Resumos
O presente trabalho problematiza a utilização, em políticas públicas, de uma imagem-conceito que possui vários nomes: homem, identidade, eu, self, personalidade, ego, alma, psique, subjetividade, individualidade. Propõe discutir algumas das ressonâncias dessa imagem-conceito, seus prejuízos e vicissitudes, quando aplicada às políticas públicas. Elenca como objeto de análise o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). O ensaio procura demonstrar que tal problemática não pode ser restringida a uma questão meramente teórica, já que se trata de invenção, produção e gestão de modos de vida. Ou seja, que quando incorporada a uma política pública tal imagem-conceito produz sentido, leis, normativas, espaços de interação, práticas de condução, políticas de financiamento, agentes, atores, enfim, produz modos de viver.
Socioeducação; Identidade; Sinase; Políticas públicas
This article analyzes the use in public policies of an image concept that has various names: man, identity, I, self, personality, ego, soul, psyche, subjectivity and individuality. It discusses some of the resonances of this image-concept, the harm it causes and its vicissitudes when applied to public policies. The object of analysis was the National System of Socio-educational Service (Sinase). The article demonstrates that this analysis cannot be restricted to a merely theoretical question, given that it involves invention, production and management of ways of life. That is, that when incorporated to a public policy, this image-concept produces meaning, normative laws, spaces of interaction, practices of conduct, financing policies, agents and actors - that is, it produces ways of life.
Socio-education; Identity; Sinase; Public policies
ESPAÇO TEMÁTICO POLÍTICAS SOCIAIS E QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS
Socioeducação e identidade: onde se utiliza Foucault e Varela para pensar o Sinase
Socio-education and Identity: using Foucault and Varela to consider Sinase
Cleci MaraschinI; Édio RaniereII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs)
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs)
RESUMO
O presente trabalho problematiza a utilização, em políticas públicas, de uma imagem-conceito que possui vários nomes: homem, identidade, eu, self, personalidade, ego, alma, psique, subjetividade, individualidade. Propõe discutir algumas das ressonâncias dessa imagem-conceito, seus prejuízos e vicissitudes, quando aplicada às políticas públicas. Elenca como objeto de análise o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). O ensaio procura demonstrar que tal problemática não pode ser restringida a uma questão meramente teórica, já que se trata de invenção, produção e gestão de modos de vida. Ou seja, que quando incorporada a uma política pública tal imagem-conceito produz sentido, leis, normativas, espaços de interação, práticas de condução, políticas de financiamento, agentes, atores, enfim, produz modos de viver.
Palavras-chave: Socioeducação. Identidade. Sinase. Políticas públicas.
ABSTRACT
This article analyzes the use in public policies of an image concept that has various names: man, identity, I, self, personality, ego, soul, psyche, subjectivity and individuality. It discusses some of the resonances of this image-concept, the harm it causes and its vicissitudes when applied to public policies. The object of analysis was the National System of Socio-educational Service (Sinase). The article demonstrates that this analysis cannot be restricted to a merely theoretical question, given that it involves invention, production and management of ways of life. That is, that when incorporated to a public policy, this image-concept produces meaning, normative laws, spaces of interaction, practices of conduct, financing policies, agents and actors - that is, it produces ways of life.
Key words: Socio-education. Identity. Sinase. Public policies.
Introdução
O Contemporâneo impõe alguns limites. Entre eles, ou talvez perpassando muitos deles, está uma imagem-conceito de muitos nomes: homem, identidade, eu, self, personalidade, ego, alma, psique, subjetividade, individualidade. Questionada e pulverizada pela ciência cognitiva, pela filosofia da diferença e combatida veementemente por estudiosos das mais diversas áreas, mas, ao mesmo tempo, extremamente valorizada pelo senso comum e pela literatura de autoajuda, tal imagem-conceito vem fabricando danosas intervenções sobre a vida de muitos. O artigo propõe discutir algumas das ressonâncias dessa imagem-conceito, seus prejuízos e vicissitudes, quando aplicada diretamente às políticas públicas. Por objeto de análise, elencou-se como exemplo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)1, o qual, uma vez sancionado, tornar-se-á uma política pública de âmbito nacional.
