Acessibilidade / Reportar erro

Carvão, economia e política no sul catarinense: um ensaio inspirado em Gramsci

Coal, economy and politics in the south of Santa Catarina: an essay inspired by Gramsci

Resumo

Processos de declínio econômico, não raro motivadores de ações institucionais de apoio à reconfiguração de estruturas produtivas, costumam provocar reações dos grupos atingidos em defesa de seus interesses. Experiências registradas indicam ocorrência de articulações entre classes nessas situações, cuja análise tem nas ideias gramscianas sobre hegemonia e bloco histórico importante inspiração e suporte. Este estudo ocupa-se das grandes mudanças ocorridas entre os anos 1980 e 1990 no setor carbonífero do sul de Santa Catarina, área com destaque na produção desse minério. A pretensão é contextualizar a inflexão na trajetória do setor e, recorrendo àquelas ideias de Gramsci, analisar seus desdobramentos, que foram crivados de agudos embates sociais. Nestes, porém, observou-se não só antagonismo de classe, mas também convergência de interesses em certas ações.

Palavras-chave:
Carvão; Hegemonia; Bloco histórico; Crise regional; Conflito

Abstract

Social groups hit by processes of economic decline, and harmed by institutional measures aimed at promoting productive restructuring, usually react in defense of their interests. It is not uncommom that articulations between classes take place in such situations, as recorded in the literature, and Gramsci’s ideas about hegemony and historical bloc are important tools for their analysis. This study looks at the major changes that occurred between the 1980s and 1990s in the coal sector in the southern region of Santa Catarina, an area that historically stands out in the corresponding activities. The intention is to contextualize the inflection in the trajectory of the sector and, resorting to those ideas of Gramsci, to analyze its consequences. These were riddled with sharp social clashes, but not only class antagonism was observed: there was also a convergence of interests in certain initiatives.

Keywords:
Coal; Hegemony; Historical bloc; Regional crisis; Conflict

Introdução

A literatura sobre desenvolvimento regional registra processos de declínio econômico, com seus reflexos, em que não raramente surgiram articulações sociais improváveis em outras circunstâncias. Críticas à ação do Estado e reivindicações, em lutas de base territorial, emergem nesses cenários, geralmente assimilados a crises regionais.

Inspirado nessa literatura, este estudo focaliza a região carbonífera do sul catarinense, especificamente a drástica inflexão ocorrida nas respectivas atividades entre os anos 1980 e 1990. O objetivo é contextualizar essa mudança e propor interpretação das repercussões, mormente os conflitos envolvendo os mineiros, com base nas ideias de hegemonia e bloco histórico, de Antonio Gramsci. Essa intenção determinou procedimento que combinou pesquisa bibliográfica e documental — inclusive com busca de detalhes dos conflitos em arquivos de jornais (locais e extralocais) — e exercício analítico-interpretativo escorado naquelas ideias.

O artigo tem três partes, além desta introdução e da conclusão. Na próxima, para situar o assunto, fala-se sobre mudanças em regiões de mineração, destacando as lutas sociais e suas análises. Depois aborda-se o percurso do setor carbonífero no sul de Santa Catarina, entrado em declínio ao final dos anos 1980. Em seguida perscruta-se o território do carvão com apoio em Gramsci: argumenta-se que a força do minério transcendeu a economia e nutriu um vinculado bloco histórico, sob hegemonia dos mineradores; embates marcaram as relações entre estes e os mineiros em meio à crise, mas também houve convergência de interesses.

Mudanças econômicas e lutas em regiões mineiras

A trajetória do capitalismo é crivada de processos de crise e reestruturação produtiva geradores de problemas regionais. As abordagens costumam salientar a situação de regiões industriais que amargaram desativação ou abandono de atividades e regressão econômica. Áreas de mineração têm destaque nessa literatura. Várias, especialmente carboníferas, sobressaíram na hierarquia industrial no percurso do capitalismo, mas, sobretudo na Europa, declinaram fortemente na segunda metade do século XX, refletindo circunstâncias do II Pós Guerra. Em geral, essa degradação nas condições locais traduz-se em questão ou crise regional quando movimentos políticos e lutas surgem ou se agudizam em consequência. O alvo, em regra, é o Estado central, com suas medidas de desativação de atividades pouco competitivas e tentativas de reconversão econômica local.

Aspecto a ressaltar é que esses movimentos não raro exibem alianças entre grupos sociais com distintos interesses e condições de vida. Estudando ocorrências europeias entre os anos 1970 e 1980, Hudson e Sadler (1986, pHUDSON, R.; SADLER, D. Contesting works closures in Western Europe’s old industrial regions: defending place or betraying class? In: SCOTT, A. J.; STORPER, M. (Eds.). Production, work, territory: the geographical anatomy of industrial capitalism. Winchester: Allen & Unwin, 1986, p. 172–193.. 181, tradução nossa) registraram que a desativação, pelo Estado, de atividades carentes de competitividade motivou não poucas

[...] alianças de base territorial, constituídas para o objetivo específico de fazer oposição aos fechamentos, envolvendo um maior espectro de grupos sociais e interesses e atravessando limites de classe [...]. Uma vez formada a aliança, seu subsequente desenvolvimento ou dissolução torna-se parte integral das lutas competitivas para preservar fábricas particulares, na medida em que a defesa do lugar, de interesses comuns territorialmente definidos, transcende, ao menos por um tempo, relações de classe antagonistas [...].

São diversas as ilustrações possíveis. Situação bem estudada refere-se, por exemplo, à siderurgia no Leste França desde os anos 1970 (Carney, 1980CARNEY, J. Regions in crisis: accumulation, regional problems and crisis formation. In: CARNEY, J.; HUDSON, R.; LEWIS, J. (Eds.). Regions in crisis: new perspectives in European regional theory. London: Croom Helm, 1980. p. 28–59.). Também é o caso do colapso da mineração de carvão e do insucesso dos programas públicos de modernização econômica na Escócia, na década de 1960, seguidos nos 1980 pelos desdobramentos da desativação de siderúrgicas (Hudson; Sadler, 1986HUDSON, R.; SADLER, D. Contesting works closures in Western Europe’s old industrial regions: defending place or betraying class? In: SCOTT, A. J.; STORPER, M. (Eds.). Production, work, territory: the geographical anatomy of industrial capitalism. Winchester: Allen & Unwin, 1986, p. 172–193.). Na Bélgica, a ação governamental para modernizar a indústria no início dos anos 1960 ensejou lutas que se disseminaram e foram marcadas por forte violência (Baeten; Swyngedouw; Albrechts, 1999BAETEN, G.; SWYNGEDOUW, E.; ALBRECHTS, L. Politics, institutions and regional restructuring processos: from managed growth to planned fragmentation in the reconversion of Belgium’s last coal mining region. Regional Studies, v. 33, n. 3, p. 247–258, 1999.).

