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Encarceramento em massa e racismo: a realidade no sistema prisional sergipano

Resumo:

O objetivo deste artigo é apresentar dados sobre a dinâmica contemporânea da política de encarceramento na realidade sergipana, com ênfase na racialização que tem incidido, majoritariamente, sobre a população negra. Fundamentada no materialismo histórico-dialético, articula dados de natureza bibliográfica e documental, utilizando as informações disponíveis no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), bem como contribuições da teoria social marxista e da criminologia crítica. Com os resultados, expõe-se parte do perfil da população prisional no estado nos anos de 2018 e 2019. Constatou-se que existe um perfil racializado da população carcerária com predominância de homens negros, além da tendência de aumento da população carcerária feminina, com índices acima da média nacional, bem como das condições de desumanização e de violação de direitos, a que estes sujeitos estão submetidos, reafirmando uma articulação estrutural entre capitalismo, racismo e sexismo, a partir da ampliação das estratégias de criminalização desses segmentos por meio do cárcere.

Palavras-chave:
Encarceramento; Sistema Prisional; Racismo; Sergipe

Abstract:

The aim of the text is to present data on the contemporary dynamics of incarceration policy in Sergipe reality, with an emphasis on the racialization that has mostly focused on the black population. Based on historical-dialectical materialism, it articulates bibliographic and documentary data, using data available from the National Survey of Penitentiary Information (INFOPEN), as well as contributions from Marxist social theory and critical criminology. With the results, part of the profile of the prison population in the state in the years 2018 and 2019 is exposed. It was found that there is a racialized profile of the prison population with a predominance of black men, in addition to the tendency of the prison population to increase female, with rates above the national average, as well as the conditions of dehumanization and violation of rights, to which these subjects are subjected, reaffirming a structural articulation between capitalism, racism and sexism, from the expansion of criminalization strategies of these segments by middle of prison.

Keywords:
Incarceration; Prison System; Racism; Sergipe

Introdução

Indícios mais recentes têm demonstrado o agravamento da crise do sistema prisional brasileiro, seja pela escalada dos níveis de encarceramento, pela superlotação das unidades prisionais, ou mesmo pelas condições de resguardo desses indivíduos, submetidos a toda sorte de violação de direitos (SANTOS, 2018SANTOS, S. M. C. Controle penal e criminalização da pobreza no contexto de crise do capital. In: AZEVEDO, E. E. B; BRASIL, G. M. (org.). Estado de exceção e políticas punitivas na sociedade contemporânea. Campinas: EDUECE, 2018.; BORGES, 2019BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.), ao mesmo tempo em que uma série de políticas sociais vem sendo cada vez mais enfraquecidas. Dentre as inúmeras consequências que a agenda neoliberal trouxe para a reconfiguração do papel do Estado, destaca-se o aprofundamento das desigualdades e da elevação dos índices de pauperização, que, por sua vez, reflete-se no agravamento da chamada questão social1 1 Situada aqui nos termos apontados por Iamamoto (1998, p. 27), segundo a qual: “A questão social é apreendida como um conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade”. e seus impactos em segmentos racializados, notadamente a população negra, conformando desigualdades sociorraciais. Diante desse quadro, verifica-se a acentuação de diversas formas de “controle social” operado, sobretudo, junto aos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora. Das diversas formas mobilizadas por meio do aparato estatal, o controle penal tem se destacado como um recurso permanente de intervenção junto à pobreza. Para Wacquant (2018)WACQUANT, L. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2018., esse fenômeno denota a transição do Estado Providência para a emergência, em grande escala, do Estado Penal. Com efeito, existem diversas formas de explicitação do Estado Penal, a exemplo das medidas de incremento da atuação policial, do aumento nas estratégias de vigilância social, e da ampliação do processo de encarceramento. São medidas direcionadas, via de regra, para segmentos (sujeitos) específicos, a partir do acionamento de medidas de seletividade penal.

É preciso, portanto, entender quais condicionantes estruturais e conjunturais têm balizado esse processo no âmbito da realidade brasileira, e suas expressões particulares nas unidades da federação. Destarte, o presente texto tem por objetivo discutir algumas das determinações que conformam o perfil racializado da população prisional no estado de Sergipe, bem como algumas das condições a que esses sujeitos, em sua maioria negros(as), são submetidos(as)2 2 Expomos aqui parte dos resultados da Pesquisa Estado Punitivo e a Política de Encarceramento como estratégia de controle social: Uma proposta de análise do sistema prisional em Sergipe a partir dos dados de 2018 e 2019. Trata-se de investigação realizada entre os anos de 2020 e 2021 e contou com apoio da Coordenação de Pesquisa da Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe (COPES/POSGRAP/UFS). . Trata-se de uma investigação acerca do sistema prisional em Sergipe que perquiriu as tendências no âmbito da reprodução de formas mobilizadas pelo aparelho estatal de estratégias de controle social, com ênfase no controle penal, na atual conjuntura da sociabilidade capitalista, enfatizando o cenário sergipano.

