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A ética na práxis freireana: educação para a liberdade e emancipação humana

The ethics in Freirean praxis: education for freedom and human emancipation

Resumo:

Este artigo analisa a ética na práxis educativa freireana e busca responder a seguinte questão: como se articula a ética na concepção de educação proposta por Paulo Freire? Apresenta como objetivos: a) caracterizar a ética na práxis educativa freireana; b) analisar a centralidade das lutas socioeducativas como expressão objetiva da ética; e c) definir a relação ética, educação e emancipação humana a partir de Paulo Freire. A abordagem teórico-metodológica consiste em uma revisão bibliográfica pautada na identificação das formulações sobre ética em obras de Paulo Freire e de autores que discutem o seu legado para a educação, articulando essa análise a partir das relações de classe no capitalismo. Abordar a ética em Paulo Freire permite refletir sobre os desafios e as perspectivas da práxis educativa, gerando ações coletivas emancipadoras que possibilitem o enfrentamento das contradições e dos desafios da crise capitalista que marca o primeiro quartel do século XXI.

Palavras-chave:
Ética; Educação; Emancipação; Práxis; Paulo Freire

Abstract:

The article analyzes ethics in Freire's educational praxis. It poses the following question: how are ethics articulated in the concept of education proposed by Paulo Freire? The article aims to: a) characterize ethics in Freire's educational praxis; b) analyze the centrality of socio-educational struggles as an objective expression of ethics; and c) define the relationship between ethics, education and emancipation based on Paulo Freire. The theoretical-methodological approach consists of a bibliographical review based on the identification of formulations on ethics in the works of Paulo Freire and authors who discuss his legacy for education, articulating this analysis based on class relations in capitalism. Addressing ethics in Paulo Freire allows us to reflect on the challenges and perspectives of educational praxis, generating emancipatory collective actions that make it possible to confront the contradictions and challenges of the capitalist crisis that marks the first quarter of the 21st century.

Keywords:
Ethics; Education; Emancipation; Praxis; Paulo Freire

Introdução

Este artigo analisa a perspectiva ética presente na práxis educativa freireana e, embora, sem sistematizar uma abordagem específica sobre o tema, o conjunto das formulações sobre educação em Paulo Freire revela uma compreensão da ética como uma experiência histórico-social cujo propósito consiste na liberdade humana. A partir desse aspecto, este estudo busca responder a seguinte questão: como se articula a ética na concepção de educação proposta por Paulo Freire? A análise do sentido ético da concepção de educação em Paulo Freire permite compreender seu legado para os movimentos, as organizações e os grupos que almejam resistir às relações de exploração, de dominação e de opressão ao mesmo tempo em que se engajam em um projeto de caráter revolucionário-emancipatório.

Dessa forma, apresenta-se como objetivos: a) caracterizar a ética na práxis educativa freireana; b) analisar a centralidade das lutas socioeducativas como expressão objetiva da ética; e c) definir a relação ética, educação e emancipação humana a partir de Paulo Freire. Vale reforçar que o legado de Paulo Freire de uma educação para a liberdade e voltada à emancipação humana pode contribuir para a reflexão em torno da superação das condições ideopolíticas do capitalismo no primeiro quartel do século XXI.

A abordagem teórico-metodológica consiste em uma revisão bibliográfica pautada na identificação das formulações sobre ética em obras de Paulo Freire, bem como de autores que discutem o seu legado para a educação. Articula essa análise a partir das relações de classe no capitalismo.

O artigo está organizado em Introdução, três partes do desenvolvimento teórico, conclusões e referências.

A primeira parte denomina-se “A ética na práxis educativa freireana”, que aborda o caráter universal da ética freireana, considerando sua fundamentação na liberdade humana. Fundamentada na liberdade humana, a ética, nas formulações teórico-políticas de Paulo Freire, orienta uma práxis educativa que denuncia e supera a neutralidade do conhecimento, da ciência, do saber. Para o referido autor, a ética consiste no desafio educacional de fazer escolhas que potencializem decisões em favor da ruptura com as relações de exploração, de dominação e de opressão, permitindo um processo de conscientização na direção da elevação histórico-moral da humanidade.

A segunda parte intitula-se “A centralidade das lutas socioeducativas como expressão objetiva da ética freireana”, que traz que as lutas socioeducativas materializam a liberdade enquanto valor ético na obra de Paulo Freire. Observa que, pela materialidade das lutas socioeducativas, constituem-se as condições da classe trabalhadora em superar o conformismo frente as desigualdades, as injustiças e o autoritarismo, ao mesmo tempo em que cria condições para a formação de um novo homem para uma nova sociedade. Demonstra que a educação problematizadora, sustentada em uma pedagogia crítica, confronta a educação bancária na luta ética pela superação das relações de exploração, de dominação, de opressão.

