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Eu, o outro e Essa gente: um dilema de identidade no romance de Chico Buarque

Me, the other and Essa gente: a dilemma of identity in Chico Buarque’s novel

RESUMO

Este artigo analisa o romance Essa gente (2019), de Chico Buarque, enquanto formulação de um dilema de identidade relativo à formação social brasileira. Discutem-se os temas da desfaçatez das classes intelectuais e o uso de categorias raciais como transposições de problemáticas típicas da obra de Buarque, a saber, a relação com o passado e o futuro em um processo histórico calcado em repetições e numa utopia frustrada, o embaralhamento entre ficção e realidade, e o dilema da relação entre “eu” e “outro”.

PALAVRAS-CHAVE
Chico Buarque; raça; intelectualidade

ABSTRACT

This paper analyzes the novel Essa gente (2019), by Chico Buarque, as a formulation of an identity dilemma related to Brazil’s social formation. Themes such as the blatancy of the intellectual classes and the use of racial categories are discussed as transpositions of problems typical of Buarque’s work, namely the relationship with the past and the future in a historical process based on repetitions and a frustrated utopia, the shuffling between fiction and reality, and the dilemma of the relationship between “self” and “other”.

KEYWORDS
Chico Buarque; race; intellectuality

Nas primeiras páginas de Essa gente (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.), encontramos o narrador em primeira pessoa, de nome Duarte, escrevendo ao seu editor queixando-se e justificando os atrasos no envio de seu manuscrito. Estamos diante de um autor escrevendo sobre outro autor acerca das dificuldades de escrever ou, mais apropriadamente, diante de um narrador contando-nos de um escritor que produz textos para justificar a ausência de seus escritos. O nome do narrador-personagem, Manuel Duarte, rima com Chico Buarque e guarda com ele algumas semelhanças: são escritores, apaixonados por futebol, moradores do Leblon, com hábito de deambular pelas ruas em busca de inspiração, entre outros paralelos2 2 Leite (2021, p. 68-85) enumera em detalhes os paralelos entre Duarte e Buarque, incluindo a semelhança fonética no nome das suas primeiras esposas e o vínculo de Duarte com São Paulo, onde Chico Buarque passou boa parte de sua vida, e com o Rio de Janeiro, onde residiu por muito tempo. . Um caso de autoficção e metaficção embrulhadas em uma narrativa que contém a si mesma (ou se dobra sobre ela). Ao longo do texto, o leitor se depara com textos aparentemente desconectados, intitulados por datas e às vezes locais (“Rio, 9 de outubro de 2017”), de gêneros distintos - trechos em primeira pessoa narrados por Duarte, matérias de jornal, notas extrajudiciais, transcrições de ligações telefônicas, cartas, entre outros - e com vozes narrativas variadas. As datas progridem ao longo dos anos de 2018 e 2019, mas incluem-se trechos de outras ocasiões que não seguem a ordem cronológica. A profusão de vozes narrativas, a falta de linearidade temporal e a aparente desconexão entre trechos do romance constituem, na forma, aquilo que há de potente em Essa gente enquanto “redução estrutural” do nosso tempo, isto é, transformação da realidade do mundo em componente de uma estrutura literária (CANDIDO, 1993CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993., p. 9). A identidade do escritor, a natureza da narrativa e o tempo se entrelaçam em forma e conteúdo de maneira peculiar, desvelando um dilema da formação social brasileira já há muito abordado na obra de Chico Buarque3 3 Em Estorvo (BUARQUE, 1991), livro narrado em primeira pessoa por um sujeito sem nome, os eventos são iniciados pelo encontro com uma figura misteriosa que dispara a personagem principal em uma espiral. Através de rememorações e esquecimentos, angústia e violência, espaços de seu passado, em encontros com familiares, estranhos, e o crime organizado, o sujeito termina no lugar onde começou. Benjamin (BUARQUE, 1995), narrado em terceira pessoa, trata da vida e morte de Benjamin Zambraia, antigo modelo fotográfico que se vê diante de um pelotão de fuzilamento e lança-se em um labirinto de recordações. Novamente a narrativa é circular, com começo e fim no fuzilamento de Benjamin. Apesar do recurso de narração em terceira pessoa, há oscilação constante entre a posição onisciente típica de uma focalização externa (GENETTE, 1979) e a posição implicada no interior da narrativa, além de oscilação entre presente e passado que parece evocar os estados internos e a percepção da própria personagem titular. Em Budapeste (BUARQUE, 2003), a personagem principal é o ghost-writer José Costa, que, entre idas e vindas à Hungria, assume o nome Zsoze Kósta. Vivendo de sua escrita anônima, Costa/Kósta deleita-se no sucesso daqueles que publicamente assumem a autoria de seu trabalho, em um jogo de espelhos que nunca termina, mas continua a se dobrar. No Brasil, é casado com Vanda, uma apresentadora de telejornais, enquanto na Hungria começa um caso com Kriska, que ensina a ele a língua húngara. .

Essa gente desponta como uma realização formal mais acabada desses temas. Argumento que, no romance, transpõe-se uma nova etapa do dilemático processo de construção do Brasil, ou de um projeto de Brasil, através de um dilema de identidade e narrativa, ou identificação e narração, no qual o sujeito narrador não se reconhece, nem é capaz de formular uma narrativa. Não me refiro estritamente à já clássica temática da “identidade nacional”, formulada por sucessivas gerações de intelectuais, mas ao ponto de vista particular das classes intelectuais em um processo sócio-histórico de construção da imagem de uma comunidade política e cultural. Na forma literária, Buarque elabora os “nós inextricáveis que amarram o abismo subjetivo de cada um aos movimentos coletivos” (SILVA, 2004, p. 17), amarrando assim história, biografia e narrativa ou tempo, identidade e ficção.

O artigo é estruturado da seguinte forma: primeiro, abordo a relação entre Duarte, personagem principal e ocasional narrador, e Maria Clara, sua primeira esposa, tradutora e revisora de alguns de seus romances. Nesse enfoque, desenvolvo a noção de desfaçatez dos intelectuais como primeiro elemento da análise. Na seção seguinte, discuto as relações entre Duarte, Agenor e Rebekka, um guarda-vidas que salva Duarte de afogar-se e sua esposa, por quem o escritor se atrai. O uso de categorias raciais no romance aparece aqui como segundo elemento. Por fim, teço algumas considerações acerca da forma e composição do romance, retomando os temas trazidos na introdução à luz dos dois elementos elencados.

DUARTE E MARIA CLARA - A DESFAÇATEZ DOS INTELECTUAIS

A primeira menção a Maria Clara ocorre na página 8, no texto datado de 9 de dezembro de 2018. O trecho, narrado em primeira pessoa por Duarte, começa com um de seus passeios no qual se depara com um novo passeador de cães, um “mulato franzino que conduz e é conduzido por uma dezena de cães, entre os quais o labrador de dona Maria Clara”. O passeador de cães é forçado a esperar na portaria, pois a dona dos animais não retornou na hora combinada, e o porteiro não autoriza sua subida. No trecho subsequente, intitulado “Rio, 23 de setembro de 2017”, lemos uma carta de Maria Clara ao “sr. Balthasar”, autor de um livro o qual ela traduziu. Ao longo do romance, descobre-se que Maria Clara foi a primeira esposa de Duarte e o conheceu quando ele lecionou como professor visitante em sua faculdade em 1999. Os dois permaneceram casados por 13 anos, tiveram um filho, nunca nomeado, e mantiveram uma relação amistosa três anos após a separação. Quando estavam juntos, Maria Clara atuava como revisora e primeira leitora dos manuscritos de Duarte - tão reconhecida sua proficiência que haveria boatos de que a esposa, além de revisora, “reescrevia os livros dele de cabo a rabo”, como relata Petrus, editor de Duarte, em carta a ela. Trabalha com traduções simultâneas em seminários e congressos, e sobre a literatura afirma, em “Rio, 27 de outubro de 2017”: “A literatura, para mim, deveria ser unicamente fonte de deleite, pois às suas custas eu não teria como suprir sozinha as necessidades do meu filho, que, como não é segredo, tem um pai ausente e carece de cuidados especiais” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 12).

