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Crise do capital, direitos humanos e luta de classes

A questão dos direitos humanos (DH) tem suscitado inúmeras polêmicas e desafios teórico-políticos que dizem respeito, além de outras delimitações, à concepção e à função social que podem assumir como estratégia de sobrevivência, de resistência e de luta da classe trabalhadora ou, de outro modo, como estratégia das classes dominantes para naturalização da desigualdade social e disseminação de sua dominação ideológica. Ao propor, portanto, o debate sobre direitos humanos no contexto da crise do capital, com o reconhecimento da luta de classes como motor da história, a Katálysis, neste número, por meio dos artigos ora publicados, nos convida à reflexão crítica do tema em suas múltiplas possibilidades, considerando: a crise do capital e suas implicações na vida de diferentes segmentos da população e em fenômenos como o feminicídio e o encarceramento em massa; as contradições postas na realidade; as características e tendências da barbárie capitalista e da decadência ideológica da burguesia e a pluralidade teórica de entendimento dos direitos humanos. O conjunto das questões que permeiam a crise estrutural do capital atinge, de forma destrutiva, o trabalho, a natureza, a subjetividade dos indivíduos e a organização coletiva da classe trabalhadora e, neste sentido, torna-se necessário pensar com a razão dialética para superar abordagens a-históricas e potencializar as contradições das lutas pelos direitos humanos, que favoreçam o processo de formação da consciência de classe, notadamente nas particularidades do Brasil e da América Latina.

Em relação à concepção de direitos humanos, temos reflexões críticas sobre a abordagem liberal dos DH1 1 Cf. dentre outros: Tonet (2002), Mèszáros (2008), Trindade (2011) e iasi (2013). no ambiente, dentre outros, do pensamento marxista e das práticas políticas de esquerda, que, inclusive possibilitam a discussão das concepções, que buscam se diferenciar desta perspectiva. A abordagem liberal fundamenta o ideário burguês e ganha notoriedade ao conquistar, especialmente, por meio de imposições ideológicas, a capilaridade na vida cotidiana. São algumas de suas características, considerar o que está registrado na forma da lei (igualdade formal) como ponto de partida para pensar os indivíduos, a sociedade e as violações dos direitos. A ideia central deste pensamento consiste em naturalizar a desigualdade social e suas implicações na vida dos indivíduos, remetendo ao sujeito individual, as responsabilidades pelas condições de vida e de trabalho, descontextualizadas das relações sociais.

Entre as abordagens críticas ao pensamento liberal, destacamos a perspectiva economicista2 2 Vale enfatizar que ao nos referimos à abordagem economicista, além de remeter ao período da II Internacional e às implicações na organização da classe trabalhadora, estamos admitindo a atualização dessa perspectiva no debate contemporâneo. Na verdade, o economicismo se reatualiza mediante análises que, distanciadas do cotidiano das lutas, decretam, aprioristicamente, que o conteúdo de classe, as estratégias desenvolvidas e o potencial anticapitalista de determinadas lutas estariam necessariamente comprometidos por se tratar de lutas por direitos. que reduz o direito a epifenômeno das relações sociais capitalistas e concebe os DH como mera expressão do projeto burguês. Trata-se, pois, do entendimento de que a burguesia em sua avidez de controlar a vida social, dissemina ideologicamente valores, modos de ser e viver, tratando-os como se fossem universais. Assim, os direitos humanos nada mais seriam, que um dispositivo ideológico para disseminar os interesses e vontade política da burguesia, com o objetivo de naturalizar as condições materiais que geram a exploração da força de trabalho e a violação dos direitos. Ainda que haja concordância com o fato de as classes dominantes buscarem impor como universal seus interesses particulares e a tendência a naturalizarem os processos sociais, fazemos a crítica a este caminho economicista pela sua incapacidade de fornecer elementos à apreensão e análise da realidade, considerando a sua complexidade; as contradições; o conjunto de determinações que comparecem aos fenômenos; a relação dialética entre economia, política e cultura; a relação entre individualidade e sociabilidade e a existência de uma multiplicidade de sujeitos coletivos, com questões e reivindicações que expressam a barbárie capitalista. Tal realidade demanda níveis diversos de enfrentamento, incluindo dimensões teóricas e imediatas. Estas últimas se fazem notar nas situações de pauperização extrema (a exemplo dos indivíduos que estão sobrevivendo, submetidos à fome, ao desemprego, a nenhum acesso às políticas sociais, bem como às situações de violência em suas diferentes expressões). Leituras economicistas tendem a estabelecer fins heroicos para a classe trabalhadora, mantendo-se de costas ao cotidiano real desta classe.

