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Michel Foucault, o paradigma da formação e junho de 2013: uma interpretação sobre a (de)formação nacional

Michel Foucault, the formation paradigm and June 2013: an interpretation on national (de)formation

COCCO, Giuseppe; CAVA, Bruno. . Enigma do disforme: neoliberalismo e biopoder no Brasil global . Rio de Janeiro: Mauad X, 2018.

RESUMO

O livro Enigma do disforme: neoliberalismo e biopoder no Brasil global, de Giuseppe Cocco e Bruno Cava, retoma a crítica de Michel Foucault a respeito do neoliberalismo para oferecer uma interpretação sobre os impasses políticos da esquerda brasileira e latino-americana. Para tanto, desdobra essa crítica em dois planos: um, por assim dizer, propriamente histórico, no qual se busca reinterpretar os sentidos da formação histórica brasileira e latino-americana, e outro mais vinculado às disputas interpretativas e políticas surgidas no contexto do que denominam “ciclo progressista” brasileiro e latino-americano.

PALAVRAS-CHAVE:
Neoliberalismo; formação nacional; lulismo; junho de 2013

ABSTRACT

The book Enigma do disforme: neoliberalismo e biopoder no Brasil global by Giuseppe Cocco and Bruno Cava takes Michel Foucault’s critique of neoliberalism to offer an interpretation of the political impasses of the Brazilian and Latin American left. In order to do so, it unfolds this critique in two planes: one, so to speak, properly historical, in which one seeks to reinterpret the meanings of Brazilian and Latin American historical formation and another more linked to the interpretative and political disputes arising in the context of what they call “progressive cycle” in Brazil and Latin America.

KEYWORDS:
Neoliberalism; national formation; lulism; June 2013


Enigma do disforme é um livro ambicioso. Escrito em linguagem que remete ao ensaio e com claras intenções de intervenção pública, o livro é entendido pelos autores como uma espécie de síntese de suas trajetórias intelectuais, ao mesmo tempo em que é tomado como um novo ponto de partida para elaborações a respeito da relação entre neoliberalismo e biopoder no Brasil contemporâneo. Sinal disso está, por exemplo, na revisão crítica que realizam a respeito da perspectiva formulada em Glob(AL): biopoder e luta em uma América Latina globalizada (2005), livro escrito por Giuseppe Cocco e Antonio Negri. Assim, se o objetivo parece continuar o mesmo - realizar a “virada biopolítica” (p. 45) -, o horizonte intelectual e político é repensado pelos autores a partir do fim do ciclo de governos progressistas na América Latina.

A estrutura do livro é apresentada de forma simples: na primeira parte, encontramos uma reflexão e uma defesa da interpretação do filósofo francês Michel Foucault acerca do neoliberalismo; na parte seguinte, o objeto de reflexão é a suposta linearidade presente no “paradigma da formação” nacional; na seção final, encontramos uma reflexão sobre a conjuntura aberta a partir de 2013. A conclusão, de fato, é uma síntese acerca do enigma que dá título ao livro, o qual remete à própria noção de forma, cara à tradição do pensamento social e político brasileiro que posta em questão na reflexão dos autores.

No primeiro capítulo, intitulado “Foucault e o neoliberalismo”, são apresentadas reflexões sobre a recepção e o conteúdo das teses de Nascimento da biopolítica (2004), livro originado de um curso ministrado por Michel Foucault no Collège de France em 1979. Recuperando o contexto político no qual o curso foi proferido, em que ascendiam ao poder figuras como Margaret Thatcher e Ronald Reagan, Giuseppe Cocco e Bruno Cava criticam duramente os intérpretes que veem nessas lições do filósofo francês uma espécie de capitulação ao ideário neoliberal, leitura que teria como fundamento histórico o rechaço da esquerda ao fortalecimento do neoliberalismo pós-queda do muro de Berlim e que, assim, teria se tornado avessa às sutilezas do trabalho de Foucault. De modo coerente, os autores dão prosseguimento ao capítulo justamente explicando as concepções de Foucault a respeito do neoliberalismo, entendido por ele como uma nova “arte de governar”. Embora a apresentação/revisão apresentada seja competente, adiante algumas questões, como o acerto de contas com a esquerda, e faça pleno sentido diante das tarefas colocadas pelo livro, não resta dúvida de que as partes mais polêmicas e originais do livro são as seguintes.