Instrumento fértil à abordagem de processos desse tipo, com alianças regionais que ao menos temporariamente cruzam limites de classe, é a ideia de bloco (hegemônico) histórico regional, presente na análise de Gramsci (1987)GRAMSCI, A. Alguns temas da questão meridional. In: GRAMSCI, A. A questão meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 [1926]. p. 135-165. sobre o sul da Itália, elaborada em 1926. O assunto emerge de essencial aporte gramsciano à teoria política, em que sobressai a visão de que, para tomar o poder, deve-se protagonizar “guerra de posição”, ocupando espaços na sociedade civil e logrando obter o consenso da maioria, com a conquista da liderança política e ideológica.

Questão-chave refere-se à hegemonia, incrustada nas duas esferas superestruturais da sociedade: a da sociedade civil e a da sociedade política ou do Estado. Ambas “[...] correspondem, respectivamente, à função de ‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de ‘domínio direto’ ou de comando, que se expressa no Estado e no governo ‘jurídico’.” (Gramsci, 2001, pGRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. [1929-1935]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. v. 2.. 21). Hegemonia é mais do que dominação: implica consenso social, mostrando-se articuladas dominação e direção política e ideológica. Fruto de embate de ideias e convencimento, a hegemonia conta com o papel dos intelectuais, pessoas como professores, padres e funcionários públicos, protagonistas de funções subalternas da hegemonia social ou do governo político.

Essa concepção de hegemonia é básica na ideia de bloco histórico regional, que exprime a presença, em um território, de estruturas produtivas que propiciam articulações entre classes. Gramsci (1987, pGRAMSCI, A. Alguns temas da questão meridional. In: GRAMSCI, A. A questão meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 [1926]. p. 135-165.. 154) assim se refere ao sul da Itália:

A sociedade meridional é um grande bloco agrário constituído por três estratos sociais: a grande massa camponesa, amorfa e desagregada; os intelectuais da pequena e média burguesia rural e [...] os grandes proprietários de terra e os grandes intelectuais. Os camponeses [...] estão em constante efervescência, mas, como massa, são incapazes de dar uma expressão centralizada às suas aspirações e necessidades. O estrato médio dos intelectuais recebe da base camponesa os impulsos para sua atividade política e ideológica. Os grandes proprietários no campo político e os grandes intelectuais no campo ideológico centralizam e dominam [...] todo este conjunto de manifestações. Como é natural, é no campo ideológico que a centralização se verifica com maior eficácia e precisão.

Bloco histórico, hegemonia, alianças: noções que têm lugar em análises dos reflexos regionais das mudanças econômicas, em particular das reações às adversidades. Quando estas resultam de, ou são impulsionadas por mudanças promovidas pelo Estado, como em reconversão de estruturas produtivas pouco competitivas, não é raro que diferentes grupos sociais se articulem. Florescem e ganham ímpeto alianças com manifestações e lutas em defesa da região e das condições locais, como se blocos históricos regionais se manifestassem vinculando diferentes grupos em torno dos (pretensos) interesses do lugar ou da região.

Gramsci argumenta que o poder das camadas dominantes transcende a capacidade de coerção, a imposição de interesses, e reflete a capacidade e a competência em protagonizar direção ou liderança com aceitação dos dirigidos ou liderados. Deve-se, todavia, assinalar que essa articulação depende do quanto os interesses dos primeiros são apresentados como convergentes com os dos segundos, uma condição que atende, como se falou, pelo nome de hegemonia. Trata-se de importante referência para a reflexão sobre a chamada questão regional em diversas latitudes: com efeito, “O pensamento de Gramsci permite pensar as variações do sistema de hegemonia no tempo e de região em região.” (Lipietz, 2014, pLIPIETZ, A. Gramsci et la Bretagne. Politis, n. 1285, p.1-3, 12 jan. 2014., 1).

Sul catarinense: ascensão e declínio de um bastião carbonífero

Na história econômica do Brasil meridional, dizer sul catarinense significa dizer, antes de tudo, carvão. A presença local desse minério foi constatada já no início do século XIX, mas o contexto da I Guerra Mundial foi que impulsionou o setor, segundo vários estudos (Belolli; Quadros; Guidi, 2002BELOLLI, M.; QUADROS, J.; GUIDI, A. A história do carvão de Santa Catarina. Criciúma: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 2002. v. 1.; Goularti Filho, 2002; Santos, 1997SANTOS, M. A. Crescimento e crise da região sul de Santa Catarina. Florianópolis: Editora da UDESC, 1997.).

Uma trajetória longa e em geral ascendente

As dificuldades para importar carvão na I Guerra Mundial provocaram no sul de Santa Catarina investimentos tanto em minas e lavadores de carvão como no Porto de Imbituba, distante 114 km de Criciúma, epicentro da economia carbonífera e principal núcleo urbano regional. O envolvimento de empresários do Rio de Janeiro promoveu a produção comercial, disso emergindo o que se designou indústria carbonífera. A extensão até Criciúma da Estrada de Ferro Dona Tereza Cristina (em 1919), ligando as áreas de minas ao porto, permitiu enviar carvão aos principais mercados e estimulou mais inversões em mineração. Arrefecido após a guerra, pelo retorno da concorrência das importações, o processo ganhou força sob a Grande Depressão (que afetou a produção mundial de carvão) e com a imposição governamental de cota de consumo do produto nacional. Isso repercutiu no setor, que depois passou a contar com esfera institucional própria: o Conselho Nacional de Minas e Energia, instalado em 1940.

