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Ficção, história e sociedade na literatura de Chico Buarque (uma sinopse)

Fiction, history and society in Chico Buarque’s literature (a synoptic overview)

RESUMO

O artigo apresenta uma visão de conjunto da obra literária de Chico Buarque desde os anos 1990, focalizando a representação e a estilização da experiência social contemporânea. Destaca-se, no curso histórico subjacente, um processo de fragmentação e despolitização da sociedade como um todo, cujos efeitos são elaborados em configurações ficcionais particulares.

PALAVRAS-CHAVE
Chico Buarque; sociedade contemporânea; invenção ficcional

ABSTRACT

This paper presents a synoptic overview of Chico Buarque’s literary work since the 1990s, and focuses on the representation and stylization of contemporary social experience. It emphasizes, in the underlying historical course, a process of fragmentation and de-politicization of society as a whole, the effects of which are worked out in particular fictional configurations.

KEYWORDS
Chico Buarque; contemporary society; fictional creation

A literatura de Chico Buarque publicada a partir dos anos 1990 é marcada pela experiência histórica da sociedade contemporânea, sempre transposta pelo trabalho imaginativo para um plano ficcional criado com grande inventividade. A despeito da variedade temática e amplitude temporal que os seis romances e o volume de contos abarcam, certa visão da atualidade funciona como ponto de ancoragem da fabulação.

Em geral, seus narradores e personagens centrais tendem a apresentar consciências limitadas na compreensão das situações em que se envolvem, gerando um estranhamento do mundo circundante, que a narração elabora em tonalidade sobretudo cômica e, por vezes, sombria. Alguns enredos são intrincados, embora não obscuros, ao mesmo tempo que a mestria no trato da linguagem e a fluência discursiva produzem o efeito de uma legibilidade incomum, o que exige do leitor certo esforço de apreensão das conexões dispersas na construção rigorosa.

No que segue, busca-se apresentar algumas linhas gerais da ficção buarquiana, procurando salientar a figuração da experiência social contemporânea e suas articulações com o passado histórico, elaboradas na construção literária dos romances e contos do autor.

Desde a recepção inicial, os traços mais marcantes de Estorvo (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.) foram associados a um sentimento difuso de perda, desnorteamento ou desagregação. O ritmo acelerado da prosa, a atmosfera alucinatória, a mistura de realidade e fabulação, o enredo labiríntico, as reincidências, a aparente indeterminação social do protagonista, a desestabilização geral do sentido - tudo isso de fato marca a cada passo o percurso errático traçado pelo personagem-narrador, produzindo um estranhamento extremado do presente. E é significativo que, de diferentes ângulos, várias leituras do romance tenham sugerido, na primeira hora, que a realidade de pesadelo configurada em Estorvo seria uma transposição literária, pela imaginação ficcional, do estado de decomposição do próprio país2 2 Cf. os artigos de Benedito Nunes (1991), Sérgio Sant’Anna (1991), Roberto Schwarz (1999) e Massi (1Augusto 991). No ano seguinte à publicação do romance, Leyla Perrone-Moisés (1992) sugeriu que Estorvo apreende não apenas um dado estrutural da história brasileira, mas remete também ao quadro de uma pós-modernidade mundial. A observação é proveitosa desde que entendamos esse quadro como o do mundo periferizado da modernização em colapso. . Nesse ponto, as leituras em questão convergiam com a de Roberto Schwarz (1999)SCHWARZ, Roberto. Um romance de Chico Buarque. In: SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 178-181. [Originalmente publicado com o título “Sopro novo”, Veja, 7 de agosto de 1991, p. 98-99.], que se firmou como a análise mais aguda da figuração do Brasil contemporâneo nesse romance de Chico Buarque.

O que se discernia então era um país cujos frágeis alicerces pareciam se dissolver de vez, e as categorias tradicionais de interpretação, pautadas numa visão progressiva da história, se mostravam insuficientes para compreendê-lo. A segregação dos polos sociais é um dado do romance, com os ricos fechados em seus condomínios hipervigiados e as camadas populares voltadas ao crime ou submetidas ao trabalho semiescravo, assinalando na narrativa algumas formas de violência social que incitavam medo e insegurança. Ao mesmo tempo, o conjunto das relações entre a elite, a polícia e os traficantes - que o percurso do protagonista de certo modo condensa, com o roubo das joias da irmã e o envolvimento com os criminosos que ocuparam o sítio da família - indica uma promiscuidade social em que todos participam da delinquência, já que o próprio senso da norma e dos padrões parece ter desaparecido.

A experiência histórica que se inscrevia no presente estranhado de Estorvo era a da modernização consumada ou colapsada, embora ainda não fosse descrita nesses termos. Ou seja, uma sociedade que não é mais tensionada internamente por um impulso transformador e, por isso mesmo, inteiramente ajustada ao horizonte raso da realidade existente, sem a prospecção de algo em que devesse se tornar. Em seus efeitos mais perceptíveis, o romance assinalava uma espécie nova de alienação - no protagonista, bem como nas camadas populares -, resultante de certo apagamento do passado histórico e da despolitização generalizada.

É certo que o passado pessoal do narrador (a que ele constantemente se reporta com a expressão “há cinco anos”) atua como o único ponto de referência para que ele tente, em vão, compreender o presente, mas o passado histórico, em sua dimensão coletiva, parece ter se dissolvido quase completamente. Isso se mostra no episódio em que o protagonista evoca o amigo que tinha vivido uma história “conhecida e admirada por gente de sua geração” (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991., p. 41), mas que o narrador desconhece e nunca teve interesse em conhecer3 3 Cabe lembrar que, ao indicar na obra a perplexidade de um “veterano de 68”, Schwarz (1999, p. 180) buscava caracterizar, não tanto o personagem-narrador, mas sim o ponto de vista que se depreende da composição formal do romance. . No último encontro entre eles, à beira da piscina do sítio, o amigo, bêbado, se torna agressivo e tem um rompante esquerdista, incitando o protagonista a renunciar às terras e gritando “Venham os camponeses!” (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991., p. 78). O gesto do amigo, ainda que caricatural, alude a um momento histórico relativamente recente, mas já incompreensível para o narrador, assim como para os próprios trabalhadores do sítio - “aquele pessoal achou diferente” (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991., p. 78).

Nesse sentido, cabe lembrar que, comentando os dois primeiros romances de Chico Buarque, Marcelo Coelho (1995, p. 9)COELHO, Marcelo. Benjamim se recusa a suscitar emoções. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 20 de dezembro de 1995, p. 9. projetou sobre eles uma visão desencantada do autor ligada à “impossibilidade de se recuperar o passado pré-64” num quadro histórico em que “a derrota se abateu sobre um país que não se reconhece mais a si mesmo” (COELHO, 1994COELHO, Marcelo. Estorvo. In: COELHO, Marcelo. Gosto se discute. São Paulo: Ática, 1994, p. 61-65. [Originalmente publicado com o título “Chico Buarque faz um livro ‘impopular’”, Folha de S. Paulo, Ilustrada, 7 de agosto de 1991, p. 12.], p. 64). Na leitura de Coelho, o povo com que a esquerda se solidarizava no passado agora se entrega à criminalidade, ao consumismo e à alienação, tornando-se irreconhecível. Por isso, ele entende que os nomes próprios esquisitos que aparecem nos dois romances expressam “a estranheza [...] das camadas populares, tais como aparecem aos olhos da classe média-alta progressista” (COELHO, 1994COELHO, Marcelo. Estorvo. In: COELHO, Marcelo. Gosto se discute. São Paulo: Ática, 1994, p. 61-65. [Originalmente publicado com o título “Chico Buarque faz um livro ‘impopular’”, Folha de S. Paulo, Ilustrada, 7 de agosto de 1991, p. 12.], p. 9)4 4 Retomando a ideia de Coelho, Marcelo Ridenti (2014, p. 212) comentou Benjamim ressaltando a impossibilidade de retorno às condições da realidade pré-1964. Também Fernando de Barros e Silva (2004, p. 44) glosou a observação de Coelho, estendendo-a para o conjunto da obra buarquiana, em que a referência popular como possibilidade política seria substituída pela visão de um país modificado na saída da ditadura, em que “o povo teria em algum momento traído a si mesmo”. A seu modo, José Miguel e Guilherme Wisnik (2004, p. 247) identificaram uma questão semelhante, indicando como a obra de Chico acompanha “as transformações sociais, culturais e psicológicas do mundo popular”, incluindo “o processo de desagregação que vai levar, no extremo, ao romance Estorvo”; para os autores, esse processo indicaria “a desaparição de uma forma de relação política (o paternalismo populista) [e] o obscurecimento de uma entidade concreta e historicamente formada (o povo)”. .

