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Marcas identitárias do ser mãe na prisão

Identity marks of being a mother in prison

Resumo:

Neste estudo buscou-se compreender as percepções e os sentimentos da mulher em situação de cárcere, que enfrenta a separação dos filhos devido ao encarceramento. Trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo e exploratório, desenvolvida durante os meses de maio e junho de 2023 com dez mulheres em situação de cárcere em uma cadeia feminina e que possuíam filhos menores de 15 anos em convivência intra ou extramuros. Como técnica de coleta de dados, utilizou-se a entrevista semiestruturada, sendo as narrativas transcritas e organizadas de acordo com os núcleos de sentido, possibilitando a análise sob o viés da hermenêutica dialética. As convergências, divergências, complementaridades e diferenças evidenciaram o sofrimento da mulher em situação de cárcere tanto pela condição em que está inserida, quanto pela repercussão que o encarceramento provoca nos seus filhos e familiares, reverberando nas preocupações intramuros e em estratégias de enfrentamento da separação.

Palavras-chave:
poder familiar; relações mãe-filho; maternidades; prisões; saúde pública

Abstract:

This study aimed to understand the perceptions and feelings of women in prison who face separation from their children due to incarceration. This is a study that has an exploratory qualitative nature, carried out during the months of May and June 2023 with ten women in prison in a female prison and who had children under 15 years of age living within or outside the walls. As a data collection technique, a semi-structured interview was used, with the narratives being transcribed and organized according to the meaning cores so that analysis was possible from the perspective of dialectical hermeneutics. The convergences, divergences, complementarities and differences highlighted the suffering of women in prison, both due to the condition in which they are inserted, and due to the repercussions that incarceration had on their children and family, reverberating in intramural concerns and strategies for coping with separation.

Keywords:
Parenting; Mother-Child Relations; Maternity; Prisons; Public health

Introdução

A maternagem no ambiente prisional é atravessada por diferentes aspectos que envolvem a mãe em situação de cárcere, a família e os filhos, sejam estes de convivência intra ou extramuros. Isso porque, o significativo aumento do encarceramento feminino permite refletir sobre as marcas que o aprisionamento causa na rede socioafetiva da mulher, tendo em vista que o perfil das mulheres em situação de cárcere é caracterizado por 80% de mães, mulheres em idade fértil e grávidas (Brasil, 2021BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN). Brasília: Ministério da Justiça, 2021.).

Tal situação deveria condicionar a existência de uma infraestrutura diferenciada, com espaços específicos e saudáveis para a garantia da manutenção dos vínculos familiares e do binômio mãe-filho, além de proporcionar o resgate da autoestima das mulheres, no entanto, o que é visualizado nas unidades prisionais femininas são fatores que repercutem a diferença de gênero e os enraizamentos misóginos da sociedade (Siqueira; Andrecioli, 2019SIQUEIRA, D. P.; ANDRECIOLI, S. M. A vulnerabilidade das mulheres encarceradas e a justiça social: o importante papel da educação na efetividade no processo de ressocialização. Revista direito em debate, ano XXVIII, n. 51, 2019.). A infraestrutura prisional brasileira viola os direitos humanos, indo de encontro à permanência das pessoas nesse ambiente, e, no que tange ao cárcere feminino, intensifica a vulnerabilidade das mulheres na prisão e limita o convívio intramuros das mães com seus filhos (Arambell; Gebara, 2021ARAMBELL, B. S.; GEBARA, G. Z. O cárcere brasileiro como ambiente violador dos direitos humanos. Revista Reflexão e Crítica do Direito, v. 9, n. 1, 2021.; Silva; Salomão, 2022SILVA, L. D. P.; SALOMÃO, K. R. As condições no cárcere feminino e a fragilidade dos direitos fundamentais. Revista Brasileira de Educação e Inovação da Univel (REBEIS), v. 1, n. 2, 2022.).

Nessa perspectiva, as mães convivem com os sentimentos atrelados à separação dos filhos e às preocupações com o cuidado extramuros, reverberando, direto ou indiretamente, nas estratégias de enfrentamento e resiliência no cárcere. A partir disso, a compreensão da realidade carcerária sob a ótica da maternagem e as repercussões da separação mãe-filho, configura-se como disparador para a discussão de estratégias que priorizem a manutenção do vínculo entre as mães em situação de cárcere e os seus filhos em convívio intra e/ou extramuros, minimizando os impactos do encarceramento sobre a mulher, os filhos e a família. Destaca-se, ainda, que pesquisas com essa temática são limitadas e não representam a magnitude do problema, assim, no sentido de contribuir para o conhecimento e reflexão sobre a maternagem no cárcere, este estudo objetivou compreender as percepções e os sentimentos da mulher em situação de cárcere que enfrenta a separação dos filhos devido ao encarceramento.