A terceira parte denomina-se “Ética, educação e emancipação humana”, em que se reforça que o valor ético da liberdade na práxis educativa freireana se insere em um projeto humanista revolucionário que busca a elevação dos níveis de conscientização para cumprir com a finalidade social de superação da sociedade de classes e a construção da sociedade socialista. Assinala que a práxis educativa voltada para a liberdade coloca o desafio da reflexão que Freire define como processo de transição da ação para a revolução cultural. Nesse sentido, salienta que a convivência da liberdade com a educação bancária, domesticadora, alienante dissipa-se com a transição proporcionada pelo processo revolucionário. Diante da materialização da liberdade no contexto da revolução cultural, a emancipação configura-se como a incompletude do ser humano que, pela ininterrupta conscientização, reforça processos político-educativos em lugar da padronização sistêmica.

Abordar a ética em Paulo Freire revela-se importante porque permite refletir sobre os desafios e as perspectivas da práxis educativa. Essa reflexão pode gerar ações coletivas emancipadoras que possibilitem o enfrentamento das contradições e dos desafios da crise capitalista que marca o primeiro quartel do século XXI.

A ética na práxis educativa freireana

No Dicionário Paulo Freire, há o registro de que a vida política e intelectual deste educador brasileiro foi marcada por um permanente rigor ético em torno da dignidade humana. Sem que tenha se apropriado do tema de forma sistematizada e específica, as obras freireanas sempre se pautaram pela opção humanista que “se manifesta com clareza na sua ética da libertação e da solidariedade que assume o compromisso de lutar pela dignidade do oprimido, do excluído e pela justiça global” (Streck, Redin; Zitkoski, 2019, pSTRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. J. (org.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.. 205).

A ética freireana assume um caráter universalista na medida em que se refere ao “homem como um ser de relações no mundo e com o mundo, considerando-o um ser histórico, temporal, capaz de interagir com as pessoas e com a sociedade” (Batista, 2011, pBATISTA, P. S. de S. A concepção de ética na educação popular e o pensamento de Paulo Freire. Educação Unisinos, São Leopoldo, v. 15, n. 3, p. 224–232, set./dez. 2011.. 227). O sentido universal da ética do ser humano se confronta às condições da exploração da força de trabalho no capitalismo, permitindo considerar que o compromisso freireano com a libertação e a solidariedade se expressa pelas mediações de classe.

Na perspectiva freireana, a educação envolve um compromisso ético em que educadores(as) e educandos(as) buscam produzir uma reflexão e um conhecimento crítico sobre a realidade, potencializados no processo dialógico de conscientização que mobiliza os sujeitos, antes assujeitados, para a ação política libertadora e humanizante. A práxis educativa freireana busca lutar contra as proposições e ações que apregoam a inexorabilidade do capitalismo, opondo-se ao fatalismo conservador que insiste no fim da história para justificar a adesão à conformação social (Freire, 2015FREIRE, P. À sombra desta mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.).

É importante ressaltar que a práxis educativa freireana fundamenta sua ética no desenvolvimento social, na defesa da democracia e na liberdade humana. Freire (2015)FREIRE, P. À sombra desta mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. situou a educação frente a um projeto de transformação social, sem transigir com as orientações dominantes que se expressam por organizações da sociedade civil ou por políticas de governo.

A ética freireana se sustenta, portanto, em uma práxis educativa que denuncia e supera a neutralidade do conhecimento vista como estratégia hegemônica de formação dos(as) trabalhadores(as). Considerando a meritocracia como expressão ideopolítica de grupos empresariais e de tecnocratas governamentais adeptos à adaptação da classe trabalhadora às exigências da sociabilidade capitalista em tempos de reestruturação produtiva, Freire (2015)FREIRE, P. À sombra desta mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. reforçou a necessidade ética de que a educação esteja voltada aos interesses, trajetórias e perspectivas históricas da classe trabalhadora.

O autor de “‘A sombra desta mangueira” considerava que a abordagem crítica do conhecimento requeria, sempre, do(a) educador(a) a arguição sobre a favor de quem, de que é contra o que atua uma formação que descontextualiza, que naturaliza as condições sociais, políticas, culturais de produção da ciência, do trabalho e da vida. Ciente das condições da produção científico-tecnológica-informacionais proporcionadas pelos processos de reestruturação produtiva (Antunes, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.), o autor destacou o compromisso ético do(a) educador(a) com um conhecimento gerado em torno da natureza humana, concebida desde um ponto de vista histórico e social. A ética freireana orienta o(a) educador(a) para fazer escolhas acerca do conhecimento, desvelando que:

A possibilidade que temos, criada na História, de discernir, de comparar, de escolher, de programar, de atuar, de avaliar, de nos comprometer, de nos arriscar, de amar, de ter raiva, nos faz seres da decisão, portanto, seres éticos. Por isso mesmo é que lutar contra a exploração, contra a discriminação, contra a negação de nós mesmos é um imperativo ético. Discriminados porque negros, discriminadas porque mulheres, discriminados porque homossexuais, ou trabalhadores ou brasileiros ou árabes ou judeus, não importa porque discriminados, temos o dever de protestar e de lutar contra a discriminação. A discriminação nos ofende enquanto fere a substantividade de nosso ser (Freire, 2015, pFREIRE, P. À sombra desta mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.. 79).