Em confronto com esta concepção economicista, a perspectiva politicista, também forjada no ambiente do pensamento crítico, ao secundarizar as determinações econômicas, abriu caminho para a criação de um verdadeiro fetiche do direito, por supor que a dimensão jurídico-política se constituísse espaço real para a resolução dos conflitos sociais. Opera-se com o reconhecimento e a valorização dos sujeitos coletivos e suas reivindicações, mas a tendência teórico-política é de um tratamento fragmentário à realidade; tornando, como se fosse possível, o cotidiano, como um espaço-tempo autonomizado das determinações econômicas, próprias das relações sociais do mundo capitalista. Ademais, as lutas sociais, são entendidas, preferencialmente, numa relação de contraposição e até mesmo de negação da existência das classes sociais e da centralidade da luta de classes.

O ideário economicista opera com um nível padronizado de entendimento da luta de classes e como tal, desvaloriza a agenda da diversidade humana e os novos sujeitos políticos e movimentos sociais que se formaram/formam no calor da luta em defesa dos direitos humanos. O ideário politicista ao submeter as contradições presentes na realidade à resolução do Estado, deixa escapar o centro das determinações que explicam, em toda sua densidade histórica, a exploração da força de trabalho e as violações dos direitos e da diversidade humana. É a própria dinâmica da luta de classes em plena crise estrutural do capital que fica secundarizada.

No universo do marxismo, por meio da interação com o pensamento de Marx e de Lukács, notadamente com os fundamentos ontológicos desenvolvidos por este último tem sido possível superar reducionismos e simplificações no entendimento dos direitos humanos. E assim, reposicionar, de modo dialético, a função social do direito na sociedade capitalista, apreendendo a necessidade histórica, os limites e as contradições desse complexo social parcial. Segundo Mèszáros (1986, pMÉSZÁROS, I. Marxismo e direitos humanos. In: Filosofia, ideologia e ciência social: ensaios de negação e afirmação. São Paulo, Boitempo, 1986.. 197):

A ideia muito difundida de que o marxismo é um reducionismo econômico grosseiro, segundo o qual o funcionamento do sistema jurídico é determinado direta e mecanicamente pelas estruturas econômicas da sociedade, representa uma interpretação liberal da rejeição radical de Marx à concepção jurídica liberal. Certamente, ninguém poderia negar que Marx não tem nada a ver com a “ilusão jurídica”, que trata a esfera dos direitos como independente e autorregulada. Entretanto, a rejeição de uma ilusão não significa, de maneira alguma, que a esfera legal como um todo seja considerada ilusória.

Vejamos tão somente dois aspectos que, para fins deste editorial, consideramos importantes para contribuir na superação dessas três abordagens (liberal, economicista e politicista) que expressam limitações teórico-políticas na apreensão da vida social e em particular do complexo do direito na sociedade capitalista, bem como da própria ação do Estado e da relação entre DH, organização da classe trabalhadora e formação da consciência de classe. O primeiro aspecto é o desafio e a necessidade histórica quanto ao entendimento dos DH em uma perspectiva de totalidade. Isto implica em captar as relações contraditórias e de determinação entre o complexo social do direito e a totalidade social, com a devida articulação e síntese entre economia, política e cultura. Trata-se, pois, de superar “informações amplamente disseminadas como verdade, de que a defesa dos DH leva necessariamente a uma concepção politicista ou, de outro modo, de que a crítica aos DH é sempre uma crítica de base economicista e contrária aos DH” (SANTOS, 2016, pSANTOS, S. M. M. Ética em movimento: curso de capacitação para agentes multiplicadores/as. Brasília: CFESS, 2016. (Ética e direitos humanos, Módulo 3).. 63). O caminho teórico-metodológico fundado em uma perspectiva de totalidade tem sido fértil, também, no enfrentamento da perspectiva liberal e sua imposição do caráter de universalidade abstrata atribuído aos direitos humanos.

O segundo aspecto refere-se, justamente, a questão da universalidade, que tem sido alvo de reflexões no debate contemporâneo. Isso porque vários sujeitos, que se organizaram em torno da agenda dos DH, têm proclamado a crítica à noção de universalidade, identificada nos marcos da modernidade, dada sua incapacidade de considerar a pluralidade de temas, questões, sujeitos e reivindicações. Assume, desse modo, a caracterização de que se trata de um tipo de universalidade abstrata, que paira sobre particularidades, tais como as de raça, sexualidades, identidade de gênero; anticapacitista, dentre muitas outras. Na contramão desse ideário de uma universalidade abstrata, trata-se de apreender mediações fundamentais para alcançar uma concepção de universalidade concreta. O ponto de partida é o indivíduo em suas condições materiais de existência, o indivíduo histórico, social e diverso, de carne e osso. Sobre isso ao estabelecer a crítica à concepção de universalidade do sistema do capital, Sartori (2013, pSARTORI, V. B. Questão da universalidade e do humanismo sob a luz da supressão do capital em Marx e Lukács. Textos&Debates, Boa Vista, n. 23, p. 11-28, jan./jun. 2013.. 15) afirma que:

Trata-se de uma forma de sociabilidade cujas soluções e resoluções encontram-se no campo da política e, assim, também no campo da dominação, por mais permeada por uma forma de universalidade que essa dominação possa estar. Tratando-se de uma sociedade calcada no antagonismo de classes e na divisão do trabalho [...] a forma pela qual a universalidade se apresenta não pode deixar de ter tons de particularismo, do particularismo da própria sociedade civil-burguesa.

