essa tradição que Candido tinha de lidar a partir do momento em que pensasse, também, sua leitura particular presente, sobretudo, em Formação da literatura brasileira (CANDIDO, 1959CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1750-1880). São Paulo: Livraria Martins Editora, 1959. 2 v.). Contudo, salvo engano, a circulação, no “Terzo Mondo”, de debates sobre as questões da imposição e da apropriação cultural faz com que o crítico brasileiro modifique, em partes, sua própria interpretação. Em “Literatura de dois gumes” (CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217.) a ideia é que esses povos indígenas e africanos, no território das Américas, exerceram uma influência apenas no plano folclórico5 5 No conjunto da obra de Candido, esse conceito encontra difícil definição. Em alguma medida, associa-se, quase sempre, às expressões culturais não eruditas ou às formas literárias “não consagradas”. Para Anita Moraes, “o folclore se caracteriza, na perspectiva do autor, pela pouca autonomia da palavra quanto a elementos performáticos, que são também sonoros e visuais” (MORAES, 2012, p. 5). quando se trata da consolidação do sistema literário. Quer dizer, no caso da literatura escrita, tais grupos atuaram de “maneira remota”, salvo na influência que tiveram na mudança da sensibilidade portuguesa, que consequentemente afetou a criação estética. Sendo assim, o crítico considera que, ao invés de uma fusão previa para formar uma literatura, o que houve foi a “modificação do universo de uma literatura já existente, importada com a conquista e submetida ao processo geral de colonização e ajustamento ao Novo Mundo (CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217., p. 199). Em outros termos, o produto estético europeu, em choque com a materialidade do mundo colonial, acabou por se modificar e incorporar, ao menos no plano das temáticas, a diversidade dos personagens que compõem o mosaico nacional. Contudo, não se operou uma abertura de espaço à pluralidade de vozes desses sujeitos subjugados pela empreitada colonial.

Para Candido, é possível dizer que no Brasil a literatura foi, em primeiro lugar, uma expressão da cultura do colonizador e que, depois, tornou-se a expressão do colono de origem europeia. Em ambos os casos, portanto, a posição decorrente da condição de dominância serviu, quase sempre, como forma bastante eficaz de impor um conjunto de valores às culturas consideradas “primitivas” que compunham o mosaico social e cultural do país. A literatura, assim, funcionou como componente central do processo colonizador. Com raras exceções, como ao fato de ao longo do território brasileiro as culturas dominadas terem sido permitidas como “apêndice” ou como “elemento pitoresco” e como forma de “realçar, distinguir e criar um contraste com a cultura dominante”, na maioria dos casos essas manifestações dos indígenas e dos africanos encontraram uma série de restrições às suas expressões. Para ele, portanto, nesse processo de imposição cultural, a literatura realizou trabalho importante, pois serviu de mecanismo de controle dos povos dominados aos ditames e às regras dos colonizadores (CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217.).

Esta conclusão se liga diretamente a um dos traçados presentes nos debates de Gênova: os mecanismos que conformaram a dominação colonial. Contudo, se a ideia do ensaio é ver em cada tendência analisada a sua “componente oposta”, conforme mencionado acima, Candido então procura caminhar também em outra direção aberta provavelmente a partir dos debates do “Terzo Mondo”: a questão da autodeterminação dos povos colonizados. Candido identifica que a colonização portuguesa, a partir do crescimento da exploração e da tentativa de imposição cultural, produziu sua própria contradição, na medida em que consolidou as classes dominantes no período colonial e, por conseguinte, abriu espaço para os choques destes grupos com os interesses metropolitanos (CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217., p. 202).

