Acessibilidade / Reportar erro

Primeiras análises do serviço social brasileiro sobre a questão racial

First analyzes of the Brazilian Social Service on the racial issue

Resumo

Com o objetivo de analisar a questão racial e o Serviço Social, este artigo recupera dois Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) dessa profissão. O primeiro é da década de 1960, de autoria de Sebastião Rodrigues Alves. O segundo é de 1986, escrito por Elisabete Aparecida Pinto. Ambos, críticos argutos do mito da democracia racial brasileira, nutrem expectativas sobre as possibilidades profissionais no combate ao racismo.

Palavras-chave:
Serviço Social; Questão racial; Propostas profissionais

Abstract

With the objective of analyzing the racial issue and Social Work, this article recovers two Course Conclusion Papers of this profession. The first is from the 1960s, by Sebastião Rodrigues Alves. The second is from 1986, written by Elisabete Aparecida Pinto. Both astute critics of the myth of Brazilian racial democracy, nurture expectations about professional possibilities in the fight against racism.

Keywords:
Social Work; Racial issue; Professional proposals

Introdução

Inicialmente, podemos afirmar que os períodos em que Alves (1966)ALVES, S. R. A ecologia do grupo afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Serviço de documentação. Ministério da Educação, 1966. e Pinto (2003)PINTO, E. A. O serviço social e a questão étnico-racial: um estudo de sua relação com usuários negros. São Paulo: Terceira Margem, 2003. escrevem são marcados por um forte processo organizativo dos movimentos negros, na luta antirracista no Brasil. Por exemplo, na década de 1950 tem-se o Teatro Experimental do Negro e o Jornal Quilombo; desde 1978, tem-se o Movimento Negro Unificado. Momentos de grande florescimento intelectual da militância negra brasileira.

No Jornal “Quilombo1 1 O jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, com publicação mensal de dezembro de 1948 a julho de 1950, no Rio de Janeiro, apresentava as seguintes colunas: Livros, Tribuna estudantil, Escolas de Samba, Cinema, Música, Rádio, Negros na História, Fala A Mulher, [...] Pelourinho, Democracia Racial, Cartaz, Sociais, Close Up e Notícias do teatro Experimental do Negro, e tinha editorial assinado por Abdias do Nascimento. Em 2003 tem-se uma edição fac-similar publicada pela Editora 34. O acervo digital pode ser encontrado em: https://ipeafro.org.br/acervo-digital/leituras/ten-publicacoes/jornal-quilombo-no-01/. ” havia uma coluna chamada “democracia racial”. Quando o jornalista Abdias Nascimento publicava na revista utilizava do discurso da democracia racial enquanto margem de manobra para direitos iguais e como bandeira de luta, ou seja, para lutar e denunciar que a democracia racial não existia/existe no Brasil. Nesse sentido, tratava-se de tomar o mito da democracia racial, criticá-lo e reivindicar a luta pela igualdade, como elementos estratégicos à formação da identidade negra.

Os brasileiros africanos foram tratados sempre como outsiders. No melhor dos casos, nós éramos o folclore da esquerda. No pior, nós éramos divisores potencialmente responsáveis pela pulverização da unidade da classe trabalhadora. Basicamente, a esquerda identificada com ideologia europeia e suas vanguardas pertenceram à chamada elite do país” (Custódio, 2009, pCUSTÓDIO, T. Caminhos e trajetos: a trajetória intelectual de Abdias do Nascimento durante o período de exílio nos Estados Unidos (1968 — 1981). In: VIEIRA, V. R.; JOHNSON, J. Retratos e espelhos: raça e etnicidade no Brasil e nos Estados Unidos. São Paulo: FEA/USP, 2009. 431 p.. 153, grifo nosso).

Abdias Nascimento vai nos alertar sobre a cultura da libertação, a cultura da resistência vital do Quilombo dos Palmares. Ele afirma que

a estratégia de discriminação em nosso país, sob certo aspecto é mais sutil e mais cruel que a praticada no Estados Unidos, porque não permite qualquer oportunidade de defesa à vítima. Criou slogans, fabricou leis, com isto domesticou o negro. Em sua grande maioria o negro brasileiro sofre de dopagem da pseudo democracia racial que lhe impingiram (Nascimento, 1982, pNASCIMENTO, A. O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. https://issuu.com/institutopesquisaestudosafrobrasile/docs/o_negro_revoltado. Acesso em: 15 nov. 2023.
https://issuu.com/institutopesquisaestud...
. 27).

Podemos afirmar que essa dopagem se colocava ao Serviço Social, em que o efeito terapêutico e tranquilizante do mito da democracia racial era a mais absoluta omissão e cegueira diante do racismo que se escancarava nas taxas de baixa escolarização, na ocupação dos piores postos de trabalho e mesmo o não emprego de negros/as seja em que tarefa fosse, nas piores condições de moradia, na discriminação sofrida cotidianamente.

No livro “Relações Sociais e Serviço Social no Brasil” de Carvalho e Iamamoto (1983, p. 138–139) comparecem reclamações do empresariado, recolhidas no Livro de Circulares da Federação da Indústria do Estado de São Paulo (FIESP), 1930, Arquivo da FIESP, citado por Luiz Werneck Viana, em sua obra Liberalismo e Sindicato no Brasil. Os debates realizados em torno da Lei das Férias e do Código de Menores, documentos de 1925 e 1927 respectivamente, são emblemáticos quanto à preocupação do empresariado, principalmente, a sua desconfiança quanto à desocupação que estas leis provocariam e, consequentemente, o tempo sendo destinado à vadiagem. O que os/as trabalhadores/as braçais fariam com o tempo livre das férias visto não possuírem “faculdades morais e intelectuais afinadas pela educação e pelo meio”? Com a mesma carga de desconfiança, para usar um eufemismo, o que os/as adolescentes fariam diante da proibição de realizarem o mesmo trabalho que operários/as adultos/as, sem esse santo remédio pródigo ao lucro, fatalmente, seriam uma “nova legião de candidatos à vagabundagem, ao vício e ao delito”? Naquela década de 1930, não diferente do ocorrido em pleno século XXI, constituíam-se trabalhadores/as braçais uma população formada em sua maioria pela população negra.