A construção deste texto fundamentou-se no materialismo histórico-dialético e buscou compreender as peculiaridades do sistema prisional no Estado de Sergipe, partindo da perspectiva do Estado Penal como meio de efetivação de formas atualizadas de controle sociorracial. Nesse percurso, foram utilizados os dados estatísticos do INFOPEN acerca das unidades prisionais sergipanas nos anos de 2018 e 2019. Desse modo, buscamos aproximações por meio de pesquisa bibliográfica e documental. No tocante à pesquisa bibliográfica, destacamos o recurso a algumas análises e conceitos da criminologia crítica marxista e da economia política da pena, buscando estabelecer uma conexão estrutural entre reprodução socioeconômica e modos de punir, enfatizando o lugar da prisão como instituição de controle capitalista (MELOSSI, 2004MELOSSI, D. A questão penal em O capital. Tradução de Márcio Bilharinho Naves. Margem Esquerda, v. 4, 2004. p. 124-141.).

Em relação à pesquisa documental, ressalta-se o acesso ao Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) como fonte principal de coleta de dados, disponibilizados pelo Departamento Penitenciário, vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Ademais, foram extraídos dados fornecidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Relatório da Ordem dos Advogados do Brasil-Seccional Sergipe (OAB-SE). A partir desses elementos, buscamos explicitar um panorama da realidade do sistema prisional sergipano na atualidade, bem como problematizar o perfil que vem se estruturando esse espaço. Nessa perspectiva, entendemos uma estreita relação entre racismo estrutural (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S, L, D. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.) e o encarceramento em massa da população negra em Sergipe, enquanto expressão particular de tendências que delineiam a dinâmica brasileira.

Brasil: Sistema de Justiça Criminal e a função da prisão como mecanismo de controle sociorracial

Em Marx (2013)MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital [1867]. São Paulo: Boitempo, 2013. e suas contribuições na crítica da economia política, encontram-se as bases para situarmos o significado da prisão, enquanto mecanismo funcional ao processo de gestão, controle e disciplinamento da força de trabalho na ordem do capital, a exemplo das passagens que podem ser encontradas no capítulo XXIV do Livro I d’O Capital, intitulado A assim chamada acumulação primitiva, demonstrando como o aparelho punitivo-estatal mostrou-se também uma potência político-econômica fundamental ao desenvolvimento capitalista. Tal constatação pode ser evidenciada a partir da economia política da pena e sua crítica ao significado da prisão no sistema capitalista (MELOSSI, 2004MELOSSI, D. A questão penal em O capital. Tradução de Márcio Bilharinho Naves. Margem Esquerda, v. 4, 2004. p. 124-141.; DE GIORGI, 2017DE GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2017.). O sistema prisional, tal qual o conhecemos hoje, é um produto da modernidade capitalista, uma forma particular de penalização das classes dominadas. Segundo Marx (apud DE GIORGI, 2017DE GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2017.), as instituições de reclusão, e dentre estas a prisão:

Elas se caracterizam por serem incumbidas pelo Estado da sociedade burguesa da gestão dos vários momentos da formação, produção e reprodução do proletariado de fábrica; elas são um dos instrumentos essenciais da política social do Estado, política que persegue o objetivo de garantir ao capital uma força de trabalho que - por hábitos morais, saúde física, capacidades intelectuais, conformidade às regras, hábito à disciplina e à obediência etc. - possa facilmente adaptar-se ao regime de vida na fábrica em seu conjunto e produzir, assim, a quota máxima de mais-valia extraível em determinadas circunstâncias. (MARX 1969 apud DE GIORGI, 2017DE GIORGI, A. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2017., p. 44).

Ainda que possuindo uma mesma funcionalidade, é fato que a organização dos distintos sistemas de justiça criminal, bem como dos institutos prisionais, guarda elementos estruturais em consonância com as particularidades de cada formação socio-histórica, a exemplo de como esse processo se organizou na realidade brasileira. O Brasil foi constituído através da exploração de corpos negros trazidos da África que consolidaram a economia do país. Contudo, a força da escravidão não se restringiu apenas a economia, mas estruturou as relações sociais e políticas tal como conhecemos hoje. Assim, o racismo foi o pilar estruturante da sociedade brasileira, como aponta Borges (2019)BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.. Considerá-lo como um elemento coesionador de determinadas relações é afirmar, portanto, o seu caráter estrutural. Isso porque ele é

[...] um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade. Em suma, o que queremos explicitar é que o racismo é a manifestação normal de uma sociedade, e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade. O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea. (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S, L, D. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 15-16).