Candido tece uma crítica à leitura dos românticos de que o caráter alienante da importação das formas culturais europeias levou a elite cultural brasileira a uma situação dificultosa ao se chocar com esse afluxo externo no momento de exprimir suas próprias ideias. Ressalta ele, porém, que essa literatura, ao manter amplas relações com a realidade social que a circunda, acaba incorporando boa parte das contradições que existem no mundo material, levando-as ao nível da elaboração estética – temática e formal. Sendo assim, a própria adaptação dessa arte ao meio “americano”, ao invés de impossibilitar certa expressão local, acabou ampliando a condição de expressar um sentimento de reação à colonização. É o caso das Academias Literárias, por exemplo, que realizaram uma ampla pesquisa sobre o passado nacional e, com isso, “valorizaram as figuras dos brasileiros natos e exaltaram a importância dos seus feitos, acentuando os traços próprios do País e preparando deste modo as atitudes nacionalistas em embrião” (CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217., p. 202)

Essa ambivalência, fruto da exploração intelectual europeia sobre o cenário brasileiro, segundo ele, levou à consolidação de obras como O peregrino da América (1728), de Nuno Marques Pereira; História da América Portuguesa (1730), de Sebastião Rocha Pita; O Uraguai (1769), de Basílio da Gama; Vila Rica (1776), de Cláudio Manuel da Costa; e Caramuru (1781), de Santa Rita Durão. Sobre elas Candido (2011)_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217. lança um duplo olhar: de um lado, a ideia de que consolidaram um conformismo com relação à colonização, colocando-a como justa, aceitável e fecunda, posto que implementou um conjunto de valores morais, políticos e religiosos capazes de civilizar a barbárie do Novo Mundo. Por outro lado, nessas mesmas obras seria possível enxergar a gestação de alguns sentimentos importantes que, mais à frente, alavancariam o desejo de emancipação: em Rocha Pita, por exemplo, elabora-se um nativismo que sustenta a possibilidade de traçar uma diferenciação do país com relação à metrópole; em Basílio da Gama, ao passo que havia o elogio da ação do Estado na guerra contra as missões jesuíticas no Sul, havia também um interesse pela ordem natural da vida indígena e pela beleza do mundo americano, visão que posteriormente vai ser retomada pelo indigenismo; no Caramuru, de Rita Durão, a incorporação das ambiguidades da sociedade local valia como “glorificação do português e como glorificação do País, onde o brasileiro já começava a sentir-se coagido pelo sistema colonial” (CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217., p. 203) .

O que há de mais interessante no desenvolvimento do argumento é a ideia de que, sobretudo a partir do século XVIII, esse processo de importação da cultura e da literatura europeias nas colônias levou à criação de novos temas literários e de novas maneiras de tratar os velhos problemas. Em outros termos, algumas obras, ainda que possibilitassem um reforço da ordem política e cultural dominantes, passaram a se utilizar mais de sugestões, personagens e cenários locais, o que, para o crítico brasileiro, acabou por funcionar como uma possibilidade de afirmação das peculiaridades nacionais, abarcando sentimentos singulares contra a “superimposição externa” (CANDIDO, 2011, p. 203). Assim, o que antes era mera “imposição” vai se tornando, aos poucos, adaptação, no sentido de transformação, e a literatura que se exprime no Brasil e no resto da América Latina mudaria sua caracterização: de mera herança cultural europeia incontornável à condição de composição cultural por meio da qual os grupos dominados também podem se expressar.

Para Candido, ademais, a força dessa produção fez com que a cultura brasileira/latino-americana, especialmente no alvorecer do século XIX, caminhassem em duas direções: de um lado, aproximando-se de uma “tendência transfiguradora”, que permite uma reapropriação e uma transformação de todo o aparato intelectual e poético importado ou imposto pelas metrópoles no processo de colonização; de outro, seguindo a tendência genealógica, que procura fazer um uso ideológico do próprio passado colonial com vistas à sedimentação, em determinado presente, das configurações literárias em seus desejos de autonomia e independência. Segundo ele, são dois expedientes importantes que vão conformar boa parte do que se produziu na América Latina, no âmbito estético e artístico, ao longo do Oitocentos.

No caso da transfiguração da realidade, retoma Visão do paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda (1958)HOLANDA, Sergio Buarque. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: FFCL/USP, 1958., que teria mostrado

[...] que a colonização do Brasil sofreu a influência (mesmo freada pelo realismo português) duma série de imagens ideais a respeito da beleza, riqueza e propriedades miraculosas do continente americano, imagens bem representadas pela famosa lenda do El Dorado, que obsedou tanta gente. Este movimento da imaginação pode ser também considerado uma forma de orientar inconscientemente a realização da Conquista, pois permitiu não apenas estimular a exploração de recursos naturais, mas, indiretamente, penetrar na vastidão desconhecida e submetê-la às normas e à cultura impostas pela Metrópole.

(CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217., p. 203).

Acontece que essa imaginação literária, segundo ele, gerou duas consequências: de um lado, transfigurou a realidade da terra; de outro, submeteu-a a uma descrição objetiva, tornando o processo algo contraditório. A atitude transfiguradora poderia ser vista, de forma mais aberta, nos séculos XVII e XVIII, na linguagem de feição barroca, em que parece se ampliar o “domínio do espírito sobre a realidade” (CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217., p. 204). A explicação é que nessa expressão literária a natureza brasileira, por exemplo, passou a ser ainda mais representada, de forma alegórica, a partir de sua grandiosidade, o que servia como uma espécie de compensação diante das constatações de atraso, pobreza de recursos e toda sorte de problema congênito de ordem social. Como fator ideológico, esse estilo, de acordo com o crítico, “compensa de certo modo a pobreza dos recursos e das realizações, e, ao dar transcendência às coisas, fatos e pessoas, transpõe a realidade local à escala do sonho” (CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217., p. 204).

Entretanto, Candido ressalta que se desenvolveu, de maneira paralela, uma forma literária que prezou pela representação direta da realidade. Fortemente atrelada à emergência do século XVIII, em especial às circulações intelectuais fruto da Ilustração, adquire feições de crítica social e acaba por rascunhar o que mais à frente se desenvolveria como uma certa “consciência nacional”. O exemplo mais importante, segundo ele, são As cartas chilenas (1845), escritas por Tomás Antônio Gonzaga, que circularam na região de Vila Rica no contexto da Inconfidência Mineira. No poema são expostos, de forma veemente e satírica, argumentos críticos contrários aos desmandos administrativos e abusos do poder no governo das Minas Gerais, região que à época vivenciava, ainda, os impactos importantes da exploração mineradora.

Alguns escritores, misturando tanto a visão utópica dos nativistas transfiguradores da realidade quanto a mentalidade dos precursores do nacionalismo, chegaram a delinear algumas formas de crítica no sentido de perceber o que havia de danoso na manutenção e perpetuação do pacto colonial europeu.

E os que se reuniram a fim de debater e aventar soluções para tais problemas foram presos, processados, exilados, infamados socialmente, tanto na repressão da Inconfidência Mineira, de 1789, quanto da que se poderia chamar Inconfidência Carioca, de 1794. Esses poetas, eruditos, sacerdotes exprimem a maturidade da inteligência brasileira aplicada ao conhecimento e à expressão do País. A sua tomada de posição, que caro lhes custou, pode ser considerada o primeiro sinal concreto do movimento que terminaria com a independência política em 1822. E isto mostra como a literatura foi atuante na imposição dos padrões culturais e, a seguir, também como fermento crítico capaz de manifestar as desarmonias da colonização.

[...] Feita a independência política, difundiu-se entre os escritores a ideia de que a literatura era uma forma de afirmação nacional e de construção da Pátria; daí subsistirem, como antes, os dois aspectos indicados.

(CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217., p. 2007).

É o novo gênero do romance, especialmente a partir de 1840, que vai se constituir como um instrumento de “sondagem social” capaz de explorar, de forma crítica e poética, a vida na cidade e no campo, abarcando classes e grupos sociais distintos, na busca por esboçar um quadro denso e complexo da nação em construção. Nos dizeres de Bakhtin (1988, p. 400)BAKHTIN, Mikhail. Questões da literatura e da estética: a teoria do romance. São Paulo: Unesp, 1988., “o romance tornou-se o principal personagem do drama da evolução literária na era moderna precisamente porque, melhor que todos, é ele que expressa as tendências evolutivas do novo mundo”. O que Candido vai chamar de tendência genealógica, inclusive, emerge disso: a existência, na literatura, de um uso ideológico do passado para reafirmar alguma posição em determinado presente dos séculos XIX e XX, a partir das amplas transformações e modificações sócio-históricas que afetavam o Brasil e a América Latina.

