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Produção de conhecimentos no Serviço Social e o debate sobre drogas

Knowledge production in Social Work and the debate on drugs

Resumo

Esta pesquisa tem como objetivo identificar como o tema das drogas aparece na produção intelectual do Serviço Social registrada na Revista Serviço Social e Sociedade dos anos de 1979 a 2022. Trata-se de pesquisa exploratória, qualitativa cunhada a partir do método materialista histórico-dialético. Os artigos elegíveis para a análise foram levantados por palavras-chave, tendo também como critério de inclusão a publicação por assistentes sociais. Dos 1.279 escritos da Revista Serviço Social e Sociedade pesquisados, apenas quatro artigos abordam a questão das drogas como tema central, incluindo o termo ou termos correlatos em seus títulos. Apesar de notarmos um pequeno número de artigos publicados sobre o tema percebe-se a presença de publicações que incorporam a crítica da economia política para a reflexão acerca da temática diferindo-se de pesquisas baseadas em casos e focadas em análises conservadoras e/ou superficiais.

Palavras-chave:
produção de conhecimentos; serviço social; serviço social e sociedade; drogas

Abstract

This research aims to identify how the topic of drugs appears in the intellectual production of Social Work recorded in the Social Service and Society Magazine from 1979 to 2022. It is exploratory, qualitative research based on the historical-dialectic materialist method. Articles eligible for analysis were searched using Keywords, with publication by social workers also as an inclusion criterion. Of the 1.279 writings in the Social Service and Society Magazine researched, only four articles address the issue of drugs as a central theme, including the term or related terms in their titles. Although we note a small number of articles published on the topic, we can see the presence of publications that incorporate criticism of political economy for reflection on the topic, differing from case-based research focused on conservative and/or superficial analyses.

Keywords:
knowledge production; social service; social service and Society; drugs

Introdução

Este artigo é resultado de uma pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), que estuda o financiamento da ciência no Brasil1 1 Processo APQ-00181-18. , e da Iniciação Científica do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica PIBIC/CNPq/UFV. As reflexões sobre o financiamento público para as pesquisas de diferentes áreas do saber levaram à indagação específica sobre a produção de conhecimentos na área de Serviço Social. Este interesse, alicerçado aos debates da pesquisadora no campo da saúde mental, introduziu o seguinte objetivo para esta pesquisa: identificar como o tema das drogas aparece na produção intelectual do Serviço Social registrada na Revista Serviço Social e Sociedade do ano de 1979 a 2022.

De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas2 2 O Relatório refere-se tanto as drogas reconhecidas como “legais” quanto “ilegais”. , publicado em 2021, cerca de 275 milhões de pessoas usaram drogas3 3 Usaremos o termo drogas porque é o termo mais encontrado em documentos e relatórios. Todavia, concordamos que ele possui um caráter mistificador e, muitas vezes preconceituoso, sendo os termos psicotrópico e psicoativo os mais adequados para se referir as substâncias que “agem preferencialmente no Sistema Nervoso Central (SNC), estimulando, deprimindo ou perturbando suas funções” (CFESS, 2016). no ano de 2019, dos quais 36,3 milhões (quase 13% da população mundial) sofreram algum transtorno mental associado ao uso (UNODC, 2021UNODC, 2021. World Drug Report 2021. Disponível em: https://www.unodc.org/res/wdr2021/field/WDR21_Booklet_2.pdf Acesso em: 29 out. 2023.
https://www.unodc.org/res/wdr2021/field/...
). Estes números subiram em 2021 (ano de pandemia) apresentando registros de mais de 296 milhões de pessoas que usaram drogas, um aumento de 23% em relação à década anterior. O número de pessoas que sofreu transtornos associados ao uso aumentou para 39,5 milhões em 2021, um crescimento de 45% em 10 anos (UNODC, 2023UNODC, 2023. World Drug Report 2023. Disponível em: https://www.unodc.org/res/WDR-2023/Special_Points_WDR2023_web_DP.pdf. Acesso em: 30 out. 2023.
https://www.unodc.org/res/WDR-2023/Speci...
).

O Relatório Mundial sobre Drogas de 2021 aponta ainda que o mercado de drogas retomou rapidamente as operações após o período inicial da pandemia provando, principalmente no caso das drogas ilegais, a resistente capacidade do tráfico de se adaptar e se fortalecer em diferentes contextos. Essa expansão do mercado se deu de diversas formas, sendo uma das mais atuais aquela resultante da crescente inovação tecnológica, a chamada dark web, que também contribui para a aceleração dos padrões de consumo (UNODC, 2021UNODC, 2021. World Drug Report 2021. Disponível em: https://www.unodc.org/res/wdr2021/field/WDR21_Booklet_2.pdf Acesso em: 29 out. 2023.
https://www.unodc.org/res/wdr2021/field/...
).