A defesa estratégica dos direitos humanos3 3 [...] a história social dos Direitos Humanos é o resultado da luta de classes, da pressão popular, da organização dos trabalhadores e dos sujeitos políticos em face da opressão, da exploração e da desigualdade. Trata-se de uma história de lutas específicas progressistas que se conectam com outros tipos de luta: anticapitalista, revolucionárias, de libertação nacional etc., tendo por unidade a defesa da liberdade e da justiça social (BARROCO, 2008, p. 12). não se realiza aprioristicamente, por fora da dinâmica da luta de classes, mas no seu front, observando, o tempo todo, os limites da universalidade ilusória posta pelo capital. Exatamente por isso é tão significativo que a Katálysis possibilite neste número reflexões diversas e plurais sobre os direitos humanos. Estamos em pleno 2023, data em que comemoramos 30 anos do Código de Ética do/a Assistente Social, que em muito favoreceu a inserção dos DH na agenda profissional. Repõem-se questões históricas: é possível afirmar que os direitos humanos sirvam exclusivamente à reprodução dos interesses do capital? Ou que possam favorecer ganhos à classe trabalhadora? Como a cultura crítica construída no universo das Ciências Humanas e Sociais e, em particular no Serviço Social brasileiro, pode contribuir para superar alternativas que reproduzem formas de apreensão da realidade pouco complexas, ancoradas em determinismos, politicismos e numa concepção abstrata de universalidade? O legado de Marx e Lukács e de outros autores e autoras contemporâneos/as podem contribuir para o entendimento, no tempo presente, das complexas relações entre emancipação política e emancipação humana? Quais lições históricas podemos reter das lutas dos povos indígenas; das reivindicações que configuram o enfrentamento das relações sociais de classe, raça e sexualidades e do amplo espectro das lutas contra a violação da diversidade humana? Todas estas questões embalam o solo temático fundamental da luta por direitos humanos em sua heterogeneidade apresentada nos artigos que formam este número.

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    Cf. dentre outros: Tonet (2002)TONET, I. Para além dos direitos humanos. Novos Rumos, v. 37, n. 17, São Paulo, 2002., Mèszáros (2008), Trindade (2011)TRINDADE, J. D. L. Os direitos humanos na perspectiva de Marx e Engels. São Paulo: Ôfega/Ômega, 2011. e iasi (2013)IASI, M. O direito e a luta pela emancipação humana. In: FORTI, V.; BRITES, C. (org.). Direitos humanos e serviço social: polêmicas, debates e embates. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013..
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    Vale enfatizar que ao nos referimos à abordagem economicista, além de remeter ao período da II Internacional e às implicações na organização da classe trabalhadora, estamos admitindo a atualização dessa perspectiva no debate contemporâneo. Na verdade, o economicismo se reatualiza mediante análises que, distanciadas do cotidiano das lutas, decretam, aprioristicamente, que o conteúdo de classe, as estratégias desenvolvidas e o potencial anticapitalista de determinadas lutas estariam necessariamente comprometidos por se tratar de lutas por direitos.
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    [...] a história social dos Direitos Humanos é o resultado da luta de classes, da pressão popular, da organização dos trabalhadores e dos sujeitos políticos em face da opressão, da exploração e da desigualdade. Trata-se de uma história de lutas específicas progressistas que se conectam com outros tipos de luta: anticapitalista, revolucionárias, de libertação nacional etc., tendo por unidade a defesa da liberdade e da justiça social (BARROCO, 2008, pBARROCO, M. L. S. A historicidade dos direitos humanos. PUC Viva. 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, São Paulo, ano 9, n. 33, 2008.. 12).

Referências

  • BARROCO, M. L. S. A historicidade dos direitos humanos. PUC Viva. 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, São Paulo, ano 9, n. 33, 2008.
  • IASI, M. O direito e a luta pela emancipação humana. In: FORTI, V.; BRITES, C. (org.). Direitos humanos e serviço social: polêmicas, debates e embates. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
  • MÉSZÁROS, I. Marxismo e direitos humanos. In: Filosofia, ideologia e ciência social: ensaios de negação e afirmação. São Paulo, Boitempo, 1986.
  • SARTORI, V. B. Questão da universalidade e do humanismo sob a luz da supressão do capital em Marx e Lukács. Textos&Debates, Boa Vista, n. 23, p. 11-28, jan./jun. 2013.
  • SANTOS, S. M. M. Ética em movimento: curso de capacitação para agentes multiplicadores/as. Brasília: CFESS, 2016. (Ética e direitos humanos, Módulo 3).
  • TONET, I. Para além dos direitos humanos. Novos Rumos, v. 37, n. 17, São Paulo, 2002.
  • TRINDADE, J. D. L. Os direitos humanos na perspectiva de Marx e Engels São Paulo: Ôfega/Ômega, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023
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