RESUMO
O artigo tem o objetivo de discutir a obra de Anna Maria Maiolino sob a perspectiva de seu processo de criação. Será apresentado o contexto acadêmico no qual a pesquisa está inserida, que propõe a crítica de processos de criação como uma abordagem para a arte. Pesquisas que lidam com os registros deixados pelos artistas ao longo de seus percursos artísticos. Destaca-se a relevância de se propor uma teoria crítica de processo diante de experimentações e interrogações artísticas contemporâneas que envolvem a exploração de arquivos e diferentes relações entre obra e processo. A obra dessa artista oferece um interessante espaço para tais reflexões. A partir de alguns aspectos gerais do processo, será dada especial ênfase aos seguintes aspectos: publicação de documentos de processos, obras processuais, processos se transformando em obras e textura intersemiótica.
PALAVRAS-CHAVE:
Anna Maria Maiolino; crítica de processos; processos de criação; obras processuais; textura intersemiótica
ABSTRACT
The article aims to discuss Anna Maria Maiolino’s work from the perspective of her process of creation. It will present the academic context in which the research is inserted: a group of studies that proposes the critique of creative processes as a possible approach to art. A line of research that deals with the records, left by artists, along their artistic paths. We highlight the relevance of proposing a critical theory of process in the face of contemporary artistic experimentation and interrogation involving the exploration of archives and the different relations between work and process. This artist’s work offers an interesting space for such reflections. From some general aspects of the process, special emphasis will be given to the following aspects: publication of process documents, procedural works, processes becoming works and intersemiotic texture.
KEYWORDS:
Anna Maria Maiolino; process criticism; process of creation; procedural works; intersemiotic texture
Este artigo está inserido na linha de pesquisa sobre os processos de criação na comunicação e na cultura do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PEPGCS/PUC-SP), mais especificamente, do Grupo de Estudos de Processos de Criação, que vem se dedicando a esse tema desde os anos de 1990. Pesquisas que surgiram com o propósito de compreender os processos de criação a partir de uma reflexão teórica de documentos ou registros de uma grande diversidade de manifestações artísticas como literatura, teatro, cinema, dança e artes visuais, assim como do jornalismo e da publicidade. Tal documentação oferece ao pesquisador arquivos da criação sob a forma de diários, cadernos de artistas, anotações, registros audiovisuais etc., viabilizando a compreensão dos princípios que direcionam os processos criativos dos artistas estudados.
A história dessas pesquisas no Brasil é marcada pelo diálogo com a crítica genética desenvolvida pelos franceses no ITEM/CNRS3 3 Institut des Textes et Manuscrits Modernes/CNRS/Paris, fundado nos anos 1960, com o propósito de estudar manuscritos literários franceses. , que teve seu início na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) com os estudos pioneiros de Philippe Willemart e Telê Ancona Lopez, pesquisadores que se dedicaram ao conhecimento aprofundado sobre as singularidades de determinados processos literários, como Gustave Flaubert e Mário de Andrade.
O fascínio exercido pelas obras de arte é inegável. Muitos dos receptores, afetados por seus vigorosos efeitos estéticos, desejam conhecer um pouco sobre sua fabricação. As entrevistas e os depoimentos de artistas, que procuram entrar nos bastidores da criação, nunca cessam. Muitos criadores, ainda, dedicam-se ao desenvolvimento de ensaios que discutem o percurso criador, e algumas de suas obras, direta ou indiretamente, também falam da criação. (SALLES, 2008SALLES, Cecilia Almeida. Crítica Genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3. ed. São Paulo: EDUC, 2008, p. 21).
Há também uma grande diversidade de publicações que tornam documentos dos processos de criação públicos, como, por exemplo, cartas, esboços e diários.
Com essa mesma curiosidade que paira no ar, o crítico genético entrega-se ao acompanhamento de percursos criativos, sempre em busca de uma aproximação maior do processo criador. Nesse contexto, discutiremos o processo de criação de Anna Maria Maiolino partindo das publicações Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line (2002MAIOLINO, Anna Maria. O encontro com a arte brasileira. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line. New York: The Drawing Center, 2002.), editada por Catherine de Zegher, Anna Maria Maiolino (2012), organizada pela curadora Helena Tatay, e A pele de Anna: Anna Maria Maiolino (2016), de Daniel Lins, que apresentam sua obra, textos críticos e muitos documentos de seus processos de criação, como veremos.
Acreditamos que a obra de Anna Maria Maiolino, uma imigrante italiana que chega ao Brasil em 1960, envolvendo-se na ebulição cultural do eixo Rio-São Paulo daquele momento histórico, oferece um interessante espaço para reflexões sobre seu percurso de criação, no âmbito dos estudos brasileiros.
Aspectos específicos e gerais dos processos de criação
Como foi mencionado anteriormente, o propósito da crítica genética é a compreensão das singularidades dos artistas estudados; no entanto, por necessidade científica, alguns pesquisadores vêm avançando em direção a uma generalização sobre o processo de criação, levando ao mapeamento de princípios que norteiam uma possível teoria da criação, que sustenta o que chamamos de crítica de processos criativos. Uma abordagem crítica que estabelece diálogo com Colapietro, ao afirmar que “pensar é generalizar para lançar luzes sobre o específico”.
O percurso da criação mostra-se como uma rede de ações que deixam transparecer recorrências significativas, possibilitando o encontro de aspectos gerais a respeito do fazer criativo, que permitem compreender as especificidades com mais acuidade. São instrumentos teóricos que permitem a ativação da complexidade do processo. Trata-se, portanto, de uma possível teoria da criação, que teve como ponto de partida estudos singulares de documentos e que, ao mesmo tempo, se alimenta dessas mesmas pesquisas. Assim, todos esses tipos de estudos vêm convivendo de forma bastante fértil. Há questões gerais nos processos, mas o que são, por exemplo, as especificidades de determinado artista visual ou escritor?