Esses registros de aumento do consumo de drogas e de transtornos relacionados ao uso ocorrem em cenários onde países como o Brasil continuam optando por um projeto proibicionista, criminalizador e estigmatizante em relação ao uso de drogas. Se o tráfico, mostra-se cada vez mais forte até que ponto o discurso de “guerra às drogas” tem surtido efeito? Ao que parece, esse discurso mostra os seus efeitos na guerra diária que ceifa a vida de milhares de pessoas, em nome de um suposto mundo livre das drogas.

O crescimento do uso está sendo acompanhado pela disseminação de notícias (principalmente se levarmos em consideração a expansão das redes sociais) que espalham conteúdos por vezes equivocados, conservadores e moralistas, haja vista a disseminação, por exemplo, de fake news. Assim, é possível perceber em âmbito global as disputas em torno da questão das drogas com a adoção de medidas mais ou menos punitivas. No caso brasileiro, há de se destacar o aspecto proibicionista da política sobre drogas e as constantes tentativas de desmonte das conquistas advindas da Reforma Psiquiátrica, das quais citamos a Nota Técnica nº 11/2019 (CGMAD/DAPES/SAS/MS) de 04 de fevereiro de 2019, emitida no início do governo Bolsonaro, que instituiu a chamada “Nova Política de Saúde Mental”4 4 Este documento defende o Hospital Psiquiátrico e as Comunidades Terapêuticas como serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS); aponta a necessidade de expansão de leitos em hospitais dentro de unidades psiquiátricas especializadas; garante a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia; assume posição contrária à legalização das drogas; desconsidera a estratégia de Redução de Danos; prevê a internação de crianças e adolescentes em unidades psiquiátricas, além de outras afrontas às diretrizes da Reforma Psiquiátrica (Ministério da Saúde, 2019). (Ministério da Saúde, 2019MINISTÉRIO DA SAÚDE. Nota técnica nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS. Assunto: Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Brasília, 2019. Disponível em: https://repositorio.observatoriodocuidado.fiocruz.br/bitstream/handle/handle/2527/Nota_tecnica_11_2019.pdf?sequence=2&isAllowed=y. Acesso em: 14 jun. 2023.
https://repositorio.observatoriodocuidad...
). Ou seja, por um lado, os serviços de prevenção e cuidado estão sendo desmontados e, por outro, há uma tentativa de fortalecimento do discurso proibicionista, conservador, excludente e penal.

A relevância desta pesquisa pode ser verificada uma vez que tal assunto alcançou a pauta de discussão em todo o mundo. Os/as assistentes sociais ao se colocarem como profissionais que trabalham nos serviços ofertados pelas políticas sociais (cunhados a partir da relação Estado e sociedade com vistas ao enfrentamento das expressões da questão social) precisam dar respostas a demandas relacionadas à questão das drogas. Inclusive, muito tem se discutido na atualidade sobre a incorporação de assistentes sociais como parte da equipe de profissionais de comunidades terapêuticas; na abordagem às pessoas usuárias de drogas e em situação de rua; na condução da estratégia de redução de danos; dentre outros espaços. Além disso, os/as assistentes sociais não realizam apenas a intervenção, mas, produzem e incorporam conhecimentos, que contribuem para a reafirmação e/ou negação das medidas formuladas pelo Estado como resposta à problemática das drogas.