O percurso se beneficiaria do contexto referente à II Guerra Mundial, pela volta dos problemas de abastecimento externo em carvão e a presença de um mercado com certa vitalidade no eixo Rio-São Paulo. As estruturas já instaladas no estado favoreceram o aproveitamento dessas condições, entre as quais sobressaiu a instalação em 1941 da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda. Para produzir aço era preciso carvão de tipo metalúrgico, e Santa Catarina, embora não possuísse as maiores reservas do minério, era o único estado no país com carvão coqueificável; é sugestivo que a CSN tenha logo passado a contar com uma subsidiária no sul catarinense: a Carbonífera Próspera.

Surgiu, assim, um complexo carboenergético no sul catarinense, exibindo: mineração, em municípios como Criciúma (de onde se emancipou Forquilhinha em 1989), Siderópolis, Lauro Müller e Urussanga (que “perdeu” Cocal do Sul em 1991); produção elétrica pela Sociedade Termelétrica do Capivari (SOTELCA), canalizando carvão energético, atualmente função do Complexo Termelétrico Jorge Lacerda; atividades do Lavador de Capivari, na separação entre as partes vapor e metalúrgica do carvão (localizado em distrito do município de Tubarão tornado município de Capivari de Baixo em 1992); Estrada de Ferro Dona Tereza Cristina; Porto de Imbituba, para embarcar rumo ao Sudeste. A origem da mão de obra era diversa: destacavam-se entre os mineiros indivíduos vindos da agropecuária em vários municípios, alguns distantes, e da pesca no litoral sul do estado (Goularti Filho, 2002).

O governo federal atuava amplamente, da extração do minério ao seu transporte. Ações federais — comissões sobre energia elétrica, busca de novos mercados para o carvão ou uso de subprodutos — repercutiam em pesquisa, lavra, beneficiamento, transporte, distribuição e consumo. A intensidade cresceu nos governos militares, como ilustrado pelo papel atribuído ao carvão no Plano de Operações do Projeto Litoral-Sul de Santa Catarina, elaborado pela Superintendência do Desenvolvimento da Região Sul (SUDESUL) no início dos anos 1970 (Plano [...], 1973PLANO de Operações do Projeto Litoral-Sul de Santa Catarina. Porto Alegre: SUDESUL, 1973.).

O caráter de setor com avanços no contraciclo do abastecimento externo apareceu de novo na década de 1970, com os choques do petróleo. O grande encarecimento da energia tornou atraentes as fontes domésticas, mirando-se o álcool para o lugar da gasolina e o carvão para o do óleo combustível. Subsídios importantes e estímulos à maior mecanização da lavra foram praticados, e incentivou-se a substituição do óleo em combustores e gaseificadores, aumentando e diversificando o mercado do carvão. Também encorajador foi o processo de ampliação e multiplicação da capacidade de geração termelétrica.

Como resultado, cresceu fortemente a produção carbonífera entre meados dos anos 1970 e 1980. Na base figuraram a maior mecanização dos processos já existentes e o aumento na capacidade de extração relacionado às novas minas. O Gráfico 1, que informa sobre a produção catarinense de carvão desde o início do século XX, permite observar essa intensificação no período assinalado. Seu gráfico exibe as trajetórias do carvão bruto (Run of Mine – ROM) e do carvão metalúrgico, esta iniciada nos anos 1940, após a instalação da CSN. A trajetória expansiva revela-se também no emprego. Referindo a período iniciado em 1980 e cobrindo dois decênios, o Gráfico 2 mostra uma oscilação dos efetivos em torno de patamar superior a 10 mil, durante quase toda a primeira década. Ao final, em 1989, quase 14 mil estariam engajados.

Gráfico 1
– Produção de carvão mineral em Santa Catarina
Gráfico 2
– Emprego no setor carbonífero de Santa Catarina (1980-2000)

Reversão de tendência e atmosfera de crise

Os Gráficos 1 e 2 também informam uma brusca inflexão na produção e no emprego ao final dos anos 1980. Na primeira, os 19,8 milhões de toneladas de carvão bruto extraídas em 1985 deram lugar aos 7,5 milhões contabilizados em 1990, uma retração de 62% em poucos anos, e o carvão metalúrgico passou de 1,1 milhão de toneladas para 348 mil, recuando 68%. O emprego foi dividido por três entre 1989 e 1990, em contração de 13,7 mil para 4,6 mil. A extração passou a variar em torno de 6 milhões de toneladas de carvão bruto por ano, e os números do carvão metalúrgico indicam término da produção, toda a demanda tornando-se atendida por importações. No emprego, os dados oscilaram, nos anos 1990, no intervalo de 2,5 mil a pouco mais de 4 mil, em trajetória declinante. Em suma, o setor carbonífero catarinense exibia situação, no final dos anos 1980, que autorizava o uso da palavra crise.

Contudo, os processos subjacentes precederam em muito os registros de mudança. Foi importante a supressão gradual dos subsídios pela Comissão Nacional de Energia. Em 1983, retiraram-se todos os que afetavam o preço de venda; o auxílio ao transporte foi mantido, mas sofreu reduções. A recessão da economia brasileira, no período 1981–1983, também afetou, pelos reflexos no consumo. Mais próximo do momento da inflexão, o governo retirou os subsídios remanescentes (para fretes) e a obrigatoriedade de cotas de produção. O início da gestão Collor selou a mudança. A Portaria 801, de 17/09/1990, eliminou a obrigatoriedade de consumir carvão nacional (Brasil, 1990BRASIL. Portaria MINFRA nº 801, de 17 set. 1990. Disponível em: http://legislacao.anp.gov.br/?path=legislacao-federal/portarias/portarias-minfra/1990&item=pminfra-801--1990 Acesso em: 07 fev. 2020.), e determinou-se a liberação dos preços do carvão metalúrgico e energético, a livre importação e a retirada da CSN das atividades carboníferas, o respectivo consumo permanecendo atendido por importações. A produção de carvão energético para gerar termeletricidade foi menos afetada, mas o uso por cimenteiras e outras atividades sofreu abalo com o fim dos subsídios (Santos, 1997SANTOS, M. A. Crescimento e crise da região sul de Santa Catarina. Florianópolis: Editora da UDESC, 1997.).

