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A ética e a pesquisa e a prática da epidemiologia

NOTICIÁRIO NOTICE

A ética e a pesquisa e a prática da epidemiologia

Ethics and epidemiology research and practice

O debate foi feito sob o patrocínio do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo e da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) em 11 de abril de 1991 com o intuito de contribuir para a discussão que está se dando em várias instituições científicas para aprimorar as relações entre pesquisadores e sujeitos de pesquisa. Algumas dessas instituições como a Associação Internacional de Epidemiologia (IEA) e o Conselho Internacional de Organizações Científicas Médicas (CIOMS) estão redigindo manuais de orientação (guidelines) para seus membros e o debate se deu com o intuito de contribuir para isso e também como uma atividade da Comissão que a SBMT institui cm fevereiro de 1991 na sua XXVII Assembléia Geral.

Estavam presentes os professores:

Anamaria C. Schindler, Núcleo de Estudos da Violencia/USP.

Guilherme R. da Silva, chefe do Dep. de Medicina Preventiva, Fac. de Medicina/USP.

Maria Carolina S. Guimarães, Dep. de Medicina Preventiva, FMUSP, Instituto de Medicina Tropical/ USP.

Myriam D. Ribeiro, Dep. de Medicina Preventiva/FMUSP e Dep. Medicina Preventiva/Escola Paulista de Medicina, membro do Conselho do IEA.

Oswaldo L. Ramos, chefe do Dep. de Medicina, Escola Paulista de Medicina.

Roberto G. Baruzzi, chefe do Dep. de Medicina Preventiva/Escola Paulista de Medicina.

Ruth C. L. Cardoso, Dep. de Antropologia, Fac. de FLCH/USP, CEBRAP.

Direito individual, direito coletivo, conflito e ética.

A primeira questão discutida disse respeito aos direitos humanos dos sub grupos do III Mundo: o urbano, com sua parcela de habitantes dos cortiços, das favelas e o não-urbano de comunidades isoladas, representado principalmente pelos índios. Perguntou-se como uma comunidade impõe seus valores aos outros, se esta e uma questão política ou se há uma outra instância que impõe esses valores; esses grupos passam a se comportar independentemente ou há um poder moderador sobre tais grupos.

O relativismo cultural, que preconizava que os valores de uma sociedade não podem ser impostos a nenhuma outra e que cada sociedade tem direito de preservar os seus valores, se levado às suas dimensões mais extremadas e uma justificativa para uma imposição cultural. Embora filosoficamente cada cultura tenha o mesmo valor ou igualmente o mesmo direito a preservação de tais valores, na prática o desenvolvimento tecnológico se impõe como um poder sobre os outros e, portanto, a discussão sobre estas dimensões de poder tem que contemplar esta preponderância, que é crucial. A existência da sociedade tecnologicamente mais desenvolvida facilita a adoção de seus usos e costumes por sociedades menos favorecidas ate que exista algo de realmente fundamental numa cultura contra essa intervenção.

No caso específico do cientista o seu saber, que o motiva a planejar um pesquisa, implica também em poder sobre essa sociedade. Sendo a saúde um valor universal e sendo da natureza humana a necessidade do bem-estar, as intervenções médicas com muita rapidez são incorporadas a uma cultura; se por acaso, uma prática médica (que traz consigo um bem-estar) for contrária a outro valor desta sociedade está criado o conflito e é neste momento que o problema da ética se coloca. Esta situação fica bem clara quando se examina o infanticídio que é ainda praticado por certas tribos do Alto Xingú por exemplo, por razões várias. A intervenção médica na área do Xingú tem levado a uma mudança de atitude de certas tribos da área que hoje já permitem que crianças com defeitos físicos sobrevivam ou que haja famílias com 7 ou 8 filhos, o que antes não ocorria.

Em certas culturas o direito coletivo é um valor superior ao direito individual (em contraposição a outras onde o direito coletivo é a soma dos direitos individuais) e o conflito entre um e outro assim como o conflito entre direitos individuais, pode ocorrer não só quando se tem um choque de culturas mas quando entram em conflito de interesses ou valores de diferentes grupos ou de conjuntos de indivíduos. Se a questão se colocar, por exemplo, entre a nossa ética com sua tradição judaico-cristã e o infanticídio numa tribo indígena, precisamos refletir que a nossa ética não é universal e tem também seu relativismo e que temos que contemplar o direito daquela comunidade às suas práticas e termos sensibilidade para administrar o conflito criado.

O conflito entre o direito individual e coletivo se dá não apenas quando se tem um choque de culturas mas também dentro de uma mesma sociedade entre classes sociais diferentes ou entre pessoas de origens geográficas diferentes.

Autonomia e consentimento pós-informação

O consentimento pressupõe informação. A natureza da informação deve ser tal que ponha em evidência para o sujeito da pesquisa em linguagem clara e ao seu alcance, não só os benefícios mas também os riscos e desconfortos envolvidos de modo que idealmente, o sujeito esteja tão informado a respeito da pesquisa quanto o pesquisador responsável por ela. O consentimento deve ser dado livremente e por isso fere a ética que o grupos de pesquisa sejam buscados em populações confinadas e sob autoridade como presos, recrutas ou pacientes hospitalizados. O pagamento ao sujeito de pesquisa não pode ser oferecido como recompensa pela sua colaboração ou como desculpa pela falta de informação precisa, mas apenas como retribuição pelo tempo empregado enquanto sujeito de pesquisa. Este ponto é bem compreendido em países desenvolvidos porém, em países do III Mundo onde a questão da sobrevivência cotidiana é crucial pode-se ter situações muito difíceis deste ponto de vista, representados por atos de pseuda-volição.

A possibilidade da apreensão da informação depende da cultura e este fato pode condicionar condutas e formas de comportamento diferentes especialmente em problemas que impliquem em dano potencial à vida, principalmente em países extensos como o Brasil. Entretanto, é necessário estabelecer limites para o relativismo cultural que no passado serviu de desculpas para intervenções violentas e falta de respeito com outras culturas, fato que envolve também relações de poder. O que é preciso observar é que cada cultura tem os seus padrões éticos e não pode agir de acordo com a cultura do outro além do que, a ética nos impõe limites à ação; devemos reconhecer também que os nossos princípios não podem ser universais e que não poderemos nos guiar por eles em todos os momentos. Se houver uma situação conflitante é preciso ter sensibilidade e abrir espaço para entender e exercer a relatividade.

Violência

A questão dos direitos humanos está sendo rediscutida a partir de um ponto de vista coletivo e por categorias (uma criança espancada põe em discussão o direito à proteção de todas as crianças que são espancadas). A maneira de fazer política na sociedade contemporânea permite que indivíduos de grupos discriminados, que são sujeitos de direitos individuais se transformem em sujeitos de direitos coletivos porém, filosoficamente, introduz um novo jogo entre as questões colocadas e, é precisamente este enfrentamento que faz avançar a interpretação dos limites da ética. Tal fato pressupõe uma negociação permanente e um claro jogo político de dois sujeitos coletivos e não um indivíduo que deveria, enquanto tal, se submeter a uma ética que diz respeito a todos os indivíduos.

A questão da violência urbana foi reconhecida pelo grupo como grave e que está aumentando na sociedade contemporânea no III Mundo ou pelo menos, está sendo mais conhecido por todos em face das denúncias que são feitas em maior número. Este assunto necessita ser objeto de reflexão em sua interface com a Saúde Pública.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2006
  • Data do Fascículo
    Out 1991
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