Trata-se de pesquisa exploratória, de abordagem qualitativa fundamentada no método materialista histórico-dialético com dados coletados na Revista Serviço Social e Sociedade, do primeiro número, publicado em 1979, até sua última edição no ano de 2022. Para a escolha das publicações a serem analisadas, foram utilizados como critérios de inclusão publicações com títulos que tivessem as seguintes palavras-chave: saúde mental; drogas; psicoativos; proibicionismo; álcool; tabaco; crack. Foram excluídos escritos sem títulos (alguns editoriais, resenhas, notícias, depoimentos e informes). A busca por palavras-chave nos títulos, e não no resumo dos textos, ocorreu porque as publicações das primeiras revistas não tinham palavras-chave nos resumos. Após este primeiro levantamento, as publicações foram lidas e escolhidas apenas as que tratavam da temática drogas e escritas por assistentes sociais, sendo analisadas por meio da análise de conteúdo. Há de se salientar que, foi escolhida a Revista Serviço Social e Sociedade por ser uma das mais antigas da área, de grande impacto nacional e internacional e classificada no sistema Qualis Periódicos da Capes como A1. Esta revista é o “único periódico de circulação nacional na área com veiculação ininterrupta e regular desde 1979, mantendo-se como um dos mais importantes canais de consulta obrigatória de docentes e estudantes, de pesquisadores e profissionais” (Raichelis et al., 2019, pRAICHELIS, R. et al. Revista Serviço Social & Sociedade: 40 anos contribuindo para o pensamento crítico do Serviço Social brasileiro. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 136, p. 497–517, 2019.. 514).

Este artigo está redigido em três seções, além desta introdução e das considerações finais. A primeira seção discute o Serviço Social enquanto uma profissão interventiva e produtora de conhecimentos e os rebatimentos do projeto ético-político para o desenvolvimento de pesquisas eticamente orientadas. O segundo tópico, aborda sucintamente o debate sobre as drogas e o terceiro, discute os resultados.

Produção de conhecimentos e o Serviço Social brasileiro

Este artigo parte do entendimento do Serviço Social enquanto uma profissão inserida na divisão sociotécnica do trabalho que intervém na realidade concreta e produz conhecimentos. Partindo das reflexões anunciadas por Iamamoto (2017, pIAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2017.. 239), o Serviço Social

[...] não se institucionaliza como uma ciência especial no quadro da divisão do trabalho. Essa especialização do trabalho não surge com a função precípua de produzir conhecimentos que articulem um campo “peculiar do saber” consoante a divisão do trabalho, que foi forjada historicamente entre as ciências, ainda que se inscreva oficialmente no campo das “ciências sociais aplicadas”. O fato de o Serviço Social constituir-se uma profissão, traz inerente uma exigência de ação na sociedade, o que não exclui a possibilidade e a necessidade de dedicar-se a investigações e pesquisas no amplo campo das ciências sociais e da teoria social, adensando o acervo da produção intelectual sobre intercorrências da questão social e das políticas sociais, contribuindo para o crescimento do patrimônio científico das Ciências Humanas e Sociais.

Isso posto, Sposati (2007)SPOSATI, A. Pesquisa e produção de conhecimento no campo do Serviço Social. Revista Katálysis, Santa Catarina, v. 10, n. esp., p. 15–25, 2007. destaca que o fortalecimento quanto à produção de conhecimentos no Serviço Social articula-se ao Movimento de Reconceituação que trouxe para o centro do debate o questionamento sobre a base científica europeia e americana que repercutia no Serviço Social brasileiro. Nesse aspecto, destaca-se a importância do surgimento dos programas de pós-graduação da área, na década de 1970, que se tornou lócus qualificado para a realização de pesquisas5 5 Importante sinalizar que a pesquisa se tornou disciplina obrigatória para a formação em Serviço Social em 1982, entretanto, algumas instituições já tinham esta disciplina em seus currículos (Sposati, 2007). , além de chancelar o reconhecimento por órgãos oficiais — como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) — do Serviço Social como área de pesquisa, possibilitando o seu financiamento e o cadastro de assistentes sociais como pesquisadores do CNPq.

O processo de renovação da profissão no Brasil e a construção do projeto ético-político colocou em debate a relação entre produção de conhecimentos no Serviço Social e hegemonia no sentido do desenvolvimento de conhecimentos contra-hegemônicos que busquem estudar a realidade vivenciada pela classe trabalhadora examinando suas condições de vida, de trabalho, de acesso à riqueza socialmente produzida, dentre outros (Yazbek, 2004YAZBEK, C. Os caminhos para a pesquisa no Serviço Social. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL, 9., ABEPSS, 2004. Conferência.; Sposati, 2007SPOSATI, A. Pesquisa e produção de conhecimento no campo do Serviço Social. Revista Katálysis, Santa Catarina, v. 10, n. esp., p. 15–25, 2007.). Cabe destacar que, como a ciência não é neutra, podendo ser usada para benefício do capital ou do trabalho (RIBEIRO, 2015RIBEIRO, D. B. A crise do capital e seus rebatimentos para a produção de conhecimentos. Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 314-326, 2015.) o Serviço Social tem a partir de seu projeto ético-político o compromisso com a produção de conhecimentos cuja direção social expresse a repulsa pela ordem social que explora e oprime o conjunto da classe trabalhadora.