De fato, a “tendência genealógica” consiste em escolher no passado local os elementos adequados a uma visão que de certo modo é nativista, mas procura se aproximar o mais possível dos ideais e normas europeias. Como exemplo para ilustrar este fato no terreno social e no terreno literário, intimamente ligados no caso, tomemos a idealização do índio. Àquela altura, nas zonas colonizadas este já estava neutralizado, repelido, destruído ou dissolvido em parte pela mestiçagem. Para formar uma imagem positiva a seu respeito contribuíram diversos fatores, entre os quais a condição de homem que os jesuítas lhe reconheceram; a abolição da sua escravização em meados do século XVIII; o costume dos reis portugueses de conferir categoria de nobreza a alguns chefes que, nos séculos XVI e XVII, ajudaram a conquista e defesa do País; e finalmente a moda do “homem natural”. Tudo isso ajudou a elaborar um conceito favorável, não sobre o índio de todo o dia, com o qual ainda se tivesse contato, mas sobre o índio das regiões pouco conhecidas e, principalmente, o do passado, que se pôde plasmar com a imaginação até transformá-lo em modelo ideal.

(CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217., p. 208-209).

No Indianismo e no Romantismo brasileiros, essa visão teria se fortalecido no intuito político das elites locais de negar os valores ligados à colonização portuguesa. A busca por uma diferenciação entre colônia e metrópole levou à articulação, no plano literário, de uma narrativa capaz de buscar no próprio passado nacional uma contribuição para o germinar da brasilidade. O índio, por exemplo, vira símbolo nacional de afirmação das particularidades locais, ainda que enxergado de forma exótica e alegórica. Retoma-se a discussão sobre a “contribuição” dos nativos à formação da literatura brasileira: pelos critérios de Candido, especialmente ligados à noção de sistema literário (autor, obra e público), a influência é remota. Do ponto de vista temático, enquanto elemento constitutivo do “espírito nacional”, é retomado, portanto, de forma folclórica e caricatural.

Trata-se, em certa medida, de uma postura crítica em relação às recorrentes imagens construídas anteriormente sobre a complexa formação multiétnica brasileira e latino-americana. Candido não nega a importância social de “negros e índios” para a construção dessas nações. O que procura discutir e colocar como ponto de análise é o fato de que, por um lado, a essas etnias foi dispensada toda sorte de violência, exploração e cerceamento como forma de controle e imposição cultural do repertório externo produzido no âmbito das metrópoles. O que ele não nega, também, e é aqui que seu argumento avança com mais força, é o fato de que a empreitada colonizadora europeia na América Latina, em especial no Brasil, criou ela própria a força motriz que a partir do século XVIII consolidou um sentimento nacional e anticolonial que levou tanto à emancipação política quanto à busca por emancipação estética.

Formação e dialética

Em linhas gerais, “Literatura de dois gumes” procura perceber como as literaturas periféricas, produzidas em espaços pós-coloniais6 6 Cabe aqui uma ressalva importante de que usamos o termo pós-colonial, em primeiro lugar, no sentido cronológico, relacionado ao período pós-independência. Para um debate mais aprofundado sobre isso, cf. Ballestrin, 2013. , são sempre uma expressão de dois gumes, formada no processo dialético entre o geral (a mentalidade e as normas da Europa) e o particular (aspectos próprios da localidade). Ao avançar na hipótese de que toda produção estética latino-americana, em específico, é um jogo complexo de formas nacionais e internacionais, locais e universais, que se manifestam de forma entrecruzada, em choques, conflitos e dilemas, toma como regra geral a ideia de que as culturas de caráter pós-colonial têm como característica central a produção de fenômenos ambivalentes. Como exemplo, Candido cita novamente o Romantismo, expressão carregada da missão de difusão do “espírito nacional”, que, atravessada pelo sentimento de euforia7 7 A ideia de um “nacionalismo eufórico” vai ser melhor desenvolvida, na perspectiva de uma consciência histórica, no ensaio “Literatura e subdesenvolvimento” (CANDIDO, 1970). , acabava caindo na ingenuidade inócua de tentar suprimir todo e qualquer tipo de contato com o influxo externo de ideias. Outro caso é o do Classicismo e da literatura colonial, que ao longo do tempo foram convencionalmente consideradas apenas um conjunto de produções ligadas à norma europeia, reflexas, ou seja, produtos estéticos que perseguiam a cópia dos das molduras culturais da metrópole (CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217.).