Em outros termos, desfez-se a perspectiva de uma aliança política entre a classe média radical, que em parte se integrou à dinâmica do país modernizado, e as camadas populares, que teriam deixado de aparecer como portadores de uma sociabilidade antiburguesa ou como agentes da mudança social. Como se sabe, os anos anteriores a 1964 haviam sido marcados pela confluência de adensamento intelectual, experimentação artística, cultura popular e radicalização política, num contexto de luta contra o subdesenvolvimento. O amálgama de experiências sociais e intelectuais que se formou, cheio de promessas, empurrava o processo para a transformação do país em direção democratizante e foi cortado pela contrarrevolução preventiva instaurada pelo golpe militar e a repressão que se seguiu (cf. SCHWARZ, 1978SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-69. In: SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 61-92.; 2012bSCHWARZ, Roberto. Verdade tropical: um percurso de nosso tempo. In: SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012b, p. 52-110.)5 5 Leituras recentes dos romances de Chico Buarque vêm salientando a importância de se considerar o contexto da ditadura de 1964 para a compreensão adequada das obras. Sobre Estorvo, ver a tese de João Vitor Rodrigues Alencar (2022). .

Uma passagem do estudo de Schwarz sobre Estorvo parece convergir com a observação de Coelho. Ele destaca a cena de um tumulto, com aglomeração de curiosos, a presença da polícia e repórteres da televisão, além de trabalhadores do prédio em que um homem havia sido assassinado. Uma “baixinha com cara de índia” defende o filho, que é detido como suspeito do crime e, diante das câmeras, argumenta contra a arbitrariedade da polícia. Observando a cena, o narrador “começ[a] a ficar a favor da mãe índia” (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991., p. 44), no único momento do romance em que ele manifesta simpatia por alguém. Na sequência, o cameraman avisa sobre um problema técnico, e o repórter pede para a mulher repetir a fala, enquanto o narrador pensa preferir que ela não repetisse a cena, “porque saiu confusa, e vai comprometer ainda mais o filho na televisão”, mas a mulher chora com exagero e se esgoela até ser ela também levada num camburão. Schwarz (1999SCHWARZ, Roberto. Um romance de Chico Buarque. In: SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 178-181. [Originalmente publicado com o título “Sopro novo”, Veja, 7 de agosto de 1991, p. 98-99.], p. 180) observa que o episódio “talvez marque um horizonte de época”, pois o “desejo de tomar partido dos pobres e de vê-los defender na rua os seus direitos” parece uma reação proveniente de tempos remotos e que hoje se esvaziou.

Sugerindo que a própria aspiração a uma sociedade melhor parece ter perdido seu enraizamento na realidade, a cena assinala uma mutação histórica, envolvendo a redefinição de todo um imaginário coletivo sobre o futuro, que deixa de ser vivenciado no modo da promessa e agora é percebido somente como a iminência do pior.

O fundamento dessa redefinição liga-se ao processo de modernização que havia se consumado, implicando transformações econômicas que não encontram representação direta na narrativa, mas cujas consequências podem ser entendidas como parte da matéria histórica que o romance elabora. De certo modo, a dinâmica reconfigurada das relações de trabalho, que gera massas supérfluas lançadas de volta à velha-nova informalidade da viração e do crime, já era um pressuposto social da configuração ficcional de Estorvo. O protagonista, em sua indefinição social e suas perambulações erráticas, é como que tragado por um torvelinho que o leva à marginalidade, sendo arrastado por um destino “fatalizado” que, indiretamente, parece estilizar efeitos do quadro contemporâneo, em que a descartabilidade da população excedente e sua reinserção pelos ilegalismos se converteram em norma geral, ainda que isso seja figurado por meio do decaimento de uma personagem proveniente da classe média alta.

Em outras obras de Chico Buarque, o passado histórico ganha figurações mais diretas, e nelas ressoa a mudança dos tempos anunciada em Estorvo. O período da ditadura militar de 1964, notadamente, define a ambiência dos eventos relembrados pelo protagonista de Benjamim (BUARQUE, 1995BUARQUE, Chico. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.). Para ele, no entanto, o passado obsedante é percebido menos como um momento histórico de enfrentamento político do que como tragédia pessoal, ligada à perda da mulher amada, Castana Beatriz. Em sua busca por ela, que, assumindo nome falso, havia se integrado a um grupo político clandestino, Benjamim acaba inadvertidamente conduzindo ao esconderijo de Castana as forças da repressão que a assassinam.

O protagonista percebe no presente apenas os vestígios do passado que o assombra, acreditando encontrar em Ariela, uma jovem que conhece por acaso, a suposta filha de Castana. Na representação da cena contemporânea, em que os vínculos objetivos com o passado histórico não estão dados, Benjamim se torna vítima de uma espécie de grupo de extermínio composto de policiais amigos de Jeovan, o namorado de Ariela. Tendo sido violentada por um cliente em seu trabalho como corretora de imóveis, Ariela é convencida pelo dono da imobiliária a atrair o estuprador a um imóvel distante no qual os amigos de Jeovan executam o violador. O justiçamento se converte em hábito, e Ariela se submete a cumprir seu papel, conduzindo os abusadores, reais ou não, para o fuzilamento.

É nessas circunstâncias puramente fortuitas que Benjamim é executado sem motivo, o que ocorre, também por acaso, no mesmo sobrado verde-musgo em que Castana havia sido assassinada. Exceto por essa coincidência, a narração não apresenta conexões entre o passado e o presente, entre as formas de violência que levam às mortes de Castana e de Benjamim. Mas a sobreposição dos tempos, que se dá por via da consciência do personagem, embora ele mesmo não possa saber a razão de seu fuzilamento, sugere paralelos entre o passado e o presente, ainda que o sentido da junção que a narrativa promove não seja evidente.

De qualquer modo, a passagem histórica da exceção da ditadura para a chamada normalidade democrática foi acompanhada de um significativo processo de despolitização. Como observou Paulo Arantes (2014, p. 293-294)ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo e outros ensaios sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014., um dos efeitos devastadores da ditadura foi o apagamento da memória de que já houve no país lutas políticas efetivas e mobilização real de pessoas comuns. E, instaurando a exceção permanente, com sua característica indistinção entre a lei e a infração, a ditadura abriu a nova temporalidade da emergência, que passou a ser gerida por um Estado securitário e punitivo. Mesmo sem emergir à superfície em todos os seus efeitos, esse processo subjaz à matéria dos romances de Chico Buarque, nos quais os indícios do novo tempo estão espalhados na figuração da sociedade fragmentada e entregue à pura necessidade econômica, produzindo relacionamentos pautados em diversas formas de violência e no salve-se-quem-puder da autopreservação num quadro de terra arrasada.