Aspecto a assinalar, com base em Volpato (2001)VOLPATO, T.G. Vidas marcadas: trabalhadores do carvão. Tubarão: Editora Unisul, 2001., é que o setor pouco avançara em modernização tecnológica desde o período de estímulos governamentais praticados em resposta aos choques do petróleo. Caso avançasse, a concorrência internacional, a partir da desregulamentação, teria sido enfrentada em melhores condições. Razões de custo e a percepção das mineradoras de que o setor é muito sensível às condições de abastecimento energético externo seriam explicações da timidez na melhoria das estruturas produtivas. Seja como for, não parece errado considerar ter sido importante o papel do governo na deflagração da crise: a célere retirada dos subsídios expôs abruptamente a uma forte concorrência atividades que até então gozavam de proteção. Assim, a longa dependência das ações governamentais revelou-se comprometedora quando as regras do jogo se alteraram.

Toda a região carbonífera teria acusado as repercussões. O fim da produção de carvão metalúrgico provocou a desativação do Lavador de Capivari, extinguindo numerosos empregos. Somado aos efeitos no mercado do carvão energético, a reboque do fim dos subsídios, isso engendrou uma queda brusca no movimento da Estrada de Ferro Dona Tereza Cristina e do Porto de Imbituba. A desvinculação da CSN das atividades carboníferas interrompeu o funcionamento da Carbonífera Próspera, sua subsidiária, eliminando centenas de empregos diretos: dados compilados por Goularti Filho (2002)GOULARTI FILHO, A. Formação econômica de Santa Catarina. Florianópolis: Cidade Futura, 2002. mostram que essa unidade chegou a empregar quase 3.300 trabalhadores no início dos 1980; em 1996, último ano das suas operações, o registro era 491.

Devido às interações (os vasos comunicantes) no seio da economia regional, a retração observada há de ter reverberado em encolhimento da produção, do faturamento e do volume de efetivos engajados em atividades industriais e terciárias integrantes da economia carbonífera ou que gravitavam em torno dela. É ilustrativo sobre tal irradiação, o aumento, durante os anos 1990, da intensidade da pobreza em dois municípios que, embora distantes de Criciúma, tiveram forte presença histórica no indicado complexo carboenergético: Capivari de Baixo, onde funcionava o Lavador de Capivari, e Imbituba, em cujo porto o carvão metalúrgico era embarcado para Volta Redonda. Também é revelador o esforço então protagonizado por lideranças políticas do sul catarinense para criar uma Zona de Processamento de Exportações em Imbituba. Embora posteriormente frustrado, o empenho foi divulgado em discursos sobre os efeitos da contração da economia carbonífera e sobre a necessidade de criar alternativas (Lins; Amorim, 2016LINS, H. N.; AMORIM, R. Zonas de Processamento de Exportação: problemática geral e a experiência de Imbituba (SC). Perspectiva Econômica, v. 12, n. 2, p. 72-89, 2016.).

Economia política, hegemonia e lutas: Gramsci ilumina o território do carvão

A expansão carbonífera no sul catarinense não se expressou somente na órbita econômica. Ganharam vulto reverberações de índole sociocultural, traduzidas em simbolismos que incluíram um certo aspecto mítico das práticas mineiras. Mais ainda, a experiência carbonífera se manifestou na forma de viver de grupos da região, influenciando até celebrações.

Um bloco histórico regional?

Adquiriu força a imagem de um território do carvão, tendo como núcleo principal a cidade do carvão ou a capital do carvão, como ficou conhecida Criciúma, o seu histórico centro de gravidade. Essa cidade é assim evocada em importante narrativa sobre a trajetória local-regional, como aponta Teixeira (1996)TEIXEIRA, J. P. Os donos da cidade. Florianópolis: Insular, 1996., para quem tal matriz discursiva é permeada pelo que chama de ideologia da mineração, construída pari passu com a crescente importância econômica do carvão. Essa ideologia manifesta-se, por exemplo, na tradicional Festa de Santa Bárbara — padroeira dos mineiros —, cuja primeira edição, segundo Milanez (1991)MILANEZ, P. Fundamentos históricos de Criciúma. Florianópolis: Ed. do Autor, 1991., ocorreu no final de 1965. Também lhe constitui expressão a frequente exaltação da coragem dos mineiros e a afirmação da identidade social dessa categoria.

Assinale-se que esse não é o único discurso sobre a história local. Criciúma é igualmente referida como cidade das etnias, em alusão às várias origens dos colonizadores da área, definidoras, por assim dizer, do perfil da sociedade (Milanez, 1991MILANEZ, P. Fundamentos históricos de Criciúma. Florianópolis: Ed. do Autor, 1991.). Aqui igualmente se glorifica o heroísmo, mas nesse caso aquele dos primeiros ocupantes perante as adversidades, como sublinhado nos festejos, em 1980, do centenário de Criciúma, celebrado em livro organizado por Arns (1985)ARNS, O. (coord.). Criciúma 1880-1980: a semente deu bons frutos. Florianópolis: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 1985.. Essas festividades institucionalizaram uma festa das etnias, chamada Quermesse.

Ambas as matrizes enaltecem vultos do percurso do território. A que destaca a mineração, embora explore o imaginário social sobre a coragem dos mineiros, costuma exaltar os donos das empresas carboníferas. Não é diferente na outra narrativa, cheia de referências a protagonistas de destaque socioeconômico e político, ligados aos grupos de colonizadores ou seus descendentes. Tudo isso aparece até em nomes de ruas, praças e outros equipamentos urbanos.

Entretanto, no cotejo entre as duas narrativas, mostra-se dominante aquela relacionada à ideologia do carvão. Teixeira (1996, pTEIXEIRA, J. P. Os donos da cidade. Florianópolis: Insular, 1996.. 36) diz sobre Criciúma, com efeito, que

[...] por cinco décadas (entre 1930 e 1980, aproximadamente), um pequeno número de famílias e personalidades, em substituição aos antigos coronéis do comércio, passam a exercer um domínio quase absoluto sobre a vida econômica, política e cultural da cidade. Mas não param por aí. Mesmo com o fim do “exclusivismo da mineração”, os antigos donos das minas continuam mais contemporâneos que os mais tradicionais liberais da cidade.