A ética freireana se mobiliza e mobiliza o(a) educador(a) em torno de escolhas pela produção de um conhecimento que se pauta na historicidade do ser humano. Isso significa compreender o lugar do conhecimento frente a totalidade social, marcada pelas características sistêmicas do Capital. (Mészáros, 2008MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008.) Ao mesmo tempo em que aborda o conhecimento a partir de escolhas que identificam a força dos adversários que buscam conservar o sistema do Capital, a ética freireana convoca os(as) educadores(as) ao desafio de promover a unidade na diversidade das condições de vida e das experiências subjetivas que se delineiam nas relações de exploração, de dominação, de opressão.

Freire (2015)FREIRE, P. À sombra desta mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. indicou que a tarefa ética do(a) educador(a) que articula o conhecimento frente aos contextos históricos e sociais do ser humano consiste em promover a diferença como conciliação em lugar do antagonismo da desigualdade. Em outros termos, a luta contra o racismo, contra o machismo, contra a homofobia, contra a xenofobia implica o compartilhamento emancipatório das reivindicações de pretos(as), de mulheres, de grupos de LGBTQIA+, de refugiados(as).

Entretanto, essa luta em comum pela superação da dominação, pelo reconhecimento sociocultural, pelo respeito valorativo — cuja referência é a solidariedade na relação das condições objetivas e das experiências subjetivas da vida — ocorre a partir dos fundamentos da sociedade capitalista. A citação de Freire, a seguir, indica que esses fundamentos se materializam na centralidade das condições de classe para o enfrentamento consistente das lutas específicas no âmbito da sociedade capitalista:

Se estou certo, por um lado, de que o único preconceito que pode ser completamente explicado pela análise de classes é mesmo o classista por outro lado, estou igualmente certo de que o fator classe se acha escondido quer na discriminação racial, quer na sexual. É bem verdade, repitamos, que não podemos reduzir todos os preconceitos à explicação classista, mas não podemos prescindir dela na compreensão dos diferentes tipos de discriminação. É preciso também que percebamos esta obviedade: não é possível confrontar e vencer o poder que nos oprime se não superamos nossas diferenças acidentais e não nos unimos num bloco homogêneo, decidido e capaz. Quando qualquer chamada minoria se recusa peremptoriamente a juntar suas forças às de outra minoria revela uma certeza preconceituosa: a da impossibilidade natural que a outra tem de ser justa e decente (Freire, 2015, pFREIRE, P. À sombra desta mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.. 78).

Pode-se considerar que o autor atribuiu a ética um lugar central para a construção de processos de transformação. Isso porque a ética constitui-se em movimento, que permite a avaliação das condições objetivas e subjetivas dos atos, a realização de escolhas que superem proposições e ações fatalistas e a reunião de um conjunto articulado e coerente em um sistema de valores, de juízos e de normas capazes de potencializar a natureza histórico-social do ser humano.

A unidade na diversidade diz respeito ao desafio educativo de proporcionar aos sujeitos a capacidade de avaliar a realidade, de fazer escolhas conscientes e, sobretudo, de constituir esse sistema como uma referência da transformação. Nesse ponto, vale destacar que, em Freire (2015), aFREIRE, P. À sombra desta mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. educação adquiriu o sentido ético de buscar uma unidade na luta contra a dominação, o não reconhecimento e o desrespeito provocado pelas desigualdades socioculturais.

Freire (2015)FREIRE, P. À sombra desta mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. considerou que as lutas são múltiplas, expressando a dinâmica da realidade no capitalismo. Entretanto, sem a ética, o sentido educativo das lutas tende a dispersão, gerando dificuldades de identificação dos aliados e impeditivos no combate aos adversários.

Embora explicite que é preciso preservar a diversidade das lutas em suas especificidades, identificando a riqueza que pode fortalecer os aliados, a ética freireana aproxima-se das formulações de Vázquez (1978)VÁZQUEZ, A. S. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. quando confere à classe trabalhadora a possibilidade de unidade na mudança na marcha ascendente do movimento histórico do ser humano. A aproximação da ética à perspectiva classista de transformação social envolve a educação em um aspecto teórico-prático consciente, que emerge como possibilidade no contexto de desumanização, intensificada nas formas fatalistas das relações sociais, sustentadas na neutralidade do conhecimento e lançando uma cortina de fumaça sobre as condições de destrutibilidade do atual estágio do capitalismo.