Uma intelectual progressista de classe alta, Maria Clara usa sua bagagem cultural e sua posição política para se distinguir dos demais - “essa gente”. Nas cartas ao sr. Balthasar, datadas de 23 de setembro, 9 de outubro e 27 de outubro de 2017, seu tom é elogioso e pomposo, com uso da forma culta e ocasionais expressões em inglês, língua natal do correspondente. Desentende-se com o autor estrangeiro, que parece não gostar de suas correções, e então conclui: “Mas seja como o senhor quiser, o autor é sempre soberano. Ganharei mais tempo para minha árdua vida familiar e não o incomodarei com novas cartas que na verdade talvez nem lhe cheguem às mãos, pois suspeito estar a me corresponder com sua secretária” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 11).

Maria Clara escreve em estilo rebuscado, seja em correspondências pessoais seja em profissionais. Seu domínio da língua parece autorizá-la a traduzir o livro para o qual foi contratada, atitude que, quando questionada, provoca furor ainda maior e a motiva a apontar outras “incongruências”. Na medida em que a tensão cresce, a “admiração” declarada na primeira carta dá lugar a certo desprezo pelo interlocutor, notável na maneira que se refere ao romance caracterizado como inelegante e “extenso”. Mais ainda, é a passagem do “sucesso em seu país” para o “grande êxito comercial em meu país” que o romance porventura terá, “apesar de tudo”, que denuncia a posição da tradutora. Ela opõe a pureza de seu ofício a uma lógica menos digna, a do sucesso comercial, reivindicando uma relação “desinteressada” com a arte. A ideia de uma fruição estética ascética e de um empenho pessoal que beira o sacrifício - suas correções seriam fruto de um empenho “além do estritamente profissional” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 11) - indica a lógica do campo literário que, por sua vez, tensiona-se com o campo econômico e a lógica de mercado. Como “polo economicamente dominado, mas simbolicamente dominante” (BOURDIEU, 1996BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., p. 101), Maria Clara se distingue do sr. Balthasar, a quem está subordinada profissionalmente e de quem retira alguns proventos. Sua proficiência na língua serve-a de escudo e aguilhão.

Ao mesmo tempo que mostram os conflitos internos do campo literário entre um polo economicamente dominado, mas simbolicamente dominante e seu oposto, as três cartas de 2017 deixam entrever uma forma de relação entre dominantes e aqueles que percebem como seus subordinados. Maria Clara diz suspeitar que a secretária de sr. Balthasar está lendo as cartas e assim insinua duas possibilidades: que a rejeição de suas correções pode ser fruto da incompreensão de alguém incapaz de apreciar seu trabalho (a secretária) ou que a atitude do sr. Balthasar é análoga à de uma secretária, o que o colocaria em posição intelectualmente inferior à tradutora. Para adicionar uma volta ao parafuso, a imaginada secretária ganha o adjetivo “cubana”, deixando entrever o preconceito étnico-racial maldisfarçado de Maria Clara.

Enquanto misto de trabalhadora intelectual e artista, Maria Clara e Duarte são espelhos. Essa compatibilidade é expressa na forma de uma estranha extensão de um no outro: “Persiste aquela antiga sintonia, para não dizer telepatia, que frequentemente nos fazia rir à beça, por nos surpreendermos a falar a mesma coisa ao mesmo tempo” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 74). Além da afinidade afetiva, os dois compartilham, ou parecem compartilhar, da mesma posição política: “Devo ademais te confessar que sinto falta de um amigo com quem partilhar meu inconformismo em relação ao que estão fazendo com nosso país. Será que ainda teremos nossa correspondência violada? Será que ainda incendiarão os nossos livros?” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 35).

Assim como Maria Clara, Duarte se distingue dos demais membros das camadas superiores pela sua intelectualidade e posição de escritor. Fúlvio Castello Branco, antigo amigo de escola de Duarte e advogado, é um típico membro da elite carioca conservadora: se gaba constantemente de seu sucesso profissional, frequenta o Country Club do Leblon e espanca um morador de rua, logo após dizer que se compadece das desigualdades sociais no país. Quando Duarte lhe conta detalhes de sua vida financeira, Fúlvio considera lastimável seus “humildes proventos” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 45). No parágrafo seguinte, enquanto observa os jovens passeando pelo clube, Duarte se pergunta “se esses jovens algum dia entraram numa livraria” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 46). Quando escreve a outro editor para vender sua obra, Duarte diz sobre Petrus, editor atual: “Nosso velho Petrus, tido como um homem culto, sensível, amante extremado da boa literatura, revelou-se para mim um comerciante reles” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 116).

Diante dos seus pares, na maioria mais abastados, Duarte e Maria Clara adotam a mesma atitude: deploram sua posição política ou seu cínico apego às coisas materiais. No mesmo passo, Buarque insinua o cinismo na posição das duas personagens. Quando Duarte escreve ao seu editor para justificar o atraso no envio do último romance e pedir um adiantamento, elenca motivos pessoais, o contexto político e a crise econômica, e se despede chamando o editor de “amigo”. Durante boa parte da trama, o escritor se vê diante da possibilidade de ser despejado por não ter mais como arcar com seu aluguel. Aparece assim como uma espécie de artista e intelectual sem classe, ou nas franjas das classes altas, desprovido de meios econômicos, mas ainda gozando de algumas benesses graças ao seu status enquanto artista, suas relações e sua bagagem cultural. A maneira pela qual Duarte transita entre distintos e distantes espaços sociais - do Vidigal ao seu prédio no Leblon, até as festas de alta classe de Rosane, sua segunda ex-esposa - sem se sentir totalmente à vontade em nenhum deles indica uma experiência de profundo descolamento/deslocamento, uma espécie de desfaçatez dos intelectuais.