A análise do Sinase revela a manutenção da centralidade dessa imagem-conceito. O que vamos tentar demonstrar no transcurso da argumentação é que não se trata de uma questão meramente teórica, mas de invenção, produção e gestão de modos de vida. Ou seja, que, quando incorporada a uma política pública, tal imagem-conceito produz sentido, leis, normativas, espaços de interação, práticas de condução, políticas de financiamento, agentes, atores, enfim, produz modos de viver.
Identidade e socioeducação: de quando uma imagem-conceito acoplada a uma política pública cria o sujeito socioeducativo
As medidas socioeducativas, previstas no artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), são aplicáveis ao ato infracional praticado por adolescente entre 12 a 18 anos. As medidas podem abranger desde advertência; obrigação de reparar dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; até a inserção em regime de semiliberdade ou a internação em estabelecimento educacional (BRASIL, 1990).
No trabalho realizado com adolescentes infratores, a proposta socioeducativa vem à tona a partir de 1990 com a promulgação do ECA, momento histórico a partir do qual fomos levados a pensar numa ruptura conceitual. Ou seja, passamos a acreditar que os preceitos-base do código de menores cederam espaço aos da garantia de direitos. Quase 20 anos depois uma importante sequência desse movimento entra em cena. Desde 2007, tramita o projeto de Lei n. 1.627/2007 que prevê a instituição do Sinase e o estabelecimento de um padrão para a execução das medidas socioeducativas. O projeto foi aprovado em plenária, na Câmara dos Deputados no dia 2 de junho de 2009, e encaminhado ao Senado para apreciação.
A necessidade de estabelecer um padrão para os procedimentos socioeducativos evidencia a existência atual, de vários modos-modelos em funcionamento. As máquinas de compreensão-execução do trabalho socioeducativo só funcionam acopladas a outras máquinas. Esses híbridos geram vários sistemas-planos-platôs socioeducativos2.
Partindo da experiência de três anos de um dos autores deste artigo - dois anos como coordenador de medidas socioeducativas da Secretaria de Estado da Criança e da Juventude do Paraná e um ano como Psicólogo no Centro de Internação Provisória de Blumenau -, arrolamos abaixo, de forma bastante resumida, o que poderiam ser alguns exemplos desses platôs:
a) Platô Romântico-Humanista: onde se pretende um adolescente protagonista de sua própria história. Trabalha-se no sentido de lhe proporcionar inclusão e autonomia.
b) Platô Jurídico-Garantista: onde se pretende legalizar o adolescente em conflito com a lei. Trabalha-se no sentido de lhe proporcionar os benefícios e as responsabilidades legais.
c) Platô Mídia-Senso Comum: onde se pretende punir com mais rigor o adolescente infrator. Trabalha-se no sentido de lhe submeter castigos mais intensos, por exemplo, atingir a maioridade penal aos 16 anos.
d) Platô Assistencialista-Protecionista: onde se pretende proteger o adolescente das mazelas sociais. Trabalha-se no sentido de lhe oferecer condições ideais para seu desenvolvimento.
e) Platô Religioso-Correcional-Resgatante-Salvacionista: onde se pretende evangelizar o adolescente pecador. Trabalha-se no sentido de lhe converter a uma nova vida.
f) Platô Ideológico-Militante: onde se pretende politizar o adolescente oprimido. Trabalha-se no sentido de lhe conscientizar sobre as desigualdades sociais.
g) Platô Escolar-Disciplinar-Profissionalizante: onde se pretende fabricar um adolescente-corpo-dócil. Trabalha-se no sentido de lhe possibilitar o cumprimento das normativas do ensino formal e a inserção no mercado de trabalho.
A distinção desses diferentes platôs poderia revelar um vetor convergente a todos eles que poderíamos chamar de rizoma socioeducativo? É possível colocar a mesma questão de outra forma: haveria algo em comum entre o Código de Mello Mattos, de 19273, o Código de Menores, de 1979 (BRASIL, 1979) - baseado na Doutrina da Situação Irregular -, o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e o próprio Sinase? Poderia um conceito ter escapado às reformas legais, e estar sendo sistematicamente aperfeiçoado por elas? Seria o Sinase a radicalização de um processo de regulação/dominação sobre o adolescente infrator iniciado há quase 100 anos?
Ou ainda:
O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma 'alma' o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo (FOUCAULT, 2007, p. 29).