A dimensão ética da práxis educativa freireana considera, portanto, a historicidade como expressão central dos processos de humanização, visando a transformação. Saliente-se, nesse contexto, que interessa um conhecimento refratário à neutralidade da ciência, que rejeita fundamentos que distorcem a realidade e estigmatizam os sujeitos com falsas ideias acerca do homem e da mulher, da existência de povos e de raças, da relação passado e presente.

A obra “Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa” reforça a rejeição à neutralidade como marca ideológica da dominação, da exploração, da opressão. Entretanto, busca potencializar a construção do conhecimento, da ciência, do saber pelo reconhecimento mútuo das situações e adversidades que alicerçam os processos de desumanização.

Ao estabelecer a necessária relação de reconhecimento mútuo entre educadores(as) e educando(as), Freire (1996)FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática pedagógica. São Paulo: Paz e Terra, 1996. associou o conhecimento, a ciência e o saber à construção de uma ética potencial e progressivamente verdadeira e universal porque compromissada com o ser humano. A práxis educativa no processo de humanização se orienta pelo compromisso ético da docência em promover a reflexão-ação produtora do que o autor denomina como ser mais.

O ser mais significa a construção respeitosa da conscientização, que amplia alternativas e possibilidades de escolhas. A dimensão ética da práxis educativa de Freire (1996)FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática pedagógica. São Paulo: Paz e Terra, 1996. residia, e reside, na elevação moral e intelectual dos sujeitos que encontram condições de conquistar o domínio de si mesmos, de adotar decisões livres, conscientes e responsáveis, de articular situações particulares aos interesses coletivos, de valorizar suas convicções internas sem adesismos externos e formais à ordem econômica, política e/ou legal.

Ao mesmo tempo em que denunciava a neutralidade do conhecimento, da ciência, do saber como estratégia conservadora de manutenção da ordem, Freire (1996)FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática pedagógica. São Paulo: Paz e Terra, 1996. recusava uma conduta do(a) educador(a) que, revestida de um discurso progressista, respaldava uma práxis educativa peremptória porque afastava-se dos desafios e das perspectivas do ser mais. Pode-se considerar que o autor de “Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa” entendia os avanços, os retrocessos, as contradições que envolviam os(as) educadores(as) e educandos(as) em seus processos histórico-morais, mas salientava que a relatividade impressa nos juízos de valor, nas normas de conduta e nos códigos morais não podia justificar um relativismo ético.

Ao contrário, o autor incentivava, especialmente aos educadores(as), ao desenvolvimento de uma práxis educativa que superasse o relativismo pela problematização da realidade, pelo enriquecimento do conhecimento, pelo respeito às concepções de mundo, às opções políticas, às tradições socioculturais dos(as) educandos(as). Os fundamentos éticos da práxis educativa freireana conectavam-se ao sentido integral e universal que conferia ao ser mais.

A práxis educativa freireana se configura na conquista da liberdade em fazer escolhas conscientes dirigidas a finalidade e capacidade de criar condições de sua realização objetiva. Cabe, então, discutir o lugar da luta como caracterização da ética voltada para a liberdade e emancipação humana.

A centralidade das lutas socioeducativas como expressão objetiva da ética freireana

Segundo Vázquez (1978), aVÁZQUEZ, A. S. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. ética constitui-se na teoria ou na ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Considerando que é preciso evitar a confusão entre ética e moral, essa definição está sistematizada na seguinte formulação:

A ética não cria a moral. Conquanto que seja certo que toda moral supõe determinados princípios, normas ou regras de comportamento, não é a ética que os estabelece numa determinada comunidade. A ética depara com uma experiência histórico-social no terreno da moral, ou seja, com uma série de práticas morais já em vigor e, partindo delas, procura determinar a essência da moral, sua origem, as condições objetivas e subjetivas do ato moral, as fontes da avaliação moral, a natureza e a função dos juízos morais, os critérios de justificação destes juízos e o princípio que rege a mudança e a sucessão de diferentes sistemas de morais (Vázquez, 1978, pVÁZQUEZ, A. S. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.. 12).

O autor afirmava inexistir uma moral científica em si. Entretanto, admitia a compatibilidade da moral “com os conhecimentos científicos sobre o homem, a sociedade e, em particular, sobre o comportamento humano” (Vázquez, 1978, pVÁZQUEZ, A. S. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.. 13). A ética cumpria esse lugar de “servir para fundamentar uma moral, sem ser em si mesma normativa ou preceptiva” (Vázquez, 1978, pVÁZQUEZ, A. S. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.. 13).