Nessa perspectiva, a Revista Serviço Social e Sociedade nasce em resposta à ditadura e ao conservadorismo no Serviço Social, no sentido do enfrentamento. Em contexto de efervescência dos movimentos sociais e repúdio ao autoritarismo da ditadura nasce no mês de setembro de 1979 o primeiro número da Revista Serviço Social e Sociedade “cuja trajetória caminhou em consonância com a história da profissão e com a profissão na história, suas lutas e avanços, preservando e difundindo sua memória, sua cultura e seu projeto profissional” (Raichelis et al., 2019, pRAICHELIS, R. et al. Revista Serviço Social & Sociedade: 40 anos contribuindo para o pensamento crítico do Serviço Social brasileiro. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 136, p. 497–517, 2019.. 499). Há de se salientar que após a publicação do primeiro número, também no mês de setembro de 1979, ocorreu o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, conhecido como o “Congresso da Virada”, onde assistentes sociais repudiam o conservadorismo e se posicionam em favor da classe trabalhadora. Raichelis et al. (2019, pRAICHELIS, R. et al. Revista Serviço Social & Sociedade: 40 anos contribuindo para o pensamento crítico do Serviço Social brasileiro. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 136, p. 497–517, 2019.. 500) pontua que

Até aquele período, o mercado editorial brasileiro na área de Serviço Social era acanhado, com publicações de textos de circulação restrita e traduções de livros em sua maioria norte-americanos [...]. As publicações latino-americanas das editoras Ecro, Humanitas e do Celats durante os anos de chumbo tinham sua entrada no país controlada e a circulação restrita aos meios acadêmicos em função da censura imposta pela ditadura. Em relação aos periódicos, a única revista de importância nacional — Debates Sociais —, publicada pelo CBCISS desde 1965, expressava a hegemonia conservadora no Serviço Social, funcionalizada pela perspectiva modernizadora-tecnocrática voltada para a instrumentalização técnica de assistentes sociais em resposta às demandas do mercado de trabalho. Vivia-se, portanto, um contexto em que publicar livros e revistas na área configurava-se um desafio político de largo alcance.

A Revista Serviço Social e Sociedade abriu possibilidades de publicação de pesquisas de autores/as nacionais e de resultados de estudos dos Programas de Pós-Graduação da área que também nasceram na década de 1970. Assim, essa revista possui uma importância histórica ao registrar pesquisas científicas afastando o Serviço Social do viés mais doutrinário que científico. Ao representar o processo de amadurecimento da profissão, esse importante veículo da produção teórica promove debates instaurados a partir do pluralismo teórico e político presentes no Serviço Social, além de agregar debates realizados por profissionais de diversos países, principalmente latino-americanos (Raichelis et al., 2019RAICHELIS, R. et al. Revista Serviço Social & Sociedade: 40 anos contribuindo para o pensamento crítico do Serviço Social brasileiro. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 136, p. 497–517, 2019.). Para Raichelis et al. (2019, pRAICHELIS, R. et al. Revista Serviço Social & Sociedade: 40 anos contribuindo para o pensamento crítico do Serviço Social brasileiro. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 136, p. 497–517, 2019.. 511),

[...] pode-se afirmar que a revista, sempre atenta ao seu compromisso com os avanços do Serviço Social como profissão e área de conhecimento, cumpriu seu objetivo estratégico de contribuir para o adensamento teórico e político das bases fundantes do Projeto Ético-Político profissional, bem como para o reconhecimento do caráter público e da dimensão ética do trabalho de assistentes sociais.

Drogas: um debate politicamente e eticamente orientado

Os usos de drogas fazem parte da história da humanidade sendo estas substâncias encontradas na natureza ou sintetizadas em laboratório. Essas substâncias possuem vários fins, sendo usadas para o tratamento de doenças; alteração de disposição física e/ou mental; estímulo da criatividade; para rituais religiosos e culturais, dentre outros. A utilização recreativa é uma das mais antigas como fonte alucinógena para o contato com divindades. Na Índia, por exemplo, o consumo de cannabis está associado à religião Hindu para meditação e introspecção (Brites, 2018BRITES, C. M. Psicoativos (drogas) e serviço social: uma crítica ao proibicionismo. São Paulo: Cortez. 2018.). É importante destacar que nem todo uso pressupõe dependência. O uso de droga pode “estar associado a indicações cientificamente comprovadas, decorrer de autoadministração; ser esporádico, ocasional, recreativo, abusivo ou dependente” (CFESS, 2016, pCFESS. Série Assistente Social no combate ao preconceito: o estigma do uso de drogas. Conselho Federal de Serviço Social, Brasília, Caderno 2, 2016. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/CFESS-Caderno02-OEstigmaDrogas-Site.pdf. Acesso em: 20 set. 2023.
http://www.cfess.org.br/arquivos/CFESS-C...
. 07). Na lógica mercantil, as drogas passam a ser vistas como mercadorias e fonte cada vez maior de lucro (Brites, 2018BRITES, C. M. Psicoativos (drogas) e serviço social: uma crítica ao proibicionismo. São Paulo: Cortez. 2018.).