Na afirmação da estrutura racializada com a qual se conformou a sociabilidade brasileira, o Estado desempenhou um papel primordial na criação e manutenção do sistema de hierarquização racial que possibilitou a marginalização dos(as) negros(as), mesmo após a abolição da escravatura. E isso se deu através da criação de um sistema de justiça criminal que tinha seus “alvos” preestabelecidos, e, por isso, tipificava como crimes as atividades ligadas à essa parcela da população, como a capoeira e os cultos de origens africanas, sob o pré-texto de perturbar a ordem, evidenciando que o caráter racializante continuava perpassando as instituições brasileiras (BORGES, 2019BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.; FLAUZINA, 2017FLAUZINA, A. L. P. Corpo negro caído no chão. O sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. 2. ed. Brasília: Brado Negro, 2017.). O sistema prisional é o mais bem acabado exemplo de controle sociorracial operado pelo Estado que, juntamente com parte de setores midiáticos, dentre estes espaços sensacionalistas3 3 De modo exemplar, são programas de cunho policialesco exibidos na TV aberta, como o Aqui e agora do Sistema Brasileiro de televisão (SBT), o Brasil Urgente da Rede Bandeirantes e o Cidade Alerta da Record TV, que alimentam uma cultura punitivista, reforçando estereótipos de quem seria tido como criminoso(a), alimentando um conservadorismo penal no País, que se rege pelo mantra: bandido bom é bandido morto. Não raro, tal estereótipo associa a figura do(a) criminoso(a) a pessoas negras. , contribui para que se tenha medo de negros(as), sendo este perfil associado, em regra, a indivíduos com alto nível de periculosidade, reafirmando-se, frequentemente, a ideia de que eles(as) devem ser tratados(as) com repressão.

A origem do sistema de justiça criminal brasileiro também foi pautada na ideologia racista advinda do processo de escravismo, que tinha a coerção, a violência e a punição como suas principais estratégias de indicar qual a posição dos(as) negros(as) na sociedade brasileira:

O que poderíamos chamar de germe do sistema de justiça criminal brasileiro já se iniciou punitivista. De 1500 a 1822, o que seria um código penal eram as Ordenações Filipinas, notadamente o Livro V, onde predominava a esfera privada e da relação senhor/proprietário-escravizado/propriedade. Com isso, a lógica do direito privado imperava já no nascedouro do nosso sistema e, dado caráter violento do escravismo, já tinha em seu cerne as práticas de tortura, fossem psicológicas, fossem físicas, por mutilações e abusos sofridos pelos escravizados. (BORGES, 2019BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019., p. 68, grifo da autora).

Desse modo, existiam diferenciações entre os tipos de penas aplicadas para pessoas livres e para aquelas escravizadas, essas últimas eram punidas através da morte desonrosa, a morte com corda. Com a promulgação da Lei Criminal no Brasil, em 1830, o sistema de justiça criminal brasileiro se consolida mantendo esse caráter punitivista e de garantia da propriedade privada do escravismo, pois os(as) escravos(as) eram punidos(as) fisicamente e depois devolvidos(as) aos seus senhores. Borges (2019)BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. aponta que essa ação era entendida como uma intervenção estatal sobre preservação da propriedade privada. Ou seja, a criação do sistema de justiça brasileiro não se deu por motivações de garantias de direitos aos(às) cidadãos(ãs), mas como uma forma institucionalizada de proteger patrimônios. Essa intenção já dava indícios de quem seriam os alvos do sistema de justiça no Brasil. Seguem-se algumas reformas no Código Criminal, em especial a de 1871, que deu mais poderes às forças policiais nos crimes considerados leves, salientando que, desde o princípio, a polícia já atuava como um importante aliado do Estado na criminalização e que hoje tal situação vê-se mais intensificada.

De acordo com as formulações de Borges (2019)BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019., a partir dos anos de 1930 o mito da democracia racial foi bastante difundido no Brasil e que, conforme nos situa Nascimento (2016NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016., p. 111), “designa o racismo estilo brasileiro [...] profundamente penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país”. É a partir desse mito que se cria a narrativa de uma identidade nacional composta por três raças, portanto, não haveria de se falar em racismo em um país como o Brasil, dado o caráter miscigenado da população. Entretanto, serviu como suporte para subsidiar a ideologia racista que sustentou e sustenta as instituições brasileiras, de modo a camuflar o racismo difundido e mitigar o peso das formas gerais e institucionais pelas quais esse fenômeno se manifesta nessa sociabilidade. Assim,

O efeito disso é que o racismo pode ter sua forma alterada pela ação ou pela omissão dos poderes institucionais – Estado, escola etc. –, que podem tanto modificar a atuação dos mecanismos discriminatórios, como também estabelecer novos significados para raça, inclusive atribuindo certas vantagens sociais a membros de grupos raciais historicamente discriminados. (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S, L, D. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 41).

Vale destacar, inclusive, como vem sustentando Borges (2019)BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019., que as instituições do Estado brasileiro foram forjadas por meio da repressão e da criminalização contínua, mas se utilizando de outras mediações que não explicitassem o caráter racial como fator decisivo de hierarquização social, como a criminalização das religiões de matrizes africanas, especialmente durante o período da ditadura militar, sob a argumento de que esses espaços eram locais de encontros e reuniões que poderiam resultar em rebeliões.