Para tanto, este estudo possui caráter qualitativo exploratório, sendo o método escolhido por permitir maior aproximação com o objeto de estudo e por responder questões que não podem ser quantificadas, logo, a pesquisa qualitativa se refere ao universo de significados e proporciona o alcance das profundezas das ações e das relações humanas (Minayo, 2002MINAYO, M. C. S. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: MINAYO, M. C. S.; DESLANDES, S. F. (org.). Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002, p. 83-107.). O cenário da pesquisa foi a Cadeia Pública Feminina de Petrolina (CPFP), situada na região submédia do Vale do São Francisco e distante 800 km de Recife-PE e 500 km de Salvador-BA, a qual possuía, no período da coleta, nos meses de maio e junho, 34 mulheres em situação de cárcere nos regimes semiaberto e fechado.

No que tange às participantes do estudo, foram realizadas dez entrevistas obedecendo o critério de saturação pelo qual a coleta foi interrompida a partir da regularidade de apresentação das concepções, explicações e sentidos abordados pelas participantes. Tendo em vista que a amostragem de forma aleatória não pode ser realizada nesta pesquisa devido à limitação do quantitativo de pessoas na CPFP, as participantes foram escolhidas de forma intencional, cumprindo os seguintes critérios de inclusão: (i) mães em situação de cárcere que estão em cumprimento da pena na Cadeia Pública Feminina de Petrolina-PE; (ii) mães em situação de cárcere que possuíam filhos extramuros menores de 15 anos; e (iii) mães em situação de cárcere que vivenciaram/vivenciam a convivência com o filho na cadeia e passaram/passam pelo processo de separação.

Como ferramentas de pesquisa utilizou-se a entrevista semiestruturada, por esta permitir maior aproximação e produção de dados, de forma a contribuir com o alcance dos objetivos propostos neste estudo. A entrevista semiestruturada se caracteriza pelo espaço que o pesquisado possui para suas explanações de forma livre e espontânea, sendo que a entrevista foi norteada por um instrumento com perguntas disparadoras para evitar possíveis fugas do objeto de estudo e foi previamente agendada com a direção da cadeia com o propósito de seguir os dias e horários em que as participantes estivessem disponíveis para a contribuição com a pesquisa.

A análise e interpretação dos dados desta pesquisa são apresentados à luz da hermenêutica-dialética (Alencar; Nascimento; Alencar, 2012ALENCAR, T. O. S.; NASCIMENTO, M. A. A.; ALENCAR, B. R. Hermenêutica dialética: uma experiência enquanto método de análise na pesquisa sobre o acesso do usuário à assistência farmacêutica. Revista Brasileira de Promoção da Saúde, v. 25, n. 2, 2012.), método que fortalece os processos de subjetivação das pessoas envolvidas na pesquisa e permite a transversalização das convergências, divergências, complementaridades e diferenças identificadas nas falas. Para além disso, a união da hermenêutica com a dialética direciona o pesquisador para a compreensão do texto, da fala e do depoimento como resultado de um processo social e de conhecimento, isso porque, enquanto a hermenêutica se guia pelo consenso e compreensão com base na linguagem e tradição, a dialética estabelece uma relação crítica da realidade, a partir do entendimento dos conflitos e contradições que justificam o dinamismo e transformações da realidade (Ghezzi et al., 2018GHEZZI, J. F. S. A. et al. Aprendizagem no cenário real na perspectiva docente. Atas: Investigação Qualitativa em Educação, v. 1, 2018.).

Destaca-se que a trajetória metodológica para a sistematização da análise dos dados foi guiada pelos passos sugeridos por Minayo e reinterpretados por Assis e Jorge (2010, pASSIS, M. M. A.; JORGE, M. S. B. Métodos de análise em pesquisa qualitativa. In: Santana, J. S. S.; Nascimento, M. A. A. (org.). Pesquisa: métodos e técnicas de conhecimento da realidade Social. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana; 2010. p. 139–59.. 155), quais sejam: organização dos dados, classificação dos dados e análise final dos dados. Nesse contexto, realizou-se a transcrição ipsi literis das entrevistas para que fosse possível a leitura preliminar e identificação dos núcleos de sentido, seguindo da leitura flutuante dos materiais coletados e alocação dos fragmentos das falas para a elaboração das sínteses vertical e horizontal, e, por fim, o aprofundamento do material empírico resultante das etapas que antecederam a análise final dos dados, consistindo na triangulação do material empírico e do referencial teórico.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano (IF SERTÃO-PE) sob parecer de nº 5.246.073. Ademais, para garantir o anonimato, em conformidade com as resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466/2012 e 510/2016, todas as participantes foram identificadas por pseudônimos que retratam pedras preciosas: ágata, ônix, safira, diamante, esmeralda, ametista, aventurina, granada, cornalina e fluorita.

Marcas identitárias do ser mãe na prisão: vivências e sentidos da dupla penalidade

A compreensão de que a separação imposta pelo processo de encarceramento representa um impeditivo para a continuidade do cuidado e funções maternas, reflete a dupla penalidade do aprisionamento feminino ao mesmo passo em que apresenta as implicações advindas do distanciamento e relacionadas ao sofrimento da mulher, dos filhos e da família (Flores et al., 2022FLORES, N. M. P. et al. Maternidade entre grades: a ruptura da convivência entre as mulheres presas e seus filhos. Pensando Famílias, v. 26, n. 1, 2022.). Destaca-se que todas as participantes da pesquisa estavam em regime fechado e, quanto ao local de moradia anterior ao encarceramento, apenas quatro das participantes residiam em Petrolina-PE, local em que está situada a CPFP.