Roberto Schwarz cunhou o termo “desfaçatez de classe” para falar do narrador volúvel Brás Cubas, que lança mão das “novidades da civilização burguesa” para justificar, contrariar ou mascarar a arbitrariedade de sua posição de poder fundada nas estruturas coloniais ainda vigentes na modernidade (SCHWARZ, 2000SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000., p. 143). Pego emprestada a desfaçatez para indicar o misto peculiar de deslocamento e volubilidade em Duarte e, em alguma medida, Maria Clara. Uma ressalva é necessária: há uma distância considerável entre o contexto do qual Machado de Assis parte e aquele que vemos transposto em forma no romance Essa gente, no qual não estamos diante da burguesia primeva de um Brasil recém-saído do status de colônia, mas em um país em seu terceiro período democrático, flertando mais uma vez com o autoritarismo. Há um acúmulo de experiências políticas e sociais que não se pode ignorar, uma miríade de instituições as quais não existiam na época em que Brás Cubas andava pelas ruas do Rio de Janeiro. Tais diferenças, porém, não invalidam as semelhanças e continuidades igualmente flagrantes entre outrora e agora. A permanência na mudança é um mote do pensamento social brasileiro, expresso em conceitos como “modernização conservadora”4 4 É algo como a chamada “modernização conservadora”, nas palavras de Barrington Moore Jr., consagradas no Brasil por Werneck Vianna (1976) e Elisa Reis (1982). e na mordaz análise de Paulo Arantes (2021)ARANTES, Paulo. A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da mundialização. São Paulo: [s.n], 2021. https://doi.org/10.34024/9786500173857. ePUB - (Coleção sentimento da dialética / coordenação Pedro Fiori Arantes).
https://doi.org/10.34024/9786500173857...
sobre o Brasil como “país do futuro”. Em vez de pensar a desfaçatez como remanescente de um passado que insiste em não morrer, proponho pensá-la como propriedade de um processo social de longo prazo que, através e não a despeito de mudanças, é renitente em alguns aspectos. Como nas palavras do próprio Schwarz sobre o romance Estorvo (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.), permanece válido o apontamento de Buarque de uma “disposição absurda de continuar igual em circunstâncias impossíveis” (SCHWARZ, 1999SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., p. 181). Dentre aquilo que continua igual, merece destaque a acachapante desigualdade social expressa em disparidades e distâncias entre ricos e pobres, pretos e brancos, rural e urbano que fundamenta a ideia de desfaçatez.

DESLOCAMENTO E VOLUBILIDADE

Após um episódio depressivo, Maria Clara se vê sob os cuidados do doutor Kovaleski, que recomenda uma acompanhante para assisti-la em casa. Na entrada do dia 18 de abril de 2019, lê-se uma mensagem de Maria Clara a Kovaleski se queixando da técnica de enfermagem e, logo após, uma resposta da mesma:

A crente roda pela casa cantando salmos ou declamando os provérbios, e não tranco a porta do quarto porque me confiscaram a chave. Entra sem bater interrompendo meu trabalho só para me perguntar se estou em paz, e se eu protestar fala cruz-credo. Numa cena crucial do Otelo ela me perguntou se eu conhecia a Epístola aos Romanos do apóstolo Paulo, e pôs-se a ler aquilo sem mais nem menos. Voltou em vinte minutos para me contar dos dois marmanjos que vinham no trem de mãos dadas e foram expulsos do vagão a pontapés. Leu o versículo de São Paulo que condena os sodomitas, falou das mulheres devassas que pecam contra a natureza, e chegou a hora em que perdi as estribeiras: bati com a cabeça na parede até ela se calar. Já falei com Kovaleski para dispensar essa doida e selecionar melhor suas funcionárias. Não adianta me mandar de novo a Dandara do turno de ontem, que fuçava minhas calcinhas, nem a Marinalva de anteontem que tinha bafo de pinga. A continuar deste jeito prefiro demitir o próprio Kovaleski. (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 110-111).

O contexto da trama de Essa gente remete diretamente ao cenário político dos últimos anos no Brasil, em particular à emergência (ou reemergência) de uma direita conservadora, cujos valores morais estão vinculados ao credo cristão evangélico, ou uma versão do mesmo especialmente focada em questões de comportamento sexual. A figura da técnica de enfermagem evangélica aponta para o apelo desse credo nas classes populares. Maria Clara, que frequentemente lamenta a situação do país, não mostra qualquer simpatia a Jéssica - nomeada depois em diálogo com Duarte. Com tom semelhante ao que usa para referir-se à suposta “secretária cubana” de sr. Balthasar, a tradutora fala de Jéssica como um estorvo e, para arrematar, elenca as falhas das outras “funcionárias” do médico, uma que acusa de roubo ou alguma invasão de sua privacidade e a outra que “tinha bafo de pinga”. Em resposta, Jéssica se defende:

Já compreendi que ela não quer ouvir a palavra do Senhor e não foi por mal que insisti nas Escrituras. Só acho ruim ela falar que a diária escorchante que me paga não é pelos serviços de uma pastora. Depois joga na cara que sou uma simples auxiliar de enfermagem, e não enfermeira para usar uniforme branco. [...] Acredito no que pregam os Evangelhos, e não é por ser mestra e doutora que ela tem o direito de mangar da minha ignorância. Para seu governo, eu tenho algum estudo e também sei quem é o Shakespeare que ela tanto lê no quarto. Não li, mas sei que ele escreveu um monte de tragédias além de Romeu e Julieta, e se fosse rica eu ia ler esses livros todos em inglês. Acontece que eu moro no subúrbio, e de casa para o trabalho gasto três horas com trem, metrô e ônibus. Com sorte consigo um assento livre, e o que é que faz o trabalhador um tempão sentado, fora ver indecência na internet? A gente lê a Bíblia, que consegue quase de graça em qualquer igreja, onde o pastor nos esclarece a linguagem cifrada dos profetas. Agora vi que a madame está traduzindo a peça Otelo para o português, muito que bem. Ela podia distribuir os livros na estação para ver todo mundo lendo o Shakespeare no trem. (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 111-112).

Percebe-se que, além de se queixar do proselitismo de Jéssica, Maria Clara acha que paga demasiado pelos seus serviços, faz pouco de sua profissão e zomba de sua “ignorância”. Assim como a tradutora e Duarte, seu ex-marido, distinguem-se dos mais abastados pelo seu capital cultural e intelecto, marcam sua distância em relação aos mais pobres da mesma maneira. Todavia, gozam do privilégio de destratarem dos que percebem como inferiores, zombando diretamente deles, ameaçando demiti-los e acusando-os de tudo que lhes aprouver. Maria Clara zomba da “ignorância” da auxiliar de enfermagem, demonstra ojeriza à sua crença e diminui sua capacidades profissional, pois pode escolher ignorar as condições objetivas de vida de Jéssica, que a vigia, pois está sob ordens de seu patrão, e que não teve acesso aos bens culturais dos quais a tradutora tira seu sustento e lazer.

Duarte, o escritor, afirma que usava “sujeitos que nunca abriram um livro” como material para seus romances (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 25), demonstrando que aqueles que julga distantes social e culturalmente podem muito bem servir enquanto matéria literária. Não obstante, o narrador-escritor mostra simpatia ao passeador de cães de Maria Clara que a esperava do lado de fora do prédio após ser proibido de entrar pelo porteiro (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 9). Se a personagem Maria Clara tem contornos mais firmes, demonstrando desprezo tanto diante “dessa corja” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 149) - termo pelo qual se refere a Rosane e demais membros da elite conservadora carioca - quanto diante das “funcionárias” e funcionários que contrata - incluso o passeador de cães a quem faz esperar na calçada por horas a fio -, Duarte transita com alguma ambiguidade, colocando sua desfaçatez e deslocamento em franco contraste. Há um paralelo aqui entre Duarte e o protagonista de Estorvo (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.), analisado em curto ensaio por Roberto Schwarz (1999)SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.. O crítico identifica no romance mais antigo certa “fluidez e dissolução das fronteiras entre as categorias sociais”, um “nivelamento” que não se pode entender “sem considerar as oposições que ele desmancha” (SCHWARZ, 1999SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., p. 179). As semelhanças não param aí, visto que, assim como o protagonista de Estorvo, que se incomoda com o “luxo dos ricos” que a seus olhos “não passa de desafinação” (SCHWARZ, 1999SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., p. 179), Duarte não se sente em casa nas mansões da elite que frequentava no passado.

Na festa na mansão de Napoleão Mamede, atual companheiro de Rosane, sua segunda ex-esposa, se sente tão alienado que busca no próprio reflexo no espelho um conhecido, até perceber que se confundiu (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 132). Quando vai à favela do Vidigal para um churrasco na casa de Agenor e Rebekka, sente-se igualmente fora de lugar: “Apresenta-me como famoso escritor aos amigos, que não se mostram impressionados, e no cafofo do Agenor me sinto tão deslocado quanto no palácio de Napoleão Mamede” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 140).