Na busca pelo “sentimento dos contrários”, ele vai enxergar, em primeiro lugar, a outra face desse Classicismo, em que a escritura que tentava estabelecer um contraste com relação ao “primitivismo reinante” na Colônia levou à preservação da existência da própria literatura. Ao tentar fazer do escritor um cidadão da “república universal das letras”, foi “fator de civilização do país” e neutralizou o perigo de “absorção” da cultura pelo “universo do folclore”.

Daí a sua capacidade crítica, às vezes mesmo a sua rebeldia, como verificamos em diversos aspectos da obra de Gregório de Matos, ou, de modo mais engajado, nos poetas chamados arcádicos do século XVIII. Portanto, o que havia de negativamente artificial na moda clássica foi compensando por esta circunstância, graças à qual certos escritores de valor dos séculos XVII e XVIII parecem às vezes menos provincianos, mais abertos para os grandes problemas do homem do que muitos românticos do século XIX, enrolados no egocentrismo e no pitoresco.

(CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217., p. 214).

O esboço desse horizonte foi desenhado por Pascale Casanova em A República Mundial das Letras (2002). Para ela, é no século XVI que se cria um espaço literário internacional, cuja “geografia constituiu-se a partir da oposição entre uma capital literária (e portanto universal) e regiões que dela dependem (literariamente), e que se definem por sua distância estética da capital” (CASANOVA, 2002CASANOVA, Pascale. A República Mundial das Letras. São Paulo: Estação Liberdade, 2002., p. 26). Já no século XIX, com a difusão de uma nova concepção de “nação”, essas instâncias nacionais, em especial no caso latino-americano, vão servir de alicerce para o produto estético, em grande medida por conta dos impulsos políticos emancipatórios, procurando se afastar das metrópoles. Essa relação direta e original da literatura com as nacionalidades emergentes conformaria, em alguma medida, um dos princípios básicos da desigualdade que estruturaria o universo literário mundial e que impediria, à luz de uma economia simbólica internacional, a alocação de forma igualitária dos produtos estéticos elaborados nas diversas regiões do mundo. Ieda Magri identifica em nesse argumento um esforço de enxergar a “literatura mundial” como uma espécie de dessincronização de diversos “mundos”, em que escritores, letrados e intelectuais das regiões periféricas do sistema mundo operam verdadeiras “revoluções” em direção às balizadas da própria “modernidade literária”, medida pelo “meridiano de Greenwich literário”. (MAGRI, 2019MAGRI, Ieda. O Brasil na América Latina: diante de uma ideia de literatura mundial. Estudos Literários Brasileiros Contemporâneos, Brasília, n. 56, 2019., p. 03-04).

Restringir-se à produção de uma literatura voltada à formação nacional seria, portanto, uma forma de se afastar do sistema literário mundial. O ponto é que Candido considera que a outra atitude, uma “abertura à universalidade”, antes de servir de alinhamento da produção literária periférica às regiões centrais, trouxe de positivo a possibilidade de traçar uma linha de contraste entre a “civilização europeia” e o “meio rústico colonial”. E é exatamente nessa condição de diferenciação que se desenha, de forma paulatina, uma consciência de nação diante do cenário mundial. Nesse sentido, o que ele considera interessante, de todo modo, é uma continuidade histórica entre a literatura da colonização e o Romantismo, posto que ambas estavam orientadas pela mesma tendência, isto é, o duplo processo de integração e diferenciação, de incorporação do geral (mentalidades europeias) para obter a expressão do particular, ou seja, os aspectos novos que iam surgindo no processo de amadurecimento do país.

Em suma, “Literatura de dois gumes” procura abordar as “literaturas nacionais da América Latina no que têm de prolongamento e novidade, cópia e invenção, automatismo e espontaneidade” (CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217., p. 199). Não bastasse o avançar do argumento com relação às definições de Formação da literatura brasileira (CANDIDO, 1959CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1750-1880). São Paulo: Livraria Martins Editora, 1959. 2 v.), surpreende, por fim, que Candido esboce aqui uma inversão da lógica de dominação entre colonizador e colonizado ao falar que as literaturas latino-americanas “foram se tornando variantes de tal modo diferenciadas das literaturas matrizes que, já nos últimos cem anos, chegaram nalguns casos a influir nelas” (CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217., p. 199). Essa visão é compartilhada – e radicalizada – por Roberto Fernandez Retamar, intelectual também presente no “Terzo Mondo”:

La influencia de nuestra América sobre Europa es pues multisecular. Desde el florecimiento de utopías en el alborear de la sociedad europea burguesa, y los numerosos ritmos musicales (esa “bullanguera novedad venida de Indias” de que ha hablado Carpentier) que desde entonces empezaron a invadir a países europeos junto con el humo de nuestro tabaco, tenido al principio (y al final) como diabólico, éste es un proceso ininterrumpido. Es verdad que una tenaz ignorancia eurocéntrica, y a menudo triste y habitual prepotencia de toda metrópoli, entre otras razones, impidieron a los países de Europa, por ejemplo, beneficiarse hace un siglo del conocimiento de la obra de un hombre universal como José Martí. Sólo en años recientes comienza a alborear para esos países tal conocimiento. En estos años, también, la llamada “nueva novela latino-americana” hace sentir su presencia en muchos países europeos. La razón de esto es sencilla: si bien Martí fue incuestionablemente superior a los escritores de la nueva novela latinoamericana (entre los cuales hay algunos magníficos) a aquél le tocó vivir una época en la cual nuestra América todavía no había comenzado a desempeñar un papel sobresaliente en la historia. Incluso en 1938 un poeta de la dimensión de César Vallejo murió prácticamente de hambre en París, sin que ninguno de sus libros hubiera sido traducido a otra lengua; sin que su nombre, el nombre del mayor poeta latinoamericano del siglo XX, hubiera trascendido más allá de unos cuantos círculos de enterados. Y es que tampoco en 1938 nuestra América ocupaba un lugar destacado en la historia mundial. Otro ha sido el escenario histórico con que se han visto benefeciados los autores de la nueva novela latinoamericana. A partir de 1958, es decir, a partir del triunfo de la Revolución Cubana, nuestra América entró por la puerta grande de la historia. Lo que ocurriera en nuestras tierras iba a tener repercusión mundial. E incluso lo que, partiendo de ellas, llegaria a otros continentes.

(RETAMAR, 1992FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. América, descubrimientos, diálogos. Actual (Mértula). Venezuela, 1992., p. 55-56).

De certa forma, ainda que em profundidades diferentes, as duas leituras caminham na mesma direção: entendem que, no contexto latino-americano, as relações estabelecidas entre os colonizados e suas respectivas “matrizes metropolitanas” se deram a partir de um processo dinâmico e, sobretudo, dialógico. Eles recusam a tese comum da simples imposição do dominador sobre o dominado, que leva à constatação cristalizante dessas culturas pós-coloniais como produto fruto de cópia do “espírito europeu”. Além disso, procuram articular também uma inversão argumentativa que acrescenta complexidade à questão: a capacidade de essa América Latina, zona periférica, influir, a partir de temas e formas, no que se produz nas regiões consideradas de centro, em especial a mesma Europa. Candido, em específico, procura verificar isso tendo em vista também as produções literárias nacionais do continente em meio às disputas com os afluxos estrangeiros ao longo dos séculos XIX e XX.

Explorando a tese já conhecida da existência de um “sentimento de contrários” – a apropriação de um repertório cultural externo e a busca por uma autonomia local – que orientou a formação literária brasileira entre os séculos XVI e XIX, as ideias de Candido que aqui analisamos, produzidas “na esteira” do encontro de Gênova, ampliaram o horizonte analítico construído em seus clássicos da década anterior. Ao invés de falar apenas em “transplante” dos padrões europeus às colônias, ressalta a condição adaptativa desse contato e, especialmente, o potencial transfigurador da “formação americana” ao longo do processo colonizador. Nesse sentido, traçou-se um processo dialético em que o geral e o particular, o universal e o local, em um complexo jogo de forças, produziram uma cultura específica e singular, com seus traços de continuidade em relação ao repertório externo e de particularidade ligada à vida local. Em “Literatura de dois gumes”, assim, se encontra o esboço desse argumento, que parece incorporar parte do vocabulário político-cultural e das categorias analíticas e perspectivas teóricas que circularam e foram discutidas no até hoje pouco conhecido encontro do “Terzo Mondo”.