Assim, o processo de criminalização das pessoas negras e pobres teve suas bases na reformulação das instituições escravistas, cerceando direitos e negando espaços como forma de controlar os(as) ex-escravizados(as). Essas limitações nas vidas das pessoas negras não foram alteradas nem mesmo na passagem para o período republicano, ao contrário, estabeleceram outras políticas que limitassem ainda mais as vidas negras na sociedade. Borges (2019)BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. destaca ainda que nos anos 1990 iniciou-se um novo estágio da criminalização: “há uma série de medidas e edições de leis elevando penas, dissertando sobre crimes hediondos, dificultando progressão de penas, e assim por diante.” (BORGES, 2019BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019., p. 85). Não à toa tal período coincide com a emergência do projeto neoliberal no Brasil, que demarca um processo de fragilização da estruturação de políticas sociais, acompanhada de um aumento da verve punitiva do Estado brasileiro. Foi a partir desse momento que o cárcere e o extermínio da população negra ficaram em evidência como mecanismos cada vez mais utilizados de controle sociorracial e que ao longo dos últimos anos tem se ampliado e consolidado cada vez mais.

O sistema prisional sergipano como expressão do estado de coisas inconstitucional brasileiro

A história do sistema prisional sergipano4 4 A Dissertação de Ruth Conceição Farias Santos, intitulada “Representações sociais de aprisionados(as) e técnicos(as), sobre os programas de ressocialização (atividades de educação e trabalho) no sistema prisional no estado de Sergipe” traz um apanhado histórico sobre o sistema prisional sergipano. Para um maior aprofundamento sobre o tema, é importante conferir Santos (2012). inicia-se no século XIX com a criação da Cadeia Pública de Sergipe, destinada às reclusões que pautassem a valorização do trabalho como forma de ressocialização. No entanto, a falta de administração adequada levou ao seu fechamento. Em 1872 foi regulamentada a maior cadeia pública de Sergipe, a Casa de Prisão, um espaço precário onde os(as) detentos(as) ficavam em calabouços. Seguiu-se com a implantação do regime penitenciário, porém eram necessárias mudanças na arquitetura e no funcionamento do local, que em virtude das dificuldades financeiras impostas pelos administradores de Aracaju, efetivou-se de maneira limitada (SANTOS, 2012SANTOS, R. C. F. Representações sociais de aprisionados (as) e técnicos (as) sobre os programas de ressocialização (atividades de educação e trabalho) no sistema prisional no estado de Sergipe. 2012. 183 p. (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2012.).

Santos (2012)SANTOS, R. C. F. Representações sociais de aprisionados (as) e técnicos (as) sobre os programas de ressocialização (atividades de educação e trabalho) no sistema prisional no estado de Sergipe. 2012. 183 p. (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2012. aponta que o método de regime penitenciário objetivava regenerar o(a) detento(a) dos males físicos, morais e sociais através da instrução, do trabalho e da religião católica. Todavia, o projeto acabou obtendo pouca adesão e logo surgiram as denúncias sobre o funcionamento inadequado das oficinas de marceneiro e sapateiro. A estrutura de funcionamento da Casa de Prisão de Aracaju no século XIX não difere muito das condições apresentadas nas unidades prisionais do estado de Sergipe atualmente, o que atesta o papel estrutural da prisão como instituição de controle dos segmentos mais pauperizados, menos que de uma pretensa ressocialização.

No século XIX a ideia difundida de Casa de Prisão como um lugar de valorização do trabalho tinha como pano de fundo a necessidade de recrutar força de trabalho, uma vez que o tráfico de escravos havia sido proibido desde 1850. Assim, sob a égide da valorização do trabalho, a escassez da força de trabalho seria suprida ao mesmo tempo em que os(as) rebeldes e vagabundos(as) seriam disciplinados(as), revelando que o real propósito era manter as relações escravagistas. A respeito das condições dos(as) detentos na “Casa de Prisão” de Aracaju no século XIX, Santos (2012)SANTOS, R. C. F. Representações sociais de aprisionados (as) e técnicos (as) sobre os programas de ressocialização (atividades de educação e trabalho) no sistema prisional no estado de Sergipe. 2012. 183 p. (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2012. ressalta que as reclamações acerca do vestuário e alimentação eram constantes. Os(as) presos(as) eram mal alimentados(as), em virtude do quantitativo insuficiente fornecido diariamente, e as roupas também não chegavam regularmente. Desse modo, as famílias ficavam encarregadas de levar alimentos para os(as) detentos(as), em condições análogas ao que ocorre atualmente. Por exemplo, como identifica a OAB/SE, em 2018, acerca do Complexo Penitenciário Dr. Manoel Carvalho Neto (COPEMCAN), a maior, dentre as nove unidades prisionais do estado de Sergipe: “Sabe-se que familiares levam a chamada ‘mensagem’, termo utilizado para se referir aos mantimentos alimentícios entregues aos(às) presos(às), devido à ineficácia estatal no fornecimento de alimentação adequada e suficiente” (OAB/SE, 2018, p. 5). A água também não é fornecida de modo regular, inexistindo sequer vasos sanitários, conforme apontou o mesmo relatório. Sobre a estrutura o relatório assim descreve: “Os prédios que compõem o estabelecimento são antigos, úmidos, escuros, insalubres e mal-cheirosos (cheiro de mofo, esgoto e putrefação), com ‘ratos gigantes, baratas e esgoto entupido”. (OAB, 2018OAB. Ordem dos Advogados do Brasil. Relatório: sistema prisional do estado de Sergipe. Sergipe: Comissão de Direitos Humanos, 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/sergipe-cinco-estados-maior-risco.pdf. Acesso em: 29 jan. 2021.
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, p. 5) Essa realidade repete-se nas demais unidades prisionais do estado.