Em todos os platôs percebe-se que a execução da medida, esteja ela amarrada a um caráter punitivo, re-educativo, restaurativo, protagonista, garantista, só funciona quando acoplada a este difuso de vários nomes: psique, personalidade, identidade, individualidade. Cabe ressaltar que um dos eixos, senão o principal do Sinase, é o Plano Individual de Atendimento (PIA). O qual será obrigatório a todo adolescente em cumprimento de medida:
As ações socioeducativas devem exercer uma influência sobre a vida do adolescente, contribuindo para a construção de sua identidade, de modo a favorecer a elaboração de um projeto de vida, o seu pertencimento social [...]. Para tanto, é vital a criação de acontecimentos que fomentem o desenvolvimento da autonomia, da solidariedade e de competências pessoais relacionais, cognitivas e produtivas. Nesse sentido, a elaboração do Plano Individual de Atendimento (PIA) constitui-se numa importante ferramenta no acompanhamento da evolução pessoal e social do adolescente e na conquista de metas e compromissos pactuados com esse adolescente (SINASE, 2006, p. 52).
O Sinase - muito bem fundamentado em conceitos e tratados humanistas - estabelece a identidade do adolescente infrator como território privilegiado às ações socioeducativas. Dessa forma, até que ponto a prática socioeducativa tem seu funcionamento atrelado ao conceito de identidade? Caso este conceito fosse sumariamente extirpado das práticas socioeducativas, haveria ainda possibilidade de socioeducação? Ou como diz Varela, quando inflamos as dimensões do viver de ego (identidade), as esvaziamos de experiência? Poderia a experiência ser um articulador distinto da identidade no operar da política?
No intuito de dar sequência a essas indagações provocativas, vamos retomar brevemente em Michel Foucault e em Francisco Varela4 a discussão identitária. Tal escolha irá possibilitar a compreensão da invenção e do constante esfacelamento da identidade/sujeito.
Morte de Deus versus nascimento do homem: onde Michel Foucault nos ajuda a localizar o aparecimento do homem
O livro As palavras e as coisas é bastante complexo e múltiplo. Complexo por conter uma exaustiva análise com base em documentos, sem dúvida, distantes de nosso cotidiano; e múltiplo por pensar e apontar em várias direções. Cabe, portanto uma distinção inicial. O que pretendemos realizar, não é mais que um mero recorte com a óbvia finalidade de analisar o tema proposto. Ou seja, não existe aqui uma pretensão totalizante - com relação a compreensão da obra - a intenção é a de pinçar, recortar e acoplar alguns fragmentos dela à análise sobre a operação da experiência, do cotidiano, no conhecer. Feita a ressalva, passemos a análise.
Em As palavras e as coisas Foucault nos presenteia com duas imagens-território, imagens que percorrem todo o livro. Em qualquer momento de dúvida ou de embaraço filosófico-literário é possível recorrer a elas. Assim, além dos inúmeros exemplos que o autor nos apresenta para cada questão posta, ainda temos essas imagens, sempre disponíveis para retornar. São espécies de boias flutuantes, onde é possível se segurar um pouco para respirar, para descansar os braços durante a travessia intempestiva de As palavras e as coisas. Essas imagens-boias são: o Empório celestial de conhecimento benevolente e o Quadro de Velázques.
Cada uma com seu funcionamento próprio. Através da benevolente enciclopédia chinesa enxergamos claramente a problemática do livro. Ou seja, de que a "[...] ordem, sobre cujo fundamento pensamos, não tem o mesmo modo de ser que a dos clássicos" (FOUCAULT, 1995, p. 19).
E através da segunda imagem, o quadro Las meninas percebemos o desaparecimento necessário daquilo que fundava a representação clássica. Desaparecimento "[...] daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de semelhança. Esse sujeito mesmo - que é o mesmo - foi elidido. E livre, enfim, dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura representação" (FOUCAULT, 1995, p. 21).