Nessa perspectiva, o fato de a maioria das mães em situação de cárcere na CPFP estarem com suas famílias distantes transversaliza por vários aspectos que interferem no enfrentamento da separação, sobretudo, da díade mãe-filho. Isso porque os impactos do cárcere de uma mãe sobre os filhos transcendem o afetamento sobre o vínculo entre eles, reverberando também sobre os cuidadores que são incumbidos de tal responsabilidade sem a oportunidade de escolha, por não haver outra pessoa disponível para assumir o cuidado dos menores (Arruda; Smeha, 2019ARRUDA, L. F. S.; SMEHA, L. N. Parentalidade (in)desejada: avós e tias que cuidam dos filhos(as) de mulheres presas. PSI UNISC, v. 3, n. 2, 2019.).

Neste estudo, o enfrentamento da separação se desdobra sobre os sentimentos negativos atrelados ao fato de a mãe ter que se ausentar para o cumprimento da pena e sobre as preocupações despertadas devido às condições de cuidado a que os filhos estão expostos. Mediante tal perspectiva, as mães entrevistadas relataram, a seguir, sobre os primeiros pensamentos advindos do contato com o sistema carcerário, os sentimentos associados ao afastamento e as estratégias de enfrentamento diante da separação mãe-filho:

[...] não acreditei que eu tava presa de novo não, não achava que ia ser presa de novo. Então, eu sentia tristeza porque meus filhos ficou sem mim lá fora e sem o pai deles que tá preso também [...] Eu lido melhor quando eu falo com eles, terça e quinta, faço vídeo chamada aí eu vejo eles, falo com eles, aí sei que eles tá bem, aí tudo fica melhor e também vou para a igreja e leio a bíblia (Ônix).

No começo eu chorava todo dia com saudade, mas eu vi que não adiantava, que não ia me levar de volta, aí me acostumei, a gente tem que se acostumar e superar, a gente vai ficando com as lembranças, do dia a dia, de tudo do que viveu com ele. E sabendo, a gente tem a certeza que eles estão lá fora, estão bem e que estão esperando por a gente, isso é o que fortalece a gente aqui dentro e dá um sentido pra acordar todo dia e tá ali, mas muitas vezes é muito difícil, [...] a única coisa que a gente se apegar aqui é Deus (Cornalina).

[...] a primeira coisa que lembrei foi dela. Triste, ódio, me dá é raiva, vontade de pular o muro, pegar ela (filha), mas vai dar tudo certo. Eu me apego muito a Deus, porque se não fosse ele ou eu tava louca, ou tava louca de novo. Quando eu fico muito perturbada do juízo, eu me deito, aí eu oro, aí fico lendo até que passa (Fluorita).

Para as entrevistadas Ônix, Cornalina e Fluorita, a admissão no sistema prisional repercutiu sobre a fragilização do vínculo mãe-filho devido à condição de separação, impactando nos primeiros dias de convívio na cadeia e na ressignificação da ausência a partir das visitas virtuais, das lembranças extramuros e do apego à religiosidade, materializando suas esperanças e se confortando diante das notícias do cuidado que os filhos recebem. Porém, Cornalina complementa que os sentimentos despertados a partir do afastamento não iriam retorná-la para o convívio extramuros com os seus filhos, reverberando sobre a necessidade da superação e enfrentamento das repercussões oriundas do distanciamento.

Considerando a estatística trazida por Friedman, Kaempf e Kauffman (2020), aFRIEDMAN, S. H.; KAEMPF, A.; KAUFFMAN, S. The realities of pregnancy and mothering while incarcerated. J Am Acad Psychiatry Law, v. 48, n. 3, 2020. partir de uma análise das realidades da gravidez e maternidade no cárcere estadunidense, para 85% das mães o encarceramento foi a primeira condição que repercutiu na separação do filho. Tal situação impacta na experiência parental das mães que, no cárcere, são limitadas da construção de um relacionamento efetivo e de confiança com os filhos, além de expor as crianças a condições ameaçadoras que preocupam a mãe e as fazem enfrentar os sentimentos negativos de culpa e frustração por submeter seus filhos às dificuldades associadas à sua ausência (Fowler et al., 2022FOWLER, C. et al. Maternal incarceration: Impact on parent–child relationships. Journal of Child Health Care, v. 26, n. 1, 2022.).

Do mesmo modo, a narrativa da entrevistada Ágata converge para a compreensão dessa discussão, tendo em vista o enfrentamento da situação e adaptação às normas restritivas das unidades prisionais com a esperança de dias melhores para a convivência com os filhos pós-cárcere:

[...] se a gente for pensar muito a gente acaba pesando muito a cadeia, né? a gente não resolve nada, aí a saudade vai apertar [...] eu tinha que aprender a me conformar. Porque aí se eu fosse pensar por esse outro lado aí eu não ia nem na delegacia me entregar se for pensar pro fato de não deixar eles só, mas aí como eu tinha a perspectiva, aquela coisa de todo jeito eu ia, então era melhor eu fazer logo porque aí eu tava aqui, ia perder um tempo fora longe deles né? Mas mais tempo eu tinha perdido correndo da realidade, então quando eu sair daqui eu vou ter tempo suficiente pra aproveitar os momentos perdidos (Ágata).