A práxis educativa freireana expressa esse esforço de abordar a ética como uma experiência histórico-social que reunia um conjunto de códigos, normas e juízos que alicerçavam um sistema moral. Sem deixar de observar a relatividade e a transitoriedade dos sistemas morais, a perspectiva ética da práxis educativa freireana atentava para os processos históricos, as relações sociopolíticas e os projetos societários cuja potencialidade podia elevar o sistema moral presente especialmente na sociedade brasileira.

As formulações teórico-políticas freireanas sempre partiram do ponto de vista de que a classe trabalhadora constituía, diante dos processos, das relações e dos projetos vigentes no capitalismo, as condições de intervir pela transformação da sociedade. Esquivando-se de absolutizar os juízos, as normas, os códigos morais que configuram as histórias, as ideologias, as ações que justificam esse ponto de vista, mas também convencido de que a neutralidade redunda em conformismo frente às desigualdades, injustiças e autoritarismos, Freire (1996)FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática pedagógica. São Paulo: Paz e Terra, 1996. articulou a ética em torno da construção de um novo homem para uma nova sociedade.

Cabia a este novo homem superar os processos, relações e projetos da antiga ordem, ao mesmo tempo em que construía as bases, inclusive morais, da sociedade futura. Desde “Pedagogia do Oprimido”, a práxis educativa freireana sustentou-se em vislumbrar a transitoriedade restauradora e transformadora do ser humano.

Em “Pedagogia do Oprimido”, já se encontram os valores que fundamentam a ética na práxis educativa da transição restauradora e transformadora do ser humano. Pode-se considerar que a liberdade agrega nas formulações e proposições freireanas, nas potencialidades da restauração e da transformação. A citação em termos de uma educação problematizadora reforça essa análise:

Para a prática “bancária”, o fundamental é, no máximo, amenizar esta situação [de imobilismo], mantendo, porém, as consciências imersas nela. Para a educação problematizadora, enquanto um que fazer humanista e libertador, o importante está, em que os homens submetidos à dominação, lutem por sua emancipação (Freire, 1987, pFREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1987.. 49).

Freire (1987)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1987. estava atento aos mecanismos de privação de liberdade que se disseminam pelos processos, pelas condições e pelos projetos sociais, instituindo relações de assujeitamento, de estranhamento, de alienação, que caracterizam a sociedade de classes. O autor ressaltava que esses mecanismos produzem uma determinada perspectiva educacional que naturaliza formas de sentir, pensar e agir em consonância com a exploração, a dominação, a opressão na sociedade brasileira.

A identificação da educação como expressão da naturalização da exploração, da dominação, da opressão impinge as proposições e ações freireanas a constituir o compromisso ético de superação dos mecanismos que bloqueiam os sujeitos em suas potencialidades de ser mais, pavimentando os caminhos de humanização em busca da natureza humana. Superar os bloqueios que privam a liberdade como valor ético desse caminho pela humanização significava escolher a luta como estratégia contra a educação bancária que amortiza, conforma e consolida a exploração, a dominação, a opressão (Freire, 1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1987.).

A luta contra a educação bancária refuta a perspectiva dominante de adaptar os sujeitos à sociabilidade capitalista, alicerçada na formação para o mercado de trabalho. Além de combater as forças sociais hegemônicas, sobretudo os empresários, que naturalizavam uma formação voltada para a produtividade, a concorrência e a desigualdade, a luta como caminho estratégico do compromisso ético pela liberdade escapava das concepções idealistas que consideravam a educação como impulsionadora da transformação social (Freire, 1987FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1987.).

Significa dizer que a educação se articula na práxis, isto é, nos processos, relações e projetos que, a partir de contextos de reflexão-ação, buscam intervir na realidade. É diante da correlação de forças, dos projetos antagônicos, das lutas sociais que Freire (1987)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1987. situava uma educação que, na superação de concepções e perspectivas pragmatistas e idealistas, pudesse problematizar os desdobramentos da exploração, da dominação, da opressão.

A educação problematizadora se articula na luta ética, implicando em dois movimentos: 1- na denúncia as ações desrespeitosas, aos juízos preconceituosos, aos valores persecutórios que acionam os bloqueios que privam a liberdade e 2- no anúncio de que o reconhecimento desses mecanismos permite a construção de alternativas de libertação. A síntese a seguir demonstra a caracterização desses movimentos:

A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá, dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação (Freire, 1987, pFREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1987.. 27).