O proibicionismo na sociedade brasileira é advindo do século XX, mediante os contextos das transformações societárias e políticas. A proibição às drogas em determinada época passou a ser analisada como crucial para a permanência da ordem social e moral, para além da proteção da saúde pública, discurso este conservador. Cabe dizer que a repressão às drogas está relacionada a interesses econômicos e políticos de grupos dominantes, que obviamente perceberam as potencialidades do lucro advindo das drogas, principalmente as consideradas ilegais (Brites, 2018BRITES, C. M. Psicoativos (drogas) e serviço social: uma crítica ao proibicionismo. São Paulo: Cortez. 2018.).

Segundo Lima et al. (2015), oLIMA, R. de C. C. et al. Políticas sociais sobre drogas: um objeto para Serviço Social brasileiro. Argumentum, Vitória, v. 7, n. 1, p. 26–38, 2015. Conselho Federal de Serviço Social tem se posicionado publicamente e divulgado documentos desde 2011 em relação ao tema das drogas. Data de 26 de junho de 2011 — Dia Internacional de Combate às Drogas — o lançamento do CFESS Manifesta, em que o Conselho afirma que além da representação institucional no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD)6 6 O CFESS fazia parte desta representação desde 2009 (CFESS, 2011). havia a necessidade de o Serviço Social conduzir outras ações frente ao avanço do conservadorismo no debate, nas decisões e práticas diante da questão das drogas7 7 Alguns importantes documentos lançados pelo CFESS, além do CFESS Manifesta, são: Nota Técnica sobre a regulamentação das comunidades terapêuticas: contribuições do CFESS para o debate de 2014; Nota técnica sobre a legalização e a regulamentação do plantio, cultivo, produção, comercialização e consumo de drogas, com ênfase na política de redução de danos, a partir de parâmetros e estudos internacionais e nacionais (Gestão 2014–2017); Cartilha CFESS: O estigma do uso de drogas de 2016; Nota sobre as implicações das alterações na política nacional de saúde mental, álcool e outras drogas para o exercício profissional de assistentes sociais no Brasil de 2019. (CFESS, 2011CFESS. CFESS Manifesta Dia internacional de combate às drogas, Conselho Federal de Serviço Social, Brasília, 2011. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessmanifesta2011_SSdebateusosdrogas_APROVADO.pdf Acesso em: 27 out. 2023.
http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessma...
).

Nesse ínterim, destacamos como uma das contribuições à produção de conhecimentos por parte dos/as assistentes sociais que visem à elucidação dos fenômenos, sem a dicotomização entre drogas mais danosas e menos danosas, confrontando o conservadorismo e o proibicionismo que mistificam esta prática social.

Segundo o Cfess Manifesta (2011, p. 02)

[...] o debate contemporâneo sobre os usos de drogas na realidade brasileira tem profunda relação com o debate sobre a questão social, daí a importância de um posicionamento fundamentado e coerente com o projeto profissional do Serviço Social diante do uso de drogas como prática social e das respostas formuladas pela sociedade brasileira à essa prática. O CFESS manifesta apoio ao debate público sobre a legalização das drogas, não somente da maconha, por compreender que o debate público favorece, a nosso ver, a transparência e o caráter democrático necessários à construção de respostas no campo da saúde pública para a realidade de consumo de drogas em nossa sociedade. Legalizar não significa estimular ou liberar de forma irrestrita o consumo, mas criar regras transparentes e democráticas que assegurem o controle público sobre a produção, o comércio e o consumo.