Ao encontrar-se com Fúlvio no country club, sente-se da mesma forma: “Logo compreendi, porém, que ex-sócio é feito um anjo caído, e se não me trataram com maior desdém, foi porque eu vinha a convite de Fúlvio Castello Branco” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 45). Duarte vende sua membresia pois estava em dificuldades financeiras, incapaz de superar o bloqueio criativo e retomar a escrita do romance, motivo pelo qual se desculpa ao seu editor na primeira página do livro. O sentimento de deslocamento se desdobra para o próprio espaço da cidade do Rio de Janeiro, o qual se mistura entre passado e presente, tornando-se uma massa indistinta na qual o artista não tem futuro, mas tem passado:

Visto aqui do alto, o bairro não difere muito de uma favela. A barafunda de edifícios sem telhas lembra um amontoado de caixas de sapato destampadas, numa sapataria revirada em dia de liquidação. Nos seus recintos, porém, durante anos cheguei a ser feliz, casei, tive amantes, comi, bebi, joguei pôquer com amigos, frequentei escritórios, consultórios, papelarias, cabeleireiros, sapatarias e tal. Ultimamente não mais, é como se eu viesse de uma temporada fora, e na minha ausência o restaurante tivesse virado uma farmácia, a farmácia um banco, o banco uma lanchonete, e a população tivesse sido substituída por outra, que me torce o nariz como a um imigrante, um pobretão. (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 20).

O hábito de perambular pela cidade, a profissão nas letras e o nome semelhante evocam, em Duarte, a figura de Chico Buarque. Enquanto a personagem não se reconhece na cidade, o autor é fruto de um contexto histórico no qual a inteligência nacional não se reconhecia na nação:

Chico aparece no cenário nacional neste momento, logo depois do trauma que desmanchou a fantasia de uma civilização brasileira para nos colocar diante de um novo ciclo de barbárie. E em Chico de certa forma sobrevive a utopia que o golpe acabava de enterrar. Sua figura reúne o sonho do compromisso e da identidade entre uma elite esclarecida e um povo que enfim teria encontrado seu lugar e destino. (SILVA, 2004, p. 16).

Trauma e um novo ciclo de barbárie após anos em que o Brasil se projetava para um grande futuro. A semelhança entre o contexto do golpe de 1964 e a arrancada conservadora consagrada nos anos que seguiram o impeachment da presidenta Dilma Rouseff não é superficial. Trata-se de um país em um processo histórico atravessado por um padrão recalcitrante de irrupções autoritárias que cortam períodos de avanço democrático, sem haver oposição necessária entre “modernidade” e “tradição” ou entre “progresso” e “conservadorismo”. Evoca-se aqui a ideia de uma “promessa histórica” com “sucessivas frustrações” (SILVA, 2004, p. 17), e da continuidade de estruturas e hierarquias tradicionais na sociedade brasileira moderna, temas constantes do pensamento social brasileiro. Como argumenta Paulo Arantes (2021ARANTES, Paulo. A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da mundialização. São Paulo: [s.n], 2021. https://doi.org/10.34024/9786500173857. ePUB - (Coleção sentimento da dialética / coordenação Pedro Fiori Arantes).
https://doi.org/10.34024/9786500173857...
, p. 13), usando a expressão de Anatol Rosenfeld, a inteligência nacional fabula, diante desse cenário, uma “sintaxe da frustração”, sempre ansiosa em busca de uma “nova procissão de milagres”, esperançosa para o “encontro marcado com o futuro” do qual é artífice por excelência e, cada vez mais, vítima do “mesmo compasso da frustração”.

A obra de Chico Buarque, enquanto sismógrafo dessa conturbada relação dos intelectuais e artistas com o tempo, testemunhou a frustração “do projeto de modernização conduzido por intelectuais progressistas” (WISNIK; WISNIK, 1999WISNIK, José Miguel; WISNIK, Guilherme. O artista e o tempo. In: CHEDIAK, Almir (Ed.). Songbook: Chico Buarque. v. 4. Rio de Janeiro: Lumiar, 1999, p. 8-20., p. 11), mas também de uma ideia de “povo” que não vingou. Nem elites esclarecidas, nem o povo brasileiro imaginado. Na última virada do parafuso da história, após um período de retomada do nacional-desenvolvimentismo chancelado pelos governos do Partido dos Trabalhadores (2002-2014), os fantasmas (nem tão mortos) da tradição voltaram com novas roupas. O “povo”, ou pelo menos aquele retratado no romance, não é mais potência revolucionária, mas é guardião e promotor de uma moralidade conservadora explicitamente excludente. Os outros membros “não esclarecidos” da elite se transfiguram em uma turba violenta. Quando Duarte leva para casa o revólver de Maria Clara, é ovacionado pelos moradores do Leblon: “É isso aí, mestre! Tem que acabar com a raça desses bandidos!” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 103). O passeador de cães, antes auxiliado por Duarte, assalta a casa de Maria Clara e depois é assassinado por um atirador de elite da janela de um prédio vizinho. A multidão ao redor grita e aplaude, enquanto a polícia continua a alvejar o corpo morto (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 70).

Nesse ponto, um paralelo curioso com Estorvo (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.), tomando a análise de Schwarz como prisma para o livro, revela algumas especificidades do tempo presente:

Numa grande cena de rua, com corre-corre, camburões e TV, uma baixinha com cara de índia procura impedir a prisão do filho, aos gritos e com bons argumentos. O narrador sente que vai ficar a favor dela, mas logo vê que se enganou, pois a mulher para de gritar quando percebe que não está sendo filmada. O episódio, que o narrador preferia que não tivesse acontecido, explica muita coisa, talvez marque um horizonte de época. O desejo de tomar o partido dos pobres e de vê-los defender na rua os seus direitos sobe de supetão, para se apagar em seguida. É como um reflexo antigo, antediluviano, hoje uma reação no vazio, já que a alegria do povo é aparecer na televisão. (SCHWARZ, 1999SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., p. 180).

Nos dois casos, vemos uma situação na rua, espaço público aos olhos de todos, onde se dramatiza algum tipo de conflito social latente. As semelhanças, porém, não vão tão longe. Se em Estorvo encontramos uma mulher que tenta impedir a prisão do filho, em Essa gente o passeador de cães não tem sequer um defensor ou defensora. O algoz também não é exatamente o mesmo. A mulher de Estorvo discute com a polícia, que também está presente no assassinato do passeador de cães, porém, o tiro derradeiro não parece vir da arma de um policial: “Foi um tiro na testa que tomou, disparado talvez de alguma janela vizinha por um atirador de elite” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 70). A violência não é monopólio das forças estatais. Se antes a presença da TV é o que desfaz qualquer aparência de um conflito real entre forças policiais e classes populares, agora não há dissolução de aparências. O passeador é assassinado, e os transeuntes, transformados em plateia, aplaudem. O espetáculo a ser consumindo não é a defesa de direitos, mas a eliminação do criminoso. A própria ideia da TV como veículo de mídia de massa, capaz de centralizar informações e “dar voz” a quem quer que seja, não faz tanto sentido no mundo das mídias sociais, das bolhas de informação e das fake news. A mídia se faz presente no romance mais recente pela imagem dos policiais tirando foto com os transeuntes após o assassinato do passeador de cães (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 72). Outro espetáculo, outros protagonistas. Permanece, porém, o indício de simpatia do narrador-protagonista com a personagem no centro da ação, seja a mulher que parece índia ou o passeador de cães, que também não dura, pois Duarte logo se ocupa de retirar seu filho que “só quer se juntar aos policiais” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 70).