O melhor, contudo, consegue-se agenciando as duas imagens, fazendo com que funcionem juntas, cada qual trabalhando como parte de uma mesma máquina. Imagens engrenagens que ao serem ligadas lançam, tal qual um projetor cinematográfico, uma terceira imagem tela. É nessa tela que transcorre, a nosso ver, boa parte de As palavras e as coisas. Foucault inicia essa obra dizendo que ela teria nascido da primeira imagem: ou seja, do conto de Borges. Despreocupado com o ponto original ou talvez ironizando seu próprio processo de trabalho, o pensador francês poderia estar utilizando o conto de Borges como um mero recurso didático. O que queremos dizer é que talvez essa terceira imagem possa ter desencadeado a escrita da obra com muito mais violência do que o conto em questão. A essa altura, acreditamos, alguns leitores devem estar curiosos. Bem, vamos lá então: lhes apresentamos, ou melhor recordamos, pois todos, de uma forma ou de outra, conhecem bem a terceira imagem. Trata-se do Aforismo 125de A gaia ciência. Aforismo intitulado O insensato:
Para onde foi Deus?, exclamou ...vou lhes dizer! Nós o matamos, vocês e eu! Somos nós os seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu uma esponja para apagar o horizonte inteiro? [...] Haverá ainda um 'em cima' e um 'embaixo'? Não estamos errando através de um vazio infinito? Não sentimos na face o sopro do vazio? [...] Deus morreu! Deus continua morto! E nós o matamos! Como havemos de nos consolar, nós, assassinos entre os assassinos! O que o mundo possuía de mais sagrado e de mais poderoso até hoje sangrou sob o nosso punhal; quem nos limpará este sangue? Que água nos poderá lavar? Que expiações, que jogo sagrado seremos obrigados a inventar? A grandeza deste ato é demasiado grande para nós (NIETZSCHE, 2004, p. 115).
Como havemos de nos consolar, nós, assassinos entre os assassinos? Para algumas interpretações esse acontecimento, que Nietzsche chama de morte de Deus, foi tão forte, tão violento que seria o responsável por toda a produção artística, filosófica e científica desde a Renascença. Estaríamos todos, cada um a sua maneira, elaborando, produzindo formas de superar o grande trauma.
Espécie de imagem subsolo, imagem transversal, que percorre desde a primeira até a última página de As palavras e as coisas. Na página 319 da entrevista que ficou conhecida como Estruturalismo e Pós-Estruturalismo, Foucault diz que seu "[...] problema não é estudar a história das ideias em sua evolução, mas sobretudo ver debaixo das ideias como puderam surgir tais objetos como objetos possíveis de conhecimento." Em As palavras e as coisas o objeto em questão é o próprio homem; Foucault se pergunta como foi possível o surgimento do homem como objeto de estudo; quais as condições de possibilidade que o levaram a emergir de seu sono profundo e milenar? A fim de responder essa questão se utiliza de uma metodologia muito própria: a Arqueologia do saber (1969). Trata-se de metodologia aplicada por Foucault em a História da loucura (1961), o Nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966), textos organizados pelo filósolo Roberto Machado5. Segundo Machado, no prefácio escrito à Microfísica do poder (MACHADO, 1979), a tentativa deste método é a de descrever os nascimentos dos saberes e suas transformações, privilegiando para isso as inúmeras discursividades e suas articulações com as instituições.
Mais especificamente, em As palavras e as coisas, como Foucault faz isso? Como ele demonstra o nascimento da instituição Ciências Humanas? Como ele faz sua arqueologia funcionar?
Para responder sua questão, Foucault não parte das Ciências Humanas já consolidadas, ele irá buscar nas instituições de conhecimento que as antecederam sua possibilidade de nascimento. Dessa forma, põe-se a estudar três grandes instituições da idade clássica e a demonstrar como essas instituições ao se transformarem, ao se viabilizarem nos séculos 18 e 19, abriram caminho para a invenção das Ciências Humanas.
Assim, esse autor nos mostra como a Gramática Geral (instituição consolidada na idade clássica) se transforma (a partir do século 18) em Filologia; mostra-nos como a instituição Análise das Riquezas se transforma em Economia Política e como a História Natural se transforma em Biologia:
Quando o quadro da história natural foi dissociado, os seres vivos não foram dispersados, mas reagrupados, ao contrário, em torno do enigma da vida; quando a análise das riquezas desapareceu, todos os processos econômicos se reagruparam em torno da produção e do que a tornava possível; em contra partida, quando a unidade da gramática geral - o discurso - se dissipou, então a linguagem apareceu segundo modos de ser múltiplos, cuja unidade, sem dúvida não podia ser restaurada (FOUCAULT, 1995, p. 419).