Assim, cabe reportar-se à realidade regional fazendo uso da ideia de bloco histórico gramsciano, centrado no carvão. Seus integrantes seriam, na camada social (mais) dominante, os empresários da mineração. O estrato dos intelectuais orgânicos, com manifestações abordadas, por exemplo, em Monteiro (2017)MONTEIRO, R. de A. “Com quantos pobres se faz 1 rico?”: modernidade (e crise) na Criciúma do século XX. 2017. 219 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2017., exibiria quadros políticos, técnicos e funcionários em diferentes esferas, em posições ou cargos nos poderes executivo, legislativo e judiciário, e também professores (universitários ou não) e jornalistas (a imprensa local sempre deu destaque à mineração). Na base social encontram-se os mineiros, com nível de organização que fez do sul carbonífero, e de Criciúma em particular, um dos mais fortes baluartes do vigor operário na interlocução com a instância do capital, algo reconhecido não só em Santa Catarina.

Nesse (aqui proposto) bloco histórico, a hegemonia da camada dominante foi longamente construída, à medida que o setor carbonífero se consolidava econômica, social e culturalmente. Em discurso forte e difundido, o carvão era celebrado como pedra angular do desenvolvimento local, esfera das melhores possibilidades em emprego e renda, e, por extensão, mola mestra do progresso social. Numa palavra, evoluiu o entendimento segundo o qual — não obstante o histórico de atritos na interlocução trabalho-capital — o que beneficiava os mineradores, no tocante ao carvão, também favorecia os mineiros. Manifestação da hegemonia dos empresários do carvão, essa visão calou fundo em diferentes meios locais.

Hegemonia, lutas e articulações

Esse território carbonífero, em particular Criciúma, o seu epicentro, ostenta um longo histórico de lutas, com os mineiros sempre reivindicando condições dignas de trabalho e reprodução social. Estudos como Goularti Filho e Livramento (2004)GOULARTI FILHO, A; LIVRAMENTO, A. M. A. do. Movimento operário mineiro em Santa Catarina nos anos 1950 e 1960. In: GOULARTI FILHO, A. (org.). Memória e cultura do carvão em Santa Catarina. Florianópolis: Cidade Futura, 2004. p. 75–95. abordam aspectos dessa tradição de embates. Todavia, as relações entre mineiros e mineradoras mostram-se complexas e nem sempre autorizam análises inspiradas nos tradicionais termos da luta de classes. Teixeira (1996, pTEIXEIRA, J. P. Os donos da cidade. Florianópolis: Insular, 1996.. 37) indica a presença, historicamente, de “[...] uma ligação umbilical, às vezes tácita, outras vezes explícita, entre mineiros e mineradores em defesa dos seus interesses comuns e setoriais, isto é, os interesses pelo carvão [...]”. Nessas interações ocorre, junto à base social, resistência e também cumplicidade: no percurso dessa mineração, há embates e alianças, conforme as circunstâncias.

São úteis à compreensão dessas articulações, espelho da hegemonia da camada dirigente, considerações como as de Volpato (1984, pVOLPATO, T. G. A pirita humana: os mineiros de Criciúma. Florianópolis: Ed. da UFSC/ALESC, 1984.. 116): “Um fato a se registrar é que, em certas ocasiões, as greves dos trabalhadores parecem ser insufladas pelos empresários.” A lógica é clara: aumentos de salários, exigidos pelos mineiros, significavam elevação dos custos das mineradoras e pressão nos preços do minério, que eram administrados pelo governo; este concederia os necessários ajustes em face dos embates. Daí a convergência de propósitos entre mineiros e empresários nesses casos. Também aconteciam práticas sindicais alinhadas com o exercício da hegemonia. Esta assertiva de Volpato (2001, pVOLPATO, T.G. Vidas marcadas: trabalhadores do carvão. Tubarão: Editora Unisul, 2001.. 148) encapsula aspecto importante dessa questão: “Os mineiros não formam [...] um grupo coeso [...].”

De toda maneira, por ocasião das mudanças no setor carbonífero regional ao longo dos anos 1980, lutas intensas foram suscitadas pelo processo de afastamento da CSN das atividades de mineração, com sua posterior privatização, como narrado em Rabelo (2004)RABELO, G. A longa resistência: a luta contra a privatização da CSN em Santa Catarina. In: GOULARTI FILHO, A. (org.). Memória e cultura do carvão em Santa Catarina. Florianópolis: Cidade Futura, 2004. p. 293-318.. A situação da empresa piorava havia anos, e em 1988 e 1989 foram desativadas minas em municípios vizinhos de Criciúma. A multiplicação dos desligamentos agravou as condições de muitas famílias, gerando prolongadas e agudas reações dos trabalhadores, com ocupação de instalações, manifestações e passeatas.

É sugestivo que a imprensa de circulação nacional estampasse títulos destacando invasões de minas e medidas extremas como incêndios de caminhões (Trabalhadores [...], 1991TRABALHADORES da CSN invadem minas no Sul. Folha de S. Paulo, p. 3-7, 13 ago. 1991.; Mineiros [...], 1991MINEIROS põem fogo em três caminhões de empresa em SC. Folha de S. Paulo, p. 1-4, 17 dez. 1991.). Estava em jogo, no final de 1991, a recontratação de trabalhadores demitidos em 1990, quando da extinção das atividades locais da CSN. Na privatização, no início do segundo semestre de 1991, prometera-se que dezenas de mineiros seriam reaproveitados pelo novo proprietário. Contudo, nada ocorrera até meados de dezembro daquele ano, razão pela qual os mineiros radicalizaram as suas ações.

Esses episódios ilustram atitudes com sentido de confronto, fieis ao espírito das tradicionais lutas entre o trabalho e o capital, interlocução social clássica no capitalismo. Mas esse tipo de relação não caracterizou todos os movimentos observados.