Maria Clara, apesar de agredida na tentativa de assalto, hesita em prestar queixa e não demonstra raiva do passeador de cães. A atitude contrasta com a maneira como trata Jéssica, a técnica de enfermagem, que, ao expressar uma atitude politicamente conservadora, torna-se alvo do desprezo de Maria Clara, simbolizando o que parece estar errado no país. O passeador de cães, por outro lado, só buscava um cofre em sua casa. A privação material e a tentativa de remediá-la através de uma atividade criminosa compõem uma imagem de “povo” que parece condizer com as expectativas de Maria Clara, e são justificadas como algo além do controle do indivíduo. Ele é um “pobre-diabo” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 72) e não uma “crente doida”. A diferença de tratamento não contraria a ideia de uma desfaçatez da inteligência, mas a confirma. Os pobres cujas condições os empurram a atos moralmente condenáveis são diferentes daqueles que condenam moralmente o comportamento de outros, e essa diferença só é operada pelo intelectual que, munido de argumentos sociológicos e psicológicos, distingue e seleciona os representantes do “povo”. A antipatia de Maria Clara a Jéssica ganha outra dimensão no desenrolar do romance, quando uma nova “funcionária”, Laila, passa a acompanhá-la em casa. Laila é descrita como uma “comunista”, militante de partidos e sindicalista, já angariando a simpatia da tradutora. Insinua-se que as duas desenvolvem um relacionamento romântico, que Duarte não parece perceber, e eventualmente se mudam para Portugal, o refúgio escolhido pela classe média brasileira descontente com o país, dos dois lados do espectro político (FRANÇA; PADILLA, 2018FRANÇA, Thais; PADILLA, Beatriz. Imigração brasileira para Portugal: entre o surgimento e a construção midiática de uma nova vaga. Cadernos de Estudos Sociais, v. 33, n. 2, 2018, p. 207-237. https://doi.org/10.33148/CES2595-4091v.33n.220181773.
https://doi.org/10.33148/CES2595-4091v.3...
; MIRANDA, 2022).

Desfaçatez e deslocamento são duas faces da mesma condição de desenraizamento da inteligência nacional, incluindo artistas e literatos, diante de um projeto estético-político frustrado. Mais uma vez, como para o narrador-protagonista de Estorvo, “O desejo de uma sociedade diferente e melhor parece ter ficado sem ponto de apoio” (SCHWARZ, 1999SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., p. 180). Agora, porém, outros elementos se fazem presentes: a sanha de violência armada na sociedade civil, em particular nas suas parcelas conservadoras, a espetacularização fragmentada e ubíqua na era das mídias sociais e a aparente ausência de qualquer possibilidade de diálogo “com bons argumentos”, mesmo que no grito. Se a cultura erudita brasileira há muito tempo alimentou-se do “povo” e de sua cultura como fontes de inspiração e renovação estética, o que faz diante de um “povo” que essa elite não reconhece e não é reconhecida por ele?

AGENOR E REBEKKA - PRETO NO BRANCO

Agenor é um guarda-vidas morador do Vidigal que salva Duarte de um afogamento. O escritor o introduz assim: “O sargento Agenor é um negro bonito de presumíveis quarenta anos, se bem que os da sua raça geralmente parecem mais jovens do que são” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 60). Duarte oferece 50 reais a Agenor, que diz estar ofendido pelo ato, e então tenta começar uma conversa sem sucesso, até que menciona ser escritor. O guarda-vidas pergunta:

  • - Você quer contar minhas histórias?

  • - Posso inventar mais algumas, se você permitir.

  • - E se eu não gostar?

  • - Troco seu nome.

  • - E as suas histórias você também inventa?

  • - Claro, no meu livro posso ser quem eu quiser. Posso até te salvar de um afogamento.

  • - Você no livro é branco ou preto?

  • - Hein?

  • - É preto ou branco?

  • - Boa pergunta.

    Percebo que nos romances nunca me preocupei em explicitar a minha cor. É curioso que, num país onde quase todo mundo é preto ou mestiço, autor nenhum escreveria “hoje encontrei um branco...”, ou “um branco me cumprimentou...”, ou “o sargento Agenor é um branco bonito de presumíveis quarenta anos, se bem que os da sua raça...”. (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 60-61).

A raça do narrador não é mencionada explicitamente outra vez até o fim do livro. Em consonância com a desfaçatez que a posição de escritor lhe confere, Duarte fala de Agenor como matéria-prima resignada de seu trabalho. Se ele não gostar, troca-se o nome e a história continua. A pergunta do guarda-vidas - “Você quer contar minhas histórias?” - passa sem resposta, mas é respondida no romance. No desenrolar da conversa, Agenor convida o escritor a conhecer sua casa na favela do Vidigal, mostra uma foto de sua esposa, Rebekka, uma garota “ruiva e sardenta” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 61).

Rebekka, uma holandesa da cidade de Utrecht, ensina inglês para crianças em uma escola no Vidigal. Quando se encontra com ela pela primeira vez, Duarte descreve-a como uma “branquela de vinte e poucos anos” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 79). Apaixonou-se pela língua brasileira ouvindo o vinil Orfeu da Conceição, trilha sonora composta por Tom Jobim e Vinícius de Moraes (1956) para a peça homônima (MORAES, 1956). Ao visitar o Rio de Janeiro para um festival de música, conheceu Agenor e nele reconheceu o Orfeu que imaginava quando criança. Na casa onde reside com Agenor na favela do Vidigal, se põe a cantar a canção “Manhã de carnaval”, observada por Duarte: “Assistindo àquela cena idílica, tenho a impressão que o casal se preparou a sério para fazer bonito no meu romance. Ainda mais agora com a cumplicidade do luar, que entra pela janela e ressalta as sardas no rosto da Rebekka” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 82). A cena é interrompida por uma barata voadora que pousa em Rebekka, provocando um tapa de Agenor. Há uma discussão que termina com a holandesa respondendo: “Não me confunda com as suas negas” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 83). O trio se relaciona pelas lentes de categorias étnico-raciais, misturando desejo e “exotização” do outro. Agenor pede para que a cor de Rebekka permaneça a mesma na ficção - “Só não quero que mude a cor da Rebekka” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 62). Duarte justifica sua atração pela holandesa através da etnia: “Não sei dizer se ela é bonita de rosto, ora mais, ora menos, mas esse tipo de judia asquenaze sempre me fascinou” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 163). Rebekka diz que poderia se sentir atraída por Duarte se ele fosse “vinte anos mais preto” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 121)5 5 Outra vez, as leituras de Schwarz (2012) sobre Buarque merecem menção, em especial sua análise de Leite derramado (BUARQUE, 2009). Matilde, a “única escura” entre “várias irmãs claras”, é a mulher dos sonhos de Eulálio, narrador-personagem do livro. Como nota Schwarz (2012, p. 144), tanto o desejo de Eulálio por Matilde quanto seu ciúme dela “se alimentam da desigualdade de classe e de cor, que segundo a ocasião funcionam como atrativo ou objeção”. .