Santos (2012)SANTOS, R. C. F. Representações sociais de aprisionados (as) e técnicos (as) sobre os programas de ressocialização (atividades de educação e trabalho) no sistema prisional no estado de Sergipe. 2012. 183 p. (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2012. relatou que cada cela comportava de sete a dez presos(as) e esse quantitativo tendia a aumentar em razão de presos(as) de outros locais da província de Aracaju serem enviados para lá. A superlotação, portanto, tem raízes estruturais, e é um problema que persiste, conforme atesta o relatório da Ordem dos(as) Advogados(as) do Brasil, Seccional Sergipe (OAB/SE) acerca do sistema prisional sergipano no contexto atual. De acordo com o documento, divulgado em 2018, Sergipe tinha 5.274 pessoas privadas de liberdade para uma capacidade de comportar apenas 2.199 (OAB/SE, 2018). Em 2019, esse quantitativo aumentou para 6.244, entretanto, tinha capacidade de comportar tão somente 3.089 pessoas, segundo informações do Conselho Nacional do Ministério Público (BRASIL, 2019b). De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/. Acesso em: 29 jan. 2021.
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), o quantitativo de presos(as) condenados(as) em 2019 no estado correspondia a 53,7% e os(as) provisórios(as) correspondiam a 46,3%, incrementando o déficit no número de vagas, razão preso/vaga. Em 2018 o déficit era de 1,7 e em 2019 subiu para 2,0.

Por outro lado, a taxa geral de presos(as) por 100 mil habitantes no ano de 2019 no Brasil era de 359,4%, deixando o país, inclusive na 3ª posição no ranking dos países que mais encarceram no mundo (BORGES, 2019BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.). A taxa de Sergipe no mesmo ano, considerando os(as) presos(as) no sistema prisional e sob custódia da polícia, era 276,7%, menor do que a média nacional. E comparando com os demais estados brasileiros, Sergipe possuía taxa geral maior do que a de estados como Paraná (260,3%), Pará (247,3%), Maranhão (175,1%), Piauí (138,0%) e Bahia (112,5%) (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/. Acesso em: 29 jan. 2021.
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). Evidencia-se um encarceramento em massa no estado com implicações para os sujeitos que estão sob essa condição.

Todo esse cenário só reforça a condição degradante que é conferida à população prisional em Sergipe, reafirmando um cenário em que o Supremo Tribunal Federal (STF) classificou como estado de coisas inconstitucional (BRASIL, 2015BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 347 MC/DF. Rel. Min Marco Aurélio. Diário de Justiça, Brasília (DF), 11 set. 2015. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665. Acesso em: 10 out. 2021.
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), em que se revela toda a sorte de violação de direitos, inclusive em afronta o que preconiza a Lei de Execuções Penais (LEP). Situação também denunciada por visitas realizadas pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (BRASIL, 2018BRASIL. Relatório Anual. Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Brasília: 2018.) a diversas unidades da federação, e que evidencia a função da prisão na atualidade brasileira, não outra senão inserir-se como depósito de indigentes (WACQUANT, 1999WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.). Nesses termos, longe de qualquer ideal ressocializador, o papel reservado à prisão é de uma instituição estratégica de controle nos marcos do capitalismo. Essa determinação torna-se ainda mais evidente ao problematizarmos o perfil das pessoas que vem sendo encarceradas em Sergipe, e que abordaremos na próxima seção.

O perfil da população prisional em Sergipe e a reprodução do racismo estrutural

Esse cenário de precarização das condições de vida da população prisional sergipana traz ainda um dado revelador quando observado o perfil dos sujeitos que tem sido mais impactados por esse processo de encarceramento em massa. No que diz respeito à raça/etnia, os dados trazem o panorama apresentado nos Gráficos 1 e 2.

Gráfico 1
– Raça/Etnia – Homens
Gráficos 2
- Raça/Etnia – Mulheres

Conforme podemos observar, os Gráficos 1 e 2 apresentam os dados relativos à raça/etnia de homens e mulheres no sistema prisional sergipano no ano de 2019. Em relação à população masculina, conforme ilustra o Gráficos 1, o percentual total de homens não brancos (pretos, pardos, amarelos e indígenas) correspondia a 82,4%, em contrapartida o percentual de homens identificados como brancos era de 7,6%, revelando uma elevada disparidade. Entretanto, tal discrepância revela-se ainda mais sintomática quando agrupados os dados que identificavam homens pretos e pardos, que juntos somavam 80,9% (BRASIL, 2019BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias -INFOPEN. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2019. Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-analiticos/SE/se. Acesso em: 28 out. 2020.
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).