Um importante desdobramento ocorreu alguns anos depois. Em meados de novembro de 1996, a imprensa catarinense noticiou com destaque graves conflitos em Criciúma entre mineiros e policiais (Machado, 1996ªMACHADO, A. Confronto entre polícia e mineiros. Diário Catarinense, p. 35, 13 nov. 1996ª.). A motivação dos primeiros prendia-se à decisão dos vereadores do município, em sessão do dia 12 daquele mês, de vetar qualquer alteração em lei ambiental que proibia a mineração nos morros Estevão e Albino, situados em área protegida por abrigar atividades agropecuárias de cunho familiar e importantes recursos ambientais.

Na reação dos mineiros, o Fórum Municipal foi apedrejado — “Mineiros depredam fórum”, foi uma manchete estadual no dia seguinte (Mineiros [...], 1996ªMINEIROS depredam fórum. A Notícia, p. A-4, 13 nov. 1996ª.) — e desencadearam-se confrontos que foram sintetizadas como “batalha campal” (Machado; Virtuoso, 1996MACHADO, A.; VIRTUOSO, Z. Cidade conta prejuízos após a batalha campal. Diário Catarinense, p. 4-5, 14 nov. 1996.). Agressões com paus, pedras e gás lacrimogêneo marcaram o cenário no centro da cidade; funcionários do Fórum, onde ocorrera a reunião dos vereadores, ficaram retidos; policiais invadiram a sede do Sindicato dos Mineiros em busca de refugiados e provocaram danos. Segundo Machado e Virtuoso (1996, pMACHADO, A.; VIRTUOSO, Z. Cidade conta prejuízos após a batalha campal. Diário Catarinense, p. 4-5, 14 nov. 1996.. 4), “A proporção do confronto assustou a todos [...]”, tanto que foi preciso hospitalizar feridos. Os acontecimentos ganharam divulgação nacional e diversas prisões foram realizadas, sob grande tensão (Mineiros [...], 1996bMINEIROS e policiais se confrontam em SC. Folha de S. Paulo, p. 2-11, 14 nov. 1996b.; O Estado [...], 1996O ESTADO. Clima ainda é tenso em Criciúma após confronto. O Estado, p. 7, 14 nov. 1996.). Dias depois, uma greve de fome dos presos foi coroada por libertação mediante pagamento de fiança (Nove [...], 1996NOVE mineiros presos fazem greve de fome. Diário Catarinense, p. 34, 19 nov. 1996.; Mineiros [...], 1996cMINEIROS libertados após fiança. Diário Catarinense, p. 33, 20 nov. 1996c.).

Pesquisas como Silva (2002)SILVA, F. J. B. Conflitos de uso em área de proteção ambiental: água, mineração e agricultura. 2002. 167 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2002., Campos (2003)CAMPOS, E. C. de. Territórios deslizantes: recortes, miscelâneas e exibições na cidade contemporânea: Criciúma (SC) (1980-2002). 2003. 222 f. Tese (Doutorado em História Cultural) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003. e Silva (2019)SILVA, M. J. A. Indústria carvoeira e degradação: decrescimento como perspectiva de superação da problemática socioambiental no sul catarinense. 2019. 298 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. permitem contextualizar esses acontecimentos. Os morros Estêvão e Albino foram contemplados na criação de Área de Proteção Ambiental (APA), pela Lei nº 2.459, de 8 de junho de 1990, atendendo a interessados em evitar a mineração — basicamente agricultores locais que queriam preservar recursos hídricos e terras para cultivo. A subsidiária local da CSN detinha a concessão de mineração nesse local, mas extraiu carvão, até maio de 1990, em áreas adjacentes à superfície protegida. A privatização da CSN transferiu a concessão ao comprador, um investidor local que rebatizou a empresa como Companhia Nova Próspera Mineração S.A. (CNPM). Em maio de 1995, moradores dos morros Estêvão e Albino descobriram marcas de sonda no local; inquietos, mobilizaram-se e lograram provocar reuniões a respeito na Câmara de Vereadores. O promotor público presente sugeriu uma ação pública, ao que se seguiram providências para repertoriar os recursos ambientais da APA. Entregue ao Centro da Promotoria da Coletividade, o estudo motivou nova mobilização, levando a Câmara a ampliar, em novembro de 1995 — através de nova lei —, a superfície protegida de 2.970 para 3.600 hectares, bloqueando práticas ambientalmente danosas.

Esgotada a mineração da CNPM perto dos morros Estêvão e Albino (logo, da APA), a empresa interessou-se pela jazida lá existente. Explorá-la, porém, exigiria reduzir a área preservada para 1.500 hectares, conforme projeto da CNPM, para o que seria preciso alterar a lei que ampliara a extensão da APA. Esse pleito tinha apoiadores que incluíam órgãos estaduais de defesa do meio ambiente, além de instituições setoriais nacionais, políticos em várias esferas jurisdicionais e o Sindicato da Indústria da Extração de Carvão do Estado de Santa Catarina. Também o Sindicato dos Mineiros apoiava a demanda: a negativa de mudança na lei de proteção representaria o fim da mineração no município, já que se tratava da derradeira possibilidade nesse sentido naquele território (Machado, 1996bMACHADO, A. O fim da última mina de Criciúma. Diário Catarinense, p. 38, 17 nov. 1996b.).

A escalada de atitudes da empresa era sugestiva do que se desenhava. A CNPM questionou judicialmente a capacidade do município para atuar a respeito do meio ambiente, mas foi derrotada, sendo mantido o veto à mineração. A inquietação crescia, pois, desfiles de tratores e máquinas agrícolas pela cidade expressavam as posições contrárias à mineração. Por seu turno, como a justiça legitimara a atuação do município sobre o assunto, “O Sindicado dos mineiros inicia campanha para [a] derrubada da lei.” (Campos, 2003, pCAMPOS, E. C. de. Territórios deslizantes: recortes, miscelâneas e exibições na cidade contemporânea: Criciúma (SC) (1980-2002). 2003. 222 f. Tese (Doutorado em História Cultural) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003.. 143). O Projeto de Lei nº 05/95, encampado por alguns vereadores, contemplava a alteração. A atmosfera tornou-se ainda mais tensa quando a CNPM anunciou a paralisação das atividades de uma mina perto do Morro Estêvão, em julho de 1996, dando aviso prévio aos 480 mineiros.