Diante dos determinantes desta desigualdade, conforme enfatiza Rodrigues Alves,

Sem dúvida, há um componente econômico determinante da situação de miséria material e moral registrada nas favelas. Mas quando se sabe que a maioria é de negros e mulatos, os que mais se encontram sem registro civil, sem assistência, sem escola, o investigador social deve estudar porque essa condição racial multiplica os dissabores e a tragédia do habitante dos morros. Diga-se simplesmente, que um negro, quando desce do morro para o trabalho, não sabe se volta porque sua condição escura, essa primária discriminação ornamental que sofremos, nos torna suspeitos policialmente (Alves, 1997, pALVES, S. R. Somos todos iguais perante a lei. Thoth: Escriba dos Deuses: pensamento dos povos africanos e afrodescendentes, Brasília, Informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento, v. 25, n. 1, jan./abr. 1997. Disponível em: https://ipeafro.org.br/wp-content/uploads/2015/10/THOTH-1.pdf. Acesso em: 25 mar. 2024.
https://ipeafro.org.br/wp-content/upload...
. 159).

A condição da população negra é ponto de partida para Alves (1966)ALVES, S. R. A ecologia do grupo afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Serviço de documentação. Ministério da Educação, 1966. e Pinto (2003)PINTO, E. A. O serviço social e a questão étnico-racial: um estudo de sua relação com usuários negros. São Paulo: Terceira Margem, 2003. quando discorrem em suas produções da necessidade de o Serviço Social atentar para a complexidade da questão racial e de que modo ela se particulariza frente à profissão. Este artigo evidencia importantes obras ao Serviço Social partindo da apresentação de seus autores e dos aspectos comuns de seus trabalhos, apesar da distância temporal entre eles, refletindo sobre suas contribuições e atualidade.

Sebastião Rodrigues Alves

Sebastião Rodrigues Alves (1913–1985) foi assistente social, militante da causa afro-brasileira, cofundador da Secretaria do Movimento Negro do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e sacerdote de Xangô. Seus livros incluem “A ecologia do grupo afro-brasileiro” (1966) e “Sincretismo religioso” (1982). A descrição que está presente no primeiro Thoth2 2 Thoth é o título do Informe quadrimestral de distribuição restrita do Gabinete do Senador Abdias Nascimento. , em muito é útil para ressaltarmos a ativa militância do nosso autor, feita aos pares com o intelectual Abdias Nascimento. A amizade entre eles é reveladora das organizações políticas construídas e em construção no seu tempo. Apresentá-lo como sacerdote de Xangô é referência de sua vida marcada por justiça e liderança.

Guimarães e Macedo (2008)GUIMARÃES, A. S. A; MACEDO, M. Diário trabalhista e democracia racial negra dos anos 1940. DADOS: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 1, 2008, p. 143–182. Acesso em: https://www.scielo.br/j/dados/a/RcGLkBKvFbrXMtWnRsKSmrL/?lang=pt. Acesso em: 15 nov. 2023.
https://www.scielo.br/j/dados/a/RcGLkBKv...
nos contam que o jornal Diário Trabalhista, na coluna “Problemas e Aspirações do Negro Brasileiro”, teve várias colaborações, dentre elas, a de Sebastião Rodrigues Alves.

Ao lado de referências importantes na organização da resistência negra, Alves fez parte de duas importantes experiências de constituição da resistência negra brasileira: a fundação do Teatro Experimental do Negro (TEN) e do Comitê Democrático Afro-Brasileiro. Ele participou da Cruzada Afro-Brasileira de Alfabetização e colaborou com a coluna “Problemas e Aspirações do Negro Brasileiro”, do jornal Diário Trabalhista. Alves enfatizava a educação ao enfrentamento da desigualdade racial.

O essencial no momento é uma atitude desassombrada dos homens de boa fé e esclarecidos no que se refere à educação do povo. Educar o branco para receber o negro no seu convívio social, livre do medíocre preconceito, educar o negro para participar em todos os setores da vida sem o prejuízo do complexo de inferioridade que é uma herança da senzala e do preconceito (Diário Trabalhista, 23/1/1946, p. 5) (Guimarães; Macedo, 2008, pGUIMARÃES, A. S. A; MACEDO, M. Diário trabalhista e democracia racial negra dos anos 1940. DADOS: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 1, 2008, p. 143–182. Acesso em: https://www.scielo.br/j/dados/a/RcGLkBKvFbrXMtWnRsKSmrL/?lang=pt. Acesso em: 15 nov. 2023.
https://www.scielo.br/j/dados/a/RcGLkBKv...
. 147–148).

Alves, em seu ensaio “Todos somos iguais perante a lei”3 3 Texto, originalmente, apresentado no 1° Congresso de Cultura Negra das Américas (1977) em Cáli/Colômbia. Publicado na revista Afrodiáspora, ano 3, nº 5, 1985. A publicação consultada por nós está disponível em Thoth (veículo de divulgação das atividades parlamentares do senador Abdias Nascimento). , previne o leitor que “a alegação jurídica de que ‘somos todos iguais perante a lei’, longe de ser a consumação da luta dos negros pela liberdade e afirmação racial, é muitas vezes uma forma de escamotear suas reivindicações”. (Alves, 1997, pALVES, S. R. Somos todos iguais perante a lei. Thoth: Escriba dos Deuses: pensamento dos povos africanos e afrodescendentes, Brasília, Informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento, v. 25, n. 1, jan./abr. 1997. Disponível em: https://ipeafro.org.br/wp-content/uploads/2015/10/THOTH-1.pdf. Acesso em: 25 mar. 2024.
https://ipeafro.org.br/wp-content/upload...
. 156). Nesse ensaio demonstrou os limites, sempre muito restritos para que a população negra tivesse mobilidade social e pudesse usufruir das mesmas condições que a população branca. Segundo Alves (1997, pALVES, S. R. Somos todos iguais perante a lei. Thoth: Escriba dos Deuses: pensamento dos povos africanos e afrodescendentes, Brasília, Informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento, v. 25, n. 1, jan./abr. 1997. Disponível em: https://ipeafro.org.br/wp-content/uploads/2015/10/THOTH-1.pdf. Acesso em: 25 mar. 2024.
https://ipeafro.org.br/wp-content/upload...
. 158), a permanência da população negra na sociedade se dava ao custo da “menos-valia cultural, social e econômica”.