De modo semelhante, em relação aos dados relativos à raça/etnia de mulheres no sistema prisional sergipano, o Gráficos 2 demonstra que o percentual de mulheres não brancas (pretas, pardas, amarelas e indígenas) correspondia a 84,3%, enquanto o percentual de mulheres identificadas como brancas era de 14,9%. É perceptível a discrepância entre os percentuais e quando comparamos o percentual de mulheres pretas e pardas, 80,6%. É fato que a população negra tem sido alvo privilegiado na conformação socio-histórica do sistema de justiça criminal no Brasil, como vimos. Entretanto, resta patente que nos últimos anos esse número vem crescendo. Basta verificarmos que se em 2005 os negros representavam 58,4% do total de presos, enquanto os brancos eram 39,8%, em 2019 essa proporção chegou a 66,7% de negros e 32,3% de brancos. A taxa de variação nesse período mostra o crescimento de 377,7% na população carcerária identificada pela raça/cor negra, valor bem superior à variação para os presos brancos, que foi de 239,5% (BRASIL, 2019BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias -INFOPEN. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2019. Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-analiticos/SE/se. Acesso em: 28 out. 2020.
http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/s...
).

Ao retomarmos a particularidade sergipana, resta evidente uma representação ainda maior da população negra, acima da média nacional e que atesta um processo de racialização do sistema prisional no estado. Afirmando-se a partir de mecanismos que operam o racismo institucional, o Estado em sua particularidade local direciona sua política punitiva para a população negra de Sergipe, e reatualiza o genocídio negro (NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016.).

Esse processo, por sua vez, guarda relação com a reafirmação do racismo estrutural na sociedade brasileira, que, de acordo com as formulações de Almeida (2019)ALMEIDA, S, L, D. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., é reproduzido pelas instituições quando, por exemplo, confere mais oportunidades de inserção no mercado formal de trabalho para pessoas identificadas racialmente como brancas. Essa discrepância explicita a desigualdade racial que opera criminalizando e penalizando a população negra no país e em Sergipe. Trata-se da afirmação de uma política de controle sociorracial, que na menor unidade da federação manifesta-se de modo ainda mais intensificado, e que nos requisita problematizar quais as determinações estruturais e estruturantes desse fenômeno.

Outro elemento que aponta tendências no cenário do encarceramento sergipano refere-se à condição de sexo. No que diz respeito a esse critério, apresentamos, nos Gráficos 3 e 4, os dados nos anos de 2018 e 2019, respectivamente.

Gráfico 3
– Sexo – ano de 2018
Gráfico 4
– Sexo – ano de 2019

Conforme ilustra o Gráfico 3, há uma sobreposição masculina no sistema prisional sergipano, onde 96% são homens e 4% mulheres. No Gráfico 4, a predominância masculina permanece, porém, há um pequeno aumento de 1,7% no percentual feminino. É possível relacionar o alto percentual de homens nos cárceres com a construção social do que se entende por “masculinidades”5 5 Cecchetto (2004) no livro Violência e estilos de masculinidade trata sobre a associação entre violência e masculinidades. , que através de valores viris associam a figura do homem à criminalidade. De acordo com Davis (2020)DAVIS, A. Estarão às prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2020., originalmente, as prisões foram espaços pensados para correções públicas masculinas, uma vez que eram eles os portadores de direitos econômicos e políticos. Para as mulheres, as punições ocorriam no âmbito privado, cabendo aos maridos o papel de puni-las caso elas não desempenhassem adequadamente suas funções domésticas. Considerando essas determinações, as prisões foram (e têm sido) pensadas por e para homens, o que traz diversas implicações sexistas, quando observada a tendência de aumento de inserção de mulheres nessas instituições.

Ao retomarmos a indicação nos gráficos anteriores, verificamos o aumento percentual de mulheres no sistema prisional sergipano no ano de 2019, que avança para 5,7%. Esse dado, apesar de parecer baixo, indica uma tendência já captada por analistas como Borges (2019)BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. e Akotirene (2020)AKOTIRENE, C. Ó pa í, prezada: racismo e sexismo institucionais tomam bonde nas penitenciárias femininas. São Paulo: Pólen, 2020., que revelam o aumento da presença de mulheres no sistema prisional brasileiro. Essa população, segundo Borges (2019)BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019., aumentou 567,4% entre 2006 e 2014, revelando que tem sido cada vez mais comum mulheres adentrarem ao sistema prisional. Comparando com a realidade nacional, o percentual de mulheres encarceradas no sistema prisional em Sergipe no ano de 2019 era maior do que o do Brasil, 5,7% e 4,94% respectivamente (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/. Acesso em: 29 jan. 2021.
https://forumseguranca.org.br/anuario-br...
), evidenciando uma tendência de aumento do encarceramento feminino no estado, ainda que prevaleça a presença masculina.