É significativo que, na cena presente de Benjamim, se destaque a campanha eleitoral de Alyandro Sgaratti, como a indicar em que se converteu a política. Antigo ladrão de carros e depois dono de revendedora de autopeças, o personagem enriqueceu loteando terrenos do Estado e levantando conjuntos habitacionais, e, de quebra, fundou uma instituição de assistência ao menor carente. Agora ele se lança como candidato ao Congresso Nacional, com o inacreditável slogan “Alyandro Sgaratti, o companheiro xifópago do cidadão!” (BUARQUE, 1995BUARQUE, Chico. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., p. 73), impresso sobre uma foto em que aparece unido pelo tórax a figurantes que representam o povo. Junto com a trajetória do escroque, em que falcatruas proporcionam sua ascensão e prestígio, a feição de marketing da campanha e a política reduzida à faceta eleitoral indicam traços do país que se reordenou na nova liberdade pós-ditadura.

Os temas ligados ao terrorismo de Estado da ditadura aparecem em outras obras. É o que se vê em O irmão alemão (BUARQUE, 2014BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.), em que Francisco de Hollander, o personagem-narrador, se vê às voltas com a descoberta de que seu pai havia engravidado uma namorada na época em que trabalhara na Alemanha, só vindo a saber da existência do filho quando já estabelecido de volta no Brasil. Mas tão importante quanto a busca do protagonista pelo irmão alemão é o desaparecimento de seu irmão brasileiro (cf. WELTER, 2017WELTER, Juliane Vargas. Onde andarão Castana, Matilde, Sergio, Domingos, Ariosto...? Os desaparecidos como princípio formal dos romances de Chico Buarque. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 66, abril de 2017, p. 69-85. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i66p69-85.
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901...
). Antes dele, um amigo do protagonista, Ariosto, é “desaparecido” pela polícia, o que leva sua mãe a confrontar autoridades e a recorrer a um industrial que tem amizades nos quartéis para tentar, sem sucesso, obter informações sobre o filho. Após envolver-se com a namorada de Ariosto - uma jovem argentina referida como uma montonera -, o irmão brasileiro também desaparece, mas o protagonista não se mobiliza para encontrá-lo.

Nesse romance, a tortura ganha figuração detalhada, mas filtrada pela fantasia do narrador politicamente descomprometido e com um toque de comicidade que distancia a cena, sem sentimentalizar ou atenuar seu horror:

Já eu, submetido a descargas elétricas intermitentes, em dúvida se era mais lancinante a dor em si ou sua expectativa, não pretenderia me tornar um herói da resistência. Mas tampouco teria como cooperar no interrogatório sem nada saber dos descaminhos do meu amigo, dos seus colegas de armas, dos seus pontos de encontro, do organograma do seu grupo, dos seus contatos no exterior, dos seus nomes de guerra. Só me viriam à cabeça segredos da minha infância com o Pernalonga, o Capitão Marvel, o Homem Borracha e que tais, e ao ouvir meus balbucios o major enfurecido aceleraria a manivela de modo a intensificar a corrente elétrica, o que me provocaria vômitos, convulsões e inopinadamente uma parada cardíaca. (BUARQUE, 2014BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 187-188).

Note-se de passagem que o trecho acima, com a lembrança de personagens do imaginário infantil em meio à tortura fantasiada, fornece um paralelo possível para a leitura do conto “Copacabana”. O conto é o relato extravagante, aparentemente apenas cômico, de fabulações amalucadas de um sujeito que imagina ter encontrado figuras ilustres do mundo cultural, como Pablo Neruda e Jorge Luis Borges, Ava Gardner e Romy Schneider, além de mencionar Pinochet e um general “Etchegoyen ou Etcheverría” (BUARQUE, 2021BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 96). Ao mesmo tempo, esses elementos, lidos em conjunto com o trecho citado de O irmão alemão, podem sugerir que a estrutura da narrativa se assemelha aos meandros da consciência confusa de alguém submetido a tortura - no caso, um jovem que é incumbido de ciceronear personagens que aparecem e desaparecem misteriosamente, que andara com comunistas e que, em seu discurso tortuoso, se retifica algumas vezes para retomar o relato. O personagem-narrador sente náuseas depois de ser instado a andar em brinquedos de um parque de diversões (alusão aos instrumentos de tortura?) e é por fim lançado a um rinque de patinação onde supõe entrever o corpo de Pablo Neruda sob o gelo. A sobreposição de temporalidades parece insinuar vínculos ocultos, como ocorre em outras narrativas.

A época da ditadura é diretamente evocada no título Anos de chumbo e outros contos (BUARQUE, 2021BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.). Na arquitetura interna do livro, o conjunto de contos sugere novas justaposições entre o passado e o presente6 6 Para uma análise aguda dos contos, ver o artigo de Ivone Daré Rabello (2022). . O contraste entre a referência histórica no título do livro e a ambiência contemporânea do conto que abre o volume já produz um primeiro estranhamento. Ainda mais chocante é o próprio enredo de “Meu tio”, com a representação da barbárie normalizada do presente por via da insciência da voz narrativa. Pela perspectiva de uma menina abusada sexualmente pelo tio com a conivência dos pais, o conto se apresenta como registro banal de um dia rotineiro em que o tio vai buscá-la para um passeio na praia e uma visita ao motel depois que ele sente vontade de “comer o meu rabinho” (BUARQUE, 2021BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 16), como diz a narradora. O percurso até a praia e ao motel é um show despudorado de abusos e ilegalidades por parte do tio - e que a garota vai descrevendo placidamente. Numa parada em que o tio cuida de seus negócios, pagando em dinheiro operários da construção de um prédio, a história insinua que o tio é um miliciano. A exibição de poder personalista exige a subserviência de todos os outros, ditando as regras de um mundo em que vige o mando da força fundada na violência bruta e no poderio econômico. Mas, para além da figura do tio, o horror do conto se configura na impassibilidade da narradora que, sem qualquer esforço de compreensão, é moldada pela naturalização da barbárie cotidiana do presente. O desfecho acrescenta ainda perversas ironias adicionais, que deixam o leitor sem chão. A mãe da menina se aflige com o risco de uma gravidez, que pelo menos dessa vez o leitor sabe ser um temor infundado (pois praticaram sexo anal); outra preocupação da mãe é que “parentes consanguíneos às vezes procriam filhos degenerados” (BUARQUE, 2021BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 22), como a indicar que a degeneração moral em que a família está enredada lhe parece perfeitamente normal.

O conto “Anos de chumbo”, com a alusão inequívoca à época da repressão autoritária, só aparecerá ao final do volume. O início da narrativa confere ambiguidade ao título, rebaixando comicamente o sentido sombrio da expressão a uma referência ao “inocente” brinquedo infantil com soldados de chumbo, parecendo contrariar a expectativa do leitor, mas isso ocorre apenas para reintroduzir com mais eficácia a menção aos subterrâneos da tortura. Ambientado nos primeiros anos da década de 1970, o conto é narrado por um menino acometido de poliomielite que, confinado ao espaço doméstico, capta, sem compreender, ações e relacionamentos da vida dos adultos: o pai, militar de carreira, tortura presos políticos, enquanto é corneado pelo seu superior e ridicularizado por ele e pela esposa. O menino é fascinado por soldadinhos de chumbo e, em suas brincadeiras, encena batalhas históricas sangrentas que envolvem genocídios (negros hererós, índios Sioux) e aludem à escravidão (exército confederado, mamelucos). No jogo da narração, os confrontos históricos são situados no presente da brincadeira que os reencena - por exemplo: “Em 30 de abril de 1973 a expedição do general Custer tomou de assalto a aldeia dos Sioux” (BUARQUE, 2021BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 165) - e acabam sugerindo sobreposições entre os massacres do passado e os da repressão militar contra os agrupamentos políticos que se lançaram à luta armada. No final, perdendo o controle do fogo que acendera em uma de suas brincadeiras, o menino provoca um incêndio no quarto e, temendo a reprimenda, foge para a rua trancando a porta e, depois de passar na sorveteria, entrevê os pais presos na casa em chamas enquanto saboreia um picolé. Mais do que incitar um sentimento de “justiça poética”, a incorporação do acaso no encadeamento narrativo e a atitude do protagonista ao final deixam em suspenso o sentido do desfecho.