O encontro desses aspectos gerais gerou uma conceituação de criação como rede em permanente construção: um processo contínuo de interconexões, com tendências, ou seja, rumos vagos, que orientam o processo de construção dos objetos no ambiente de incerteza e imprecisão; geram trabalho em busca de algo que está por ser descoberto. As tendências podem ser observadas sob duas perspectivas: constituição de projetos poéticos ou princípios direcionadores e práticas comunicativas. Como descreve Salles (2018, p. 114-115), nesse contexto está
[...] o projeto [poético] do artista, que são princípios direcionadores, de natureza ética e estética, presentes nas práticas criadoras, relacionados à produção de uma obra específica e que atam a obra daquele criador, como um todo. São as teorias implícitas no fazer, relativas singularidade do artista. São planos de valores, formas de representar o mundo, gostos e crenças que regem o seu modo de ação.
Esse projeto troca informação com o contexto em que o artista está inserido, ou seja, está situado em um tempo e espaço que o contamina. O processo, compreendido como uma busca permanente, é sempre contínuo. “O próprio projeto, que direciona de algum modo a produção das obras, muda ao longo do tempo” (SALLES, 2018, p. 115).
As buscas ou tendências dos percursos, sob o ponto de vista comunicativo, têm estreita relação com a afirmação de Mário de Andrade (1989ANDRADE, Mário de. O banquete. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1989., p. 61) que diz: “a arte é social porque toda obra de arte é um fenômeno de relação entre seres humanos”.
O processo de criação, inserido em complexas redes culturais, mostra-se, assim, como campo de interações múltiplas. O projeto de cada artista insere-se na linha do tempo da arte, da ciência e da cultura, em geral.
As práticas comunicativas, como descreve Salles (2018, p. 115), envolvem “sujeitos como comunidade travando uma grande diversidade de outros diálogos de natureza inter e intrapessoais como, por exemplo, interações com a obra em processo”, com os potenciais receptores e com a crítica especializada etc.
“Ao longo deste processo, vão sendo estipuladas restrições ou delimitações de naturezas diversas, que tornam a construção da obra possível” (SALLES, 2018, p. 114). O desenvolvimento do processo leva a tomadas de decisão relativas a, por exemplo, procedimentos, materiais, modos de ocupação de espaço etc.
Esses são alguns dos aspectos gerais da criação artística que parecem ser relevantes para refletirmos sobre os procedimentos direcionadores do projeto poético de Anna Maria Maiolino, imersos nas interações de suas redes culturais. Daí a importância de iniciarmos a discussão a partir da contextualização histórica e geográfica dessa artista, observando como a cultura brasileira e a produção artística do país foram por ela incorporadas, reconhecendo-se, em muitos momentos, como brasileira.
Passamos assim a discutir o projeto artístico de Anna Maria Maiolino imerso em suas redes culturais, que teve como desdobramento as publicações que serão aqui discutidas de modo mais aprofundado.
Redes culturais
Para tal enfoque, Morin (1998MORIN, Edgar. O método 4: as ideias - hábitat, vida, costumes, organização. Porto Alegre: Sulinas, 1998.) nos oferece um caminho teórico interessante, discutindo os modos de organização da cultura. Ele destaca a efervescência cultural onde há intensidade e multiplicidade de trocas e confrontos entre opiniões, ideias e concepções. As inovações do pensamento, segundo o autor, só podem ser introduzidas por esse calor, que propicia a convivência de uma grande pluralidade de pontos de vista e intercâmbio de ideias, viabilizando o enfraquecimento de dogmatismos e normalizações e o consequente crescimento do pensamento.
É nesse ambiente cultural que os documentos e obras, que chegam às mãos dos críticos de processo, estão inseridos. Todos os processos de criação são parte dessa efervescente atividade dialógica, que atua nas brechas - nas tentativas de expressão de desvios proporcionados e, ao mesmo tempo, responsáveis por esse clima em ebulição. (SALLES, 2008SALLES, Cecilia Almeida. Crítica Genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3. ed. São Paulo: EDUC, 2008, p. 39).
Levando a discussão de Morin para o contexto brasileiro, podemos considerar a década de 1960 como um exemplo característico desse clima de efervescência cultural, mais especificamente, no âmbito das artes visuais. O golpe de 1964 e, posteriormente, a promulgação do Ato Institucional nº 5 (1968) deixaram marcas indeléveis no posicionamento político-ideológico das vanguardas artísticas brasileiras, como nos lembra Reis (2006REIS, Paulo. Arte de vanguarda no Brasil: os anos 60. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006., p. 8): “As questões abertas pelas artes plásticas estavam estreitamente ligadas a discussões conceituais e ideológicas como nacionalismo, subdesenvolvimento, dependência cultural e o imperialismo econômico norte-americano”.
É em meio a esse ambiente cultural que observamos Anna Maria Maiolino chegando ao Brasil e envolvendo-se com artistas e movimentos culturais ligados à experimentação e pesquisa de novas linguagens.
Como descreve Rolnik (2002ROLNIK, Suely. Flowerings of reality/florações da realidade. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line. New York: The Drawing Center, 2002. p. XVI-XVIII., p. XVI) é nesse calor cultural que surge o movimento Neoconcreto e o seu manifesto (1959), redigido e assinado por artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark, Amílcar de Castro, Lygia Pape; a exposição Mitologias cotidianas (1964), alinhada à proposta formal da Nova Figuração, termo cunhado pelo crítico Michel Ragon em 1961. Nesses anos também há exposições emblemáticas como Opinião 1965 e Opinião 1966.
Maiolino participará ativamente do cenário artístico daquele momento, apresentando uma de suas obras, Psiu! (1967), na exposição Nova Objetividade Brasileira (1967) no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) e assinando a Declaração de Princípios Básicos da Nova Vanguarda (1967) junto com artistas como Hélio Oiticica, Lygia Pape, Lygia Clark, entre outros.