Assim, na fala de Ágata, observa-se que a conjuntura atrelada a separação mãe-filho estava condicionada a sua decisão de se entregar à polícia, fato que a fez refletir sobre as perspectivas futuras com os filhos, tendo em vista que continuar “correndo da realidade” implicaria em uma maternagem insegura, frágil e superficial que não permitiriam um contato suficientemente proveitoso com as crianças. Segundo Batista e Loureiro (2017)BATISTA, L.; LOUREIRO, A. J. L. “Será que ele vai me chamar de mãe?”: Maternidade e separação na cadeia. Rev. Psicol. Polít., v. 17, n. 38, 2017., as expectativas sobre a relação mãe-filho fora do cárcere, após a liberdade da mãe, são tensionadas pela incerteza que reflete na pergunta disparadora do estudo “será que ele vai me chamar de mãe?”, uma vez que o encarceramento e a distância do filho podem produzir mudanças que dificultem o vínculo pós-cárcere.

Contudo, a narrativa de Ágata aborda o convívio mãe-filho após o encarceramento como uma oportunidade para experienciar os momentos que não puderam ser vivenciados devido à situação de cárcere, resgatando o vínculo e superando os sentimentos atrelados ao sofrimento causado pela separação da díade mãe-filho. Nesse contexto, a abordagem de Ágata vai ao encontro dos resultados da pesquisa realizada por Santos, Hernandes e Oliveira (2020)SANTOS, T. S.; HERNANDES, R. S.; OLIVEIRA, H. F. Mulheres em cárcere: um olhar além das grades dos significados da relação mãe-filho por meio da Terapia Ocupacional. Braz. J. Hea. Rev., v. 3, n. 5, 2020., em que os filhos são apresentados como impulsionadores para o cumprimento da pena e esperança de um futuro melhor com o retorno da figura materna como a principal referência de apego e vínculo sólido pelas crianças.

Diante disso, acreditamos que o conformismo relatado por Ágata e Cornalina indica para a esperança de dias melhores pós-cárcere, bem como para uma estratégia de enfrentamento da separação com vistas a amenizar os sentimentos despertados pelo afastamento, evitando maiores danos a todas as pessoas da rede socioafetiva da mulher e minimizando os efeitos da separação na rotina do cárcere.

Apesar de o encarceramento representar uma condição em que a pessoa está suscetível à separação abrupta dos filhos e à perda do seu papel parental no sistema familiar, a entrevistada Esmeralda reforça a proteção divina como um subterfúgio para as angústias atreladas ao cárcere, no entanto, diverge das narrativas acima no que tange à superação da ausência dos filhos em sua rotina:

[...] em eu acordar de manhã e não ter ela me acordando, em chegar… até na hora de eu comer, mulher, porque sabe né, menino é aquilo, não tem jeito, você tá comendo e ele ta em cima é, aí era assim com ela, e… já não tenho mais isso né, no dia a dia, minha rotina [...] só me apegando com Deus mesmo, por que ainda não superei, as palavras de Deus conforta a gente de alguma maneira, sempre tem alguma palavra que vem pra a gente e aí a gente acaba se confortando nos corações, mas a saudade fica a mesma (Esmeralda).

Para a entrevistada Esmeralda, a ausência das crianças em sua rotina representa um vazio definido pelo processo de encarceramento que a faz potencializar, assim como citado por Ônix, Cornalina e Fluorita, sua crença para o alcance do conforto interno e proteção dos filhos. No entanto, Esmeralda relata a dificuldade de superar o fato de ter que se distanciar do filho porque a saudade permanece e as lembranças da rotina a faz revisitar sentimentos do convívio extramuros. Logo, entende-se que os efeitos da institucionalização transcendem a realidade intramuros e que o enfrentamento não é rotulado, devendo-se compreender as nuances envolvidas em cada processo e estimular a continuidade do vínculo mãe-filho.

Nessa perspectiva, as condições de encarceramento são definidoras para o processo saúde-doença devido à precariedade das unidades prisionais e as suas normas de privação de liberdade que podem desencadear transtornos de saúde e/ou aguçar os pré-existentes, reverberando em prejuízos maiores aos modos de vida da pessoa (Santos et al., 2017SANTOS, M. V. et al. Saúde mental de mulheres encarceradas em um presídio do Estado do Rio de Janeiro. Texto & Contexto, v. 26, n. 2, 2017.).

[...] eu já tinha depressão na rua mas ai o, o fato, o acontecido de lá pra cá, ela atacou mais foi tanto do jeito que um dia eu sai aqui, que eu tive que sair pra ir fazer uns exames, eu voltei muito atacada. aí foi assim que me encaminharam pro CAPS (Safira).