O aumento gradativo das mulheres no sistema prisional, em parte associado ao recrudescimento penal pela lei de drogas6 6 Nos últimos anos, a política proibicionista adotada por governos brasileiros, tem incrementado a chamada guerra às drogas, sobretudo com a implementação da Lei n. 11.343/06 (Lei de drogas) (BRASIL, 2006) que, além de ampliar o encarceramento negro no País, vem se constituindo como um dos principais fatores do encarceramento de mulheres negras, sendo o primeiro tipo penal atribuído para justificativa dessas prisões. , coloca em debate a invisibilização da questão do gênero/sexo. São elementos que articulam determinações de classe, raça e gênero/sexo nas unidades prisionais (BORGES, 2019BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.; AKOTIRENE, 2020AKOTIRENE, C. Ó pa í, prezada: racismo e sexismo institucionais tomam bonde nas penitenciárias femininas. São Paulo: Pólen, 2020.). Como aponta Davis (2020)DAVIS, A. Estarão às prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2020., a baixa representação percentual das mulheres no sistema prisional contribuiu para invisibilizar uma série de violações a que estão submetidas, tais como constantes abusos sexuais.

Borges (2019)BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. ressalta que o cárcere significa muito mais do que simplesmente a restrição do direito de ir e vir, mas que é um espaço onde a violência, especialmente contra mulheres, é continuamente reiterada. Além da negação de direitos básicos, as mulheres têm que lidar com a ausência de itens de higiene pessoal como papel higiênico e absorvente, sendo obrigadas a recorrer a formas improvisadas para manter a higiene íntima. Borges (2019)BORGES, J. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. menciona o caso das revistas vexatórias as quais as mulheres são submetidas quando vão visitar seus familiares e parceiros(as). Medidas que longe de significarem prevenção e proteção explicitam o caráter controlador e degradante do poder do Estado sobre os corpos femininos, sobretudo corpos negros. Assim, é evidente que uma das determinações nas quais se assenta o Estado Penal em Sergipe, em sintonia com a dinâmica brasileira, é o racismo (em unidade estrutural com o sexismo) e que opera de modo a criminalizar seletivamente pessoas negras, a partir de determinados padrões de estigmatização. Almeida (2019)ALMEIDA, S, L, D. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. aponta que o racismo tem funções relacionadas ao poder do Estado. Conforme o autor:

A primeira é a de fragmentação, de divisão no contínuo biológico da espécie humana, introduzindo hierarquias, distinções, classificações de raças. O racismo estabelecerá a linha divisória entre superiores e inferiores, entre os bons e os maus, entre os grupos que merecem viver e os que merecem morrer, entre os que terão a vida prolongada e os que serão deixados para morte, entre os que devem permanecer vivos e os que serão mortos. E que se entenda que a morte aqui não é apenas a retirada da vida, mas também é entendida como a exposição ao risco da morte, a morte pública, a expulsão e a rejeição. (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S, L, D. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 115).

Dessa forma, o racismo é um ponto central para a expansão do poder do Estado na sociedade. Ou seja, trata-se do controle sociorracial, e que constituiu-se como uma das variáveis que conformam o Estado Penal brasileiro e sergipano e, em um cenário de barbarização da vida social, se assenta em um mecanismo de gestão pela morte, a partir da chamada necropolítica:

A necropolítica, portanto, instaura-se como a organização necessária do poder em um mundo em que a morte avança implacavelmente sobre a vida. A justificação da morte em nome dos riscos à economia e à segurança torna-se o fundamento ético dessa realidade. Diante disso, a lógica da colônia materializa-se na gestão praticada pelos Estados contemporâneos, especialmente nos países da periferia do capitalismo, em que as antigas práticas coloniais deixaram resquícios. (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S, L, D. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 125).

Nessa direção, a partir da exposição realizada, torna-se patente a lógica racializada pela qual se opera o Estado Penal em sua particularidade sergipana, operando um controle sociorracial, afirmando-se a partir de uma lógica racista e sexista, que reedita o estatuto colonial brasileiro, e seu peso sobre a população negra. Convém ressaltar que não se trata de um fenômeno isolado, ao contrário, a dinâmica identificada no estado é parte integrante do processo do recrudescimento da política neoliberal no País, com a adoção de políticas que acentuam o processo de encarceramento em massa, cujo perfil atingindo é rigorosamente o mesmo: jovens negros(as) e pobres das periferias brasileiras. Ao não fugir dessas tendências, como vimos, Sergipe as acentua, reafirmando em sua região as marcas do racismo como elemento estruturante de sua dinâmica socioterritorial.