No segundo capítulo, “A biopolítica do desenvolvimento no Brasil”, além da reelaboração crítica a que aludimos, o ponto alto está nas críticas que Cocco e Cava fazem ao “paradigma da formação”1 2 Termo, ao que tudo indica, retirado de texto de Marcos Nobre (2012). . As críticas dos autores não são originais, uma vez que autores como, entre outros, Jessé Souza já fizeram observações similares. No entanto, como o projeto crítico dos autores depende delas, é preciso retomá-las. De modo muito sumário, podemos sintetizá-las em duas teses centrais: a) trata-se de um paradigma que não valoriza as ações dos sujeitos subalternos; b) ao mesmo tempo, constituiria uma forma de pensar que tomaria os países da Europa Ocidental como modelo de desenvolvimento e que, portanto, raciocinaria em termos daquilo que “faltaria” ao país; ou seja, pensaria a partir de uma negatividade que seria, a rigor, externa ao objeto de sua reflexão, interpretado como deficitário diante daquele ideal imposto pelo pensamento. Seria esse o caso, por exemplo, da ideia de desenvolvimento. Para os autores, “precisamos construir-nos politicamente não a partir do que falta, do que não se tem [...], mas da composição de conflitos e resistências afirmativas [...]. Resumindo, o que interessa são os devires minoritários” (p. 60). Daí que, em seu argumento, seja essencial aquilo que denominam como “teoria da subjetividade no subdesenvolvimento”, apenas entrevista por essa tradição de pensamento (p. 62). Em boa medida, esse cenário só poderia ser alterado por uma mudança de valores (p. 62-63) e por uma análise detida das “resistências biopolíticas” (p. 70). Divisa-se, sem dificuldade, que o pano de fundo da argumentação dos autores é a ideia de que o paradigma da “formação” seria uma tradição de pensamento elitista.

Aqui é preciso fazer algumas observações que nos permitiram nuançar e, talvez, problematizar essa tese. Em primeiro lugar, convém destacar que a redução do paradigma da formação à teoria do desenvolvimento de Celso Furtado coloca problemas salientes. Não resta dúvida que o autor de Formação econômica do Brasil (1959) é um grande representante dessa tradição, mas isso não torna plausível confundi-lo com ela. Para efeitos de raciocínio, poderíamos recordar que a noção de formação presente em Formação da literatura brasileira (1959), de Antonio Candido, é mais sóbria e menos efusiva do que a presente em Furtado (apud SCHWARZ, 2014SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 29), o que se deve ao fato de que o sistema literário que é o seu objeto teria se formado, embora nem por isso tenha transformado as feições grotescas do país. Seria o caso, portanto, de refletir com mais nuances sobre a tradição, situando-a historicamente.

Em segundo lugar, é bastante duvidosa a tese de que esse paradigma não teria valorizado as ações dos sujeitos subalternos. Isso porque, ao contrário, a ênfase crítica de muitos desses trabalhos, como Formação do Brasil contemporâneo (1942) de Caio Prado Júnior (2011), está justamente na análise da dificuldade desses sujeitos de se organizarem de modo autônomo devido às estruturas sociais, culturais, econômicas e políticas iníquas às quais são submetidos. Nesse sentido, poderíamos indagar: uma “teoria da subjetividade no subdesenvolvimento” que deixe tais análises de lado não incorreria no risco de não enfatizar, justamente, os processos de dominação aos quais os sujeitos dessa teoria são submetidos? Esses são processos objetivos, profundamente relacionados ao modo de funcionamento do nosso capitalismo. Sem considerações cuidadosas a respeito deles, uma “teoria da subjetividade no subdesenvolvimento” correria o risco de se tornar idealista porque incapaz de compreender os impactos objetivos e subjetivos produzidos pelos lugares sociais dominados aos quais esses sujeitos são destinados na ordem social em que vivemos. Ora, a correção do triste juízo se revela na permanência da profunda hierarquização social que marca, até hoje, a história do país. Um bom jeito de escapar dessas dificuldades estaria em valorizar as reflexões clássicas a esse respeito, as quais poderiam ser tomadas como fontes de hipóteses políticas e de pesquisa. Caberia indagar: abstraindo diversos níveis, a aposta, ainda que tímida, de Caio Prado Júnior no setor que denominava de “inorgânico” não pode ser combinada, em última instância, com a aposta política de Cocco e Cava nos “devires minoritários” (p. 60)?