Em “Os primos de Campos”, a imprecisão temporal em que os eventos são ambientados sugere, de início, mais uma sobreposição entre o período da ditadura e o presente. O narrador começa o relato lembrando os tempos de infância em que era obrigado a aprender o hino nacional na escola, assim como a imagem de uma imensa bandeira do Brasil pintada na rua, depreendendo que devia ser Copa do Mundo. Subjacente ao enredo parece estar a vigência de ideais de afirmação patrioteira, promovidos na ditadura militar e reativados com o bolsonarismo (cf. RABELLO, 2021). No desenrolar da história, o narrador só aos poucos compreende que os primos “são bem mulatos”, como diz o irmão, e que ele mesmo é “afrodescendente”, como sua namorada o faz ver, e, ao final, quase não discerne que a foto do pai, que julga “meio escura, talvez tirada à contraluz” (BUARQUE, 2021BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 71), retrata um homem negro. Na sequência de incidentes, vai se delineando o cenário de violência: o narrador e seus primos sofrem abuso policial, com maior brutalidade contra os primos; mais tarde, o primo mais novo é executado numa chacina; o mais velho se refugia na casa do protagonista, num contexto de guerra entre milícias; e o irmão, depois de ter sua carreira como jogador de futebol destruída por um “crioulo”, se junta a um grupo armado, “uma espécie de clã que sai por aí caçando pretos” (BUARQUE, 2021BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 68), num arremedo de suprematismo branco, praticado por mestiços.

Na sociedade derrotada que emergiu depois dos anos de ditadura, o vínculo social predominante parece ser o ódio, convergindo com uma tendência mais ampla. À medida que as perspectivas de transformação da sociedade foram desaparecendo do horizonte, as pessoas passaram a sentir-se “livres para odiar”, isto é, “descarregar em novas vítimas a expiação da crise” (ARANTES, 2007ARANTES, Paulo Eduardo. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007. (Estado de sítio)., p. 240). Desde o enfraquecimento do ideário socialista e o correlato domínio da lógica do mercado, foi se definindo um novo império da crueldade, que tomou o lugar do progresso social no imaginário coletivo (cf. KURZ, 1997KURZ, Robert. A síndrome do obscurantismo. In: KURZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p. 143-149., p. 145-146).

O recurso de justaposição de passado e presente é central em Leite derramado (2009), talvez o romance buarquiano de maior popularidade. Elaborando materiais e procedimentos que remetem à ficção de Machado de Assis - como os desmandos senhoriais misturados ao figurino civilizado e, sobretudo, o narrador que se autodenuncia a despeito dele mesmo (cf. MORAES, 2009MORAES, Reinaldo. Com o Brasil nas mãos. Jornal do Brasil, Ideias & Livros, 28 de março de 2009, p. L1; L4-L5. Disponível em: http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/03/28/e280327996.asp. Acesso em: jan. 2024.
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; SCHWARZ, 2012aSCHWARZ, Roberto. Cetim laranja sobre fundo escuro. In: SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012a, p. 143-150.) -, o romance coloca em primeiro plano a fala desatada de Eulálio d’Assumpção, aristocrata ancião que relembra seu breve casamento com Matilde, filha adotiva de uma família ilustre, que traz em sua pele castanha e em seus modos as marcas das camadas populares. A memória do narrador mistura saudades e suspeitas, amor e ciúme, os quais “se alimentam da desigualdade de classe e de cor, que segundo a ocasião funcionam como atrativo ou objeção” (SCHWARZ, 2012aSCHWARZ, Roberto. Cetim laranja sobre fundo escuro. In: SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012a, p. 143-150., p. 144).

Junto à rememoração da mulher amada que o deixou, o narrador relata episódios de sua linhagem familiar, recompondo por esse prisma diversos momentos da história do país, chegando até o presente, que ele descreve em cenas embaralhadas em sua mente confusa. Como resultado, em Leite derramado parece se encontrar “o Brasil em forma de romance” (MORAES, 2009MORAES, Reinaldo. Com o Brasil nas mãos. Jornal do Brasil, Ideias & Livros, 28 de março de 2009, p. L1; L4-L5. Disponível em: http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/03/28/e280327996.asp. Acesso em: jan. 2024.
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), um Brasil tão reconhecível por certos leitores quanto os ecos machadianos na composição da narrativa.

O passado histórico referido no romance define uma imagem do país marcada por mando oligárquico, falcatruas dos poderosos e seus preconceitos sociais e raciais. A história dos Assumpção, antepassados do narrador, está entremeada ao comércio de escravos desde os tempos coloniais, negociatas que se aproveitam do abolicionismo, exportação de café e tráfico de influência na República Velha, enquanto a família do lado materno é de proprietários rurais.

A decadência econômica de Eulálio começa com o crack da bolsa de Nova York e se agrava com o golpe do genro, um “carcamano” que, apresentando-lhe oportunidades de investimento, o convencera a vender o casarão da família, fugindo com o dinheiro. De seus antepassados, Eulálio retém apenas a presunção de poder e prestígio, agora desfalcados de fundamento material.

O efeito cômico da “autoexposição ‘involuntária’” (SCHWARZ, 2012aSCHWARZ, Roberto. Cetim laranja sobre fundo escuro. In: SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012a, p. 143-150., p. 146) do narrador supõe um leitor esclarecido, capaz de reconhecer a prosápia e os preconceitos da classe proprietária que sobrevivem no discurso e nas atitudes de Eulálio. A comicidade é intensificada pelo esvaziamento de poder efetivo do protagonista, agora moribundo e reduzido ao nível de “gente desclassificada” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 137), embora ele continue tentando reafirmar sua preeminência ao entremear em seu falatório um desfile de empáfia e insolência.

Parte da eficácia do romance está na representação satírica de traços deploráveis da elite tradicional, que, como foi dito, depende do reconhecimento de uma imagem do Brasil já fixada na consciência progressista atual. Mas a potência oculta de Leite derramado, como argumenta Schwarz, parece estar em outro lugar, isto é, na relação entre esse passado e o enquadramento contemporâneo, relação que adentra um território menos evidente e suscita reflexão.

Na paisagem modernizada, em contraste com o antigo casarão, o chalé, a fazenda, clubes campestres e chácaras do passado, o que se vê são arranha-céus, estacionamentos, rodovias ladeadas por favelas que não acabam mais e igrejas evangélicas, sem contar o hospital em que baratas sobem pelas paredes. A angulação dos tempos afeta o retrato dos antepassados, que são próceres nacionais na visão de Eulálio e malfeitores da elite senhorial no olhar contemporâneo (cf. SCHWARZ, 2012aSCHWARZ, Roberto. Cetim laranja sobre fundo escuro. In: SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012a, p. 143-150.). De modo complementar, os traços do presente marcam o destino dos descendentes: o bisneto é assassinado num motel, em situação que lembra um acerto de contas na criminalidade, e o tataraneto traficante de drogas é visto na televisão sendo levado pela polícia.

Entre o passado de regalias e a precariedade do presente, situa-se um ponto de inflexão no período da ditadura militar, quando o neto, que havia se tornado comunista, integra-se à luta armada e é eliminado pela polícia. Mais tarde, Eulálio busca no hospital do Exército o suposto filho do neto desaparecido, que para Maria Eulália, filha do narrador, seria um engodo: “entregavam-lhe um menino a modo de escambo, como um cala-boca para reparar o desaparecimento do outro” (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 145)7 7 Em sua tese sobre Leite derramado, Maria Luísa Rangel de Bonis (2008) comenta o vínculo entre a ditadura militar de 1964 e a cena contemporânea aludida no romance. . A ligadura com o tempo atual não é elaborada pelo narrador, mas supõe tanto a modernização que os Assumpção não acompanham quanto a conivência com os arbítrios da ditadura.