Contudo, é importante lembrar, não se trata de forma alguma de evolução, de continuidade, mas de quebra, de ruptura, de descontinuidade. Nesse sentido além de tudo há aqui uma crítica muito bem estruturada por Foucault a respeito do progresso da história das ciências. Através desta metodologia, através da análise destas instituições, Foucault nos faz visualizar uma linha transversal; uma linha que perpassa a transformação destas três instituições do conhecimento. Esta linha seria a "finitude":
[...] para o pensamento dos séculos 17 e 18, era sua finitude que constrangia o homem a viver uma existência animal, a trabalhar com o suor de seu rosto, a pensar com palavras opacas; era essa mesma finitude que o impedia de conhecer de modo absoluto os mecanismos de seu corpo, os meios de satisfazer suas necessidades, o método para pensar sem o perigoso auxílio de uma linguagem toda tramada de hábitos e de imaginações (FOUCAULT, 1995, p. 435).
Finitude que só pôde ser liberada com o grande acontecimento que Nietzsche chamou de morte de Deus. Contudo, se a morte de Deus é que libera o homem como objeto de conhecimento, ela ao mesmo tempo o esvazia. Foucault nos chama a atenção para a possibilidade de que da mesma forma como surgiu o homem este estaria fadado a desaparecer. Chegando ao extremo de nos perguntar se o homem verdadeiramente existe.
A todos que pretendem ainda falar do homem, de seu reino ou de sua libertação, a todos os que formulam ainda questões sobre o que é o homem em sua essência, a todos os que pretendem partir dele para ter acesso à verdade, a todos os que, em contrapartida, reconduzem todo conhecimento às verdades do próprio homem, a todos que não querem formalizar sem antropologizar, que não querem mitologizar sem desmistificar, que não querem pensar sem imediatamente pensar que é o homem quem pensa, a todas essas formas de reflexão canhestras e distorcidas, só se pode opor um riso filosófico - isto é, de certo modo, silencioso (FOUCAULT, 1995, p. 473).
Este pressuposto, sempre desconstruído, mas insistente é o objeto de análise de Francisco Varela e seus colaboradores em A mente incorporada. Trata-se de um estudo minucioso e profundo sobre a ausência. A obra demonstra a impossibilidade científica de localizar o suposto homúnculo que nos habita, bem como sobre a insistência que sua acoplagem realiza, através da crença, da esperança, do medo, da sacralização, com o mundo-pensamento ocidental.
Inexistência identitária: de quando os estudos da cognição não encontram um "eu"
Varela, Thompson e Rosch (2003, p. 15) propõem que as ciências da mente poderiam ser enriquecidas se incluíssem a experiência vivida. Com esse intuito produzem uma conversa entre as ciências cognitivas com tradições meditativas orientais. Ao retomar algumas das principais abordagens do entendimento da mente nas ciências cognitivas - cognitivismo, conexionismo e enação - vão deixando claro o quanto "o self ou o sujeito cognoscente é fundamentalmente fragmentado, dividido ou não unificado."
Nosso propósito nessa seção é retomar brevemente os argumentos dos autores para afirmar que a ideia de um sujeito (cognitivo), como desdobrada na seção anterior, embora seja questionada pelas abordagens das ciências cognitivas, mantém-se persistente entre os próprios pesquisadores da área. Essa espécie de retorno fantasmagórico animaria modos de pensar nos quais se reafirmariam padrões identitários e de self que dariam guarida ao que estamos denominando de sujeito socioeducativo. O desenrolar da discussão também possibilita evidenciar que esse conceito-imagem - egoinsistência - persiste no Sinase e nos levará a questionar o que aconteceria se as próprias políticas públicas fizessem um deslocamento do eu para a experiência.