Percebe-se que as preocupações inerentes ao cárcere se configuram como agentes estressores e interferem na saúde mental das mulheres, sobretudo no que diz respeito ao sofrimento pela interrupção das relações familiares, distanciamento e transferência da responsabilidade do cuidado dos filhos, como é completado por Ametista:

[...] aqui não é lugar pra uma mãe de família não, principalmente “pa” uma mãe de família. Tem dia que eu choro preocupada, eu não consigo dormir, que eu já tenho depressão, fico nervosa sem saber se já se alimentou, tá sendo bem cuidado, que num tem ninguém que cuida do fi da gente igual a mãe não, tem não… “num” tem vó, “num” tem tia, “num” tem pai...que cuide igual a mãe não (Ametista).

Com a narrativa de Ametista, percebe-se a que o espaço físico das unidades prisionais repercute na despersonalização da figura materna, a partir da percepção de que o ambiente não é propício para “mãe de família”, convergindo com o papel de “boa mãe” apresentado por Nunes, Deslandes e Jannotti (2020)NUNES, L. R. C.; DESLANDES, S. F.; JANNOTTI, C. B. Narrativas sobre as práticas de maternagem na prisão: a encruzilhada da ordem discursiva prisional e da ordem discursiva do cuidado. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 12, 2020., que se associa àquela que oferece cuidado, tempo e dedicação à criação dos filhos. Por esse ângulo, as limitações do cárcere afastam as mulheres do pleno exercício da maternagem e as preocupam sobre o cuidado com os filhos pelas novas referências familiares, as quais, segundo Ametista, não cumprem com o mesmo zelo proporcionado pela mãe.

Diante dessa compreensão, a parentalidade (in)desejada devido à necessidade da transferência da responsabilidade da manutenção dos cuidados com as crianças separadas da mãe devido às condições do cárcere, perpassa por diferentes circunstâncias que dificultam a convivência entre o cuidador, os filhos e a mãe (Arruda; Smeha, 2019ARRUDA, L. F. S.; SMEHA, L. N. Parentalidade (in)desejada: avós e tias que cuidam dos filhos(as) de mulheres presas. PSI UNISC, v. 3, n. 2, 2019.). Nessa lógica, a participante Diamante ainda acrescenta sobre as repercussões associadas à privação do vínculo mãe-filho devido à dificuldade de contato com a criança e notícias dos filhos por impedimento do atual cuidador:

[...] é ruim, sem ver, sem ver, contato só às vezes que a gente fala com a família, por ligação… aí a gente fica com saudade… falo com ela, com minha família. sei notícia dela, eu só não dengo ela porque eu não tenho contato com o pai dela, ele não permite que eu fale e veja ela, eu fico angustiada, com ansiedade, penso muita besteira, que nunca vai passar (Diamante).

As entrevistadas Safira e Cornalina, de modo complementar, apontam a importância da presença materna no cotidiano e cuidado dos filhos, sendo a mãe considerada insubstituível no exercício materno de proteger, acolher e orientar os filhos, a fim de evitar possíveis danos à saúde e ao desenvolvimento. Além disso, relatam a preocupação com a relação entre o cuidador e o filho, tal fato, conforme abordado por Flores e Smeha (2019)FLORES, N. M. P.; SMEHA, L. N. Mães presas, filhos desamparados: maternidade e relações interpessoais na prisão. Physis, v. 28, n. 4, 2019., perpassa pela relevância de o cuidador ser contínuo e escolhido pela mãe, evitando novas rupturas, garantindo o bem-estar das crianças e a manutenção do vínculo mãe-filho.

[...] o mundo tem tanta coisa que preocupa uma mãe, de eu não tá perto pra reclamar, pra ensinar, pra mandar pra escola, pra ver o que tão fazendo, o que não tão fazendo, se tão comendo bem, se tão vestindo bem, por que no dia que vieram não vieram bem vestido. Saber se tá tudo no lugar, se tão comendo certinho, as amizades, se quando vai pra casa do povo, se o povo não judia, é isso [...] (Safira).

E ela tava totalmente diferente, ela ainda tá. Ela chora quando fala comigo [...] se reclama, diz que quer ir embora e quando ela fala com a gente sempre tem uma pessoa ali do lado vendo o que ela vai falar. Aí a gente fica com dúvida, será que tá acontecendo alguma coisa, será que tão fazendo alguma coisa com ela, a gente fica com aquela incerteza, mas a gente daqui não pode fazer nada. Só orar a Deus, entregar a Deus e pedir que Deus cuide (Cornalina).

As abordagens de Safira e Cornalina também recaem sobre o receio com o comportamento e rotina dos filhos devido à sua ausência, apontando, inclusive, o medo de possíveis maus-tratos por parte das pessoas que assumiram o papel de cuidador e/ou daquelas que convivem com as crianças. Tal sentimento se une ao fato de não poder se fazer presente para orientar e corrigir certos comportamentos percebidos através das visitas presenciais e/ou virtuais, se ausentando, a mãe, da incumbência de proteger seus filhos.

Outrossim, para Araújo, Almeida e Mattos (2020), aARAÚJO, A. M.; ALMEIDA, S. M.; MATTOS, C. L. G. Os filhos e as filhas da exclusão: uma revisitação de dados e de imagens etnográficas sobre a creche na prisão. Revista Educação e Cultura Contemporânea, v. 17, n. 48, 2020. justificativa das angústias relacionadas à separação mãe-filho está atrelada ao fato de anterior à prisão, muitas das mães serem chefes de família e a sua figura ser sinônimo de proteção e afeto para as crianças. Nota-se, então, a preocupação da mãe com a saúde, a alimentação, a vestimenta, as companhias e com a continuidade dos estudos, remetendo-se aos seus cuidados extramuros e ao receio de prejuízos para os filhos devido a sua ausência.