A sua chegada também coincide com o resgate da antropofagia, em seu aspecto mais radical, espalhando-se pelos diferentes setores do campo artístico, como teatro, cinema, música e artes plásticas. Esse conceito, como elaborado pelo manifesto de Oswald de Andrade na década de 1920, parece que preencheu uma lacuna que habitava a vida nômade4 4 Anna Maria Maiolino nasceu em 1942, em Scalea, na Calábria, sul da Itália, dois anos após o início da Segunda Guerra Mundial. Aos 6 anos de idade, desloca-se para Bari, capital da Puglia. Como imigrante, instala-se em Caracas, na Venezuela. Chega ao Brasil na década de 1960. Naturaliza-se brasileira em 1968 e muda-se para os Estados Unidos no mesmo ano. A artista também vive períodos curtos em Buenos Aires e estabelece-se definitivamente no Brasil em 1989. da artista. Exilada linguisticamente, Maiolino conviveu com muitos idiomas, incorporados pelo seu sotaque. Entre o velho continente europeu e a América do Norte e América do Sul, a artista situa-se no limiar dessas fronteiras geográficas, onde a sua identidade só pode ser compreendida distante da lógica identitária e a partir dos múltiplos contágios com o outro (ROLNIK, 2002ROLNIK, Suely. Flowerings of reality/florações da realidade. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line. New York: The Drawing Center, 2002. p. XVI-XVIII.).
No movimento de deglutição, como descrito no “Manifesto antropófago” (1928), a artista, pela primeira vez, identificou-se com um território (o Brasil) que, ao mesmo tempo, era estranho a ela. Como evidencia Rolnik (2006ROLNIK, Suely. Florações da realidade. Núcleo de Estudos da Subjetividade, São Paulo. p. 1-12, maio, 2006. Disponível em: https://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/suely%20rolnik.htm. Acesso em: 29 out. 2019.
https://www.pucsp.br/nucleodesubjetivida...
, p. 3):
[...] esta sintonia tem a ver com a própria formação do Brasil, tão híbrida quanto a vida da artista, hibridismo que começou na fundação do país e nunca mais parou. Este aspecto marcante da cultura brasileira foi circunscrito pela primeira vez pelo movimento cultural dos anos 1920 que lhe deu o nome de Antropofagia.
Trazemos essa contextualização, pois a ambiência político-cultural do país, bem como a cultura brasileira, de modo amplo, propiciou interações relevantes em seu processo de criação. Como exemplo, em um de seus escritos, “Banquete antropofágico” (2009, p. 93-94), a artista fala da relação que estabelece com o “Manifesto antropófago” (1928):
No “país da cobra grande”, pude finalmente não utilizar nenhuma gramática. No meu aparato digestivo misturam-se a cultura da minha terra natal - a Calábria, ali no sul da Itália - e a da terra Tupi Guarani. Tornei-me Calabra-Tupi-Guarani. Perdi a lógica, a obrigação de ser coerente. Livrei-me da catequese. Ganhei liberdade. (MAIOLINO, 2012bMAIOLINO, Anna Maria. Banquete antropofágico. In: TATAY, Helena (org.) Anna Maria Maiolino. São Paulo: Cosac Naify, 2012b, p. 93-94., p. 93-94).
Outra relação está na homenagem ao conceito de Oswald de Andrade em seu emblemático filme em super-8: In-out (antropofagia) (1973). O filme é gravado inteiramente em close-up. Duas bocas, uma pintada com um batom vermelho, outra com um batom preto, preenchem a totalidade da tela. Assim, de modo sucessivo, em cortes secos, rápidos e brutos, as bocas movimentam-se furiosamente: engolem objetos, mostram os dentes, são silenciadas, sorriem, seduzem e mastigam. Essas imagens falam visualmente da deglutição do manifesto, já presente no título do filme. Ao mesmo tempo, evocam a feroz censura da ditadura militar brasileira e a dificuldade da artista em articular algum tipo de linguagem: em meio à profusão de sons caóticos do filme, algumas palavras são ditas, mas não conseguimos capturar a totalidade de seu sentido.
A sua aproximação com a cultura brasileira fica também bastante evidente no projeto apresentado na exposição coletiva “Mitos vadios” (1978) na Rua Augusta (São Paulo), que envolvia duas obras complementares: Monumento à fome e Estado escatológico. A primeira obra era composta de dois sacos cheios com arroz e feijão, alimentos típicos de qualquer região do Brasil, envoltos por um laço preto, o símbolo do luto, como aponta a artista em entrevista à Helena Tatay (2012TATAY, Helena (org.). Anna Maria Maiolino. São Paulo: Cosac Naify, 2012., p.47). Já Estado escatológico apresentava rolos de papel de tamanhos diversos, presos em uma parede de rua. A obra ironiza a desigualdade social do país, hierarquizando os diferentes papéis higiênicos, do mais caro ao mais barato, ao mesmo tempo que “aponta para o estado de igualdade entre todos nós, mesmo se o Estado e seus sistemas continuamente procurem instituir uma hierarquia” (ZEGHER, 2002ZEGHER, Catherine de. “Ciao Bella”: uma migrante por dentro e por fora. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line. New York: The Drawing Center, 2002.a, p. VIII).
Outra obra que faz uma crítica à desigualdade social é a instalação Arroz & feijão (1979). A artista, novamente, se utiliza de alimentos típicos do Brasil. Em uma sala, Maiolino preparou grãos de arroz e feijão, em pratos cheios de terra, deixando-os germinarem durante todo o período de exibição. “No ritual do banquete, servido sobre uma mesa semelhante à carreta funerária, repousa uma provocação, e um convite à reflexão sobre o fato de que um terço da população mundial come demais, enquanto dois terços morrem de desnutrição” (MAIOLINO, 2002MAIOLINO, Anna Maria. O encontro com a arte brasileira. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line. New York: The Drawing Center, 2002.a, p. VIII).
A identificação com a cultura brasileira é reforçada pela própria artista, como Zegher aponta:
A certa altura, ela veio a se identificar com a cultura e a arte do novo país. Mesmo hoje, no entanto, sempre que se pergunta a Maiolino “De onde você é?”, ela não se apressa em responder. “Eu teria de ler todas as páginas e virar todas as capas que contêm meu inconsciente. Claro que respondo, mas com meia-verdade, ou começo a falar de todas as minhas idas e vindas em minha vida peregrina a fim de me justificar, presa de um mal-estar no ato em que começo a falar. Fora do Brasil, respondo prontamente: “Sou brasileira”. (ZEGHER, 2002ZEGHER, Catherine de. “Ciao Bella”: uma migrante por dentro e por fora. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line. New York: The Drawing Center, 2002.a, p. IV).