O primeiro ponto de parada no percurso dos autores é o cognitivismo, que é entendido como a forma clássica das ciências cognitivas, baseado no modelo computacional. Para essa abordagem, a cognição pode ser definida "como computações de representações simbólicas" (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 55). Uma computação é uma operação realizada com símbolos - elementos que representam o que eles significam. A cognição só pode ser explicada no pressuposto que um agente age representando padrões relevantes de sua situação. Quanto mais precisa a representação e mais inequívocas as regras da operação, mais bem sucedida será a cognição. Mas esse agente não é consciente de suas computações. Nenhum agente teria qualquer consciência de computação em um meio simbólico interno, pois a consciência não é necessária para se ter representações ou estados representacionais. Para os autores, o cognitivismo adota a ideia de um eu fragmentado ao postular processos cognitivos em relação aos quais não podemos ter consciência. Mas vai mais além, como não há relação entre cognição e consciência, pode decorrer a ideia de que o eu "não seja nem mesmo necessário para a cognição" (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p. 65). Jackendoff (2002), um cientista muito referenciado no campo cognitivo, chega a ser categórico: "[...] a consciência não serve para nada." Embora uma parcela dos cognitivistas admita a cisão entre computação simbólica inconsciente e experiência consciente, as relações entre as mesmas permanecem indecidíveis, postulando-se que mesmo a consciência não seja unificada.
O segundo ponto de parada é o conexionismo que concebe a operatividade cerebral como uma miríade de conexões massivas e distribuídas que mudam com a história de suas ocorrências. Os conjuntos de conexões apresentam uma capacidade auto-organizativa. O ponto de partida da abordagem conexionista não é mais os símbolos e as regras, mas uma multidão de componentes não inteligentes, que, quando adequadamente conectados, apresentam propriedades globais que podem ser traduzidas pelas capacidades cognitivas conhecidas. O significado é entendido como efeito de um estado global do sistema. Em um sistema assim concebido, segundo Varela, Thompson e Rosch (2003, p. 102, 117), "não há necessidade de uma unidade de processamento central para orientar toda a operação." Outra característica dos agregados de neurônios - redes - é que os mesmos desaparecem e surgem constantemente por meio de interações cooperativas. Nesses agregados cada neurônio pode ter múltiplas respostas, dependendo do contexto, do que fazem outros componentes. Os agregados são concebidos como padrões ressonantes - acontecimentos da emergência - que demandam tempo para surgir, pois envolvem ciclos de atividades entre todas as redes locais participantes. Um sistema assim concebido não resulta de um planejamento minimalista e unificado, mas "se assemelha a um mosaico de sub-redes reunidas por um processo complexo de composição." Para os autores, ciência e experiência se separam na medida em que o conexionismo, ao mesmo tempo em que conclui não haver espaço para postular um self, admite que não podemos abandonar a convicção nesse self. Tal dualidade leva a um impasse.
Os pontos de parada anteriores permitem observar que nenhum deles resolve a questão da inexistência do self e da crença em sua existência. Os autores perguntam: se não temos self como seguimos pensando, sentindo e agindo como se tivéssemos um? A formação histórica de padrões e de tendências em nossas vidas (que chamamos de self) seria correlativa a uma vida não reflexiva do dia a dia. A um modo de vida condicionado por esses padrões. Os autores chegam então a uma interessante proposição: quanto mais nos apegamos à ideia de um self (padrões condicionados), menos somos sensíveis à experiência. É a partir dessa instigante proposição que seguimos o debate.
Prejuízos corporificados: onde um conceito abstrato prejudica o corpo socioeducativo
Aqui uma importante questão se coloca: se não há uma justificativa sólida que sustente a imagem-conceito debatida, quais os riscos de sustentar, através dela, um projeto de âmbito nacional? O Sinase aponta como meta para todo o país a execução de medidas, fundamentadas em concepções humanistas, onde a identidade, a essência individual de cada um dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa sejam o alvo. Este trabalho, chamado de Plano Individual de Atendimento (PIA), pretende que cada adolescente configure para si um projeto particular de vida, que lhe sirva para dentro e fora dos muros socioeducativos. Nas palavras do senador Flávio Arns (2010, online), relator do projeto no Senado, "[...] a proposta busca individualizar ao máximo o plano de execução da medida socioeducativa aplicada a cada adolescente."