Ademais, algumas entrevistadas, conforme apresentado a seguir, relatam a angústia de não poder acompanhar os filhos e a família nos momentos simbolicamente importantes, além de expressarem o medo da perda, tendo em vista que o tempo em que passarão na cadeia e as condições às quais estão submetidas são limitadores para a convivência extramuros.

O que me preocupa… na verdade minha mãe tá bem cansada dessa situação né? Na verdade, a gente nunca sabe o dia de amanhã né, então, meu maior medo mesmo é não poder aproveitar o tempo com a minha mãe, com meus filhos é aquela coisa [...] (Ágata).

[...] e também aqui a gente sempre tem um medo constante que é a perda. A perda de alguém da família, uma mãe, um pai, um filho, é muito difícil de lidar. Logo quando foi ano passado eu perdi meu avô, pai da minha mãe, meu avô era como meu pai, e não poder ter ido pelo menos me despedir dele [...] O medo de acontecer alguma coisa com eles, alguém, e eu aqui sem poder tá perto [...] (Cornalina).

As entrevistadas Ágata e Cornalina são convergentes em suas falas ao discorrerem sobre os seus maiores medos atrelados ao afastamento compulsório, devido ao qual não é possível a vivência cotidiana com os familiares e, pela imprevisibilidade do futuro, temem a perda de alguma pessoa de sua rede de apoio socioafetiva. Salientamos que, embora haja a previsão legal, na Lei nº 7.210/1984, da liberação da pessoa privada de liberdade em caso de “falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão” (BRASIL, 1984BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de execução penal. Diário Oficial da União, Poder executivo, Brasília, DF, 11 jul. 1984.), é percebido que o pedido formulado pelo advogado à direção da unidade prisional é comumente negado com o principal argumento de que não há recursos suficientes para a escolta.

Compreendemos, nessa perspectiva, que o luto é carregado de valor humano e singularidades relacionadas ao afeto estendido ao ente querido, considerando a perda como um processo que desencadeia a reconfiguração do arranjo familiar e, se tratando de pessoas em situação de cárcere, maior a probabilidade de desenvolver um luto complicado por causa do distanciamento e fragilidade do suporte necessário para o enfrentamento.

Para além dos receios atrelados à perda inesperada dos familiares e dos filhos, Safira complementa as falas de Ágata e Cornalina, acrescentando à preocupação relacionada ao local de moradia dos filhos e às condições a que estão expostos. A pesquisa realizada por Soares, Cenci e Oliveira (2016)SOARES, I. R.; CENCI, C. M. B.; OLIVEIRA, L. R. F. Mães no cárcere: percepção de vínculo com os filhos. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, 2016. faz referência aos sentimentos de insegurança e medo relatados pelas mães em situação de cárcere e associados ao futuro dos filhos, reforçando a importância de um ambiente aconchegante e seguro para o bom desenvolvimento individual da criança.

[...] perder eles, da vida do local que a gente mora e que está residindo agora, meus filhos [...] só que não é uma vida para viver é, é um local que não é lugar não, nada de bom para oferecer não, o lugar não [...] (Safira).

Nesse sentido, Safira também se preocupa com o envolvimento dos filhos na criminalidade, sendo o local de moradia um espaço ameaçador para o crescimento das crianças. De modo convergente à preocupação de envolvimento dos jovens com o crime, Ametista reflete sobre as repercussões do seu encarceramento, temendo que estar presa se configure como uma justificativa para os seus filhos se aproximarem do mundo infrator:

Eu nunca nem tinha entrado aqui, é a primeira vez, mas meu Deus do céu, nossa senhora Aparecida, onde vim parar? O que que meus “fi” pode pensar de mim? Ele vai chegar e dizer: mas a senhora já num já foi (presa)? Isso, eu carrego na minha cabeça, minha consciência é pesada nessa parte [...]. (Ametista).

Diante das narrativas que expressam o medo do comportamento transgressor dos filhos e o desejo da construção de um caminho diferente, a pesquisa de Kosminsky, Pinto e Miyashiro (2005)KOSMINSKY, E. V.; PINTO, R. B.; MIYASHIRO, S. R. G. Filhos de presidiários na escola: um estudo de caso em Marília, SP. Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 5, n. 1–3, 2005. corrobora o entendimento das vulnerabilidades às quais as crianças são expostas, sobretudo ao estigma social que sofrem por ser familiar de uma pessoa em situação de cárcere, se tornando passíveis de críticas, exclusão, agravamento da situação socioeconômica e envolvimento com o crime por ser a pouca, se não única, oportunidade de obtenção de renda.