Assim, em Leite derramado as articulações entre o passado e o presente não são óbvias, sugerindo descontinuidades, reacomodações e fios ocultos nas relações sociais, tendo ao fundo a fratura colonial, a prevalência do nexo mercantil, as conexões internacionais da elite local e seu desprezo secular pelas camadas subalternas. Além disso, não deixa de ser significativo que na história do Brasil recapitulada pelo viés da oligarquia tradicional não haja qualquer indício do imaginário progressista de integração nacional que se formou em torno do desenvolvimentismo a partir dos anos 1930. A fração ilustrada da elite e a burguesia liberal assim como a classe média intelectualizada - camadas nas quais aquele imaginário se fixou - praticamente não comparecem nessa versão da história, o que não deixa de ser um juízo artístico sobre as ilusões do progressismo modernizante.

Recorrente nas diversas obras de Chico Buarque, a justaposição dos tempos sugere um processo de feição enigmática, em que mudanças visíveis e continuidades abstrusas interrogam o sentido do progresso e da própria história, que parece desembocar numa terra de ninguém, uma sociedade pós-nacional em pé de guerra.

Elementos da barbárie contemporânea, já no quadro da ascensão da nova extrema direita, são representados em Essa gente (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.), romance centrado na figura medíocre do escritor decadente Manuel Duarte. Diferentemente da figuração indireta de Estorvo (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.), em que a referencialidade se dissolve na atmosfera de pesadelo e, paradoxalmente, a experiência do presente é realçada pelo estranhamento, em Essa gente predomina o registro satírico de comportamentos e discursos que, enquanto materiais brutos, já parecem caricaturais (ao olhar progressista). A isso se acrescentam menções esparsas ao horror rotinizado da violência social. Essa estratégia narrativa pode ter sido motivada pelo contexto político imediato, que terá suscitado uma resposta por meio da representação irônica que sublinha no reacionarismo vigente no país os seus aspectos grotescos ou risíveis. Mas, um pouco como acontece em Leite derramado (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.), a estratégia supõe, antes de tudo, o reconhecimento daquilo que já está dado como objeto da sátira crítica.

Assim, o romance é repleto de indícios da exceção normalizada, alguns aludindo a fatos específicos da realidade histórica: o decreto presidencial que permite a compra de armas de fogo pelos “cidadãos de bem”, o músico negro baleado com 80 tiros por soldados, o batalhão de choque da polícia e o “caveirão” reprimindo moradores da favela, o latifundiário que se apossa ilegalmente de terras indígenas na Amazônia.

A caracterização de algumas personagens acentua os traços da parvoíce política, como é o caso da segunda ex-mulher do protagonista, Rosane, que coloca uma estátua dourada do presidente na sala de seu apartamento e, certa feita, usa um vestido estampado com listras e estrelas, semelhante à bandeira dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, o romance não deixa dúvidas sobre a coerência entre o entusiasmo de Rosane com o capitão no poder e as relações que ela mantém com os ricaços beneficiários da situação.

Em outro setor social, o guarda-vidas Agenor, morador do morro do Vidigal, tem amigos policiais e oferece churrascos onde “as mulheres se queixavam da bandidagem e os homens discutiam marcas de armamentos” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 141), sugerindo sua proximidade com a milícia. Agenor também tem relações com um pastor evangélico, cujo antecessor na igreja mantinha uma clínica de abortos clandestina e, em conluio com um maestro italiano que abusava de meninos, castrava os cantores para encaminhá-los ao mercado da música. Nessas figuras se atualizam as relações escusas e os trambiques que já compareciam nos romances anteriores. (De resto, na ficção buarquiana, pastores e igrejas evangélicas são mencionados desde Estorvo, invariavelmente estereotipados, representando uma modalidade de alienação popular.)

Uma novidade em Essa gente talvez esteja na sátira da classe média “bem-pensante”, encarnada na primeira ex-mulher, Maria Clara, e, em parte, no próprio Duarte. Indignado com o fato de seu filho sofrer bullying na escola “por ser filho de comunistas”, Duarte reage dizendo “isso é um absurdo, comunismo nem existe mais” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 164) e chega mesmo a dispor-se a comparecer à reunião de pais vestindo uma camisa da Seleção Brasileira. Por sua vez, de modo não menos caricatural, Maria Clara e sua companheira Laila decidem confrontar a diretoria da escola, vestindo “blusas vermelhas customizadas com apliques de foice e martelo”, apenas para ouvir da pedagoga que a escola não poderia reprimir os meninos que hostilizavam o filho porque precisava garantir a “liberdade de expressão” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 167). Acresce que, diante da ascensão política da extrema direita no país, Maria Clara e a companheira decidem mudar-se para Lisboa, optando pela solução individual.

No final do romance, a nota biográfica sobre Duarte, divulgada na imprensa após sua morte, afirma que ele, “na juventude, participou de movimentos de oposição à ditadura militar” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 192), informação que, à primeira vista, parece destoar dos comportamentos do escritor decadente, agora prioritariamente preocupado com a manutenção de seu padrão de vida confortável. No entanto, a menção à posição política do passado não deixa de assinalar o destino contemporâneo de certo tipo de intelectual de esquerda, que se ajustou à nova dinâmica do mercado.

O trabalho intelectual mercantilizado e agora “flexível” é um tema que já havia sido explorado em Budapeste (BUARQUE, 2003BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.)8 8 Sobre Budapeste, recomenda-se a dissertação de Matheus Araújo Tomaz (2021), de que aproveito várias observações. . As linhas gerais da trama envolvem a atividade do protagonista como ghostwriter, suas idas e vindas entre o Rio de Janeiro e Budapeste, as relações amorosas com Vanda e Kriska, a disputa de vaidades com outros escritores e seu enredamento num labirinto de duplicações que dissolvem a realidade narrada num jogo ficcional que é interno a essa realidade e no entanto a engolfa.

José Costa, no Brasil, escreve a autobiografia do alemão Kaspar Krabbe, O ginógrafo, livro que se torna um sucesso de vendas, além de suscitar no protagonista suspeitas de que sua mulher Vanda o poderia ter traído com o pseudoautor. Mais tarde, a narrativa insinuará que o livro jamais existiu, circulando em seu lugar somente O naufrágio, seu duplo quase anagramático. Tornado Zsoze Kósta, na Hungria, escreve o poema Tercetos secretos, que oferece ao eminente e já decadente poeta Kocsis Ferenc para que o publique em seu nome. O título é o mesmo que, anos antes, José Costa havia inventado para impressionar a mulher, por ocasião de uma homenagem ao escritor no Consulado da Hungria no Rio de Janeiro. Tercetos secretos é aclamado pelo público, mas não agrada a Kriska, a professora de húngaro e amante de Kósta, pois para ela o poema não parece húngaro e haveria um sotaque estrangeiro na escrita. Num dos congressos de autores anônimos, Kósta entra num duelo de vaidades com o misterioso Sr. ..., e, no final, Zsoze Kósta é apresentado como autor de Budapest, ao que tudo indica escrito pelo Sr...., que o protagonista descobre ser o ex-marido de Kriska. Ela se encanta com o livro, destacando nele cenas e personagens que aparecem na própria narrativa de Budapeste. Zsoze Kósta se torna célebre e vivencia situações absurdas em que atua como uma personagem conduzida por forças que não controla, como se sua vida pregressa tivesse sido inventada pelo autor fantasma e continuasse a ser escrita no presente. Ao final, ele concede ler Budapest para Kriska, alcançando o ponto em que “lia o livro ao mesmo tempo que o livro acontecia” (BUARQUE, 2003BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., p. 174). A narrativa termina com um trecho quase idêntico ao final de O ginógrafo, tornando ainda mais intrincada a construção em abismo.