Voltando às restrições do período ditatorial brasileiro, principalmente pós-promulgação do AI-5, torna-se inevitável discutir as tentativas de enrijecimento da efervescência cultural e a luta dos artistas em buscas de brechas, ou seja, espaços ,de manifestação. Observamos, assim, algumas interações, sob o ponto de vista das redes culturais de Maiolino, que conviveu com obras emblemáticas como Seja marginal, seja herói (1968), de Hélio Oiticica, Língua apunhalada (1968), de Lygia Pape, Tiradentes: totem-monumento ao preso político (1970), de Cildo Meireles, e Trouxas ensanguentadas (1970), de Artur Barrio.
Ao mesmo tempo, a artista fazia parte, ao lado de Rubens Gerchman, Antonio Dias, Roberto Magalhães etc., das discussões, tanto plásticas quanto conceituais, levantadas pelo movimento da Nova Figuração (1961).
De modo semelhante, o contato com as questões desenvolvidas pelo Neoconcretismo (1959) vai ressoar nos procedimentos de criação da artista, como aponta Ivo Mesquita (2002MESQUITA, Ivo. In: CYPRIANO, Fabio. Anna Maria Maiolino abre duas mostras em NY e prepara outra para SP. Folha de S. Paulo, 9 jan. 2002. Ilustrada. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u20378.shtml. Acesso em: 24 jun. 2019.
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): “Maiolino é uma das artistas responsáveis pela introdução da sensibilidade que transformou o concretismo em neoconcretismo”.
A própria artista fala da efervescência cultural, com a qual passou a conviver, e como esta exerceu influência direta em seu processo de criação:
A chegada ao Rio de Janeiro seria decisiva nas escolhas dos caminhos por onde se construiria minha obra. O resultado do encontro com a arte brasileira, concreta e sensorial naquele momento, fundamentaria meu trabalho dos anos 70, e de forma ainda mais profunda o trabalho que venho realizando nos últimos dez anos. (MAIOLINO, 2002MAIOLINO, Anna Maria. O encontro com a arte brasileira. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line. New York: The Drawing Center, 2002., p. 294).
Herkenhoff (2002HERKENHOFF, Paulo. A trajetória de Maiolino: uma negociação de diferenças. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: vida afora/a life line. New York: The Drawing Center, 2002, p. XXVIII-XXXVI.) também dá destaque à abertura de Maiolino gerada pelo encontro com a arte brasileira. No turbulento ano de 1968, a artista migra para os Estados Unidos ao lado de Rubens Gerchman, seu marido na época. Nova York se tornou um destino ou exílio para diversos artistas latino-americanos. A artista adensou suas interações, convivendo com os artistas ligados à experimentação artística daquele momento, como Hélio Oiticica, Amílcar de Castro e Lygia Clark.
É interessante lembrar que Lygia foi hóspede de Maiolino por três semanas. O crítico aponta que essa “estada propiciou a Maiolino o reencontro com o Neoconcretismo, o movimento do Rio de Janeiro que incluía em seu programa o resgate da dimensão subjetiva da Arte Concreta (pela participação do público e pela relação do artista com o objeto)” (HERKENHOFF, 2002HERKENHOFF, Paulo. A trajetória de Maiolino: uma negociação de diferenças. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: vida afora/a life line. New York: The Drawing Center, 2002, p. XXVIII-XXXVI., p. XXIX).
A obra de Maiolino, seus escritos e entrevistas falam dessa sua convivência com os diferentes artistas e manifestações culturais da época e nos colocam na turbulência de suas redes de interações. Ao estudarmos sua produção artística e seus documentos de processo, fica evidente como a artista integrou ativamente o cenário político-cultural brasileiro a partir da década de 1960. Um momento da arte brasileira (mas não só) marcado por movimentos e manifestos que reuniam artistas com princípios comuns e que ficou conhecido, em certo consenso entre a história e a crítica de arte, como marco inicial (se é que existe) da arte contemporânea no Brasil.
“Cada obra ou cada manuseio de determinada matéria estabelece interlocuções com a história da arte, da ciência e da cultura de uma maneira geral, assim como se remete ao futuro. Em jogos interativos, o artistas e sua obra se alimentam de tudo que os envolve” (SALLES, 2008SALLES, Cecilia Almeida. Crítica Genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3. ed. São Paulo: EDUC, 2008, p. 42), fazendo suas escolhas em meio a critérios que dizem respeito aos princípios que norteiam seu projeto poético.
Apreendemos muito da busca dos artistas nos comentários sobre seus antecessores, mas não só; a arte que está sendo praticada pelos seus contemporâneos é também referência para discussões e atua como uma espécie de formadora de princípios direcionadores de suas próprias buscas.
Ainda no campo das interações, a relação do artista com a cultura não se estabelece apenas por meio dos contatos e diálogos informais. Estendendo a discussão para o circuito da arte, evidenciamos como as relações institucionais entre crítica e artista, museus e galerias promovem discussões fecundas sobre os processos de criação.
No caso de Maiolino, o contato com a crítica de arte gerou uma série de publicações, anteriormente mencionadas, a respeito de sua produção artística: Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line, editada por Catherine de Zegher, Anna Maria Maiolino, organizada pela curadora Helena Tatay, e A pele de Anna: Anna Maria Maiolino, de Daniel Lins.
Passamos a discutir essas publicações com olhar do crítico interessado em processos de criação.
Apresentando as publicações
É importante destacar que a fortuna crítica de sua obra - catálogos, livros, textos e ensaios - surgiu em consonância ao seu reconhecimento pela crítica de arte. O primeiro grande livro a respeito de sua obra foi publicado em 2002, organizado por Catherine de Zegher, curadora responsável pela inserção de Maiolino no circuito internacional. Até então, a artista havia assumido posição secundária no discurso crítico da arte contemporânea.
Fabio Cypriano (2002CYPRIANO, Fabio. Anna Maria Maiolino abre 2 mostras em NY e prepara outra para SP. Folha de S. Paulo, 9 jan. 2002. Ilustrada. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u20378.shtml. Acesso em: 24 abr. 2019.
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) discute esse “apagamento” da artista em relação aos seus contemporâneos: “Ao lado de Lygia Clark, Lygia Pape, Mira Schendel e Hélio Oiticica, Maiolino é uma das artistas brasileiras de destaque dos anos 60, a caçula do grupo, mas que nunca foi tão reconhecida como seus pares”.