Alves viveu o subemprego, a execução de trabalhos braçais, o ingresso no exército e foi frei em um convento franciscano, como recursos para a sua sobrevivência. Não temos como asseverar, mas não seria uma hipótese infundada afirmar que a sua curta vida religiosa possa tê-lo aproximado do curso de Serviço Social. Dizemos isso, principalmente, se considerarmos que o ingresso no curso passava pela indicação de duas pessoas que atestariam responsabilizando-se sobre a idoneidade moral do/a candidato/a. Sobre a profissão, destaca-se sua participação na fundação do Sindicato dos/as Assistentes Sociais do Estado do Rio de Janeiro, em 1959.

Deixemos que o próprio Sebastião Rodrigues Alves se apresente:

Temos uma lembrança pessoal; negro de origem, desde muito moço tivemos que enfrentar a luta pela sobrevivência. Em 1935, data que historicamente não está muito longe, com dinheiro recolhido por nossos irmãos de cor, viemos de São Paulo ao Rio de Janeiro, sede do Governo da República, para pedir ao presidente que permitisse aos negros transitarem livremente pela Rua Direita, então principal da cidade de São Paulo. Poucos anos depois, em 1944, junto com Abdias Nascimento, fundamos no Rio de Janeiro o Teatro Experimental do Negro com dois objetivos principais: propiciar o aparecimento de dramaturgia com temática negra, de autores brancos e negros; e dar oportunidade a atores negros de atuarem no palco, posto que, quando Otelo ou qualquer personagem negro aparecia em cena, era interpretado por artista branco vestido a caráter. Junto com Abdias Nascimento e outros muitos irmãos de cor, organizamos nesses anos confusos dos 40 e dos 50, congressos e seminários com o interesse, sobretudo, de desenvolver a autoconsciência sobre o que era ser negro numa sociedade que, legalmente, nos outorgava a igualdade, mas que, em realidade, queria o esquecimento de nossa convicção racial para a sublimação de seu subconsciente culposo (Alves, 1997, pALVES, S. R. Somos todos iguais perante a lei. Thoth: Escriba dos Deuses: pensamento dos povos africanos e afrodescendentes, Brasília, Informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento, v. 25, n. 1, jan./abr. 1997. Disponível em: https://ipeafro.org.br/wp-content/uploads/2015/10/THOTH-1.pdf. Acesso em: 25 mar. 2024.
https://ipeafro.org.br/wp-content/upload...
. 156–157, grifo do autor).

Quando o nosso autor ingressa no curso de Serviço Social, ele já é um intelectual engajado na construção do movimento negro. Podemos afirmar que os anos 1940 e 1950 foram pródigos para a sua formação.

Contemporaneamente a nós, nesses anos confusos e maravilhosos dos 40 e 50, nascia a teoria e prática da negritude, uma forma de reavaliar o espírito negro e a sua sobrevivência. [...]. Na mesma época, nós negros da América-Latina estávamos como anestesiados porque, legalmente, éramos todos iguais perante a lei. Essa igualdade suposta não levava em conta outras discriminações sofridas pelos negros remanescentes da abolição: a discriminação educacional, a discriminação econômica, a discriminação social e a discriminação cultural (Alves, 1997, pALVES, S. R. Somos todos iguais perante a lei. Thoth: Escriba dos Deuses: pensamento dos povos africanos e afrodescendentes, Brasília, Informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento, v. 25, n. 1, jan./abr. 1997. Disponível em: https://ipeafro.org.br/wp-content/uploads/2015/10/THOTH-1.pdf. Acesso em: 25 mar. 2024.
https://ipeafro.org.br/wp-content/upload...
. 157, grifo nosso).

Nesses anos, a população negra compõe a maioria da população brasileira com os piores índices de rebaixamento social: retirados de posições de comando, inferiorizados social, política e culturalmente, estão nas piores condições de exploração, sendo-lhes vedados determinados lugares sociais, anestesiados pelo discurso da igualdade.

O “caso” Negro

Em nosso livro A ecologia do grupo afro-brasileiro, tivemos oportunidade de analisar, mediante pesquisa de campo, a falsidade da chamada democracia racial ou multirracial proveniente daquela discriminação que sofre o negro brasileiro. [...] um silencioso, sutil sentimento que dá força àquele substrato de consciência que conserva, ainda, a rejeição dos valores negros (Alves, 1997, pALVES, S. R. Somos todos iguais perante a lei. Thoth: Escriba dos Deuses: pensamento dos povos africanos e afrodescendentes, Brasília, Informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento, v. 25, n. 1, jan./abr. 1997. Disponível em: https://ipeafro.org.br/wp-content/uploads/2015/10/THOTH-1.pdf. Acesso em: 25 mar. 2024.
https://ipeafro.org.br/wp-content/upload...
. 157–158, grifo nosso).

É assim que Alves apresenta ao grupo presente no 1º Congresso de Cultura Negra das Américas o seu TCC publicado em 1966. Análise destacada sobre a discriminação impeditiva de participação e reconhecimento da população negra. Ao dizer isso, Alves afirma, solenemente, sobre algo que o Serviço Social assistia passivamente.

O TCC “A ecologia do grupo afro-brasileiro” irrompe na crítica a um “tema” postergado pelo Serviço Social. Ele está estruturado respectivamente em três capítulos: das teorias raciais e seus efeitos através dos séculos; o elemento afro-brasileiro e o reconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa humana em face do Serviço Social; ao Serviço Social compete solucionar o “caso” afro-brasileiro. Conta-nos de seu percurso estudantil: “nas inúmeras tarefas a que nos levou o Serviço Social, encontramos muitas vezes o negro degradado porque estava desamparado pela lei, porque sobre ele se impunha o subconsciente culposo coletivo que o considerava inferior, social ou legalmente” (Alves, 1997, pALVES, S. R. Somos todos iguais perante a lei. Thoth: Escriba dos Deuses: pensamento dos povos africanos e afrodescendentes, Brasília, Informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento, v. 25, n. 1, jan./abr. 1997. Disponível em: https://ipeafro.org.br/wp-content/uploads/2015/10/THOTH-1.pdf. Acesso em: 25 mar. 2024.
https://ipeafro.org.br/wp-content/upload...
. 159).

No primeiro capítulo, após irônica análise sobre Arthur de Gobineau e suas teorias eivadas de racismo, Alves aponta estudos realizados por intelectuais negros, como a de Arthur Ramos sobre a cultura da população negra brasileira. Conhecer a cultura afro-brasileira deveria ser assumido pelo Serviço Social. É esse o principal mote de seu TCC utilizando-se do arcabouço teórico-prático de então, reafirma não apenas a necessidade deste conhecimento como a forma de realizá-lo.