  • 2
    Como Candido não pode comparecer ao evento, foi traduzido e apresentado, na ocasião, por Celso Lafer. Em inglês, foi publicado na Luso-Brazilian Review (CANDIDO, 1968_____. Literature and the rise of Brazilian national self-identity. Luso-Brazilian Review, v. 5, n. 1, 1968, p. 27-43.). Depois, em português, no Suplemento Literário de Minas Gerais com o nome de Literatura e consciência nacional, em 1969. Utilizaremos a versão publicada em A educação pela noite (CANDIDO, 2011_____. (1966). Literatura de dois gumes (1966). In: _____. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 197-217.).
  • 3
    Segundo o jornal, estavam presentes figuras como Jean Paul Sartre, Salvador Madariaga, Damaso Alonso, Roger Caillois, Jean Cassou, Roger Bastide, dentre os europeus; e Miguel Angel Asturias, Alejo Carpentier, Jorge Luis Borges, Ciro Alegria, Eduardo Mallea, Juan Rulfo, Jaime Torres Bodet, Gilberto Freyre, João Guimarães Rosa, Alceu de Amoroso Lima, Jorge Amado e Érico Veríssimo, dentre os latino-americanos.
  • 4
    Para um debate mais aprofundado sobre a importância do IHGB e das teses de Von Martius, cf. Guimarães, 2000GUIMARÃES, Manoel Salgado. História e natureza em von Martius: esquadrinhando o Brasil para construir a nação. Manguinhos – História, Ciências, Saúde [online], v. 7, n. 2, 2000, p. 391-413.; Schwarcz, 1997_____. Usos e abusos da mestiçagem e da raça no Brasil. AFRO-ASIA, Bahia, n. 18, 1997, p. 31-45..
  • 5
    No conjunto da obra de Candido, esse conceito encontra difícil definição. Em alguma medida, associa-se, quase sempre, às expressões culturais não eruditas ou às formas literárias “não consagradas”. Para Anita Moraes, “o folclore se caracteriza, na perspectiva do autor, pela pouca autonomia da palavra quanto a elementos performáticos, que são também sonoros e visuais” (MORAES, 2012MORAES, Anita Martins Rodrigues de. Da natureza à cultura: literatura e folclore no pensamento de Antonio Candido. Brasa Conference, 11, Champaign-Urbana, 2012., p. 5).
  • 6
    Cabe aqui uma ressalva importante de que usamos o termo pós-colonial, em primeiro lugar, no sentido cronológico, relacionado ao período pós-independência. Para um debate mais aprofundado sobre isso, cf. Ballestrin, 2013BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista brasileira de ciência política, n. 11, 2013, p. 89-117..
  • 7
    A ideia de um “nacionalismo eufórico” vai ser melhor desenvolvida, na perspectiva de uma consciência histórica, no ensaio “Literatura e subdesenvolvimento” (CANDIDO, 1970_____. Literatura e consciência nacional. Suplemento Literário de Minas Gerais, 1969, p. 8-11.).
  • O título deste texto faz alusão à proposta de Rodrigo Ramassote (2010)RAMASSOTE, Rodrigo. Antonio Candido em Assis e depois. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 50, 2010, p. 103-128. de pensar a mudança na trajetória intelectual de Antonio Candido a partir da experiência na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis (atualmente integrada à Unesp). Ramassote tem por referência texto de Antonio Candido sobre Sérgio Buarque, no qual se discute o impacto da jornada alemã na vida do historiador brasileiro (CANDIDO, 1982_____. Sérgio em Berlim e depois. Novos Estudos, n. 3, 1982, p. 4-9.).
  • BARBOSA, Cairo de Souza. “Terzo Mondo” em transe: Antonio Candido em Gênova e depois. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 76, p. 105-125, ago. 2020.

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  • _____. Literature and the rise of Brazilian national self-identity. Luso-Brazilian Review, v. 5, n. 1, 1968, p. 27-43.
  • _____. Literatura e consciência nacional. Suplemento Literário de Minas Gerais, 1969, p. 8-11.
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  • _____. Sérgio em Berlim e depois. Novos Estudos, n. 3, 1982, p. 4-9.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2019
  • Aceito
    22 Jul 2020
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