Em terceiro lugar, é importante observar que o desejo de reproduzir os padrões societais dos países de capitalismo central é fruto da própria ordem capitalista global, porque, objetivamente, trata-se de países que apresentam - ou apresentavam - uma série de características, entre as quais a proteção social, que são desejáveis em países cuja marca é a vulnerabilidade completa de enormes contingentes populacionais. Se é certo que as sociedades capitalistas centrais também são fundadas sobre bases ideológicas, convém observar que, lá, ao menos, realidade e ideologia se correspondem. É compreensível que haja, assim, o desejo de reproduzir esse arranjo em um país cuja sensação de estar aquém dele é permanente. Com efeito, trata-se de um nó, na medida em que uma perspectiva crítica mais ampla observaria que as diferenças entre “centro” e “periferia” são estruturais à lógica do funcionamento desse sistema e que as condições sociais e políticas “civilizadas” dos países centrais estão fundadas sobre a exploração sans phrase dos países coloniais, os quais estariam na ponta de lança do regime capitalista mundial. Desse prisma, o objetivo de suprimir as diferenças entre “centro” e “periferia” dentro desse regime de acumulação seria, em última instância, uma miragem. Mas trata-se de compreender que essa miragem é um engano bem fundado nas aparências, e que podem acontecer, a depender de combinação de vários fatores, melhorias dentro da própria ordem capitalista. Nesse último caso, teríamos, ao mesmo tempo, um avanço desejável e um reforço do ardil. O lulismo, por exemplo, poderia ser interpretado a partir dessa perspectiva.

De alguma forma, essas questões ressoam no terceiro capítulo do livro, intitulado “O ciclo do progressismo”. Nela, os assuntos principais são o lulismo e os acontecimentos de junho de 2013. O fio condutor da narrativa é a evolução histórico-ideológica e política do Partido dos Trabalhadores (PT). Vale chamar a atenção para o modo como o qual os autores entendem esse partido. Segundo Cocco e Cava, desde o início, havia dois PTs (p. 76): um “PT-sujeito” ou “PT ideológico” (p. 78), representado pela direção estatutária, pelas demais formas institucionais do partido e pelos intelectuais marxistas, e um “PT-subjetividade”, ou “PT biopolítico” (p. 78), “que se constitui como um corpo mais flexível cujo contorno coincide com as margens das resistências biopolíticas - na medida em que o partido consegue potenciá-las, articular-se a elas, estar-lhes à altura” (p. 77). Seria, assim, um PT com uma “nova subjetividade interna”, vinculado aos migrantes, às mulheres e aos espaços de autonomia de reivindicações por saúde, por exemplo. Com o fortalecimento do neoliberalismo ao longo dos anos 1990, o “PT ideológico” entraria em crise, pois a base operária se enfraqueceria, enquanto o “PT biopolítico” se fortaleceria, pois seria um espaço capaz de lidar com as crises ensejadas por esse cenário.

Ao discorrer sobre como essas tensões desembocaram nos governos Lula, a interpretação de Cocco e Cava se torna claramente tributária, ao mesmo tempo que oposta, da feita por André Singer (2012SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. 1. ed. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.). Os termos da crítica dos autores a Singer são muito similares às feitas ao “paradigma da formação”. Vejamos:

A dimensão de negatividade da formulação está no sujeito social que Singer concebe como produto do arranjo lulista, eminentemente adesista aos valores neoliberais e conservador em seus posicionamentos. Atualizando o leitmotiv da literatura de formação nacional, o “subproletariado” não passa de uma composição social amorfa e desorganizada, praticamente à deriva diante do consumismo, de uma grande mídia conservadora e dos apelos populistas de candidatos e partidos sem ideologia. O subproletariado estaria interessado, sobretudo, em um cenário de melhoria ordenada de vida, em adesão aos valores de mercado, e “não consegue construir desde baixo as suas formas de organização”. Repisam-se, aqui, tanto certo eurocentrismo disfarçado, já que o modelo inalcançado parece ser o mesmo, o da classe trabalhadora fordista do pós-guerra ocidental, quanto o achatamento qualificativo de sub, como fator rudimentar, incipiente de classe. (p. 83).