Ao ler o seu TCC, tem-se um misto de adequação ao trazer o arcabouço da formação profissional e a tentativa de criar frestas para que o Serviço Social na sua finalidade educativa seja uma profissão que incorpore como objetivo atuar para superar as barragens sociais impostas a negros/as, “O Serviço Social além de sua finalidade específica, terá de lutar para vencer a barreira existente contra o grupo afro” (Alves, 1966, pALVES, S. R. A ecologia do grupo afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Serviço de documentação. Ministério da Educação, 1966.. 56).

Na Convenção Nacional do Negro Brasileiro, em novembro de 1945, expõe análises sobre a realidade brasileira, alicerçada na desigualdade racial, e o imperativo de transformá-la pela ação autônoma do movimento negro, guiado por si mesmo, sem deixar-se tutelar. Este acontecimento crucial à organização do movimento negro apresenta reivindicações que tardam a ser reconhecida pelo Estado como o crime de racismo, a necessidade de ações afirmativas de promoção de equidade social como o direito à educação, bem como isenção de impostos aos pequenos comércios.

Alves (1966, pALVES, S. R. A ecologia do grupo afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Serviço de documentação. Ministério da Educação, 1966.. 30–31) destaca o racismo denunciado, na Assembleia Nacional Constituinte de 1946, pelo senador Hamilton Nogueira. Este diz:

os pretos não estão em absoluto criando uma questão. A questão de fato existe já suficientemente registrada pelos sociólogos e, mais do que isso denunciada pelos próprios prejudicados, os negros cujos direitos de cidadãos brasileiros são frequentemente sonegados.

É na apresentação destes dois acontecimentos que Alves inicia o seu segundo capítulo, para em seguida continuar dando provas da gravidade da questão racial brasileira. Ele traz à baila intelectuais como José Pompílio da Hora, Guerreiro Ramos, Aguinaldo Camargo, Abdias do Nascimento, Fernando Oscar Araújo, Claudemiro Tavares, Sinval, Valdomiro Machado, Tibério Wilson, acrescentando uma lista de intelectuais negros que denunciam o racismo como técnica de dominação econômica que alija, cotidianamente, a população negra, até mesmo das “ficções liberais”. Com apresentação de análises e fatos, Alves aponta o papel preponderante do Estado em promover políticas sociais que enfrentem a discriminação racial marcada pelo preconceito destinado à população negra em todos os âmbitos. Denuncia que “apesar de nós afirmarmos constantemente que no Brasil não há preconceito contra o negro, os fatos desmentem a asserção” (Alves, 1966, pALVES, S. R. A ecologia do grupo afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Serviço de documentação. Ministério da Educação, 1966.. 39). É dentre a rica demonstração de como o preconceito forja as relações sociais no Brasil que Alves elenca o “Catálogo de Obras Sociais da Legião Brasileira de Assistência” no qual figurava o chamado preconceito de cor no rol para admissibilidade em algumas instituições4 4 Com o título “Discriminação nas obras sociais”, matéria publicada no jornal Quilombo, temos mais informações sobre isso. (Ipeafro, 2024). . Nomeia as instituições que se recusam a atender negros/as, sendo elas: Dispensário São José, Seminário Nethel, Colégio Santa Marcelina, Recolhimento Santa Teresa e Asilo Bom Pastor. (Alves, 1966, pALVES, S. R. A ecologia do grupo afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Serviço de documentação. Ministério da Educação, 1966.. 46). Na sequência, ele critica a atuação da Igreja Católica no reforço da discriminação racial, ao ser conivente e tolerar a escravidão da população negra.

Somente após explicitar que há uma questão racial no Brasil, Alves ironiza, ao usar as aspas, que não se trata de mais um “caso”. É assim que ele interpela o Serviço Social:

Só nós os Assistentes Sociais, que militamos nas obras de Serviço Social e particularmente aqueles que exercem sua atividade em Agências ou Centros Sociais, como Plantonistas de Casos Sociais, sabem como é chocante e aviltante ser encaminhado um desempregado que tem como causa de seu desajustamento esse fator, e, depois de uma longa peregrinação, ser ali o Assistido recusado, simplesmente por ter a epiderme negra (Alves, 1966, pALVES, S. R. A ecologia do grupo afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Serviço de documentação. Ministério da Educação, 1966.. 53, grifo nosso).

A discriminação sofrida e o constrangimento imposto produzem um processo de subjetivação extremamente danoso que faz com que essa população evite, até mesmo, procurar esses serviços, pois já conhecem as barragens impostas. Alves, em seu texto “Somos Todos Iguais Perante a Lei”, nos ajuda a entender mais sobre os efeitos deletérios desse processo de produção do assujeitamento do corpo negro.

Em nossa juventude, sua forma era conduzida pela necessidade de sermos apenas aceitos na sociedade. A reação do negro frente à discriminação visível e invisível contra sua humanidade devia-se, naqueles anos de luta e de afirmação, manifestar-se de acordo com a forma em que a discriminação o agredia. Primeiro era a agressão econômica. A igualdade frente à lei era insuficiente para proteger o negro no mercado de trabalho. Havia, e há, áreas desse mercado de trabalho a que o negro não tinha e não tem acesso, salvo os lugares inferiores. Consumava-se o efeito do subconsciente culposo; o negro era para servir (Alves, 1997, pALVES, S. R. Somos todos iguais perante a lei. Thoth: Escriba dos Deuses: pensamento dos povos africanos e afrodescendentes, Brasília, Informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento, v. 25, n. 1, jan./abr. 1997. Disponível em: https://ipeafro.org.br/wp-content/uploads/2015/10/THOTH-1.pdf. Acesso em: 25 mar. 2024.
https://ipeafro.org.br/wp-content/upload...
. 160).