A carreira de José Costa como ghostwriter parece estilizar a subsunção total da vida ao trabalho, até a perda de identidade, indicada no anonimato constitutivo da atividade, no surgimento de redatores que replicam seu estilo e assumem sua aparência, como uma multidão de simulacros, e na sugestão final de que ele próprio seria personagem de uma maquinaria narrativa que, em seu movimento autônomo, prescreve seu destino.

Algo da dinâmica contemporânea do trabalho pautada na concorrência parece se inscrever na figuração cômica da disputa de vaidades que acompanha as relações entre os escritores (anônimos e pseudoautores). Depois de encontrar um exemplar de O ginógrafo em sua casa, Costa rivaliza com Kaspar Krabbe, tomado por um ciúme fantasmático, em que imagina o empresário estrangeiro como um “autor muito publicado na Alemanha” (BUARQUE, 2003BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., p. 85), que seduziria Vanda lendo-lhe trechos do livro apócrifo. Mais tarde, no congresso de escritores anônimos, compete com o Sr...., procurando humilhá-lo com sua poesia, arte que o outro ignora, recebendo em represália (ou ao menos é o que ele fantasia) a deportação para o Brasil. Em seguida, a atribuição da autoria de Budapest a Kósta é entendida pelo protagonista como um embuste armado pelo marido de Kriska.

Na representação cômica das rivalidades e disputas de vaidade, em que produção mercadológica, habilidade criativa, sucesso comercial, refinamento artístico e gozo com a obscuridade se misturam, escapando às dicotomias convencionais, resta a persistente lógica da concorrência voltada à eliminação dos rivais, que, em outro plano e compreendendo diferentes estratos sociais, se generalizou no mundo do trabalho, não importa se flexível, precário, informal ou ilegal.

Centrado na esfera do trabalho cultural e artístico, o desenvolvimento da narrativa vai se desprendendo dos vínculos com a realidade social. O protagonista, que na juventude vivia no subúrbio, adota o esnobismo intelectual e leva sua existência indiferente à vida dos subalternos, de modo que a cena contemporânea, externa aos círculos em que Costa passa a atuar, só aparece de maneira lateral no romance. Pelos jornais, ele tem notícias de um mundo distante, como o caso das crianças de olhos furados num orfanato e o caso dos facínoras, ilustrado com a foto de corpos negros decapitados no asfalto. E em episódios secundários o protagonista se vê envolvido numa roleta russa com um casal de jovens “romenos” e se sente ameaçado por um grupo de skinheads, que inclui seu filho Joaquinzinho.

Em dois momentos, o protagonista vivencia condições precárias: em Budapeste, Kósta é rebaixado, como um imigrante ilegal, ao trabalho subalterno no Clube das Belas-Letras como operador de gravação. Mas logo começa a fazer às ocultas o serviço de transcrever as fitas, passando aos poucos a introduzir nas transcrições algumas tiradas de sua própria lavra. Reassume, assim, o papel de ghostwriter, agora em húngaro, até descobrir-se poeta nessa língua. Em outro passo, no Rio de Janeiro, constata não ter mais conta bancária, não encontra rastros da agência Cunha & Costa ou de seu antigo sócio, e vive num hotel comendo restos de outros hóspedes, tomado por fantasias persecutórias. Mas é salvo por um telefonema do cônsul da Hungria, que lhe oferece uma passagem para Budapeste, com visto de permanência.

A dimensão fabulosa do enredo, responsável por toda graça e interesse do romance, vem ao primeiro plano, implicando uma rarefação de seus vínculos com o substrato do real. Desprendendo-se de toda referência à realidade extraliterária, a maquinaria narrativa passa a funcionar como que alheia à história conflituosa da sociedade aludida à distância, instituindo um universo ficcional regido pelo jogo de duplicações sem fim e espelhamentos imperfeitos.

Em Budapeste, é levado ao extremo o gosto autoral, reconhecível também nas outras obras, pelo jogo linguístico9 9 Sobre as “molecagens” literárias em Budapeste, ver o estudo de Maria Augusta Fonseca (2007). e pelo arbítrio da ficção, explorando paronomásias e anagramas, repetições e retomadas (de palavras, estruturas verbais, imagens e situações), bem como a invenção de mundos regidos por lógica própria.

Em Estorvo, a epígrafe propõe o jogo de associações paronomásticas, que gera o fluxo de significações e o retorno à palavra inicial, antecipando a estruturação circular do enredo (como já foi assinalado pela crítica). Mas cumpre especificar seu funcionamento: aqui, a circularidade da trama implica uma lógica “impossível”, em que as consequências da fuga do protagonista revelam ser a sua causa. As duas viagens da irmã são descritas como se fossem uma só, pois ela estava “emocionalmente abalada” na primeira viagem e realiza a segunda porque “precisa[va] espairecer” (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991., p. 16, p. 119) após ser violentada no assalto. Separadas no tempo pela cronologia convencional, as viagens parecem se unificar na lógica da ficção. O homem do olho mágico, que parece conhecido “de um tempo distante e confuso” é o delegado, que “abana a cabeça e sai do meu campo de visão” (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991., p. 12, p. 139)10 10 Augusto Massi (1991) foi o primeiro a decifrar certas articulações internas de Estorvo, num momento em que vários leitores acharam o enredo obscuro ou lacunar. . Desse ângulo, a fuga inicial do protagonista pode ter sido motivada pelo fato de ter testemunhado a execução sumária dos traficantes no sítio, o que o leva a temer ser ele também eliminado: “julgarão que estou tentando a fuga”, pensa o narrador, retomando a frase com que o delegado justifica suas execuções: “os marginais tentaram a fuga”, “os idiotas tentaram a fuga” (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991., p. 139, p. 127, p. 138). Mas isso só ocorrerá como desdobramento das andanças erráticas do protagonista, sugerindo uma temporalidade impossível, que no entanto estrutura o enredo de Estorvo11 11 Além disso, as mesmas (?) personagens reaparecem nas diferentes viagens de ônibus: o “sujeito magro de camisa quadriculada” é visto três vezes (BUARQUE, 1991, p. 23, p. 89, p. 139); o homem morto de “cor cinza-oliva” reaparece como um “indivíduo esverdeado” que dorme (BUARQUE, 1991, p. 66, p. 140); a “preta gorda com os olhos esbugalhados” aparece depois como uma “preta gorda com cara de boa cozinheira”, fazendo o sinal-da-cruz com os olhos esbugalhados, e ressurge como “um padre preto e gordo com olhos esbugalhados” (BUARQUE, 1991, p. 66, p. 89-90, p. 140). Para além da percepção nebulosa do narrador, as reincidências dessas personagens reforçam a lógica meio absurda que rege a temporalidade do romance (cf. OTSUKA, 2001). . Note-se que essa lógica temporal é instituída pela construção formal do romance, que ultrapassa a consciência do narrador, não podendo ser atribuída à sua visão deformada ou à sua dimensão psíquica. Aqui, a lógica ficcional que se desprende do real intensifica a atmosfera opressiva, em que o protagonista se move às cegas, sendo lançado de uma situação a outra por forças que não controla.

Em Benjamim, a circularidade ostensiva que liga o fim da narrativa ao seu início leva à repetição indefinida da projeção da vida do protagonista em sua consciência no instante que antecede sua morte12 12 Acompanho a análise de Walter Garcia (2013, p. 222-223), que descreveu o funcionamento do enredo circular em Benjamim. . A estruturação do enredo obstrui a chegada do fim iminente, que de fato nunca se concretiza na narração, pois, no momento mesmo em que o destino parece se cumprir, a narrativa arremessa o leitor de volta ao início. Assim, a articulação temporal instituída pelo romance, que conduz à morte do protagonista, produz a sua própria violação, suspendendo a chegada a seu termo. Também aqui, a estruturação formal institui uma temporalidade impossível, que não deixa de ser condizente com a consciência do protagonista, presa no circuito fechado do passado obsedante.