Nesse sentido, as publicações a respeito da sua obra, que também contêm registros de seu processo de criação, configuram-se como índices de seu reconhecimento pela crítica de arte. Desde então, o número de exposições, tanto nacionais como internacionais, de publicações e de prêmios aumentou exponencialmente. Recentemente, Antônio Gonçalves Filho (2019GONÇALVES, V. de O. Procedimentos mestiços na condição pós-mídia: um estudo da obra de Anna Maria Maiolino. Nexi. Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, São Paulo, PUC-SP, v. 5, 2019, p. 1-10.), publicou uma matéria intitulada “A ascensão de Anna Maria Maiolino”, que ilustra o crescente interesse pela sua obra.
Voltamos, agora, para a importância das publicações para os estudos do processo de criação dessa artista.
O livro Anna MariaMaiolino: Vida afora/A life line (com edição de Catherine de Zegher, 2002ZEGHER, Catherine de. “Ciao Bella”: uma migrante por dentro e por fora. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line. New York: The Drawing Center, 2002.) reúne entrevistas, artigos críticos, imagens do que ocorre no ateliê, exibições, obras e escritos da própria artista, que autorizam uma leitura da obra em seu processo de construção a partir de uma leitura cronológica.
De modo semelhante, a publicação Anna Maria Maiolino foi um estudo realizado pela curadora espanhola Helena Tatay (2012TATAY, Helena (org.). Anna Maria Maiolino. São Paulo: Cosac Naify, 2012.), que acompanhou Maiolino em seu ateliê, coletando e registrando informações a respeito de sua obra. O livro conta com uma longa entrevista e um panorama artístico, cultural e histórico de sua obra, desde as primeiras manifestações até 2010. A publicação é, também, uma fonte rica de registros fotográficos do que ocorre no ateliê, bem como de esboços de projetos, diários e a exibição das obras em museus e galerias de arte.
A terceira publicação é A pele de Anna: Anna Maria Maiolino, do professor e filósofo Daniel Lins (2016MAIOLINO, Anna Maria. Sine Die - diário de bordo. In: LINS, Daniel. A pele de Anna: Anna Maria Maiolino. São Paulo: Cosac Naify, 2016, p. 214.), que oferece um panorama do desenvolvimento da obra da artista, desde a década de 1960 até 2016, sob a ótica deleuziana. O livro reúne textos de Maiolino, a apresentação da curadora, Helena Tatay, registros fotográficos, documentos da artista, além de um diário de bordo.
Como se pode observar, todas essas publicações oferecem panoramas gerais de sua obra ao longo do tempo e nos apresentam seus interlocutores, no escopo crítico e conceitual de sua produção. Ficam assim explícitas algumas interações relevantes, sob o ponto de vista das práticas comunicativas anteriormente mencionadas.
No caso específico dessas publicações, observa-se o diálogo da artista com a crítica e a curadoria, aproximando-se necessariamente das práticas institucionalizadas da arte, como, por exemplo, publicação de catálogos, livros, visitas ao ateliê, textos críticos, exposições etc.
Há ainda outra publicação bastante relevante para os objetivos deste artigo, que é seu portfólio, Anna MariaMaiolino (2007MAIOLINO, Anna Maria. Anna Maria Maiolino. São Paulo: J. J. Carol Editora, 2007.), por ela organizada, na qual seu processo artístico encontra-se em posição de destaque. Além de suas obras, há uma grande diversidade de registros de seu processo de criação, sob a forma de escritos, fotografias, estudos etc.
Essas publicações, discutidas no âmbito do grande projeto da artista, detonam questões instigantes sobre relações entre obra e processo, que serão discutidas a seguir a partir de quatro perspectivas: tornar públicos os documentos de processos, obras processuais, o processo é a obra (transformação do processo em obra) e textura intersemiótica.
Publicação de documentos
No livro organizado pela curadora Helena Tatay (2012TATAY, Helena (org.). Anna Maria Maiolino. São Paulo: Cosac Naify, 2012.), podemos observar, por exemplo, o desenvolvimento de uma instalação permanente chamada Aqui estão - projeto A Forma na Floresta (Figura 1), realizada para o Museu do Açude em 1999.
Anna Maria Maiolino, Aqui estão - projeto A Forma na Floresta, 1999. Desenho de esboço de instalação permanente, Museu do Açude, Rio de Janeiro. Arquivo da artista
Encontramos, primeiramente, um esboço do projeto realizado pela artista. Este fornece especificações sobre o lugar em que obra será produzida, tamanho da instalação, quantidade de material necessário para a sua realização, título, curador da obra etc. É interessante observar que o projeto, em sua potência, já contém índices de como a obra será, apontando também para a sua concretização no espaço.
Após o projeto, encontramos as diferentes etapas que antecedem a construção da obra no respectivo museu (Figura 2). Acompanhamos a artista preparando partes da obra em seu ateliê, ao lado de um carpinteiro. (Figura 3)
Vemos também a sua transferência para o local da instalação e a montagem no espaço indicado no esboço (figuras 2, 3 e 4).
Anna Maria Maiolino. Diversas etapas do projeto A Forma na Floresta: preparando as partes da obra em seu ateliê, com o carpinteiro em seu torno, e montando a instalação no Museu do Açude, Rio de Janeiro. Arquivo da artista
Nesse sentido, o acesso aos documentos do processo fornece um panorama geral da construção do projeto. (Figura 4). Observamos decisões e escolhas sendo tomadas pela artista e temos acesso aos procedimentos utilizados na feitura da obra, que se modifica ao longo do tempo, o que nos leva à discussão de obras processuais, que será feita mais adiante.
Fica evidente nas opções editoriais de tais publicações, que incluem documentos de processo, a importância dada ao processo e seus registros. Esses livros parecem dialogar com o bailarino e coreógrafo americano Murray Louis (1992LOUIS, Murray. Dentro da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992), que diz que arte não é só o produto considerado acabado para o artista. O público não tem ideia do quanto de arte esplêndida fica perdido não assistindo a ensaios.