O terceiro capítulo é dedicado ao exame do Serviço Social, entendido como meio e instrumento na promoção da redução das desigualdades impostas pelas barragens vividas pela população afro-brasileira. Ele parte das técnicas profissionais — organizadas em caso, grupo e organização social da comunidade — descritas conforme sua formação profissional. O autor insiste que pouco se fala “da ação do Assistente Social na solução do problema afro-brasileiro” (Alves, 1966, pALVES, S. R. A ecologia do grupo afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Serviço de documentação. Ministério da Educação, 1966.. 102) e propõe que haja uma cadeira dedicada ao estudo da “situação do homem de cor” (Alves, 1966, pALVES, S. R. A ecologia do grupo afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Serviço de documentação. Ministério da Educação, 1966.. 103). Na conclusão do seu TCC, o autor apresenta “sugestões objetivas na solução do problema Afro-Brasileiro”:

  1. Que o “caso” afro-brasileiro é uma questão de reeducação;

  2. Reeducar o branco para receber o negro sem preconceito, sem restrições;

  3. Reeducar o negro para intrometer-se na sociedade, sem o complexo de inferioridade;

  4. O complexo de inferioridade do negro é um reflexo do preconceito de cor;

  5. Deverá ser criada uma cadeira nos Cursos de Assistente social, com os conhecimentos de bio-antroposociologia para completa elucidação do problema negro-brasileiro (Alves, 1966, pALVES, S. R. A ecologia do grupo afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Serviço de documentação. Ministério da Educação, 1966.. 104).

O conjunto coerente das proposições acima, ao mesmo tempo em que nos é familiar visto a sua atualidade, organiza e concentra uma perspectiva analítica basilar ao apontar o imperativo de que a população branca reconheça e enfrente o racismo que ela mesma produz e reproduz; que a população negra tenha capacidade organizativa para se imiscuir nas decisões públicas rompendo com a inferiorização a que foi imposta. Para estas complexas ações, o trabalho educativo do Serviço Social é ressaltado como necessário à formação profissional.

Elisabete Aparecida Pinto

Elisabete Pinto, mulher preta, participava ativamente dos movimentos políticos de enfrentamento ao racismo. Em especial destaca-se o envolvimento da autora com a Organização Não Governamental (ONG) “Fala, Preta!5 5 Fundado em 1997, com a defesa dos direitos humanos a partir da crítica aos direitos negados à população negra. Disponível em: https://www.falapreta.com.br/. ”, organização de mulheres pretas, fundada em São Paulo.

Antes de percorrer e analisar o seu TCC, registramos um aspecto que não poderia passar despercebido, revelador das dificuldades que se impuseram à sua investigação, que é a sua lista de agradecimentos em que as “crises de medo” são sintomas da recusa e do desmerecimento apresentados ao seu objeto de investigação. Frente a isso, a solidariedade manifesta material e emocionalmente, a sua relação com a espiritualidade, o encontro proporcionado pela organização “Fala, Preta!”, constroem não apenas uma rede de apoio, mas vínculos de cooperação necessários ao enfrentamento da dura realidade de discriminação e racismo, que ao depreciar a matéria a ser investigada e analisada, subalterniza também a pesquisadora.

Este dispositivo denunciado no trabalho de Pinto é algo que podemos entender em paralelo com o que nos explica Lélia Gonzalez. Gonzalez (2020) durante a sua participação no encontro feminista no Rio de Janeiro, nos conta que pairava plena concordância quando os assuntos eram contra a exploração da mulher. Todavia,

No momento em que começamos a falar do racismo e suas práticas em termos de mulher negra, já não houve mais unanimidade. Nossa fala foi acusada de emocional por umas e até mesmo de revanchista por outras; todavia, as representantes de regiões mais pobres nos entenderam perfeitamente (eram mestiças em sua maioria). Toda a celeuma causada por nosso posicionamento significou, para nós, a caracterização de um duplo sintoma: de um lado, o atraso político (principalmente dos grupos que se consideravam mais progressistas), e do outro a grande necessidade de negar o racismo para ocultar uma outra questão: a exploração da mulher negra pela mulher branca.” (Gonzalez, 2020, p. 52–53).

Gonzalez (2020, p. 48) afirma que pesa um “processo de tríplice discriminação sofrido pela mulher negra (enquanto raça, classe e sexo)”. Desde o Censo de 1950 até o último Censo brasileiro do ano de 2010, os piores postos de trabalho, as desigualdades salariais, as desigualdades sociais abatem os corpos de mulheres pretas pobres, “os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no nível mais alto de opressão” (Gonzalez, 2020, p. 50).

Diante das desigualdades raciais apontadas pelas autoras, citamos algumas formas de organização do movimento negro na década de 1980, tal como o Núcleo de Consciência Negra na USP (NCN-USP), composto pela comunidade universitária que questiona este espaço para negros e negras; o Geledés6 6 A prática do Geledés animou a criação de outras organizações feministas como a Casa de Cultura da Mulher Negra em 1990 na cidade de Santos, a Criola em 1982 no Rio de Janeiro, Coletivo Esperança Garcia em 1991 no Piauí. (cf. a dissertação de Elza da Silva Carlos intitulada: Fala Preta! Mulheres Negras no espaço urbano: origem e memória – 1997 a 2007). (1988), ONG que trabalha em parceria com movimentos sociais e prima pelo protagonismo da mulher negra. No processo organizativo é incontornável o Movimento Negro Unificado (1978), nele destacamos o protagonismo de Lélia Gonzalez na organização do coletivo de mulheres negras Nzinga, no Rio de Janeiro, em 1983.

Durante a sua graduação em Serviço Social, Pinto realizou seu estágio no Serviço de Atendimento e Encaminhamento de Casos (SAEC), local que serviu para proceder a sua observação e entrevistas sobre o relacionamento da/o assistente social com a população negra. As entrevistas aconteceram com profissionais em separado da população atendida. Tratava-se de “identificar qual é o relacionamento existente entre o assistente social e os usuários negros, bem como o tipo de consciência étnico-racial que norteia a ação profissional e o comportamento de ambos” (Pinto, 2003, pPINTO, E. A. O serviço social e a questão étnico-racial: um estudo de sua relação com usuários negros. São Paulo: Terceira Margem, 2003.. 98). Foi necessário, também, interrogar a formação profissional que se revelou incipiente, caracterizando um Serviço Social incolor e neutro. Destaca-se o curso de extensão universitária “A questão racial no Brasil”, ministrado por Clóvis Moura e Henrique Cunha Jr., organizado por Pinto.

Sobre os aspectos da graduação em Serviço Social, Pinto ingressou em 1982, quando da implantação do novo currículo. No campo da formação profissional, Pinto aponta marcas do economicismo, de inconsistência teórica, da interdição do assunto sobre a questão racial forjada pela alegação de que tudo é uma questão de classe, denotando nenhum avanço.

O ideal de harmonia entre as raças e que a sociedade brasileira estava isenta de conflito racial, disseminados pelo mito da democracia racial, servem como uma luva no ideário que repousava o Serviço Social. Igualmente, a ideia de cordialidade do povo brasileiro como aquele que evita o conflito, e diante dele busca atenuá-lo e pacificá-lo, são consonantes com uma prática profissional dada como competente.