Considerações finais

Ao longo da exposição, restou evidente a importância de traçar o perfil da população carcerária no País e suas particularidades regionais, o que pode nos subsidiar em desnudar as estruturas do Estado em sua faceta punitiva, e que, no contexto atual, de fragilização de políticas sociais estruturantes, tem contribuído para a ampliação das medidas de encarceramento da população negra e pobre brasileira, e, em especial, sergipana, reatualizando seu projeto genocida (NASCIMENTO, 2016NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016.; FLAUZINA, 2017FLAUZINA, A. L. P. Corpo negro caído no chão. O sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. 2. ed. Brasília: Brado Negro, 2017.), conforme apontamos no presente texto. Tais elementos reafirmam a relação estrutural entre racismo, política (Estado) e economia (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S, L, D. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.). Desse modo, nos marcos de uma afirmação cotidiana do racismo estrutural no estado de Sergipe, algumas das “oportunidades” que se atribuem à população negra têm sido mediadas por uma “inclusão punitiva”, tendo em vista o caráter majoritariamente racializado de sua população carcerária, acima, inclusive, da média nacional.

Problematizamos com o estudo a atuação do aparato estatal em sua dinâmica regional e identificamos algumas das formas de controle sociorraciais que pautam a estrutura do cárcere, mas que são camufladas pela ideia de ressocialização difundida na sociedade. É importante estudar sobre a realidade sergipana, diante da escassa produção acerca do tema, como demonstrou o aprofundamento da pesquisa que ensejou os resultados aqui sumariados. Ademais, tais resultados acabam por contribuir na construção de subsídios que fortaleçam uma pauta antirracista no estado e no País, que passa, necessariamente, pela adoção de estratégias de desencarceramento e de medidas alternativas ao encarceramento, dada a condição a que vem sendo submetida a população negra e que tem conformado o “exército prisional” no Brasil.

Agradecimentos

Agradecemos aos membros da pesquisa pela elaboração das análises e resultados apresentados, bem como agradecemos ao Grupo de Estudos e Pesquisas Marxistas (GEPEM/UFS) e à Coordenação de Pesquisa da Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe (COPES/POSGRAP/UFS) pelo apoio com concessão de bolsa remunerada de iniciação científica no desenvolvimento do projeto de pesquisa “Estado Punitivo” e a “Política de Encarceramento” como estratégia de controle social: Uma proposta de análise do sistema prisional em Sergipe a partir dos dados de 2018.

  • 1
    Situada aqui nos termos apontados por Iamamoto (1998IAMAMOTO, M. O Serviço Social na contemporaneidade. São Paulo: Cortez, 1998., p. 27), segundo a qual: “A questão social é apreendida como um conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade”.
  • 2
    Expomos aqui parte dos resultados da Pesquisa Estado Punitivo e a Política de Encarceramento como estratégia de controle social: Uma proposta de análise do sistema prisional em Sergipe a partir dos dados de 2018 e 2019. Trata-se de investigação realizada entre os anos de 2020 e 2021 e contou com apoio da Coordenação de Pesquisa da Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe (COPES/POSGRAP/UFS).
  • 3
    De modo exemplar, são programas de cunho policialesco exibidos na TV aberta, como o Aqui e agora do Sistema Brasileiro de televisão (SBT), o Brasil Urgente da Rede Bandeirantes e o Cidade Alerta da Record TV, que alimentam uma cultura punitivista, reforçando estereótipos de quem seria tido como criminoso(a), alimentando um conservadorismo penal no País, que se rege pelo mantra: bandido bom é bandido morto. Não raro, tal estereótipo associa a figura do(a) criminoso(a) a pessoas negras.
  • 4
    A Dissertação de Ruth Conceição Farias Santos, intitulada “Representações sociais de aprisionados(as) e técnicos(as), sobre os programas de ressocialização (atividades de educação e trabalho) no sistema prisional no estado de Sergipe” traz um apanhado histórico sobre o sistema prisional sergipano. Para um maior aprofundamento sobre o tema, é importante conferir Santos (2012)SANTOS, R. C. F. Representações sociais de aprisionados (as) e técnicos (as) sobre os programas de ressocialização (atividades de educação e trabalho) no sistema prisional no estado de Sergipe. 2012. 183 p. (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2012..
  • 5
    Cecchetto (2004)CECCHETTO, F. Violência e estilos de masculinidades. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004. no livro Violência e estilos de masculinidade trata sobre a associação entre violência e masculinidades.
  • 6
    Nos últimos anos, a política proibicionista adotada por governos brasileiros, tem incrementado a chamada guerra às drogas, sobretudo com a implementação da Lei n. 11.343/06 (Lei de drogas) (BRASIL, 2006BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: 17 jan. 2022.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
    ) que, além de ampliar o encarceramento negro no País, vem se constituindo como um dos principais fatores do encarceramento de mulheres negras, sendo o primeiro tipo penal atribuído para justificativa dessas prisões.
  • Agência financiadoraCOPES/POSGRAP/UFS – Projeto PIC9330-2020. Período de Execução: Agosto/2020 a Julho/2021.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoConsentimento dos autores.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
  • Revisado
    02 Mar 2022
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