O portfólio organizado pela própria artista reflete também a importância de mostrar parte de seus arquivos de criação, em outras palavras, de tornar público o que é “aparentemente” privado. Essa necessidade de Maiolino está estreitamente ligada à relevância que dá a seu processo de criação, reforçada por sua afirmação: “interessam-me os processos do trabalho, a preparação, o que antecede a obra terminada” (MAIOLINO, 2012, p. 53).
Rolnik (2002ROLNIK, Suely. Flowerings of reality/florações da realidade. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line. New York: The Drawing Center, 2002. p. XVI-XVIII., p. XVII) também demonstra a ênfase dada pela artista ao seu processo de criação quando diz: “uma característica marcante para Maiolino consistiu em enfatizar a experiência que se dá no processo artístico e deixar de restringir a investigação a seu produto, objeto”.
Obras processuais
A instalação Aqui estão (1999) leva a outro aspecto que evidencia a complexidade da relação processo e obra no projeto artístico de Maiolino. Trata-se de uma obra processual, ou seja, é um projeto em permanente mobilidade por ser integrado à natureza (Figura 5). A obra sofre com as ações climáticas, com as mutações da floresta, com a deterioração natural do tempo, com os toques dos receptores, ao mesmo tempo que também age e transforma aquele espaço. A inserção e a permanência da obra no espaço geram tensão entre natureza e cultura.
Trata-se, portanto, de uma obra processual, em outras palavras, a obra é processo: formas que se transformam. E os documentos publicados, também, extravasam a história de como a obra foi construída, dando destaque, sob a forma de registros fotográficos, para sua modificação ao longo do tempo no espaço do museu.
Anna Maria Maiolino, Aqui estão - projeto A Forma na Floresta, 1999. Museu do Açude, Rio de Janeiro. Arquivo da artista
Essa discussão nos leva a outra obra de Maiolino, que é a série em argila de esculturas/instalações denominada Terra Modelada, que teve seu início em 1993 e permanece em processo até os dias de hoje. Diz Maiolino (2012, p. 53): “A série de esculturas/instalações que iniciei em 1993 permanece em processo, sem terminar”.
O título da obra se refere ao projeto mais amplo, isto é, à série em argila, e recebe diferentes títulos em cada apresentação pública. Mais de mil (1995) para a exposição itinerante Inside the Visible: an Elliptical Traverse of 20th Century Art In, of, and From the Feminine, Institute of Contemporary Art (ICA), Boston, nos Estados Unidos; Ainda mais estes (1996), para a mesma exposição itinerante na Whitechapel Art Gallery, em Londres; Poderiam ser mais que estes (1997) para a exposição “inSITE 97: Private time in public space”, em San Diego, Califórnia, Estados Unidos; e Contínuos (2010), para a exposição “Anna Maria Maiolino”, no Camden Art Centre, em Londres.
A série Terra Modelada também faz parte de uma exposição recente: “O amor se faz revolucionário” (2019), no Padiglione d’Arte Contemporanea (PAC) di Milano.
É importante mencionar que parte do processo dessa obra é realizada in situ, isto é, no próprio ambiente dos museus; no entanto, há um projeto que antecede a sua construção no espaço expositivo. Tendo acesso aos registros de processo nas publicações, flagramos a artista trabalhando em uma maquete em seu ateliê (Figura 6), que simula o espaço arquitetônico do museu, bem como fornece um retrato em miniatura da expografia da futura instalação. A publicação, portanto, torna público o processo de construção dessa obra processual.
Anna Maria Maiolino. A artista trabalha na maquete da exposição retrospectiva na Fundaciò Antoni Tàpies, 2010. Arquivo da artista
Gostaríamos de destacar alguns procedimentos da artista que nos levam à discussão da Terra Modelada como uma obra processual.
Os títulos das exposições explicitam a relação entre as exposições e o movimento de acúmulo e expansão da obra: Mais de mil ao lado de Ainda mais estes, Poderiam ser mais que estes e, por último, Contínuos. Eles dão ênfase ao modo como a artista associa e dá continuidade, a partir do encadeamento entre um trabalho e outro.
A remontagem da obra em situações diversas aponta para a progressão da série em argila, ou seja, a artista vai renomeando, remontando e reacumulando as obras, montando-as de diferentes modos, incorporando umas às outras, deixando vestígios desse pensamento em contínua expansão. (Figura 7) “A obra não é só cada uma das versões, mas também é a relação estabelecida entre essas diferentes exposições” (SALLES, 2008SALLES, Cecilia Almeida. Crítica Genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3. ed. São Paulo: EDUC, 2008, p.136). Se tomarmos obra como aquilo que é exposto publicamente, essa acontece exatamente nas conexões, que se renovam a cada exposição.
Anna Maria Maiolino, N x 1, instalação da série Terra Modelada, 2002MAIOLINO, Anna Maria. O encontro com a arte brasileira. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line. New York: The Drawing Center, 2002.. Argila modelada in situ, vista parcial da exposição realizada no Art in General, Nova York. Arquivo da artista
Anna Maria Maiolino, Ainda mais estes - série Terra Modelada, 1996. Instalação efêmera de argila feita in situ, Withechapel, Londres - Reino Unido. Arquivo da Artista
Vale destacar ainda que o conceito de série reforça a continuidade dessa obra ao enfatizar a relação que a artista estabelece entre uma exposição e outra.
Outro procedimento de criação dessa obra que nos remete a sua natureza processual é o modo como se dá a exploração da relação segmentos, ciclos, continuidade e inacabamento. (Figura 8) Ao construir a obra a partir de segmentos básicos e elementares, há sempre em potencial a possibilidade de retomada do trabalho, como também evidência Lins (2016LINS, Daniel. A pele de Anna: Anna Maria Maiolino. São Paulo: Cosac Naify, 2016., p. 238): “A incorporação do segmento no trabalho permite esticar o tempo de execução ao infinito, mantendo a obra inacabada, em aberto, em eterno progresso”.