O corolário do argumento dos autores é claro, embora o raciocínio não o seja: sendo assim, Singer acabaria por afiançar, “por via transversa”, o lulismo (p. 83). Por outro lado, os autores desejam superar a interpretação de Singer:

Nesse cenário, apreender a composição social brasileira apenas do ponto de vista da negatividade - ou seja, adotar o ponto de vista do capital e seu modelo majoritário de classificação - seria reduzi-la a um subproletariado desorganizado, amorfo e impotente. Ao contrário, tomá-la do ponto de vista das resistências biopolíticas - novas culturas de resistência, maior mobilidade urbana e rural resultando em mobilizações, novos arranjos produtivos flexíveis, em rede -, isso permite qualificar um lado minoritário, potente, do “sub”. (p. 85).

O caso da crítica é curioso. Páginas atrás, quando analisam as críticas feitas ao primeiro governo Lula, os autores dizem que os intelectuais à esquerda o encaravam como um “governo [que] não passaria de um misto de pacto conservador e reformismo fraco” (p. 79) - precisamente o subtítulo do livro de Singer. Ou seja: os autores criticam Singer por ser crítico do lulismo e por ser, ao mesmo tempo, seu afiançador. Essa ambiguidade do raciocínio é sinal da fragilidade das bases da crítica à interpretação de Singer. Vejamos.

Embora estejam corretos em vincular Singer à tradição da “formação”, é completamente equivocada a tese segundo a qual a noção de subproletariado teria como base a ideia de que ele “não é capaz de vontade orgânica de classe” (p. 82 - grifos nossos). Observemos um trecho no qual Singer comenta as possibilidades de desenvolvimento do país a partir de um mercado interno fortalecido pela participação dos setores mais baixos:

Aspecto interessante da contradição brasileira é que a “grande massa” empobrecida abria e fechava simultaneamente as perspectivas de desenvolvimento autônomo do país. Abria, pois se tratava de mercado interno de que raros países dispunham; mas fechava, uma vez que o padrão de consumo era tão baixo que impedia a realização daquele potencial. A miséria anulava a possibilidade de surgir um setor industrial voltado para o mercado interno. Sem ter emprego, a massa miserável tornava-se uma espécie de “sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente”. Seria necessário elevar as condições da existência das camadas mais pobres, superando a “situação de miserabilidade da grande massa da população do país, que deriva em última instância da natureza de nossa formação histórica”, para iniciar um círculo virtuoso, pensava Caio Prado. (SINGER, 2012SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. 1. ed. São Paulo, Companhia das Letras, 2012., p.17-18).

Uma leitura atenta torna perceptível que o autor argumenta que o subproletariado tem dificuldade de se organizar como classe não por uma fragilidade congênita dos seus componentes individuais, mas sim pelas condições sociais aviltantes às quais é submetido. Nesse cenário, a ideia de “sub” não tem nenhuma relação com qualquer eurocentrismo, a menos que se assuma que desejar uma organização autônoma dos trabalhadores seja aspecto eurocêntrico, ou diminuição de seus sujeitos, mas sim com o fato de que se refere a trabalhadores que estão em condições sociais aquém das condições proletárias. O alvo da crítica de Singer - de seu “ponto de vista de negatividade” - não é o subproletariado, mas sim as condições que tornam sua existência necessária. Essa ênfase altera radicalmente o sentido da tese do autor, como se percebe.

No que se refere à positividade com a qual encaram o momento, Cocco e Cava argumentam pela existência de um “lulismo selvagem”, resultado das contradições do lulismo e do “PT-subjetividade”, que poderia resultar numa libertação do PT e do próprio Lula. Para Cocco e Cava, o lulismo tinha aberto algumas portas que os debates desenvolvimentistas posteriores fecharam. Conclusão: segundo Cocco e Cava, o lulismo seria biopoliticamente mais radical do que o desenvolvimentismo, ao contrário do que pensariam cabeças mais à esquerda, porque seria menos simpático à centralização da sociabilidade contemporânea na figura do Estado. Daí a hostilidade com a qual os autores tratam a ex-presidente Dilma Rousseff, uma figura de “estilo burocrático e até autoritário” (p. 96); em contraste, o perfil de Lula estaria mais para o “pós-ideológico” (p. 96). Para simplificar: enquanto Lula é visto pelos autores como uma espécie de encarnação do “PT-subjetividade”, Dilma é vista como representante do “PT do velho espírito de Sion”, um “PT-ideológico atualizado para a era pós-neoliberal” (p. 96).