Em estudo realizado por Carrilho (2014)CARRILHO, L. K. dos. Mapeamento exploratório sobre o serviço social brasileiro na área de álcool e drogas. 2014. Monografia (Graduação em Serviço Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, Rio de Janeiro, 2014. a partir dos Anais dos Congressos Brasileiros de Assistentes Sociais, entre os anos de 1998 e 2010, o autor identificou que dos 3.995 trabalhos de comunicações orais e pôsteres, 37 continuam em seus títulos as palavras-chave drogas; álcool e crack demonstrando que os usos de drogas têm requisitado dos/as assistentes sociais reflexões necessárias ao exercício profissional.

Denadai e Garcia (2016)DENADAI, M. C. V.; GARCIA, M. L. T. O Serviço Social e a temática droga. Sociedade em Debate, Pelotas, v. 22, n. 1, p. 261–289, 2016. também publicaram uma pesquisa que analisa como se dá a incorporação do debate sobre drogas nas produções do Serviço Social brasileiro a partir da coleta de dados no Banco de Teses e Dissertações (BDTD) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e nos Anais do Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) entre os anos de 2004 e 2014. No BDTD foram encontradas 22 produções e nos Anais do ENPESS 51 trabalhos. As autoras apontam que “no campo do Serviço Social as produções sobre a temática ‘drogas’ seguem um ritmo lento, a despeito do envolvimento cada vez maior dos profissionais com esta problemática” (Denadai; Garcia, 2016, pDENADAI, M. C. V.; GARCIA, M. L. T. O Serviço Social e a temática droga. Sociedade em Debate, Pelotas, v. 22, n. 1, p. 261–289, 2016.. 265). Embora existam alguns avanços com este tema ocupando os debates conduzidos pelo Serviço Social, há de se ressaltar também uma tendência de “estudos de caso” que colocam

[...] desafios ao debate que requerem uma trama entre o particular, o singular e o universal. Sem isso, ficamos ao nível da descrição dos casos, sem superação da aparência. Este é um debate que não se coloca apenas no campo da temática das drogas, mas que desafia as ciências sociais, hoje (Denadai; Garcia, 2016, pDENADAI, M. C. V.; GARCIA, M. L. T. O Serviço Social e a temática droga. Sociedade em Debate, Pelotas, v. 22, n. 1, p. 261–289, 2016.. 284).

Dessa forma, verifica-se que é de suma relevância pensar como essas problemáticas que envolvem as discussões sobre drogas estão sendo discutidas no Serviço Social. Parafraseando Martins (2013, pMARTINS, V. L. A política de descriminalização de drogas em Portugal. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 114, p. 332–346, 2013.. 344):

As drogas servindo ao processo de acumulação do capital comportam, ao mesmo tempo, pelo seu uso abusivo, expressões da questão social e, dessa forma, rebatem diretamente na intervenção profissional, colocando para os assistentes sociais a exigência de um agir ético‑político, fundamentado numa perspectiva de totalidade das relações sociais capitalistas, para que não incorram no equívoco de uma intervenção que recorta os indivíduos e as famílias em suas particularidades sem a relação com o todo. A questão das drogas também coloca para os profissionais assistentes sociais — no limite da sociedade capitalista — o seu envolvimento na luta, e parece que aí está o elemento novo, pela ampliação de políticas de enfrentamento das questões decorrentes do uso abusivo de drogas de forma diversa das que existem atualmente. Políticas que, reconhecendo a natureza da produção e da circulação das drogas, caminhem no sentido não da mera repressão aos usuários de drogas e aos que estão na “ponta”, no “varejo” do tráfico, mas que contemplem ações que sejam capazes de se contrapor às drogas no processo de (re)produção das relações sociais capitalistas.

Resultados

A Revista Serviço Social e Sociedade apresentou 1.279 artigos, resenhas e editoriais com títulos contabilizados a partir do primeiro número até o último número do ano de 2022 (número 145). Desses, somente 11 artigos se encaixaram nas palavras-chaves saúde mental; drogas; psicoativos; proibicionismo; álcool; tabaco; crack. Os artigos encontram-se no Quadro 1.

Quadro 1
– Publicações selecionadas a partir de palavras-chave

Após a leitura dos 11 artigos que atendiam à primeira fase da seleção (Quadro 1) verificamos que quatro debatiam a temática específica das drogas e foram escritos por assistentes sociais, quais sejam:

  1. Drogas: a permanente (re) encarnação do mal;

  2. A política de descriminalização de drogas em Portugal;

  3. Proibicionismo e a criminalização de adolescentes pobres por tráfico de drogas;

  4. Determinação social do uso do álcool e implicações no tratamento em transplante de fígado.

Desse modo, os quatro artigos foram lidos e sintetizamos as suas ponderações centrais. É importante destacar que, dada à riqueza de conteúdos e reflexões das publicações sugerimos aos interessados/as a leitura completa dos artigos na Revista Serviço Social e Sociedade, sendo o esboço abaixo apenas um guia para as nossas considerações.