Todos estes aspectos impedem o reconhecimento do imperativo de processos de conscientização, participação e organização política — presentes na formação profissional a partir da década de 1980. Vale frisar que o Currículo Mínimo de 1982 (Parecer CFE nº 412, de 04.08.1982 e Resolução n.º 06 de 23/09/82) prevê o “Conhecimento da realidade da Clientela”7 7 “Esta área compreende o conhecimento da realidade da clientela em suas relações sociais de trabalho, cidadania e cultura, e supõe a compreensão de dois movimentos: o dirigido (quer o seja pelo Estado quer pelas instituições da sociedade civil) e os espontâneos. As relações que se estabelecem entre esses dois movimentos constituem objeto relevante de análise do Serviço Social como condição que permite seu posicionamento objetivo junto às populações. Isto se dá porque na relação entre os dois movimentos surgem a possibilidade de atuação do Assistente Social no sentido de a clientela assumir o movimento dirigido como sujeito desse processo. A representação que a população tem do contexto social em que se insere, é também importante, pois é condição para que o Assistente Social possa conseguir junto a ela, um nível de consciência capaz de perceber a sua realidade nas relações sociais e nas relações inter-humanas. A perspectiva do homem como sujeito histórico pressupõe a consciência de si e do outro no processo da construção do mundo.” (Brasil, 1982). como elemento central para a realização da prática profissional. Este componente necessário à formação profissional mostrava a “deficiência”, pois mesmo trabalhando com demandantes, em sua maioria negra, o/a assistente social realiza o seu trabalho sem reconhecê-los.

Ao negar o racismo presente na realidade brasileira, a prática profissional recusa determinante central na constituição das relações de poder e dominação que produzem níveis deliberados de segregação social, barragens no usufruto das políticas sociais existentes, ausência de reconhecimento político dos sujeitos demandantes do Serviço Social.

Pinto (2003, pPINTO, E. A. O serviço social e a questão étnico-racial: um estudo de sua relação com usuários negros. São Paulo: Terceira Margem, 2003.. 25) recorda evento ocorrido na V Semana do Serviço Social, no Rio de Janeiro, em que argumenta que é corrente no campo da esquerda o apagamento da determinação do racismo, “para quem o problema é de classe e não de raça”. Este problema já é há muito apontado por intelectuais negros/as que, em seu processo organizativo de luta contra as formas de exploração e opressão cujo alvo é a população negra, deparavam-se com a recusa da esquerda em assumir essa questão. Quer dizer o campo político, com seus diferentes programas e direção política, era monocórdico na recusa,

Além da resistência à criação de um partido político ou mesmo de diretórios partidários negros, também foi rechaçada a implementação de políticas públicas, como bolsas de estudos, que privilegiassem negros em relação a brancos. Tal resistência vinha tanto da esquerda, sobretudo de membros ou simpatizantes do PCB, para quem a organização da classe operária e sua indivisibilidade eram quase dogmas, quanto dos conservadores, para quem o negro sofria de inferioridade se não biológica, ao menos cultural, sendo responsáveis por sua própria sorte (Guimarães; Macedo, 2010, p. 171).

No tocante à população negra, o Serviço Social nada fez

No TCC defendido na Pontifícia Universidade de Campinas8 8 O curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade de Campinas, cuja gênese é marcada pela história de discriminação racial da Irmandade Jesus Crucificado. em 1986, publicado no livro O Serviço Social e a questão étnico-racial (um estudo de sua relação com usuários negros), Pinto parte da hipótese que a prática profissional é “legitimadora dos mecanismos de alienação e construção de uma consciência étnica negativa dessa população” (Pinto, 2003, pPINTO, E. A. O serviço social e a questão étnico-racial: um estudo de sua relação com usuários negros. São Paulo: Terceira Margem, 2003.. 97), ao invés de se mostrar enquanto caminho de superação da dominação e da opressão vivenciada pela população negra.

Podemos adiantar que a pesquisa realizada confirma esta hipótese, revelando não apenas uma omissão do Serviço Social, mas de legitimação e reprodução do preconceito que pesa sobre a população negra. De modo geral é o Serviço Social atuando embasado na ideologia da classe dominante.

O TCC está estruturado em oito capítulos em que se analisa o Serviço Social; a questão étnico-racial; apresenta-se a metodologia empregada na pesquisa; a relação do assistente social com os usuários negros e estes entre si e com grupos organizativos; e a política social enquanto mediação determinante da profissão, reveladora da forma como o racismo se constitui no cotidiano profissional. Tem-se uma análise sobre a formação profissional marcada pela ausência do estudo da questão étnico-racial.

Com relação ao resultado da pesquisa, Pinto assevera que a formação profissional na área do Serviço Social não contempla questões étnico-raciais. Utiliza como exemplo particular o currículo da Faculdade de Serviço Social de Campinas que no ano de 1986, apresentava-se insuficiente para que os/as profissionais pudessem ter uma análise da realidade marcada pelo preconceito racial. Ainda que os/as profissionais pesquisados compreendessem o quanto as ações eram transformadoras diante da realidade, ao se referirem à questão racial perdiam-se em seus discursos na justificativa de que tudo se resume a uma questão de classe.

Por meio das respostas, profissionais revelavam-se influenciados/as por uma tradição moral cristã como se estivessem isentos/as de preconceitos. Nos atendimentos profissionais, ocorria a tentativa de convencer a população negra de que o racismo não existia na sociedade brasileira, justificando um problema estrutural como questão individual. Apresentavam desconhecer as organizações negras, assim justificavam a falta de encaminhamento. O Serviço Social posicionava-se por meio do silêncio, contribuindo para a manutenção da desigualdade racial. A população negra era, fragorosamente, dopada pelo endosso do mito da democracia racial, demonstrando a feição racista no domínio da questão racial no interior da profissão.