Em outra voz, agora de Marilu Zabala, juíza federal e moradora do prédio de Duarte, vê-se outra atitude diante de pessoas negras. Em uma carta ao síndico do Edifício Saint Eugene, a juíza se queixa do comportamento de Duarte, mencionando hábitos que considera falta de “civilidade” - usar o elevador sem camisa e suado, não limpar os sapatos quando entra no prédio, entre outros -, com ênfase em um que julga particularmente problemático:

Já duas ou três vezes, da minha janela, tive eu mesma o desprazer de ver certas prostitutas - perdão, a palavra é esta, pois nem sequer poderiam ser classificadas como garotas de programa, escorts ou demais eufemismos - prostitutas saltando de um Uber para subir ao sétimo andar. São mesmo profissionais do mais baixo estrato, e não o digo por suas fisionomias, pois sou juíza federal e não tenho preconceito de cor, mas pela manifesta falta de compostura com que se vestem e falam palavrões aos berros ao celular. (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 19).

O racismo, denegado, aparece no ato de tentar afastá-lo, amparado pelo status profissional da queixosa. Em ocasião já mencionada, Fúlvio Castello Branco, personagem que parece figurar no mesmo tipo de elite conservadora que Marilu Zabala, agride um morador de rua que Duarte diz ter “cara de índio velho” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 47) logo depois de dizer que deplora a desigualdade social e outras mazelas do país.

IDENTIFICAÇÃO E DESIDENTIFICAÇÃO

A raça é princípio estruturante de organização da estrutura social brasileira (e não só aqui), permeia suas hierarquias e desigualdades, e é mecanismo de identificação determinante: “Um brasileiro é designado preto, negro, moreno, mulato, crioulo, pardo, mestiço, cabra - ou qualquer outro eufemismo...” (NASCIMENTO, 1978NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978., p. 42). Ser identificado racialmente enquanto negro é ser “sobredeterminado pelo exterior” (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 108), isto é, ser subtraído a priori ou pelo menos em potencial de qualquer substrato de subjetividade que não seja marcado pela racialização. Com exceção do honorífico “sargento”, Agenor é logo descrito como um “negro bonito”, e o passeador de cães não recebe nome, assim como o “índio velho”. É verdade que outros elementos compõem a subjetividade de uma pessoa negra, a depender de repertórios culturais, posição social, contexto sócio-histórico e agenciamentos (MARPIN, 2020MARPIN, Ábia. Repertórios de negritude: racismo, música e teoria racial. 2020. 327f. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade do Estado do Rio Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos, 2020.). Não obstante, há uma força indelével da classificação racial como princípio de organização social hierarquizante. No romance, todavia, a raça aparece à moda brasileira: eufemizada e sugerida. A juíza Marilu Zabala nega qualquer preconceito de cor quando fala das “fisionomias” e das ações das trabalhadoras do sexo. Maria Clara, progressista convicta, perturbada pela situação do país e pronta a demonstrar ojeriza aos membros conservadores de sua classe, não deixa de inferir que a secretária que julgava contrariá-la era “cubana”, nem reserva julgamentos às técnicas de enfermagem contratadas para assisti-la.

A desfaçatez das classes intelectuais vista em Maria Clara e Duarte é uma face de um abismo entre o “povo” e as classes médias e dirigentes que ganha outra dimensão na questão racial, que, por sua vez, é ainda mais profunda, tingindo a percepção das personagens de si mesmas e dos outros. Na entrada do dia 28 de setembro de 2019, o leitor descobre que Duarte morreu em seu apartamento. Com a chegada da polícia, Marilu Zabala aproveita-se de sua posição de juíza e adentra o apartamento:

Retirada gentilmente pelo delegado, a dra. Zabala descreve a fisionomia do defunto, os olhos vidrados, a mandíbula torta e uma estranha coloração verde-escura. Não custa a circular no hall a informação de que o escritor do 702 era mulato, apesar dos desmentidos da própria juíza, para quem nunca houve um inquilino afrodescendente no Edifício Saint Eugene. Os moradores fazem silêncio finalmente, quando o corpo sulfuroso deixa o apartamento dentro de um saco preto, sobre uma maca de aço carregada pelos bombeiros: dá licença, dá licença. Assim que eles descem pela escada, alguém comenta que crioulo, quando não caga na entrada, caga na saída. (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 189).

Ao final da trama, tal informação sobre a ambígua classificação racial de Duarte, personagem a qual o leitor acompanha na grande maioria do entrecho, coloca toda a narrativa em outra luz: o devaneio do escritor sobre seu estranhamento em relação à cidade, no qual afirma sentir que os moradores o veem como um “imigrante” e “pobretão”; os olhares dos membros do country club nos quais sente “hostilidade” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 45); quando policiais no apartamento de Maria Clara, após a tentativa de roubo do passeador de cães, pedem seus documentos e o tratam rudemente, enquanto ele pensa que era “passível de ser detido como suspeito de cumplicidade no crime” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 71); a pergunta de Agenor - “é preto ou branco?” - parece insinuar que o escritor não é facilmente classificável à primeira vista.

A percepção de si de Duarte deixa intuir algum grau de ambivalência acerca de sua identidade racial. Há um paralelo firmado entre o escritor e o “mendigo” agredido por Fúlvio que começa no ato da violência: “Ele já está para embicar na rua quando freia, salta do carro e vem berrando na minha direção: cai fora, vagabundo!, fora daqui, maconheiro! Com uma expressão transtornada, passa por mim às cegas e se dirige a um homem deitado na calçada, encostado no muro do clube” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 47). Posteriormente, sob ameaça de despejo, Duarte escreve para seu editor pedindo um adiantamento e diz que sem o dinheiro logo estará como um sem-teto (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 50). E por fim, ainda sem dinheiro, decide pedir emprestado a Fúlvio. A entrada que narra tal episódio começa com o escritor refletindo sobre como nunca correspondeu às expectativas de seu pai, um desembargador: “De certa forma, foi até bom ele não ter vivido para ver seu filho, depois de velho, fazendo papel degradante à porta de um clube, praticamente um mendigo como os que Fúlvio gosta de espancar” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 94).

Sem dinheiro, mas próximo de pessoas ricas que poderiam socorrê-lo, ameaçado de perder seu status de escritor se não publicar uma nova obra, mas herdeiro posição de seu pai desembargador, que deixou como legado a membresia no country club. As idas e vindas do escritor através de estratos sociais distintos conferem a ele algo como uma aura escorregadia, uma capacidade picaresca de subir e descer pelas escadas da hierarquia, bem como transitar entre os lados da divisa política. No entanto, a ameaça de despejo e a incapacidade de escrever o colocam mais próximo do que nunca a uma vida de pobreza e esquecimento. Enquanto transita, Duarte não consegue se identificar ou pertencer a lugar nenhum. Nas palavras de Rosane, sua segunda ex-esposa, o escritor “não se enxerga” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 44). Ele não se reconhece no espelho (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 132), é identificado pelo nome errado (Duterte) em uma matéria de jornal (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 149) e, após a morte, nenhum de seus vizinhos se lembra de tê-lo visto no prédio (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 188). Incapaz de se reconhecer na sua cidade, constantemente rememorando as glórias do passado e solitário, Duarte vive uma patologia de identificação. Nada lhe dá certeza de quem é ou de onde está no mundo.