Ao final de Budapeste, prevalece o constructo linguístico, desde as duplicações anagramáticas (nos títulos das partes de Tercetos secretos) até a construção de narrativas que se espelham e deglutem umas às outras, instituindo uma lógica própria que se descola da realidade convencional. A dimensão lúdica e o lirismo estão presentes, mas não eliminam a figuração da vida danificada por meio do sistema de espelhos vazios e sua autorreferencialidade, que parecem estilizar, à distância, a lógica absurda do mundo governado pelo capital, o sujeito automático autorreferente, que agora se move sem freios ideológicos e sem atritos com a imaginação de alguma alternativa pós-capitalista.

No conjunto dos romances buarquianos, o olhar sobre as camadas populares é intermediado pelas consciências enviesadas das personagens (da classe média ou da elite) - e mesmo o narrador externo de Benjamim parece uma extensão da câmera mental do protagonista, que cria autonomia e lhe permite “penetrar em espaços que não conhecera, em tempos que não eram o seu” (BUARQUE, 1995BUARQUE, Chico. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., p. 10). Em Anos de chumbo, no entanto, como assinalou Ivone Daré Rabello (2022)RABELLO, Ivone Daré. Anos de chumbo. A Terra É Redonda, 1º/1/2022. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/anos-de-chumbo-2/. Acesso em: jan. 2024.
https://aterraeredonda.com.br/anos-de-ch...
, alguns contos trazem ao primeiro plano o ponto de vista dos pobres ou da classe média baixa. Em “Meu tio”, como indicado, a voz narrativa da garota implica uma consciência vazia, e nesse aspecto leva ao extremo a figuração da alienação popular que já se apresentava em outras obras. Em “Os primos de Campos”, o ponto de vista do narrador não se reduz à incompreensão e vai aos poucos apreendendo as pressões da violência social que paira sobre sua existência. Há certa ampliação da consciência, ainda que a perspectiva final, de fuga com o primo para a Colômbia, não abra, de fato, horizontes mais promissores.

O conto “Cida” é narrado por um personagem de classe média, que interage com Cida, uma mendiga que vive numa praça que fica em seu caminho entre a casa e o calçadão da praia. O ponto de vista do narrador certamente é marcado pelo viés de classe; no entanto, toda a narração focaliza a vida e as histórias da mulher, cuja perspectiva entra em atrito com a visão do narrador. As histórias fantasiosas de Cida expõem sinais de sua loucura. Ela quer que o narrador crie seu futuro filho, diz estar grávida e afirma que o pai da criança é seu companheiro Ló, que vive num planeta chamado Labosta. Ela lhe mostra as joias que ele lhe dera, guardadas numa caixa de sapatos, onde o narrador só vê areia e brita, ao que Cida responde que, quando subissem de novo ao planeta, “voltariam ao estado brilhante” (BUARQUE, 2021BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 79).

Tudo parece pouco crível ao narrador, que vê a barriga de Cida crescer, “mas só do lado esquerdo” (BUARQUE, 2021BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 80), o que o leva a propor que ela consultasse um médico. Temendo ser levada a um hospital, Cida desaparece num ônibus. Tempos depois, ela ressurge com uma menina “de seus cinco anos”, muito branca e de olhos “claros demais” (BUARQUE, 2021BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 82). Ela propõe entregar a menina aos cuidados do narrador, o que ele recusa, gerando um entrevero em que ele a chama de louca e Cida desaparece novamente. Anos mais tarde, o narrador vê na praça uma moça albina que identifica como filha de Cida. Ele pergunta à moça sobre a mãe, e ela lhe mostra uma caixa de sapatos com um punhado de cinzas dentro, dizendo: “Quando ela voltar para Labosta, vai ficar de novo inteira, igual ela era aqui” (BUARQUE, 2021BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 85).

Ao longo do relato, as suposições do narrador (ela quer que ele a engravide, ela não sabe quem é o pai da criança, o companheiro dela deve ser do Nordeste) vão sendo contraditadas uma a uma, revelando seus preconceitos. A fantasia de Cida é irreal, mas não deixa de ser eficaz na contraposição de perspectivas sociais. O narrador vai aceitando o relato de Cida, numa postura de complacência com o desequilíbrio mental da mulher, até ser confrontado com o pedido dela de se responsabilizar pela criação da menina. Ele recua diante da responsabilidade social, levando à reação agressiva de Cida, que em seguida desaparece. No desfecho, Sacha, a filha de Cida, tem a última palavra, deixando prevalecer a fantasia, que não redime a miséria (o outro mundo ainda é apenas “Labosta”), mas faz calar a racionalidade convencional do narrador, aderida ao mero estado de coisas existente. Aqui, pelo menos, a alienação popular não se reduz à impotência política, mas, confrontando a realidade vigente, sugere potencialidades da imaginação num cenário de cisões sociais extremas.

A experiência histórica da atualidade, implicada na configuração da obra literária de Chico Buarque, põe em perspectiva as diversas matérias elaboradas nos romances e contos, sugerindo um diagnóstico do presente. A sociedade fragmentada que emerge na contemporaneidade decerto reproduz práticas sociais e padrões mentais que remontam ao passado colonial do país, mas, também e principalmente, é marcada por transformações mais recentes que envolvem os efeitos desagregadores da reestruturação produtiva, a qual gera populações excedentes e descartáveis em escala ampliada, assim como aplaina o terreno social para a gestão da nova pobreza ou para a saciação direta de impulsos exterministas. Decisiva nessa viragem, a contrarrevolução preventiva de 1964 derrotou a mobilização política adensada nos anos anteriores e dissolveu perspectivas práticas de transformação social, estabelecendo as bases do atual Estado securitário e punitivo. A isso se liga a reconfiguração em curso do imaginário social, em que o vetor temporal progressivo não aponta para nada além da catástrofe, instalando o regime de urgência no centro da experiência histórica contemporânea.

Os romances e contos buarquianos apreendem aspectos significativos dessa experiência histórica, por meio da representação irônica ou satírica de traços da vida social regida pela necessidade econômica e o impulso de autoconservação e, sobretudo, por meio da estilização e invenção ficcional que, descolando-se do registro realista ordinário, configura com mais eficácia os traços desintegradores da sociedade atual. Assim, os materiais elaborados nas obras incluem, por exemplo, manifestações diversas da violência social, formas degradadas de trabalho, a delinquência generalizada, o descaso das elites com o destino dos subalternos, a despolitização da classe média e das camadas populares. Mas a invenção ficcional ultrapassa a significação mais direta dos temas, e é nela que se pode discernir a configuração particular da temporalidade, a que se associa o sentimento de fim de linha ligado à desilusão com as perspectivas progressivas da história,bem como os momentos que se desprendem da lógica predominante e apontam para a não conformação à realidade existente.