  1. Drogas: a permanente (re)encarnação do mal escrito por Ângela Hygino e Joana Garcia.

O artigo tem como objetivo debater a questão das drogas por meio de reflexões acerca das campanhas educativas ou preventivas em relação ao uso. As autoras afirmam que o uso de drogas acompanha a história do ser humano em sociedade e problematizam o conceito de droga colocado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como toda substância consumida que modifica uma ou mais de uma função do organismo. Elas abordam este conceito como insuficiente ao não demonstrar a droga como um recurso também mediador no que tange à satisfação de necessidades psíquicas e sociais. Para as autoras, as campanhas preventivas têm a tendência de demonizar a droga, condenar o uso e culpabilizar o usuário. Nas campanhas “a droga é um mal, o drogado também, onde existe droga não existe vida sadia: família, escola, trabalho” (Hygino; Garcia, 2003, pHYGINO, A.; GARCIA, J. Drogas: a permanente (re)encarnação do mal. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 74, p. 31–41, 2003.. 38) fato este que faz com que o debate sobre as drogas apareça sob um único aspecto (dos seus males) excluindo a sensação de prazer que as drogas podem gerar, fazendo que com que muitos não identifiquem nessas campanhas a realidade da questão das drogas. As autoras afirmam que a questão das drogas deve ser considerada nas esferas da saúde e da educação, logo “[...] é necessário qualificar os métodos pelos quais o problema será tratado, evitando, com isso, a mera prática higienista” (Hygino; Garcia, 2003, pHYGINO, A.; GARCIA, J. Drogas: a permanente (re)encarnação do mal. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 74, p. 31–41, 2003.. 40).

  1. A política de descriminalização de drogas em Portugal de Vera Lúcia Martins.

A pesquisa discute a descriminalização das drogas em Portugal, apontando as principais mudanças ocorridas com a aprovação da Lei nº 30/2000, que se refere à política de descriminalização. A autora coloca a discussão das drogas enquanto mercadorias e do interesse em manter algumas drogas como legais e outras como ilegais. Se todas as drogas são mercadorias porque algumas são ilegais e condenáveis? De acordo com a autora

[...] a resposta simples e direta poderia ser: a condenação existe porque as drogas trazem prejuízos “irreparáveis” para os indivíduos e para a sociedade. Se a resposta fosse absolutamente verdadeira, nesse caso não seria mais prudente descriminalizá‑las ou, no limite, legalizá‑las tirando‑as do rol de substâncias proibidas, submetendo‑as ao controle do Estado no que diz respeito à sua qualidade e à condição de uso tal como é feito com as drogas lícitas? Sabe‑se que, para as drogas ilícitas, boa parte dos seus malefícios reside nas impurezas e na mistura de produtos altamente tóxicos e prejudiciais à saúde durante o seu processo de produção. Mas quanto às drogas lícitas também não se desconhece que podem causar danos aos indivíduos. A diferença é que sobre elas o Estado (e a sociedade) exerce o controle de qualidade nas esferas da produção e da circulação. A retirada das drogas da ilegalidade, colocando‑as sob o controle do Estado, por meio da taxação de impostos e da qualidade dos produtos, não seria o caminho mais adequado, justo e economicamente viável para a sociedade? Afinal, esse é o recurso utilizado em relação às bebidas alcoólicas, ao tabaco e aos remédios. A quem interessa, então, manter na ilegalidade determinadas substâncias? A resposta a essa questão não é simples e nem direta (Martins, 2013, pMARTINS, V. L. A política de descriminalização de drogas em Portugal. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 114, p. 332–346, 2013.. 335).