Ao modelar a argila a partir de formas embrionárias e primordiais, Maiolino subtrai a monumentalidade da escultura e dá destaque ao gesto, à ação da mão que trabalha, da mão que faz e refaz, molda, estica, corta, engrossa ou encurta. São formas orgânicas de volumes e tamanhos diversos: alongadas, finas, grossas, redondas, circulares, fatiadas etc. (Figura9) A produção dos arranjos se repete ad infinitum, e a composição dos segmentos autoriza a modificação, incorporação e transformação da obra ao longo do tempo de sua execução. Como observa Zegher (2002ZEGHER, Catherine de. “Ciao Bella”: uma migrante por dentro e por fora. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line. New York: The Drawing Center, 2002., p. X):
O tempo consumido na elaboração de toneladas de argila permanece dependendo da aglomeração real das formas moldadas no espaço, pois a escultura pode crescer tanto quanto continue a registrar as formas do gesto em qualquer momento e lugar no tempo, não havendo uma predição de sua configuração final.
Além disso, o conceito de processo aparece na própria condição de efemeridade que é inerente à argila, ou seja, a argila se dissolverá, inevitavelmente, ao longo do tempo. A condição efêmera da argila autoriza a artista a dar seguimento ao trabalho. A escolha do material, portanto, trata-se de outro recurso plástico utilizado pela artista, que reitera o inacabamento como procedimento.
Nesse contexto, podemos afirmar que na instalação Terra Modelada o conceito de processo se manifesta como procedimento de criação, isto é, no contínuo gesto de moldar a argila e na exploração da mobilidade e potencial cíclico do material. Maiolino (2012a) reflete sobre essa exploração que reforça o aspecto processual da obra: “E falo de ciclos. Na verdade, a argila cumpre o seu destino: ela petrifica e volta a ser pó, e colocando água, ela volta a ser uma boa massa, para seguir trabalhando”.
O que Maiolino reivindica é a jornada de trabalho, o gasto energético na execução e o tempo investido no processo de produção das esculturas/instalações. No próprio projeto da obra está prevista a sua desmontagem de tal modo que a remontagem da obra incorpora novamente a processualidade do trabalho e o tempo e energia envolvida na confecção da instalação.
Nesse sentido, a dinâmica processual do trabalho de Maiolino, bem como a constante seriação de sua obra, a flexibilidade dos arranjos, a não permanência a um espaço determinado, a efemeridade da argila e a sua estrutura movente no espaço-tempo configuram uma obra aberta a possibilidades infinitas, em permanente estado de criação. (GONCALVES, 2018GONÇALVES, V. de O. O processo de criação de Anna Maria Maiolino: uma discussão referente à estética do inacabado. Farol - Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes. Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Artes, n. 19B, 2018, p. 91-101., p. 100).
O processo é a obra
Outro procedimento de Maiolino que fala dessa complexa relação entre obra e processo é a ida dos documentos para o espaço expositivo, não como registro da construção da obra que está sendo exposta, mas como materialidade do que é mostrado publicamente, como no caso de Sombra do Outro (1993-2005), É o que Falta (1995-2001) e Os Ausentes (1993-1996).
Anna Maria Maiolino, sem título, série Sombra do Outro. 1993-2005, cimento e pigmento moldado, aprox. 29 x 24 x 17 cm (cada). Coleção particular (trabalho em progresso)
A artista transforma o molde, que, por convenção, é descartado no processo escultórico, em obra. Assim, o negativo do processo, legado ao desaparecimento, é levado à exposição. “Constroem-se estas obras matriciais, na vontade de dignificar o que é esquecido, a matriz destruída no processo de moldagem na hora que vem à luz, o positivo” (MAIOLINO, 2002MAIOLINO, Anna Maria. O encontro com a arte brasileira. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line. New York: The Drawing Center, 2002., p. 250). O molde conserva a memória do positivo-ausente, e o que se manifesta é o vazio, porém nutrido da memória de sua função nos processos escultóricos da artista.
Os títulos das obras complementam a relação do positivo ausente-presente em sua reminiscência, atualizando a presença na ausência. Não elegendo oposições, em dicotomias como presente-ausente, Maiolino reivindica o vazio como lugar ativo, espaço de memória do processo. Há nos títulos, portanto, vestígios que nos transportam para o momento de separação do positivo da matriz escultórica, remetendo ao seu processo de fabricação, ao momento de distanciamento entre o molde e àquilo que ele originou. “Eles formavam um só corpo em determinado momento durante o processo da escultura moldada. Portanto, estes trabalhos incorporam a nostalgia pela matriz” (MAIOLINO, 2002MAIOLINO, Anna Maria. O encontro com a arte brasileira. In: ZEGHER, Catherine de (ed.). Anna Maria Maiolino: Vida afora/A life line. New York: The Drawing Center, 2002., p. 250).
As obras invocam a nostalgia da presença, agora reminiscente no vácuo do molde, mas que uma vez esteve materialmente lá no processo de criação da obra. “Aqui o vazio é a memória, é a ‘sombra do outro’, a presença anterior” (MAIOLINO, 2012bMAIOLINO, Anna Maria. Banquete antropofágico. In: TATAY, Helena (org.) Anna Maria Maiolino. São Paulo: Cosac Naify, 2012b, p. 93-94., p. 45).
Textura intersemiótica
Uma das características da produção artística contemporânea (mas não só) é a recorrência de artistas que, por necessidade de suas buscas poéticas, se manifestam em uma grande diversidade de linguagens. A produção de Maiolino dialoga também com essa busca intersemiótica, lidando com linguagem visual e verbal e fazendo uso de meios artesanais, industriais e tecnológicos (corpo, gesso, argila, papel, câmeras fotográficas, audiovisuais etc.). A artista transita por diversas linguagens da arte, como a fotografia, o vídeo, a escultura, a pintura, a poesia, a instalação, a performance etc., priorizando o trânsito entre meios.
E, sob o ponto de vista do processo de criação, é possível estabelecer a tradução intersemiótica como um dos fios condutores que interligam algumas de suas obras a outras. Estamos falando de procedimentos de tradução entre linguagens que se manifestam na própria materialidade da obra a partir de um percurso de tradução, de suas próprias obras, de uma linguagem para outra. Por isso falamos em textura intersemiótica como um dos princípios direcionadores do projeto de Maiolino. Nesse sentido, uma obra atua como “esboço” ou “rascunho” para a construção de outra obra, e assim por diante.