A sociedade brasileira é eficaz na perpetuação do racismo e padece de uma espécie de esquizofrenia à medida que “emite constantemente duas informações: primeira, não existe preconceito racial nem racismo; segunda, praticamente impede que determinados indivíduos e grupos sociais tenham acesso ao mercado de trabalho e aos demais espaços culturais e sociais” (Pinto, 2003, pPINTO, E. A. O serviço social e a questão étnico-racial: um estudo de sua relação com usuários negros. São Paulo: Terceira Margem, 2003..88). Essa análise é certeira, também, ao serviço social na inadmissibilidade de que há racismo, simultâneo à sua prática racista em pleno exercício profissional. Sobre isso, o registro da resposta “nunca paramos para pensar, justamente por não haver esta questão” (Pinto, 2003, pPINTO, E. A. O serviço social e a questão étnico-racial: um estudo de sua relação com usuários negros. São Paulo: Terceira Margem, 2003.. 122) mostra-se elucidativa e atual. Note-se que 46,7% das assistentes sociais entrevistadas concluíram a graduação entre 1980–1985. A questão racial no âmbito da formação profissional não comparecia sequer como tema, dirá como chave analítica.

Especial atenção recai sobre a visão profissional de seu relacionamento com os usuários negros9. A pesquisa demonstrou que para 46,7% dos respondentes o serviço social nada tem feito quanto à questão do negro no Brasil; 63,3% afirmaram que já ouviram relatos de racismo sofrido pelos usuários negros. Ao mesmo tempo em que o cotidiano profissional é marcado por cenas de racismo, como é possível verificar na recusa em contratar pessoas negras, 36,9% das respostas dadas são de acomodação e conformação frente a essa realidade produtora de inferiorização dos usuários negros/a. Ressaltamos que quando perguntados sobre a possibilidade de uma política específica para o negro, metade dos entrevistados a recusam e alegam que ela poderia reforçar a segregação existente, enquanto que 36,7% afirmaram a sua pertinência, mas que não sabiam como realiza-la. A recusa e a incapacidade são os principais traços que marcam a relação profissional com uma das mediações determinantes de seu trabalho, a política social.

As propostas elencadas por Pinto (2003, pPINTO, E. A. O serviço social e a questão étnico-racial: um estudo de sua relação com usuários negros. São Paulo: Terceira Margem, 2003.. 215) ao serviço social têm como norte a necessidade da criação de uma linguagem antirracista nos espaços acadêmicos, nas instituições empregadoras, no trabalho com a população nos bairros e movimentos organizativos, passam por:

  • incluir as discussões étnico-raciais em seu currículo escolar;

  • promover nas instituições discussões acerca das situações de preconceito e discriminação levantadas no trabalho realizado pelos assistentes sociais e outros profissionais;

  • trabalhar com as organizações populares negras, desenvolvendo uma parceria que garanta o intercâmbio de informações necessárias, para que as propostas encaminhadas pelo Serviço Social sejam sempre respaldadas pelas necessidades apontadas pela população negra organizada;

  • identificar nas áreas de atuação do Serviço Social (saúde, educação, habitação, cultura, lazer, comunicação, família, mulher, menor, idoso) os problemas específicos da população negra; e

  • utilizar, na prática profissional, estratégias que garantam um bom relacionamento com a população negra, por meio de horizontalização do diálogo, fortalecendo assim as estruturas psicológica e social dessas pessoas.

Conclusão

Podemos afirmar que a eficácia do mito da democracia racial como “fachada despistadora que oculta e disfarça a realidade de um racismo tão violento e tão destrutivo” (Nascimento, 1982, pNASCIMENTO, A. O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. https://issuu.com/institutopesquisaestudosafrobrasile/docs/o_negro_revoltado. Acesso em: 15 nov. 2023.
https://issuu.com/institutopesquisaestud...
. 28) continua em curso com seu projeto de produção de morte. Denunciá-lo passa pela crítica ao supremacismo branco brasileiro, cuja sofisticação realiza um contínuo genocídio da população negra.

Durante o seu processo de institucionalização, o Serviço Social conheceu de perto a assídua desigualdade racial brasileira e, com a mesma assiduidade, omitiu-a, naturalizou-a e, igualmente, reforçou-a com a desculpa de que ao encarar a questão racial estaria se afastando de questões fundamentais. A igualdade oca tem o sujeito universal dominante como modelo ideal, cuja forja da prática profissional para muitos continua sendo propalada.

Alves e Pinto colocaram-se no debate com proposições ao serviço social. O paradigma adotado por eles consiste em uma análise em que o negro passou a ser visto como sujeito da ação e não apenas como objeto — que era o modo pelo qual a antropologia e a sociologia elitistas costumavam tratar a questão. E nos ensinam, ao demarcar a centralidade da questão racial, que um atendimento profissional norteado pela justiça tem o reconhecimento do outro como inalienável, pois com ele vem a história de um povo, seus conhecimentos, valores, bem como a história de resistência frente à guetização, hipercriminalização e ímpar desconfiança moral. Ao tomar o mito da “democracia racial” como verdade, o Serviço Social assumiu uma prática mistificada da igualdade.

Alves e Pinto são assistentes sociais, preto/a, engajados/as na luta contra o racismo e críticos argutos do mito da democracia racial. Este traço constituinte da formação socio-histórica brasileira sustentou e sustenta, até a nossa contemporaneidade, posturas que relativizam o imperativo de enfrentarmos o racismo no Brasil, ganhando contornos especiais no âmbito do Serviço Social.

Notas:

  • 1
    O jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, com publicação mensal de dezembro de 1948 a julho de 1950, no Rio de Janeiro, apresentava as seguintes colunas: Livros, Tribuna estudantil, Escolas de Samba, Cinema, Música, Rádio, Negros na História, Fala A Mulher, [...] Pelourinho, Democracia Racial, Cartaz, Sociais, Close Up e Notícias do teatro Experimental do Negro, e tinha editorial assinado por Abdias do Nascimento. Em 2003 tem-se uma edição fac-similar publicada pela Editora 34. O acervo digital pode ser encontrado em: https://ipeafro.org.br/acervo-digital/leituras/ten-publicacoes/jornal-quilombo-no-01/.
  • 2
    Thoth é o título do Informe quadrimestral de distribuição restrita do Gabinete do Senador Abdias Nascimento.
  • 3
    Texto, originalmente, apresentado no 1° Congresso de Cultura Negra das Américas (1977) em Cáli/Colômbia. Publicado na revista Afrodiáspora, ano 3, nº 5, 1985. A publicação consultada por nós está disponível em Thoth (veículo de divulgação das atividades parlamentares do senador Abdias Nascimento).
  • 4
    Com o título “Discriminação nas obras sociais”, matéria publicada no jornal Quilombo, temos mais informações sobre isso. (Ipeafro, 2024IPEAFRO. Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro. Teatro Experimental do Negro, Rio de Janeiro, ano I, n. 1, maio 1949. Acervo digital, 2024. Disponível em: https://issuu.com/institutopesquisaestudosafrobrasile/docs/jornal_quilombo_ano_i_n2. Acesso em: 25 mar. 2024.
    https://issuu.com/institutopesquisaestud...
    ).
  • 5
    Fundado em 1997, com a defesa dos direitos humanos a partir da crítica aos direitos negados à população negra. Disponível em: https://www.falapreta.com.br/.
  • 6
    A prática do Geledés animou a criação de outras organizações feministas como a Casa de Cultura da Mulher Negra em 1990 na cidade de Santos, a Criola em 1982 no Rio de Janeiro, Coletivo Esperança Garcia em 1991 no Piauí. (cf. a dissertação de Elza da Silva Carlos intitulada: Fala Preta! Mulheres Negras no espaço urbano: origem e memória – 1997 a 2007).
  • 7
    “Esta área compreende o conhecimento da realidade da clientela em suas relações sociais de trabalho, cidadania e cultura, e supõe a compreensão de dois movimentos: o dirigido (quer o seja pelo Estado quer pelas instituições da sociedade civil) e os espontâneos. As relações que se estabelecem entre esses dois movimentos constituem objeto relevante de análise do Serviço Social como condição que permite seu posicionamento objetivo junto às populações. Isto se dá porque na relação entre os dois movimentos surgem a possibilidade de atuação do Assistente Social no sentido de a clientela assumir o movimento dirigido como sujeito desse processo. A representação que a população tem do contexto social em que se insere, é também importante, pois é condição para que o Assistente Social possa conseguir junto a ela, um nível de consciência capaz de perceber a sua realidade nas relações sociais e nas relações inter-humanas. A perspectiva do homem como sujeito histórico pressupõe a consciência de si e do outro no processo da construção do mundo.” (Brasil, 1982).
  • 8
    O curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade de Campinas, cuja gênese é marcada pela história de discriminação racial da Irmandade Jesus Crucificado.
  • Agência financiadora Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
  • Consentimento para publicaçãoA autora consente a publicação do presente manuscrito.

Referências

  • ALVES, S. R. A ecologia do grupo afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Serviço de documentação. Ministério da Educação, 1966.
  • ALVES, S. R. Somos todos iguais perante a lei. Thoth: Escriba dos Deuses: pensamento dos povos africanos e afrodescendentes, Brasília, Informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento, v. 25, n. 1, jan./abr. 1997. Disponível em: https://ipeafro.org.br/wp-content/uploads/2015/10/THOTH-1.pdf Acesso em: 25 mar. 2024.
    » https://ipeafro.org.br/wp-content/uploads/2015/10/THOTH-1.pdf
  • BRASIL. Ministério da Educação e Cultura: Conselho Federal de Educação. Parecer CFE nº 412, de 04 de agosto de 1982 Ante-projeto de reforma curricular. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cd010113.pdf Acesso em: 12 mar. 2024.
    » http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cd010113.pdf
  • CARLOS, E. S. Fala Preta! Mulheres Negras no espaço urbano: origem e memória –1997 a 2007. Dissertação (Mestrado em História Social) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, SP, 2009. Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/13198?mode=full Acesso em: 25 mar. 2024.
    » https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/13198?mode=full
  • CUSTÓDIO, T. Caminhos e trajetos: a trajetória intelectual de Abdias do Nascimento durante o período de exílio nos Estados Unidos (1968 — 1981). In: VIEIRA, V. R.; JOHNSON, J. Retratos e espelhos: raça e etnicidade no Brasil e nos Estados Unidos. São Paulo: FEA/USP, 2009. 431 p.
  • GUIMARÃES, A. S. A. Resistência e revolta nos 1960: Abdias do Nascimento. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPOCS, 14., 2005, Caxambu. Anais [...]. Caxambu: Anpocs (GT Teoria Social), 2005. Disponível em: https://www.anpocs.com/index.php/papers-29-encontro/gt-25/gt25-13/3856-aguimaraes-resistencia/file Acesso em: 15 nov. 2023.
    » https://www.anpocs.com/index.php/papers-29-encontro/gt-25/gt25-13/3856-aguimaraes-resistencia/file
  • GUIMARÃES, A. S. A; MACEDO, M. Diário trabalhista e democracia racial negra dos anos 1940. DADOS: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 51, n. 1, 2008, p. 143–182. Acesso em: https://www.scielo.br/j/dados/a/RcGLkBKvFbrXMtWnRsKSmrL/?lang=pt Acesso em: 15 nov. 2023.
    » https://www.scielo.br/j/dados/a/RcGLkBKvFbrXMtWnRsKSmrL/?lang=pt
  • IPEAFRO. Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro. Teatro Experimental do Negro, Rio de Janeiro, ano I, n. 1, maio 1949. Acervo digital, 2024. Disponível em: https://issuu.com/institutopesquisaestudosafrobrasile/docs/jornal_quilombo_ano_i_n2 Acesso em: 25 mar. 2024.
    » https://issuu.com/institutopesquisaestudosafrobrasile/docs/jornal_quilombo_ano_i_n2
  • NASCIMENTO, A. O negro revoltado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. https://issuu.com/institutopesquisaestudosafrobrasile/docs/o_negro_revoltado Acesso em: 15 nov. 2023.
    » https://issuu.com/institutopesquisaestudosafrobrasile/docs/o_negro_revoltado
  • PINTO, E. A. O serviço social e a questão étnico-racial: um estudo de sua relação com usuários negros. São Paulo: Terceira Margem, 2003.
  • RIOS, F.; LIMA, M. (org.). Lélia González: por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio Janeiro: Zahar. 2020. Disponível em: https://mulherespaz.org.br/site/wp-content/uploads/2021/06/feminismo-afro-latino-americano.pdf Acesso em: 12 jan. 2024.
    » https://mulherespaz.org.br/site/wp-content/uploads/2021/06/feminismo-afro-latino-americano.pdf

Editado por

Editores Responsáveis

Michelly Laurita Wiese – Editora-chefe
Cristiane Luíza Sabino de Souza – Comissão Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2023
  • Aceito
    18 Nov 2023
  • Revisado
    29 Maio 2024
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina , Centro Socioeconômico , Curso de Graduação em Serviço Social , Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima, 88040-900, Tel. +55 48 3721 6524 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: revistakatalysis@gmail.com