Diante das circunstâncias, a Câmara dos Vereadores contratou estudos técnicos independentes para aferir o real significado da exploração de carvão naqueles morros. Esse passo foi decisivo: com base nos laudos, o legislativo municipal — em reunião várias vezes adiada e transferida para o Fórum por razões de segurança — acabou por rejeitar por doze votos a oito, em 12 de novembro daquele ano, o projeto de lei cujo conteúdo interessava à CNPM.

O que se quer sublinhar é que trabalho e capital uniram-se em torno da mineração nesse episódio. De fato, Campos (2003, pCAMPOS, E. C. de. Territórios deslizantes: recortes, miscelâneas e exibições na cidade contemporânea: Criciúma (SC) (1980-2002). 2003. 222 f. Tese (Doutorado em História Cultural) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003.. 143–144) assinalou que “Mineradores e mineiros, que de longa data sempre tiveram um relacionamento difícil, agora estavam juntos. Uns não querendo perder as benesses que o carvão havia lhes fornecido, outros desejando manter seu emprego.” Silva (2002, pSILVA, F. J. B. Conflitos de uso em área de proteção ambiental: água, mineração e agricultura. 2002. 167 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2002.. 95) foi mais longe, destacando que

O patrão (empresário) dizia estar do lado dos mineiros na luta pela permissão da mineração no subsolo da APA Estêvão/Albino, ao tempo que discursava promessas de cessão de cotas de participação nos lucros e cessão de cotas de propriedade da empresa ao Sindicado dos Mineiros [...].

Tal aceno só fez lubrificar o envolvimento dos trabalhadores na defesa do interesse da mineradora.

É significativo que, no dia da reunião, segundo Machado (1996ªMACHADO, A. Confronto entre polícia e mineiros. Diário Catarinense, p. 35, 13 nov. 1996ª., p. 35), “Caminhões e máquinas que pertenciam à Nova Próspera ficaram parados em frente ao Fórum [...]”. Nada menos que “Sete caminhões da Carbonífera Nova Próspera reforçaram a movimentação.” (Mineiros [...], 1996ªMINEIROS depredam fórum. A Notícia, p. A-4, 13 nov. 1996ª., p. A-4). Seria exagerado dizer que mineiros e mineradores se aliaram (também) contra o Estado, na dimensão local deste, como testemunhado em outras experiências mundo afora, conforme tangenciado no artigo? É como se o bloco histórico regional escorado no carvão, permeado pela ideologia da mineração que se entrelaçou com — e azeitou — o exercício da hegemonia na camada dirigente local, reagisse ao que considerou como ataque a seus benefícios, ou às atividades de um setor sempre exaltado nos discursos e ações como sinônimo das melhores possibilidades socioeconômicas locais.

Tomada pelo valor de face, a atitude dos mineiros significou defesa do prolongamento de um tipo de atividade que prejudicou o patrimônio ambiental e causou doenças que abreviaram a vida profissional de muitos. Assim, sua conduta na erupção de novembro de 1996, em articulação com os interesses da mineradora, refletiu a expectativa de que a retirada das restrições à mineração nos morros Estêvão e Albino representaria empregos por mais algum tempo. A aceitação de um trade off entre qualidade ambiental e chance de trabalho, implícita na defesa da alteração da lei protetora, espelharia a gravidade das condições sociais vivenciadas.

Considerações finais

Como assinalado na introdução, pretendia-se nesta pesquisa contextualizar e caracterizar a inflexão, ocorrida entre os anos 1980 e 1990, na trajetória das atividades carboníferas protagonizadas no sul de Santa Catarina. Objetivava-se igualmente analisar os desdobramentos da débâcle no setor mormente na forma de embates sociais na região, para o que se recorria às ideias de hegemonia e bloco histórico utilizadas por Gramsci.

Observou-se que, após percurso expansivo que consolidou o carvão como esteio da economia regional, instalou-se encadeamento de ações governamentais no bojo do qual a vulnerabilidade do setor ganhou evidência e se aprofundou. Em curto espaço de tempo, a economia do carvão mergulhou em marcada descendência, como inequivocamente traduzido nos números sobre produção e emprego. O complexo carboenergético, constituído ao longo de décadas na porção meridional do território catarinense, acabou inapelavelmente atingido.

As consequências sociais dessa derrocada, notadamente junto aos mineiros, cevaram ou intensificaram conflitos representativos de prolongamento de um tipo de interlocução social que pontuou a história regional: embate entre trabalho e capital no âmbito da economia carbonífera. Mas o constituído bloco histórico regional estribado no carvão — exibindo hegemonia dos mineradores e tendo como base social os mineiros, como se propôs no curso da análise — também apresentou, talvez de maneira mais estridente do que no passado, embates nos quais os interesses do capital e do trabalho cerraram fileiras do mesmo lado, tendo como alvo básico a esfera pública. Esse tipo de articulação, entre a camada protagonista da hegemonia e a base social implicada, não constitui algo inusitado, pelo que se nota em literatura interessada, e a perspectiva gramsciana incrustada na ideia de bloco histórico mostra-se útil à sua análise.

  • Agência financiadora

    Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de ética e consentimento

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação

    O autor consente a publicação do presente manuscrito.