Reforçamos, portanto, que a condenação não ressoa somente para a mulher que é mãe e está na condição de privada de liberdade, mas para todos que, direto ou indiretamente, são atravessados pelas consequências causadas pela aproximação com o ambiente prisional. Nesse ponto, se inserem também as crianças que crescem e se desenvolvem dentro das unidades prisionais durante o período gestacional ou que, após o nascimento, são admitidas juntamente com a mãe para o cumprimento da pena (Lago, 2020LAGO, N. B. Nem mãezinha, nem mãezona. Mães, familiares e ativismo nos arredores da prisão. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, v. 36, 2020.; Matos; Silva; Nascimento, 2019MATOS, K. K. C.; SILVA, S. P. C.; NASCIMENTO, E. A. Filhos do cárcere: representações sociais de mulheres sobre parir na prisão. Interface, Botucatu, v. 23, e180028, 2019.).

É sobre esse contexto que Esmeralda e Diamante abordam os entrelaçamentos associados à gestação no cárcere, relatando os sentimentos associados a uma nova gravidez ao mesmo passo em que refletem sobre as adversidades enfrentadas para o cuidado e atendimento às necessidades da gestação.

[...] vai fazer 5 meses, não fiz pré natal, vou iniciar semana que vem [...] Me sinto muito alegre né, Deus me deu mais outro filho, eu fico alegre por ter mais um filho, as vezes eu fico triste por estar muito distante da minha família porque eles não vem por condição financeira e é difícil a gente tá aqui num lugar desse que a gente não tem contato com a família de jeito nenhum a não ser uma visita, uma ligação que a gente liga lá na frente (Diamante).

[...] mulher eu fiquei aperriada, ao mesmo tempo que fiquei feliz porque eu fiquei naquela “meu Deus do céu outro filho, como é que vai ser… será que, será que eu vou ser mãe de verdade dessa vez? como é que vai ser?” e fiquei assim também aperriada porque o pai, o pai foi preso, aí… [...] quando ele foi preso eu me desesperei “Meu Deus como é que vai ser eu sozinha aqui nesse mundo?” (Esmeralda).

As falas de Diamante e Esmeralda diferem das demais por abordarem aspectos relacionados à vivência da gestação no cárcere, esta que se soma aos desafios oriundos da admissão no ambiente e as preocupações com os filhos extramuros, potencializando as incertezas associadas aos cuidados necessários para o acompanhamento da gestante, bem como os receios atrelados a ausência da rede de apoio socioafetiva durante esse momento. Sendo assim, é percebido que a descoberta da gravidez no cárcere desperta uma dualidade sentimental por ora a gravidez ser compreendida como uma nova oportunidade para o exercício do cuidado e ora ser vista sob o viés das dificuldades do cárcere para a garantia do bem-estar físico e emocional das gestantes.

Por conseguinte, lidar com as especificidades da gravidez no cárcere somente com o apoio, por vezes, frágil e superficial da rede de solidariedade formada pelas próprias companheiras da unidade prisional, também é uma questão de inquietação psicológica para essas mulheres que convivem com a dificuldade de acesso à saúde e, enquanto gestantes, esbarram no desafio da assistência ao pré-natal. Sobre tal situação, Moreira et al. (2019)MOREIRA, C. J. et al. Gestantes privadas de liberdade: o desafio da assistência ao pré-natal. Revista Nursing, v. 22, n. 249, 2019. reforça a multifatorialidade envolvida no acompanhamento pré-natal em privação de liberdade, sobretudo no que tange à vulnerabilidade à qual estão expostas por causa da estrutura insuficiente para a prestação dos devidos cuidados.

Essa conjuntura faz emergir múltiplos sentimentos na mãe que vivencia a gestação em um ambiente que não é preparado para estimular o binômio mãe-filho, sendo imprescindível, para a amenização destas sensações, o apoio e tranquilidade passados pelos familiares a partir do contato proporcionado pelas visitas presenciais/virtuais. No entanto, como visualizado nas falas das gestantes, as limitações do ambiente repercutem na sensação de estar “sozinha” por nem sempre ser possível o contato com sua rede de apoio socioafetiva, o que as fazem não ter uma experiência positiva desse momento e sofrer com a negligência de questões importantes para a saúde das mulheres e das crianças (Chaves; Araújo, 2020CHAVES, L. H.; ARAÚJO, I. C. A. Gestação e maternidade em cárcere: cuidados de saúde a partir do olhar das mulheres presas em uma unidade materno-infantil. Physis: Revista de Saúde Coletiva [online], v. 30, n. 1, 2020.).

A entrevistada Diamante ainda acrescenta sobre a possibilidade de mudança de regime prisional devido à condição de gestante, sendo uma alternativa fulcral para a minimização dos efeitos da prisão sobre a gestação e (re)aproximação com sua rede de apoio. Essa realidade conversa com o que está previsto na Lei nº 13.769/2018, que altera o Código de Processo Penal de forma a incluir as mulheres gestantes no rol dos incisos possíveis de substituição da prisão preventiva pela domiciliar (Brasil, 2018BRASIL. Lei nº 13.769, de 19 de dezembro de 2018. Altera o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), as Leis n º 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), e 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), para estabelecer a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência e para disciplinar o regime de cumprimento de pena privativa de liberdade de condenadas na mesma situação. Diário Oficial da União, Poder executivo, Brasília, DF, 19 dez. 2018.).