Compreender a libertação como um processo permanente configura-se na dimensão mais elevada de conscientização dos sujeitos. Entretanto, essa elevação decorre de um processo, de um contexto, de um projeto de sociedade em que a educação problematizadora, revelada na pedagogia crítica, implica a liberdade da relação da contradição dialética entre oprimido e opressor (Allman, 1999ALLMAN, P. Revolutionary social transformation: democratic hopes, political possibilities and critical education. Westport: Bergin & Garvey, 1999.). Como sugere a afirmação a seguir: “A relação dialética entre oprimido e opressor é o que constitui as suas posições e os coloca em contradição. Libertação, portanto, consiste em superar a relação de opressão, a fim de eliminar esta contradição” (Fernandes, 2016, pFERNANDES, S. Pedagogia crítica como práxis marxista humanista: perspectivas sobre solidariedade, opressão e revolução. Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 37, n. 135, p. 481–496, abr./jun. 2016.. 483).

Fernandes (2016)FERNANDES, S. Pedagogia crítica como práxis marxista humanista: perspectivas sobre solidariedade, opressão e revolução. Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 37, n. 135, p. 481–496, abr./jun. 2016. observa que o processo de conscientização diz respeito ao impacto da opressão sobre a consciência do oprimido, buscando superar uma visão derrotista, colonialista e fatalista de mundo. Entretanto, a autora salienta que a agência, como elemento primordial da práxis e do próprio caminho libertador e humanizador, cumpre um lugar dialético relativo à estrutura opressiva estabelecida na relação entre oprimidos e opressores. Isso porque a agência expressa a capacidade e a motivação de intervenção dos sujeitos diante de suas condições objetivas e de suas experiências subjetivas de vida no enfrentamento dos diferentes graus e dos distintos desdobramentos das opressões. Sem procurar abstrair os sujeitos da realidade e da história, a educação problematizadora sustentada na pedagogia crítica consiste no reconhecimento da complexidade e da dialética, “capaz de cultivar a consciência crítica, em oposição a uma visão estruturalista desumanizante que reifica pessoas reais de acordo com as funções do opressor e do oprimido” (Fernandes, 2016, pFERNANDES, S. Pedagogia crítica como práxis marxista humanista: perspectivas sobre solidariedade, opressão e revolução. Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 37, n. 135, p. 481–496, abr./jun. 2016.. 484).

Pode-se considerar que a conscientização como processo permanente de elevação intelectual e moral dos sujeitos ocorre de maneira gradual e progressiva, cuja referência consiste na valorização da liberdade e no mais alto grau de sua objetivação frente a realidade. Freire (1987)FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1987. indicou que a capacidade e a motivação de agência consciente e organizada sobre a realidade resultam em reconhecimento por parte dos oprimidos de que os processos, as relações e os projetos que estruturam a opressão atuam em suas concepções de mundo, em seus valores ético-políticos, em suas tradições socioculturais. Em outras palavras, as estruturas da exploração, da dominação, da opressão se diversificam e difundem capilarmente de modo a educar o oprimido como um opressor.

Lutar contra todas as formas de desumanização — inclusive as que educam o oprimido para a opressão — requer uma práxis educativa coerentemente humanizadora instalada pela solidariedade, que se apropria, atualiza e supera a “lógica binária da opressão através de uma visão dialética do oprimido e opressor” (Fernandes, 2016, pFERNANDES, S. Pedagogia crítica como práxis marxista humanista: perspectivas sobre solidariedade, opressão e revolução. Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 37, n. 135, p. 481–496, abr./jun. 2016.. 483) A ampliação material da gradual e progressiva elevação intelectual e moral significa que:

Os oprimidos, ao buscar recuperar a sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade de ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos seus opressores (Freire, 1987, pFREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1987.. 20).

Na luta solidária pela liberdade, desagrega-se o poder do opressor ao mesmo tempo em que se permite ao oprimido superar seu próprio posicionamento nas relações de opressão. Isso porque o oprimido se constitui como agente de humanismo universal (Fernandes, 2016FERNANDES, S. Pedagogia crítica como práxis marxista humanista: perspectivas sobre solidariedade, opressão e revolução. Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 37, n. 135, p. 481–496, abr./jun. 2016.), superando uma consciência incoerente e desumanizada provocada pelo fatalismo, pela alienação, pela força por um processo de conscientização que recupera o inacabamento do ser humano.

Segundo Fernandes (2016)FERNANDES, S. Pedagogia crítica como práxis marxista humanista: perspectivas sobre solidariedade, opressão e revolução. Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 37, n. 135, p. 481–496, abr./jun. 2016., esse aspecto insere a pedagogia crítica freireana em um projeto humanista revolucionário de emancipação. Cabe, então, aprofundar a ética da relação entre educador e educando da práxis educativa freireana na perspectiva da emancipação humana.

Ética, educação e emancipação humana

Em “Ação Cultural para a liberdade e outros escritos”, a práxis educativa freireana se insere em um projeto humanista revolucionário. Essa inserção coloca o valor ético da liberdade em uma perspectiva educativa emancipatória que parte da elevação dos níveis de conscientização para cumprir com a finalidade social de superação da sociedade de classes.