  • 2
    Cf. os artigos de Benedito Nunes (1991)NUNES, Benedito. Estorvo é o relato exemplar de uma falha. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 3 de agosto 1991, p. 3., Sérgio Sant’Anna (1991)SANT’ANNA, Sérgio. Narrativa tensa. Jornal do Brasil, Ideias/Livros, 3 de agosto de 1991, p. 3., Roberto Schwarz (1999)SCHWARZ, Roberto. Um romance de Chico Buarque. In: SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 178-181. [Originalmente publicado com o título “Sopro novo”, Veja, 7 de agosto de 1991, p. 98-99.] e Massi (1Augusto 991)MASSI, Augusto. Estorvo, de Chico Buarque. Novos Estudos Cebrap, n. 31, São Paulo, p. 193-198, outubro de 1991. Disponível em: https://novosestudos.com.br/produto/edicao-31/#gsc.tab=0. Acesso em: jan. 2024.
    https://novosestudos.com.br/produto/edic...
    . No ano seguinte à publicação do romance, Leyla Perrone-Moisés (1992)PERRONE-MOISÉS, Leyla. Brasil, um país em fuga para a frente. O Estado de S. Paulo, Cultura, 13 de junho de 1992, p. 3. sugeriu que Estorvo apreende não apenas um dado estrutural da história brasileira, mas remete também ao quadro de uma pós-modernidade mundial. A observação é proveitosa desde que entendamos esse quadro como o do mundo periferizado da modernização em colapso.
  • 3
    Cabe lembrar que, ao indicar na obra a perplexidade de um “veterano de 68”, Schwarz (1999, p. 180)SCHWARZ, Roberto. Um romance de Chico Buarque. In: SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 178-181. [Originalmente publicado com o título “Sopro novo”, Veja, 7 de agosto de 1991, p. 98-99.] buscava caracterizar, não tanto o personagem-narrador, mas sim o ponto de vista que se depreende da composição formal do romance.
  • 4
    Retomando a ideia de Coelho, Marcelo Ridenti (2014RIDENTI, Marcelo. Visões do paraíso perdido: sociedade e política em Chico Buarque, a partir de uma leitura de Benjamim. In: RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. 2. ed., revista e ampliada. São Paulo: Ed. Unesp, 2014, p. 199-235., p. 212) comentou Benjamim ressaltando a impossibilidade de retorno às condições da realidade pré-1964. Também Fernando de Barros e Silva (2004SILVA, Fernando de Barros e. Chico Buarque. São Paulo: Publifolha, 2004. (Col. Folha Explica), p. 44) glosou a observação de Coelho, estendendo-a para o conjunto da obra buarquiana, em que a referência popular como possibilidade política seria substituída pela visão de um país modificado na saída da ditadura, em que “o povo teria em algum momento traído a si mesmo”. A seu modo, José Miguel e Guilherme Wisnik (2004, p. 247)WISNIK, José Miguel;WISNIK, Guilherme. O artista e o tempo. In: WISNIK, José Miguel. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004, p. 241-259. identificaram uma questão semelhante, indicando como a obra de Chico acompanha “as transformações sociais, culturais e psicológicas do mundo popular”, incluindo “o processo de desagregação que vai levar, no extremo, ao romance Estorvo”; para os autores, esse processo indicaria “a desaparição de uma forma de relação política (o paternalismo populista) [e] o obscurecimento de uma entidade concreta e historicamente formada (o povo)”.
  • 5
    Leituras recentes dos romances de Chico Buarque vêm salientando a importância de se considerar o contexto da ditadura de 1964 para a compreensão adequada das obras. Sobre Estorvo, ver a tese de João Vitor Rodrigues Alencar (2022)ALENCAR, João Vitor Rodrigues. Pelo olho mágico de Estorvo: forma e processo social no primeiro romance de Chico Buarque. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2022. 219f..
  • 6
    Para uma análise aguda dos contos, ver o artigo de Ivone Daré Rabello (2022)RABELLO, Ivone Daré. Anos de chumbo. A Terra É Redonda, 1º/1/2022. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/anos-de-chumbo-2/. Acesso em: jan. 2024.
    https://aterraeredonda.com.br/anos-de-ch...
    .
  • 7
    Em sua tese sobre Leite derramado, Maria Luísa Rangel de Bonis (2008) comenta o vínculo entre a ditadura militar de 1964 e a cena contemporânea aludida no romance.
  • 8
    Sobre Budapeste, recomenda-se a dissertação de Matheus Araújo Tomaz (2021)TOMAZ, Matheus Araújo. Budapeste no jogo do contra: um estudo literário sobre a paranoia objetiva em Chico Buarque. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2021. 171f., de que aproveito várias observações.
  • 9
    Sobre as “molecagens” literárias em Budapeste, ver o estudo de Maria Augusta Fonseca (2007)FONSECA, Maria Augusta. Budapeste de Chico Buarque: poétique etmisère de la littérature. In: OLIVIERI-GODET, Rita; HOSSNE, Andrea (Org.). La littérature brésilienne contemporaine de 1970 à nos jours. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2007, p. 49-65. https://doi.org/10.4000/books.pur.34818.
    https://doi.org/10.4000/books.pur.34818...
    .
  • 10
    Augusto Massi (1991)MASSI, Augusto. Estorvo, de Chico Buarque. Novos Estudos Cebrap, n. 31, São Paulo, p. 193-198, outubro de 1991. Disponível em: https://novosestudos.com.br/produto/edicao-31/#gsc.tab=0. Acesso em: jan. 2024.
    https://novosestudos.com.br/produto/edic...
    foi o primeiro a decifrar certas articulações internas de Estorvo, num momento em que vários leitores acharam o enredo obscuro ou lacunar.
  • 11
    Além disso, as mesmas (?) personagens reaparecem nas diferentes viagens de ônibus: o “sujeito magro de camisa quadriculada” é visto três vezes (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991., p. 23, p. 89, p. 139); o homem morto de “cor cinza-oliva” reaparece como um “indivíduo esverdeado” que dorme (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991., p. 66, p. 140); a “preta gorda com os olhos esbugalhados” aparece depois como uma “preta gorda com cara de boa cozinheira”, fazendo o sinal-da-cruz com os olhos esbugalhados, e ressurge como “um padre preto e gordo com olhos esbugalhados” (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991., p. 66, p. 89-90, p. 140). Para além da percepção nebulosa do narrador, as reincidências dessas personagens reforçam a lógica meio absurda que rege a temporalidade do romance (cf. OTSUKA, 2001OTSUKA, Edu Teruki. Leitura de Estorvo, de Chico Buarque. In: OTSUKA, Edu Teruki. Marcas da catástrofe: experiência urbana e indústria cultural em Rubem Fonseca, João Gilberto Noll e Chico Buarque. São Paulo: Nankin Editorial, 2001, p. 137-184.).
  • 12
    Acompanho a análise de Walter Garcia (2013GARCIA, Walter. Melancolias, mercadorias: Dorival Caymmi, Chico Buarque, o pregão de rua e a canção popular-comercial no Brasil. Cotia, SP: Ateliê, 2013., p. 222-223), que descreveu o funcionamento do enredo circular em Benjamim.

Referências

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  • ARANTES, Paulo Eduardo. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007. (Estado de sítio).
  • ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo e outros ensaios sobre a era da emergência São Paulo: Boitempo, 2014.
  • BONIS, Maria Luísa Rangel de. Peso flutuante de uma fala: o Brasil narrado em Leite derramado, de Chico Buarque. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2018. 130f.
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  • BUARQUE, Chico. Benjamim. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • BUARQUE, Chico. O irmão alemão. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
  • BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • BUARQUE, Chico. Anos de chumbo e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
  • COELHO, Marcelo. Benjamim se recusa a suscitar emoções. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 20 de dezembro de 1995, p. 9.
  • COELHO, Marcelo. Estorvo. In: COELHO, Marcelo. Gosto se discute. São Paulo: Ática, 1994, p. 61-65. [Originalmente publicado com o título “Chico Buarque faz um livro ‘impopular’”, Folha de S. Paulo, Ilustrada, 7 de agosto de 1991, p. 12.]
  • FONSECA, Maria Augusta. Budapeste de Chico Buarque: poétique etmisère de la littérature. In: OLIVIERI-GODET, Rita; HOSSNE, Andrea (Org.). La littérature brésilienne contemporaine de 1970 à nos jours. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2007, p. 49-65. https://doi.org/10.4000/books.pur.34818
    » https://doi.org/10.4000/books.pur.34818
  • GARCIA, Walter. Melancolias, mercadorias: Dorival Caymmi, Chico Buarque, o pregão de rua e a canção popular-comercial no Brasil. Cotia, SP: Ateliê, 2013.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2024
  • Aceito
    13 Mar 2024
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