[...], mas daqui para semana que vem vou embora, porque eu estou grávida, ai eles vão me dar a minha domiciliar (Diamante).

A narrativa aponta para a reflexão direcionada à importância de garantir o curso da gestação em um ambiente seguro e saudável para mãe e filho. A alternativa sinalizada por Diamante faz parte do seguimento das regras de Bangkok, as quais estabelecem a importância de se avaliar estratégias substitutivas ao encarceramento para que a mãe não se distancie da família e da comunidade, entendendo estes espaços como garantidores da manutenção do vínculo afetivo entre a mãe e o filho. Destaca-se, ainda, que as regras de Bangkok correspondem a alternativas de garantia dos direitos inerente à dignidade das mulheres em situação de cárcere, definidas pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) em 2010, com diferentes estratégias para o atendimento das especificidades de gênero no encarceramento feminino (Silva et al., 2019SILVA, N. M. et al. As mulheres encarceradas e as regras de Bangkok. Revista Multidisciplinar do Nordeste Mineiro, v. 2, 2019.).

Como limitações do estudo, aponta-se para prováveis omissões nos relatos das participantes sobre as percepções e os sentimentos atrelados à separação dos filhos devido ao encarceramento, tendo em vista que a pesquisa foi realizada na própria unidade prisional. Além disso, os achados reduzidos sobre a temática também se configuraram como um desafio para o desdobramento das discussões deste estudo.

Considerações finais

À vista do exposto, compreendeu-se que a convivência no cárcere é, em muitos aspectos, marcada pelo adensamento humano que compartilha da ruptura social relacional causada pelo aprisionamento, implicando na construção de uma rede de solidariedade interna entre as pessoas em privação de liberdade. Esse fato é, inclusive, entendido como apoio para o enfrentamento das repercussões oriundas da ruptura/distanciamento dos vínculos familiares, sobretudo, da díade mãe-filho.

Os sentimentos oriundos desse distanciamento estão atrelados, sobretudo, ao condicionamento das responsabilidades maternas a outrem, tornando a vivência na cadeia marcada pela tristeza, solidão e angústia. Nesse contexto, é percebida a preocupação das participantes quanto aos cuidados extramuros dos filhos e à fragilização do vínculo mãe-filho repercutir, inclusive, na relação pós-cárcere, impactando na experiência parental das mães e na dificuldade de reaproximação após o envolvimento com o crime.

Tal situação reverbera sobre a ressignificação dos sentimentos e preocupações apresentados pelas mães em situação de cárcere, fazendo-as recorrer às lembranças extramuros, à religiosidade, às notícias dos filhos e às visitas para enfrentar os dias no cárcere, bem como superar os desafios oriundos do afastamento das responsabilidades atreladas à figura materna. Nessa lógica, pelo fato de o enfrentamento e o convívio com a rede de apoio socioafetiva no sistema prisional estarem atrelados, primordialmente, à frequência nas visitas, emerge a necessidade de espaços físicos acolhedores e humanizados para a recepção dos filhos e da família, fortalecendo os vínculos e assegurando a privacidade entre as visitas.

No caso das mulheres que vivenciam a gestação no cárcere, a importância de adequar as unidades prisionais para o acolhimento de suas demandas é ainda mais expressiva, tendo em vista que, além de enfrentar dificuldades do cárcere para a garantia do bem-estar físico e emocional das gestantes, ainda lidam com a ambiguidade sentimental que perpassa pela alegria de um novo filho, a tristeza de viver esse momento longe de sua rede de apoio e a preocupação com os filhos que estão fora do ambiente carcerário, sob cuidado de outras pessoas.

Dessa forma, acredita-se que a manutenção do vínculo mãe-filho é uma estratégia valiosa para a minimização das repercussões do cárcere na vida da mulher, dos filhos e de toda sua rede de apoio socioafetiva. Portanto, sugere-se novos estudos que ampliem as discussões direcionadas para os entraves relacionados à continuidade do vínculo mãe-filho na prisão e que abordem os atravessamentos da vivência de gestantes no cárcere. Assim, enquanto pesquisadoras, a partir das experiências narradas pelas participantes deste e de novos estudos, reforçamos a luta pela garantia de direitos deste público ao mesmo passo em que participamos da fundamentação do debate sobre a temática, a fim de contribuir com a visibilidade dos problemas elucidados e melhorias para as condições expostas.

Agradecimentos

Ao Mestrado Profissional em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e à Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) pela formação e qualificação profissional, bem como por todo o incentivo às pesquisas e consolidação da ciência. Agradecemos às pessoas em situação de cárcere da Cadeia Pública Feminina de Petrolina, pelo acolhimento, aprendizado e por confiarem suas histórias à nós.

  • Agência financiadora Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoA pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano (IF SERTÃO-PE), tendo recebido o parecer favorável de nº 4.537.623. Para consentimento da participação, utilizamos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
    Consentimento para publicaçãoNós, autoras, autorizamos a publicação deste manuscrito, destacando que as participantes da pesquisa declararam o consentimento da publicação de seus dados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Set 2023
  • Aceito
    28 Mar 2024
  • Revisado
    07 Maio 2024
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