A forma da argumentação dos autores guarda um tom interessante, que dá ao livro um sabor inusitado: com um tom veemente, às vezes irado, denuncia-se a esquerda, que seria velha; ao mesmo tempo, positiva-se o lulismo, propugnando-se sua radicalização. Além do inesperado contraste entre o tom irado contra a esquerda e a defesa da radicalização de uma política moderada, o argumento dos autores não convence porque não toca na base do problema: o lulismo não podia ser radicalizado, antes pelo contrário, pois seu sucesso se deveu, entre outras coisas, a sua aversão à radicalização.

Seja como for, os acontecimentos de junho de 2013 são analisados pelos autores a partir do “lulismo selvagem”, avessos tanto à direita quanto à esquerda tradicional. “Para toda uma geração que ocupava as ruas, tais símbolos representavam apenas aparelhamentos, compromissos ocultos e hierarquias burocráticas que nada teriam a contribuir com os protestos” (p. 102). Segundo Cocco e Cava, tratou-se de um movimento repleto de “poliformismo pós-ideológico”, o que seria sua qualidade (p. 103) e que constituiria, na verdade, “uma revolução” (p. 121). Enfim: o ciclo dos governos progressistas latino-americanos teria se esgotado porque eles falharam em dar continuidade às “brechas constituintes e polivalências iniciais” (p. 107). Ou seja: fracassaram porque optaram por um caminho tradicional na resolução de suas ambiguidades, quando o mais correto seria ter se mantido em suas “polivalências iniciais”. Por falta de uma análise mais detida, por vezes, os autores escorregam em ver em junho de 2013 uma espécie de reflexo sem mediações das condições globais de produção, do que resulta uma falta de atenção às especificidades locais.

Tudo somado, é preciso reconhecer que as análises de Cocco e Cava são, frequentemente, contraintuitivas e fazem pensar. Mas isso não quer dizer que todas as reflexões, que pretendem articuladas, valem o mesmo. Enquanto as críticas ao paradigma da “formação” contêm ênfases equivocadas, as análises da conjuntura são pobres em dados e, frequentemente, abstratas, com utilizações de conceitos herméticos sem maiores explicações. Em lugar disso, há uma retórica crítica à narrativa da esquerda que dá ao livro uma conotação de simpatia pelo processo de modernização em curso que é dificilmente compatível com um projeto emancipatório. Por exemplo, a conexão em redes - não à toa, matéria de simpatia de Fernando Henrique Cardoso (2018CARDOSO, Fernando Henrique. Crise e reinvenção política no Brasil. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.). Ora, embora ela possa ser um aspecto importante na reconfiguração das relações sociais e de mobilização, a cena contemporânea revela, com clareza, que ela também desempenha um papel antiesclarecedor. Trata-se de uma contradição objetiva, entre muitas outras, sobre a qual a ênfase positiva nada vale sem uma reflexão detida e desapaixonada. Outro exemplo são os acontecimentos de junho de 2013. Eis aí, parece, o problema principal do livro de Cocco e Cava: preocupado demais em acertar as contas com a esquerda, despreocupou-se em assinalar as contradições diante das quais estamos, como revela a aposta pouco crível em uma transformação social profunda a partir da radicalização do lulismo. Em favor dos autores, seja dito que essa é uma dificuldade objetiva.

REFERÊNCIAS

  • CARDOSO, Fernando Henrique. Crise e reinvenção política no Brasil. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • NOBRE, Marcos. Da “formação” às “redes”: filosofia e cultura depois da modernização. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, São Paulo, n. 19, 2012, p. 13-36.
  • PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
  • SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. 1. ed. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
  • 2
    Termo, ao que tudo indica, retirado de texto de Marcos Nobre (2012).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2018
  • Aceito
    11 Mar 2019
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