A artista explicita essa relação do verbal (a escrita, o poema) e do visual, explicitando as diferentes funções das linguagens no âmbito de seu projeto artístico:
A escrita servia-me como meio de organização do pensamento e encaminhou-me de volta ao trabalho. Alguns desses esboços mais tarde deram origem aos filmes em super-8 e à produção de uma série de desenhos chamada Mapas Mentais (1970-76). A escrita, os poemas aparecem ciclicamente na minha produção de arte. (MAIOLINO, 2016MAIOLINO, Anna Maria. Sine Die - diário de bordo. In: LINS, Daniel. A pele de Anna: Anna Maria Maiolino. São Paulo: Cosac Naify, 2016, p. 214., p. 214).
Vejamos um exemplo dessa autotradução interlinguagens na relação do poema concreto Eu + tu (1970 - Figura 11), do desenho Secret poem (1971 - Figura 12), e do vídeo Eu & tu (2008).
Anna Maria Maiolino, Secret poem - série Mapas Mentais, 1971. Guache e letraset sobre papel, 44 x 38,5 x 3,5 cm. Coleção de Michael M. Herschmann
O poema exerce uma dupla função, ou seja, configura-se como obra e documento de processo. No movimento de tradução, Maiolino recorre ao registro e realiza o desenho a partir de seu poema redigido no ano anterior. Em um jogo entre o visível e o não visível, aproximamos as duas obras pelo seu vínculo significante. O desenho esconde o poema, mas, ao mesmo tempo, solicita a sua decifração. Daí o título da obra, Secret Poem, reforçar as relações entre um trabalho e outro.
Na esteira dessa característica do processo de criação de Maiolino, o vídeo Eu & tu (2008EU & TU. Roteiro, direção e montagem: Anna Maria Maiolino. Fotografia: Anna Maria Maiolino. Som: Anna Maria Maiolino e Mateus Pires. Duração: 1’40’’. Participação: Verônica Maiolino Gerchman e João Silva de Araújo. Super-8 convertido em vídeo digital em 2000 por Rafael Costa, videcom, 2008. - Figura 13) dá continuidade ao poema Eu + tu (1970). Primeiro, um título, com pequena alteração, atua como índice da relação entre as obras.
Anna Maria Maiolino, cenas de Eu & tu (2008EU & TU. Roteiro, direção e montagem: Anna Maria Maiolino. Fotografia: Anna Maria Maiolino. Som: Anna Maria Maiolino e Mateus Pires. Duração: 1’40’’. Participação: Verônica Maiolino Gerchman e João Silva de Araújo. Super-8 convertido em vídeo digital em 2000 por Rafael Costa, videcom, 2008.). Arquivo da artista
O vídeo é feito inteiramente em close-up. Um casal enlaça fios de barbante às suas mãos em um jogo lúdico, análogo à brincadeira infantil cama de gato. As mãos realizam diferentes movimentos, construindo estruturas sempre mutantes. O que acompanhamos é um convite à alteridade, um jogo onde cada movimento depende do outro para se realizar. Como no poema concreto, há dois corpos distintos que se fundem, tornando-se um só. O fio de barbante, do mesmo modo que o símbolo de adição (+) do poema e o & do vídeo, é responsável por reunir, juntar, somar um corpo ao outro.
Justapondo esses três trabalhos, vemos como uma obra guarda um potencial de possibilidades a serem exploradas ao longo do tempo pelo artista, aqui sob a forma de tradução entre linguagens.
Essa dinâmica faz parte das discussões contemporâneas referentes à ausência de limites das linguagens. “O que se destaca são os procedimentos fronteiriços, as criações limítrofes, que exigem uma leitura das obras em processo relacional” (GONÇALVES, 2019GONÇALVES, V. de O. Procedimentos mestiços na condição pós-mídia: um estudo da obra de Anna Maria Maiolino. Nexi. Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, São Paulo, PUC-SP, v. 5, 2019, p. 1-10., p. 3). Esse movimento de tradução intersemiótica que encontramos na materialidade das obras da artista atualiza um processo de convergência entre o desenho, o vídeo e a poesia.
Considerações finais
Sem a intenção de esgotar o objeto estudado, o que oferecemos neste artigo foi um olhar processual para a obra de Anna Maria Maiolino. No escopo crítico de sua obra muito foi estudado a partir da perspectiva das obras, como são mostradas publicamente. No entanto, nenhum olhar voltou-se para os documentos de seu processo de criação.
Daí a relevância do estudo das publicações, aqui discutidas, movido pela pergunta: o que oferecem seus percursos criativos? Livros que nos colocaram em contado não só com suas obras, mas também seus documentos de processo (rascunhos, esboços, maquetes, moldes), como vimos, viabilizando conhecermos alguns dos princípios direcionadores de seu projeto poético.
A partir do olhar da crítica de processo para essas publicações, observamos, também, a relevância dada pela artista ao seu percurso de criação.
Tal teorização passou a oferecer uma abordagem processual, adicionando ao olhar retrospectivo da crítica genética uma dimensão prospectiva de uma crítica de processos criativos: uma maneira de discutir fenômenos em uma perspectiva de processo. Isto é, possibilitou discutir questões processuais, que extravasam os limites das histórias de como as obras foram construídas.
Vale ressaltar a relevância de se propor uma teoria crítica processual diante das experimentações e interrogações artísticas contemporâneas, que envolvem, entre outras coisas, exploração de arquivos, diferentes relações entre obra e processo, aqui discutidas, e a convergência de linguagens.
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3
Institut des Textes et Manuscrits Modernes/CNRS/Paris, fundado nos anos 1960, com o propósito de estudar manuscritos literários franceses.
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4
Anna Maria Maiolino nasceu em 1942, em Scalea, na Calábria, sul da Itália, dois anos após o início da Segunda Guerra Mundial. Aos 6 anos de idade, desloca-se para Bari, capital da Puglia. Como imigrante, instala-se em Caracas, na Venezuela. Chega ao Brasil na década de 1960. Naturaliza-se brasileira em 1968 e muda-se para os Estados Unidos no mesmo ano. A artista também vive períodos curtos em Buenos Aires e estabelece-se definitivamente no Brasil em 1989.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Dez 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2020
Histórico
-
Recebido
30 Out 2019 -
Aceito
25 Set 2020