Conhecer a realidade em suas múltiplas determinações, desenvolver o humanismo em contraposição às condições de existência e unir-se às massas populares orienta o(a) educador(a) na “prática da transformação da sociedade de classes e da construção da sociedade socialista”. (Freire, 1981, pFREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.. 64) No contexto dessa orientação, Freire (1981)FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. salientou que o trabalho do(a) educador(a) adquire uma dimensão social por contribuir para a passagem da ação para a revolução cultural.

Tendo por referência o sentido ético da libertação, a ação cultural realiza-se como práxis educativa intencional em oposição às classes dominantes. A ação cultural para a libertação encontra seus limites na própria realidade opressora, dispostos nas relações, processos e perspectivas do silenciamento (Freire, 1981FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.).

Em que pese as potencialidades de ruptura da revolução cultural já se desenvolverem na ação cultural, especialmente em termos da superação da exploração, da dominação e da opressão e da construção conscientizadora, Freire (1981)FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. distinguiu aquela desta por já contar com as bases materiais de negação da dominação. Essas bases consolidam a perspectiva emancipadora da humanização.

Em outros termos, a revolução cultural consiste no momento em que a classe trabalhadora assume o poder decisório no âmbito da sociedade, apontando a necessidade de um processo educativo de modo a afastar desvios que tendem a preservar “o caráter ‘domesticador’ da educação burguesa à cuja herança se soma a do stalinismo” (Freire, 1981, pFREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.. 76). A constituição da classe trabalhadora como dirigente da revolução cultural requer do educador um posicionamento que anula a educação domesticadora, como forma de mitificação da realidade por meio de um “pensar falso sobre si e sobre o mundo” (Freire, 1981, pFREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.. 81).

Quando Freire (1981)FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. abordou a construção da sociedade socialista pela revolução cultural, sua ênfase residia na implantação de formas de sentir, pensar e agir condizentes com a emancipação. Significa a promoção dos valores da libertação pela ativação, permanente, dos mecanismos de autoavaliação dos rumos da nova sociedade.

Acionar permanentemente os mecanismos de autoavaliação dos rumos da nova sociedade confere ao(a) educador(a) comprometido com a revolução cultural um vínculo aos interesses, às trajetórias e aos projetos construídos pelas massas populares. Em suas proposições e ações alfabetizadoras e pós-alfabetizadoras, Freire (1981)FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. já indicava a premência de que os(as) educadores(as) confiassem na autonomia e na autenticidade populares para romper com antigas estruturas de poder e construir a nova sociedade.

Se a ação cultural para a liberdade ainda convive com contradições na sociedade capitalista que atua na concepção de uma educação bancária, domesticadora, alienante, a transição instaurada por um processo revolucionário permanente materializa os princípios da libertação. Esses princípios materializados confirmam a emancipação como a incompletude do ser humano que, pela ininterrupta conscientização, reforça processos político-educativos em lugar da padronização sistêmica, de modo a contribuir para a formação ilimitada e integral dos sujeitos.

Pode-se considerar que as formulações freireanas acerca da emancipação na transição revolucionária articula o pleno desenvolvimento humano à ideia de trabalho associado. Isso porque é pelo trabalho associado, isto é, pelo controle consciente do processo de produção da vida (Tonet, 2012TONET, I. Educação contra o Capital. 2. ed. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.), que a práxis educativa freireana sistematiza o sentido integral e ilimitado da formação dos sujeitos na superação da sociabilidade capitalista.

Cabe destacar que o sentido ilimitado da formação dos sujeitos na abordagem freireana aproxima-se da ótica de uma educação voltada para “uma forma de sociabilidade indefinidamente aperfeiçoável; porque não traz em si obstáculos insuperáveis” (Tonet, 2012, pTONET, I. Educação contra o Capital. 2. ed. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.. 68). No que se refere ao sentido integral da formação dos sujeitos, a concepção freireana de educação situa os homens “no interior do patamar humano o mais livre possível” (Tonet, 2012, pTONET, I. Educação contra o Capital. 2. ed. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.. 68).

Ética, educação e emancipação se articulam na luta contra a opressão, mas estabelecem relações qualitativas de aprimoramento do comportamento social com a capacidade de empatia, de organicidade, de responsabilidades coletivas. Essas novas relações fortalecem a livre expressão e ação dos trabalhadores e das trabalhadoras pela conquista da emancipação humana.

Essas relações buscam criar e recriar a realidade concreta por condições de liberdade. A citação a seguir demonstra esse processo:

Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais (Freire, 1987, pFREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1987.. 50).