O que mais nos impressiona no Sinase é a mudança no paradigma correcional. A tecnologia de correção aplicada aos adolescentes, nascida no século 18 e ainda em voga em casos de internação e internação provisória, é fundamentalmente distinta. A utopia correcional "pré-sinase" funciona acoplada ao regulamento da instituição, suas rotinas, suas práticas diárias: tal hora levantar, tal hora rezar, tal hora trabalhar, tal hora estudar. O novo paradigma possibilita que o Estado execute uma intervenção sobre a rotina - administração do tempo - com a promessa de transformar, através do hábito, o adolescente indisciplinado em um corpo docilegal: socialmente útil - corpo dócil - e, ao mesmo tempo, socialmente legalizado. Não basta, obviamente, trabalhar, já que muitos desses adolescentes cumprem medida socioeducativa, justamente, em virtude das suas rotinas de ocupação: tráfico, roubo, contrabando. Ou, dizendo de uma forma politicamente correta, o jovem deverá ter acesso a políticas públicas que lhe permitam inclusão social. A crença depositada nessa máquina correcional é de que seria possível utilizar algumas engrenagens da escola, da religião, do esporte, das artes para que o adolescente infrator possa ser reprogramado em suas tendências indisci-plinadas e ilegais. Nesse paradigma, essa reprogra-mação é facilitada quando o adolescente cumpre o programa-rotina da instituição.
Algumas perguntas se colocam: o que possibilita esta recente e ainda insipiente mudança de programa? O que está fazendo a rotina ceder lugar à identidade? O que é isto que está destituindo a casa de correção e instaurando a identidade? O que busca Sinase quando estabelece o PIA que faz da identidade do adolescente infrator a essência do trabalho socioeducativo? E, fundamentalmente, caberia perguntar: essa identidade existe realmente ou é um mero efeito do poder que se aloja sobre este adolescente?
Se, conforme Foucault, o homem tende a desaparecer, se o sujeito é apenas um efeito do poder, se todas as quimeras humanistas estão fadadas ao riso, talvez o programa de execução nacional do Sinase com seu forte conceito de "identidade", além de despertar gracejos possa estar tropeçando em algo ficcional, necessitando, nesse sentido, de uma análise mais profunda. Contudo, o risco que nos parece eminente, conforme análise de Varela, Thompson e Rosch, é de que toda uma política pública, de abrangência nacional, para a qual, provavelmente, muito recurso será destinado, traz, como tecnologia, como máquina central, como motor correcional, uma entidade abstrata, pouco reconhecida pela ciência, pouco alimentada pelo senso comum. O mais assustador é perceber que a intervenção do Estado sobre um adolescente dar-se-á através de conceitos abstratos: poder em pleno funcionamento, poder que produz pessoas, poder criativo, poder que legitima a infração como uma questão de escolha individual.
Não importa que proposição seja usada para explicar a origem da conduta do adolescente em conflito com a lei: se ele nasceu com uma essência má que deve ser capturada, pedagogicamente corrigida, para que progressivamente seja extirpada; se ele é resultado de uma série de negligências, abandonos e maus-tratos sociais, que o forçam a desenvolver uma personalidade infratora. Não importa que justificativa seja usada para buscar soluções: uma responsabilidade ética, que busque defender os direitos humanos daqueles que foram socialmente excluídos; ou se a defesa de tais direitos, como propaga a mídia, seja ultrajante às pessoas de bem - "pois apregoa que bandido vai ser sempre bandido" - parece que uma mesma e única convicção sustenta todas essas posições: a certeza inabalável da existência desse difuso de vários nomes: alma, eu, personalidade, identidade. Um eu que pode ser responsabilizado, recuperado, ressocializado; um eu vítima, ou não, que tem seus direitos individuais garantidos por lei, sendo o direito à propriedade privada o mais legítimo de todos.
Constantemente aperfeiçoado, esse conceito nos possibilita aceitar que recaia sobre ombros privados todas as misérias e riquezas que a humanidade têm produzido. Mais que aceitar, naturalizamos o processo.
Este eu, que pouco importa se é socialmente construído ou se é uma essência inata, vem sendo cada vez mais utilizado no exercício de dominação-domesticação da vida. Do período que Foucault (2007) tratou como Sociedade Disciplinar, a este que Deleuze (1992) chamou Sociedade de Controle, foi sempre o homem acoplado aos seus direitos a peça principal.
Na Sociedade de Soberania - séculos 12 e 13 -, a cabeça de todos dependia de um único homem-guilhotina. O déspota não era apenas gestor, decidia pela vida ou pela morte de seus súditos. Nessa época, a produção de si, produção de sentidos, era agenciada por uma virtualidade: como devo proceder para que o rei não corte meu pescoço? Esta pergunta, ferramenta vital, forjou corpos, fez sentir, amar, desejar de um certo modo. Era o eu único, o eu tirano do rei produzindo formas de ser.