É como um ser estranho habitando em um mundo que não foi feito para ele, sem ter certeza de por que é percebido enquanto outsider. Esse estado de ser ecoa as situações de pessoas pretas e pardas que ascendem socialmente e que enfrentam o desafio de viver no “mundo dos brancos” (SOUZA, 1983SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983., p. 64-66; SILVA; LEÃO, 2012SILVA, Graziella Moraes; LEÃO, Luciana T. de Souza. O paradoxo da mistura: identidades, desigualdades e percepção de discriminação entre brasileiros pardos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 27, n. 80, 2012, p. 117-133. https://doi.org/10.1590/S0102-69092012000300007
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; FERNANDES, 2013FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2013., p. 43). Não se trata, é claro, de dizer definitivamente que Duarte é negro, branco, pardo ou qualquer outra coisa. Enquanto intelectual e artista, filho de desembargador e morador do Leblon, Duarte experimenta as tensões entre categoria racial, classe, status e capital cultural: “Isto é, as discrepâncias entre cor atribuída e cor autopercebida relacionadas com a própria situação socioeconômica e cultural dos indivíduos” (SCHWARCZ, 2013SCHWARCZ, Lília Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: ClaroEnigma, 2013., p. 93).

No entanto, a história de Duarte não é de empobrecimento ou de reconhecimento de uma negritude negada. A personagem não é um símbolo da população negra brasileira, nem estritamente uma alegoria para o racismo. O que as categorias raciais mobilizadas na trama iluminam, ainda no plano da relação entre as personagens, é um dilema aparentemente insolúvel de identificação com o outro e, consequentemente, de formação de uma identidade própria minimamente coerente. Esse dilema, conectado tanto à sua posição de intelectual e artista, quanto à sua identidade racial, ganha uma terceira dimensão na sua relação com o passado e o futuro. De cada lado do jogo de desejo e ciúme entre Agenor, Rebekka e Duarte, figura o passado nostálgico e um futuro almejado: Rebekka encontra em Agenor o Orfeu Negro pelo qual se apaixonou na ficção da música em sua infância e, quando se decepciona com o Agenor real, sonha em voltar para Utrecht, onde o reencontraria eterno (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 120); Agenor encontra em Rebekka uma mulher com a qual gostaria de ter um “moleque sarará” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 128), insinuando uma imagem positiva de um futuro miscigenado; Duarte apaixona-se por Rebekka, tradutora como sua primeira esposa, Maria Clara, desejando recuperar sua “juventude por alguns minutos” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 186), o que reacende sua gana por escrever, vislumbrando o futuro do romance até então interrompido: “Sim, eu sonhava casar com ela no papel, como casei com a Maria Clara vinte anos atrás, e como nos tempos da Maria Clara, tornaria a escrever romances em profusão” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 176). O que as categorias raciais em Essa gente deixam entrever é, mais uma vez e de outro modo, o drama de um país cindido e apartado de si, incapaz de reconhecer-se e perpetuamente ligado a um retorno do passado que não se foi. Duarte não se vê como “mulato” ou “afrodescendente”, e só é assim classificado explicitamente após seu fim, quando finalmente é visto pelos seus vizinhos. É como se a personagem só aparecesse de fato quando morto, assim como o passeador de cães prestes a ser brutalmente assassinado em uma cena que parece um “set de filmagem” ou a “gravação externa de uma telenovela” (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 68). A morte e o extermínio são as lentes pelas quais os corpos negros de Duarte e do passeador de cães vêm à tona, agora desprovidos da possibilidade de qualquer futuro.

CONCLUSÃO - EU, NÓS, ESSA GENTE

Essa gente coloca mais um capítulo no longo processo que, como argumentaram Wisnik e Wisnik (1979, p. 12), acusa o “obscurecimento de uma entidade concreta e historicamente formada (o povo)” diante de uma elite esclarecida incapaz de relacionar-se significativamente consigo mesma ou com o outro diferente. Diante disso, a elite intelectual, aqui representada por Duarte, responde ou com “resignação e sentimento de impotência” (SILVA, 2004, p. 63) ou com a impossibilidade de narrar. A crise do escritor que não consegue escrever, anunciada na primeira página, atravessa todo o romance e encontra seu ápice na escrita fragmentada da própria vida que é interrompida antes do fim da narrativa. Duarte não começa a história, nem a termina. A presença de trechos narrados em terceira pessoa, bem como transcrições de ligações telefônicas sem a voz de Duarte, notas judiciais, matérias de jornal, incluindo coisas escritas após sua morte, indicam que os elementos que compõem Essa gente, assim como os que constituem a instável figura de Duarte, não estão sob seu domínio narrativo. Se, como argumentou Ricoeur (1988)RICOEUR, Paul. L’identité narrative. Esprit, v. 7-8, n. 140-141, 1988, p. 295-304., identidade e narrativa têm uma similaridade estrutural, de tal modo que nos construímos através da narração de nós mesmos, Essa gente explora a dificuldade de narrar a si mesmo quando parece não haver as referências para produzir nem uma narrativa, nem uma identidade de si. Enquanto tenta narrar sua história, Duarte passeia em relações nas quais não consegue se diferenciar, nem se identificar com os outros. Enquanto procura um fio narrativo, transita entre gêneros, estilos e fragmentos de textos que não parecem criar uma unidade coesa. Para que haja um “eu” é preciso um “outro”, aquele a respeito do qual, contra o qual e através do qual o “eu” se constitui. Essa constatação é ponto de partida tanto da dialética hegeliana (HEGEL, 1992HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Parte I. Tradução de Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1992. (Pensamento Humano).), quanto do interacionismo simbólico de Mead (1934)MEAD, George Herbert. Mind self and society from the standpoint of a social behaviorist. Edited by Charles W. Morris. Chicago: University of Chicago, 1934., passando pela teoria crítica de Axel Honneth (2003)HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003. e a filosofia da linguagem de Paul Ricoeur (1992)RICOEUR, Paul. Oneself as another. Chicago: The University of Chicago Press, 1992., alcançando status de pressuposto e truísmo nas ciências humanas e sociais. Tal definição de si pelo outro não pressupõe necessariamente uma relação positiva, como ilustra a dialética do senhor e do escravo. No entanto, é preciso um mínimo de relacionalidade, alguma ponte que vincule “eu” e “outro” em relações agonísticas, solidárias, amorosas, entre outras. É essa ligação que parece estar rompida entre Duarte e as demais personagens. Relaciona-se com Maria Clara pelas lentes do passado, com os demais à distância, de sua posição enquanto intelectual deslocado e distinto, com Rebekka e Agenor em um jogo de desejo e competição cifrado por categorias raciais reducionistas.

Na narrativa desconjuntada do escritor (Duarte) vemos uma tentativa do autor (Buarque) de achar uma forma de dar sentido a um mundo aparentemente irracional, resistente a grandes explicações e sem perspectiva de transformação significativa. O escritor volta ao passado - em Rebekka, no seu filho, nas suas memórias e sonhos - tentando recuperar a utopia perdida, aquele momento em que parecia possível imaginar o futuro. Quando começa a imaginar um caminho adiante, Duarte o faz reescrevendo seu presente em um jogo de espelhos: narra a relação com Rebekka com o intuito de conduzir a relação para o desfecho que lhe agrada, só para ter sua expectativa frustrada quando ela diz: “Você está confundindo tudo”. De fato, ficção e realidade se misturam, um “onirismo desperto” (SILVA, 2004, p. 119) que questiona a própria relação entre os dois termos (AZERÊDO, 2021AZERÊDO, Genilda. Essa gente, de Chico Buarque, como um romance (não) escrito: metaficção e crítica social. Scripta Uniandrade, v. 19, n. 1, 2021, p. 76-95. https://doi.org/10.55391/2674-6085.2021.1979.
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). Assim alude à ambiguidade da própria realidade transposta na forma literária, isto é, um país enredado em mais um retorno ao conservadorismo autoritário, ainda atravessado por hierarquias raciais longamente assentadas e incapaz de realizar o “futuro” para o qual parece ensaiar sem estreia:

Está claro que tamanha confiança nesse providencial encontro marcado com o futuro cedo ou tarde se tornaria uma fonte de frustrações recorrentes. De fato, toda essa fantasia progressista mal encobria o estado de ansiedade permanente em que vivia pelo menos a inteligência nacional - para não falar o bovarismo das camadas dirigentes propriamente políticas e econômicas. (ARANTES, 2021ARANTES, Paulo. A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da mundialização. São Paulo: [s.n], 2021. https://doi.org/10.34024/9786500173857. ePUB - (Coleção sentimento da dialética / coordenação Pedro Fiori Arantes).
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, p. 13)

A fantasia da inteligência nacional traduz-se, na pena de Chico Buarque, em um tipo de atitude vacilante, a desfaçatez que disfarça uma soberba diante de um povo que a “traiu”. Como Garcia (2006)GARCIA, Walter. Um mapa para se estudar Chico Buarque. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 43, 2006, p. 187-202. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i43p187-202.
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apontou, no entanto, é preciso se perguntar de onde se acusa o povo traidor? Falando em primeira pessoa, na figura de Duarte, chegamos mais próximos de um retrato honesto da intelectualidade brasileira diante da frustração da promessa de um Brasil do futuro: discordando da elite conservadora e a desprezando pela sua falta de capital cultural, nossos intelectuais também não se conectam com o povo que, ostensivamente, defenderiam e elevariam, enxergando nele somente os que diferem política e culturalmente (Agenor, o guarda-vidas conservador, e Jéssica, a técnica de enfermagem evangélica) ou os que são vítimas de suas circunstâncias (o passeador de cães). Ao mesmo tempo, Duarte não é capaz de enxergar a ambiguidade de sua própria posição. Incapaz de se ver como “mulato”, atribui as antipatias e maus-tratos dos que o cercam a outros motivos. Crítico das elites conservadoras que organizam jantares com garçons em trajes de cavaleiros templários, recupera-se do aperto financeiro lucrando com a onda nostálgica pelos tempos monárquicos que varreria a nação. Ademais, sente-se aviltado quando a imprensa menciona os cantores castrati, como se o fato histórico fosse de sua autoria por ter sido retratado em seu livro (BUARQUE, 2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 85). Tal desconhecimento de si não é falha de caráter, mas impossibilidade estruturada: o racismo velado não permite a explicitação dos motivos da discriminação, seja por perpetradores ou por vítimas, enquanto a nostalgia é condenada somente quando o passado evocado não é de agrado de quem evoca.

Se sabe ou não de onde fala, é prerrogativa da desfaçatez intelectual ocultar-se ou escamotear sua posição. Assim, fala-se sobre o povo do ponto de vista de uma elite esclarecida, reiterando o “silêncio” do povo que fala por si mesmo (GARCIA, 2006GARCIA, Walter. Um mapa para se estudar Chico Buarque. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 43, 2006, p. 187-202. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i43p187-202.
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, p. 200). A forma ecoa o vozerio incompleto: Duarte, Maria Clara, Rosane, Marilu Zabala e o narrador falam abundantemente, enquanto Jéssica, a técnica de enfermagem que conquista a antipatia de Maria Clara, é a única representante do dito “povo” que fala em primeira pessoa. Quando o faz, toca exatamente na ferida: quem é a tradutora para falar de sua Bíblia enquanto nada faz para distribuir Shakespeare no trem? Evidente, não se trata de Shakespeare para os passageiros do parador, mas de outras histórias e de quem as conta. Nesse ponto e nos raros momentos de reflexividade genuína de Duarte, as figuras do escritor (Duarte) e do autor (Buarque) se distanciam. A personagem é provocada: você é preto ou branco? É escritor de sucesso ou não é? A resposta de Buarque é dada em tom sombrio, numa narrativa sem fio aparente e sem resposta. No final, não se encontram registros do livro no computador de Duarte. Ele estaria escrevendo afinal? O salto serve para lembrar que pode não haver possibilidade de narrativa para o escritor no interior da trama, mas para nós, leitores e narradores, ainda é possível dizer alguma coisa sobre o tempo presente, em cacofonia e na multidão de vozes.

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    Leite (2021LEITE, Maria Jodailma. Borrando as fronteiras entre realidade e ficção: autoficção em Essa gente, de Chico Buarque de Holanda. 2021. Dissertação (Mestrado em Literatura e Crítica Literária). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2021. Disponível em: https://repositorio.pucsp.br/handle/handle/24194. Acesso em: fev. 2024.
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    , p. 68-85) enumera em detalhes os paralelos entre Duarte e Buarque, incluindo a semelhança fonética no nome das suas primeiras esposas e o vínculo de Duarte com São Paulo, onde Chico Buarque passou boa parte de sua vida, e com o Rio de Janeiro, onde residiu por muito tempo.
  • 3
    Em Estorvo (BUARQUE, 1991BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.), livro narrado em primeira pessoa por um sujeito sem nome, os eventos são iniciados pelo encontro com uma figura misteriosa que dispara a personagem principal em uma espiral. Através de rememorações e esquecimentos, angústia e violência, espaços de seu passado, em encontros com familiares, estranhos, e o crime organizado, o sujeito termina no lugar onde começou. Benjamin (BUARQUE, 1995BUARQUE, Chico. Benjamin. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.), narrado em terceira pessoa, trata da vida e morte de Benjamin Zambraia, antigo modelo fotográfico que se vê diante de um pelotão de fuzilamento e lança-se em um labirinto de recordações. Novamente a narrativa é circular, com começo e fim no fuzilamento de Benjamin. Apesar do recurso de narração em terceira pessoa, há oscilação constante entre a posição onisciente típica de uma focalização externa (GENETTE, 1979GENETTE, Gérard. O discurso da narrativa: ensaio de método. Lisboa: Vega Universidade, 1979.) e a posição implicada no interior da narrativa, além de oscilação entre presente e passado que parece evocar os estados internos e a percepção da própria personagem titular. Em Budapeste (BUARQUE, 2003BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.), a personagem principal é o ghost-writer José Costa, que, entre idas e vindas à Hungria, assume o nome Zsoze Kósta. Vivendo de sua escrita anônima, Costa/Kósta deleita-se no sucesso daqueles que publicamente assumem a autoria de seu trabalho, em um jogo de espelhos que nunca termina, mas continua a se dobrar. No Brasil, é casado com Vanda, uma apresentadora de telejornais, enquanto na Hungria começa um caso com Kriska, que ensina a ele a língua húngara.
  • 4
    É algo como a chamada “modernização conservadora”, nas palavras de Barrington Moore Jr., consagradas no Brasil por Werneck Vianna (1976)VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. e Elisa Reis (1982)REIS, Elisa. Elites agrárias, state-building e autoritarismo. Dados, v. 25, n. 3, 1982, p. 331-348. Disponível em: https://dados.iesp.uerj.br/es/edicoes/?vn=25-3. Acesso em: fev. 2024.
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    .
  • 5
    Outra vez, as leituras de Schwarz (2012)SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. sobre Buarque merecem menção, em especial sua análise de Leite derramado (BUARQUE, 2009BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.). Matilde, a “única escura” entre “várias irmãs claras”, é a mulher dos sonhos de Eulálio, narrador-personagem do livro. Como nota Schwarz (2012SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., p. 144), tanto o desejo de Eulálio por Matilde quanto seu ciúme dela “se alimentam da desigualdade de classe e de cor, que segundo a ocasião funcionam como atrativo ou objeção”.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2024
  • Aceito
    13 Jun 2024
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