A visão emancipatória envolve o(a) educador(a) em um processo educativo que aborda o conhecimento como esforço crítico de desvelamento da realidade, ao mesmo tempo em que salienta seu engajamento político. É no engajamento político que o(a) educador(a) se encontra com o povo de modo que “se conscientizam através do movimento dialético entre a reflexão crítica sobre a ação anterior e a subsequente ação no processo daquela luta” (Freire, 1981, pFREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.. 88).

Realizar a educação libertadora implica a conquista da transformação revolucionária da sociedade. Para Freire (1981)FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981., buscar a instauração da educação libertadora sem o engajamento político na revolução converte-se em ingenuidade ou em esperteza.

A ingenuidade expressa a crença na capacidade das classes dominantes em amenizar os problemas, conflitos e contradições sociais. A aceitação ingênua dessa perspectiva educa os(as) explorados(as), dominados(as) e oprimidos(as) para o consenso em torno de proposições paliativas (Freire, 1981FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.).

A esperteza diz respeito a traduzir a educação a partir de mudanças meramente técnicas. Expressar o engajamento político em pura e simples inovação tecnológica esvazia a perspectiva da educação libertadora, recaindo na mesma distorção ideológica da domesticação dos povos que a ingenuidade (Freire, 1981FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.).

Evitar tergiversações em torno da ingenuidade e da esperteza, implica assumir um posicionamento aderente às proposições e ações populares, respaldado na educação libertadora voltada para a emancipação do ser humano. Os riscos assumidos por esse posicionamento poderiam proporcionar, para o autor de “Ação cultural para a liberdade e outros escritos”, desafios inéditos de construção da nova sociedade.

Pode-se considerar que Freire (1981)FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. vislumbrou como contribuição para o desafio inédito da construção da nova sociedade a difusão da educação libertadora. Entretanto, tinha a convicção de que essa difusão só poderia se materializar por meio de revolucionários(as) do trabalho social.

Foi nessa concepção que Freire (1981)FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. insistiu que a educação libertadora cabia a educadores(as) de diferentes áreas sociais como a saúde, a assistência, a religião, o partido, a escola. Em sua opinião, a articulação de educadores(as) de diferentes áreas contribuiria para que o valor ético da liberdade fosse progressivamente se ampliando pela consolidação de um trabalho social e potencializasse o processo revolucionário em torno da emancipação.

Conclusão

O primeiro quartel do século XXI se caracterizou pelo aprofundamento da crise sistêmica do Capital (Mészáros, 2002MÉSZÁROS, I. Para além do Capital: rumo a uma teoria da transição. Campinas: Editora da UNICAMP; São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.) motivada e motivando contradições sociais e ambientais que a ameaçam as condições da existência humana. Esse contexto requer resgatar abordagens e propostas educacionais que se contraponham às perspectivas dominantes, que insistem na preservação de processos de formação voltados para a adaptação dos sujeitos às exigências ideopolíticas do sistema do Capital, especialmente aquelas pautadas nas inovações técnico-científico-informacionais (Antunes, 2018ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.).

A práxis educativa freireana se situa nesse resgate porque coloca a ética com um sentido que supera tanto a meritocracia, que se estabelece como um consenso que orienta a conformação social em torno da neutralidade do conhecimento, quanto o moralismo conservador que, ao apregoar a exaltação à Deus, à Família, a Pátria, resulta em movimentos e atos políticos preconceituosos, persecutórios e violentos contra grupos e frações da classe trabalhadora. Na sociedade e na educação brasileiras, esses movimentos e atos políticos indicam os avanços do neoliberalismo, combinado com uma pauta de orientação fascista (Antunes, 2020ANTUNES, R. Dois anos de desgoverno: a política da caverna, 2020. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/607160-dois-anos-de-desgoverno-a-politica-da-caverna-artigo-de-ricardo-antunes. Acesso em: 17 set. 2023.
https://www.ihu.unisinos.br/categorias/6...
) manifesta na tentativa de cassação à liberdade de cátedra e na difusão da ideologia de gênero.

A própria produção política e intelectual de Paulo Freire foi e é objeto de retaliação por parte do neoliberalismo fascista, fundamentalmente pelo valor ético de sua obra em favor da liberdade humana. Como uma das alternativas possíveis dessa construção, resgatar a práxis educativa freireana nas condições da atualidade significa apontar para um conhecimento comprometido com a ascensão histórica da humanidade, sem exploração, sem dominação, sem opressão.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • Agência financiadora

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação O autor consente a publicação do presente manuscrito.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.

Referências

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  • ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
  • ANTUNES, R. Dois anos de desgoverno: a política da caverna, 2020. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/607160-dois-anos-de-desgoverno-a-politica-da-caverna-artigo-de-ricardo-antunes Acesso em: 17 set. 2023.
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  • VÁZQUEZ, A. S. Ética Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2023
  • Aceito
    28 Mar 2024
  • Revisado
    06 Maio 2024
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