Na Sociedade Disciplinar - séculos 18, 19, com apogeu no século 20 -, o homem tirânico é substituído pelo homem panóptico. A decisão sobre a vida cede lugar ao controle sobre a existência. Na Sociedade de Soberania, a vida valia muito pouco, mas agora se ganha dinheiro com ela. É preciso, portanto, conservar as pessoas aptas ao trabalho, moldá-las, docilizá-las, produzir bons empregados. O advento do capitalismo exige braços, suor e disciplina. A norma substitui a guilhotina. O virtual é transferido: como devo agir para que me considerem normal? Um pai normal, um empregado normal, um sujeito normal? Esta pergunta, fábrica persona-lizante, produz corpos dóceis, úteis, bons trabalhadores. Trata-se de um eu instituição - família, escola, exército, fábrica, hospital, prisão - produzindo formas de ser institu-cionalizadas.
Para Deleuze (1992), contudo, haveria ainda um terceiro momento, chamado por ele, em homenagem a Wi-lliam Burroughs6, de Sociedade de Controle. Nela os espaços fechados-institucionalizados, detentores do olhar na Sociedade Disciplinar, são multiplicados ao infinito.
Segundo este "olhar" deleuziano, estaríamos nos deslocando do panoptismo, do homem/olho/centro, homem/olho/referência, homem/olho/norma, para um sistema rizomático de controle onde somos vigiados, intermitentemente, por múltiplos olhos-alma em rede. No auge do panoptismo, ainda havia a rua, o mar, a floresta, espaços abertos onde respirávamos sem tanto acometimento disciplinar. Nesses espaços lisos, era possível produzir diferenciações, pois ali a normalidade tinha dificuldades para chegar. Hoje, com a quadriculação milimétrica instaurada pela sociedade do olho, todos os espaços estão tomados. Para essa opressiva Clausura do Fora, uma nova virtualidade: será que fiquei bem na foto? Essa pergunta, atualização singularizante, edita corpos fetichizados, empacotados e vendidos alegremente pelos Shopping Centers da alma. Livre da tirania despótica e da normalidade institucional, a alma pode enfim tornar-se a dobra ideal do poder.
Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc.; sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir dela, valorizaram-se as reivindicações morais do humanismo (FOUCAULT, 2007, p. 28-29).
Aqui uma cena perturbadora se insinua: estaríamos direcionando nosso trabalho socioeducativo a uma espécie de capitão do mato da Sociedade de Controle? Na sociedade escravocrata brasileira a principal função desse profissional era capturar o escravo fugitivo. Ao capitão do mato cabia resgatar um "corpo não humano", um corpo "sem alma" que não aceitava as leis da época, leis humanas, boas para todos que eram humanos. O que autorizava tamanha barbárie era justamente o conceito de alma: nessa época era possível escravizar aqueles que não possuíam alma. Atualmente, onde a alma foi democraticamente distribuída para todos, um adolescente/favela, descendente ou não dos anteriormente despossuídos de direitos-alma e que por ventura da sorte se encontra em conflito com a lei - ou seria a lei que se encontra em conflito com o adolescente? - repete esse não aceitar às leis. A diferença é que, com a ascensão dos direitos humanos, o corpo não pode mais ser tocado. É sobre a alma, portanto, que se deve agir. Uma alma que precisa ser resgatada. Se o capitão do mato resgatava, às leis senhoris, um corpo sem alma, o risco que corre a socioeducação é de vir a ser um instrumento para resgatar almas às leis deste déspota que Guattari e Rolnik (2000) nominaram Capitalismo Mundial Integrado.
Notas
Recebido em 08.09.2010.
Aprovado em 10.02.2011.
Cleci Maraschin
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs)
Professora associada, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e Institucional da Ufrgs
Édio Raniere
Mestre em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Doutorando em Psicologia Social na Ufrgs
Orientadora: Profa. Dra. Cleci Maraschin
Ufrgs- Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional
Rua Ramiro Barcelos, 2600 - Térreo - Sala 13
Porto Alegre - Rio Grande do Sul
CEP: 90035-003
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Jun 2011 -
Data do Fascículo
Jun 2011
Histórico
-
Recebido
08 Set 2010 -
Aceito
10 Fev 2011