Referências

  • ARNS, O. (coord.). Criciúma 1880-1980: a semente deu bons frutos. Florianópolis: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 1985.
  • BAETEN, G.; SWYNGEDOUW, E.; ALBRECHTS, L. Politics, institutions and regional restructuring processos: from managed growth to planned fragmentation in the reconversion of Belgium’s last coal mining region. Regional Studies, v. 33, n. 3, p. 247–258, 1999.
  • BELOLLI, M.; QUADROS, J.; GUIDI, A. A história do carvão de Santa Catarina. Criciúma: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 2002. v. 1.
  • BRASIL. Portaria MINFRA nº 801, de 17 set. 1990. Disponível em: http://legislacao.anp.gov.br/?path=legislacao-federal/portarias/portarias-minfra/1990&item=pminfra-801--1990 Acesso em: 07 fev. 2020.
  • CAMPOS, E. C. de. Territórios deslizantes: recortes, miscelâneas e exibições na cidade contemporânea: Criciúma (SC) (1980-2002). 2003. 222 f. Tese (Doutorado em História Cultural) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003.
  • CARNEY, J. Regions in crisis: accumulation, regional problems and crisis formation. In: CARNEY, J.; HUDSON, R.; LEWIS, J. (Eds.). Regions in crisis: new perspectives in European regional theory. London: Croom Helm, 1980. p. 28–59.
  • GOULARTI FILHO, A. Formação econômica de Santa Catarina Florianópolis: Cidade Futura, 2002.
  • GOULARTI FILHO, A; LIVRAMENTO, A. M. A. do. Movimento operário mineiro em Santa Catarina nos anos 1950 e 1960. In: GOULARTI FILHO, A. (org.). Memória e cultura do carvão em Santa Catarina Florianópolis: Cidade Futura, 2004. p. 75–95.
  • GRAMSCI, A. Alguns temas da questão meridional. In: GRAMSCI, A. A questão meridional Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 [1926]. p. 135-165.
  • GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere [1929-1935]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. v. 2.
  • HUDSON, R.; SADLER, D. Contesting works closures in Western Europe’s old industrial regions: defending place or betraying class? In: SCOTT, A. J.; STORPER, M. (Eds.). Production, work, territory: the geographical anatomy of industrial capitalism. Winchester: Allen & Unwin, 1986, p. 172–193.
  • LINS, H. N.; AMORIM, R. Zonas de Processamento de Exportação: problemática geral e a experiência de Imbituba (SC). Perspectiva Econômica, v. 12, n. 2, p. 72-89, 2016.
  • LIPIETZ, A. Gramsci et la Bretagne. Politis, n. 1285, p.1-3, 12 jan. 2014.
  • MACHADO, A. Confronto entre polícia e mineiros. Diário Catarinense, p. 35, 13 nov. 1996ª.
  • MACHADO, A. O fim da última mina de Criciúma. Diário Catarinense, p. 38, 17 nov. 1996b.
  • MACHADO, A.; VIRTUOSO, Z. Cidade conta prejuízos após a batalha campal. Diário Catarinense, p. 4-5, 14 nov. 1996.
  • MILANEZ, P. Fundamentos históricos de Criciúma Florianópolis: Ed. do Autor, 1991.
  • MINEIROS depredam fórum. A Notícia, p. A-4, 13 nov. 1996ª.
  • MINEIROS e policiais se confrontam em SC. Folha de S. Paulo, p. 2-11, 14 nov. 1996b.
  • MINEIROS libertados após fiança. Diário Catarinense, p. 33, 20 nov. 1996c.
  • MINEIROS põem fogo em três caminhões de empresa em SC. Folha de S. Paulo, p. 1-4, 17 dez. 1991.
  • MONTEIRO, R. de A. “Com quantos pobres se faz 1 rico?”: modernidade (e crise) na Criciúma do século XX. 2017. 219 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2017.
  • NOVE mineiros presos fazem greve de fome. Diário Catarinense, p. 34, 19 nov. 1996.
  • O ESTADO. Clima ainda é tenso em Criciúma após confronto. O Estado, p. 7, 14 nov. 1996.
  • PLANO de Operações do Projeto Litoral-Sul de Santa Catarina. Porto Alegre: SUDESUL, 1973.
  • RABELO, G. A longa resistência: a luta contra a privatização da CSN em Santa Catarina. In: GOULARTI FILHO, A. (org.). Memória e cultura do carvão em Santa Catarina Florianópolis: Cidade Futura, 2004. p. 293-318.
  • SANTOS, M. A. Crescimento e crise da região sul de Santa Catarina Florianópolis: Editora da UDESC, 1997.
  • SANTOS, M. A. Os mineiros em Santa Catarina: emprego, salários, relação capital x trabalho e produtividade da mão-de-obra (1980–1999). História Econômica & História de Empresas, v. VIII, n. 2, p. 91–121, 2005.
  • SIECESC – Sindicato da Indústria da Extração de Carvão do Estado de Santa Catarina. Carvão mineral: dados estatísticos: ano 2000. Criciúma, SC: SIECESC, 2000. Disponível em: http://www.siecesc.com.br/dados_estatisticos Acesso em: 23 jan. 2020.
    » http://www.siecesc.com.br/dados_estatisticos
  • SIECESC – Sindicato da Indústria da Extração de Carvão do Estado de Santa Catarina. Carvão mineral: dados estatísticos: ano 2011. Criciúma, SC: SIECESC, 2011. Disponível em: http://www.siecesc.com.br/dados_estatisticos Acesso em: 23 jan. 2020.
    » http://www.siecesc.com.br/dados_estatisticos
  • SIECESC – Sindicato da Indústria da Extração de Carvão do Estado de Santa Catarina. Carvão mineral: dados estatísticos: ano 2018. Criciúma, SC: SIECESC, 2018. Disponível em: http://www.siecesc.com.br/dados_estatisticos Acesso em: 23 jan. 2020.
    » http://www.siecesc.com.br/dados_estatisticos
  • SILVA, F. J. B. Conflitos de uso em área de proteção ambiental: água, mineração e agricultura. 2002. 167 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2002.
  • SILVA, M. J. A. Indústria carvoeira e degradação: decrescimento como perspectiva de superação da problemática socioambiental no sul catarinense. 2019. 298 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
  • TEIXEIRA, J. P. Os donos da cidade Florianópolis: Insular, 1996.
  • TRABALHADORES da CSN invadem minas no Sul. Folha de S. Paulo, p. 3-7, 13 ago. 1991.
  • VOLPATO, T. G. A pirita humana: os mineiros de Criciúma. Florianópolis: Ed. da UFSC/ALESC, 1984.
  • VOLPATO, T.G. Vidas marcadas: trabalhadores do carvão. Tubarão: Editora Unisul, 2001.

Editado por

Editores Responsáveis

Michelly Laurita Wiese – Editora-chefe
Fabiana Luiza Negri – Comissão Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2023
  • Aceito
    18 Nov 2023
  • Revisado
    29 Maio 2024
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina , Centro Socioeconômico , Curso de Graduação em Serviço Social , Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima, 88040-900, Tel. +55 48 3721 6524 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: revistakatalysis@gmail.com