A referida autora trabalha na perspectiva de que a política de “tolerância zero” tem a liderança dos Estados Unidos e responde aos diversos interesses dos capitalistas das drogas que dispõem dos meios de produção e de negócios muito lucrativos nesta área. É interessante salientar que Martins (2013)MARTINS, V. L. A política de descriminalização de drogas em Portugal. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 114, p. 332–346, 2013. diferencia os varejistas (que atuam no ramo como vendedores da sua força de trabalho) dos capitalistas das drogas (que dominam a esfera da produção e da circulação das mercadorias). Em relação à criminalização ou não, o artigo em discussão demonstra que na União Europeia há uma tendência da não criminalização na política de drogas, especialmente da cannabis, e aponta Portugal como o único país da União Europeia que efetivamente descriminalizou as drogas. Nesse país, embora o uso e a posse sejam proibidos, “não há mais aprisionamento para o indivíduo usuário ou dependente. No lugar de sanções criminais aplica-se medidas administrativas como multas ou encaminhamento para tratamento” (Martins, 2013, pMARTINS, V. L. A política de descriminalização de drogas em Portugal. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 114, p. 332–346, 2013.. 337). Ao discutir a realidade da União Europeia com destaque para a experiência de Portugal, a autora traz argumentos robustos que apontam para o fracasso da política de “guerra às drogas” que criminaliza o usuário, o coloca na clandestinidade e reduz as possibilidades de uma abordagem no âmbito da política de saúde. Além disso, mantém os interesses dos capitalistas das drogas, pois mantém: o patrocínio de ataques militares (com a justificativa de que os países invadidos são produtores de drogas); a fumigação química de plantações causando um desastre ecológico para as terras localizadas perto das áreas fumigadas; a perseguição de pequenos agricultores, como os de coca; dentre outros. Ao final, a autora demonstra alguns dados publicados por Gleen Greenwald que apontam para a diminuição do uso e de mortes, sinalizando que a descriminalização não significa o aumento e generalização do consumo de drogas.

  1. Proibicionismo e a criminalização de adolescentes pobres por tráfico de drogas por Andréa Pires Rocha.

A pesquisa problematiza trechos de setentas judiciais e a manifestação do Ministério Público, examinando os discursos que criminalizam os adolescentes pobres por tráfico de drogas. A autora aponta que esses discursos estão embasados na “combinação ‘proibicionismo-criminalização da pobreza’ [que] ainda subsidia decisões do Ministério Público, do Poder Judiciário e de equipes técnicas, incluindo profissionais de Serviço Social” (Rocha, 2013, pROCHA, A. P. Proibicionismo e a criminalização de adolescentes pobres por tráfico de drogas. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 115, p. 561–580, 2013.. 562). A autora salienta que

A droga como produto desenvolve um papel social e cultural na história da humanidade, extrapolando épocas e tempos. Entretanto, historicamente, a droga, que poderia ser reconhecida apenas como um produto advindo de métodos naturais e/ou artesanais, com valor de uso particularizado, ganha novas significações na sociedade burguesa, transformando-se em droga-mercadoria, passando a ter, portanto, valor de troca [...]. Nesse contexto, as drogas (proibidas ou não) são mercantilizadas, produzidas e distribuídas a partir das relações estabelecidas no modo de produção capitalista. A produção em larga escala, modificada técnica e cientificamente, explora mais-valia do trabalho humano, tornando-se um lucrativo negócio. Estabelece-se, dessa maneira, uma forma particular de trabalho, o qual se materializa na produção, distribuição e venda da droga-mercadoria. Ressaltamos, portanto, que há uma imensa diferença no entendimento histórico da droga-produto, que possuía apenas valor de uso, em relação a droga-mercadoria, que possui, antes de tudo, valor de troca. É essencial considerarmos que a droga-mercadoria só ganha status de mercadoria na sociabilidade burguesa por ser um objeto suscetível à mercantilização, que de uma maneira ou outra satisfaz necessidades de alguns sujeitos, ou seja, aqueles capazes de pagar um preço por ela [...] E se a necessidade do uso de drogas não pode ser satisfeita por meios legais, os homens buscarão novas maneiras de satisfazê-la. Portanto, todo o discurso ideologizado que demoniza as drogas, bem como os fundamentos religiosos e as ações proibicionistas não fazem com que as substâncias psicoativas deixem de existir. Por isso a proibição de algumas drogas não garante diminuição ou fim do uso; ao contrário, a proibição torna o negócio mais lucrativo (Rocha, 2013, pROCHA, A. P. Proibicionismo e a criminalização de adolescentes pobres por tráfico de drogas. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 115, p. 561–580, 2013.. 567).

Rocha (2013)ROCHA, A. P. Proibicionismo e a criminalização de adolescentes pobres por tráfico de drogas. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 115, p. 561–580, 2013. aborda a Lei nº 11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) e aponta que esta lei freia as sanções para os usuários e coloca penas mais rígidas para traficantes, no entanto, deixa para os juízes a decisão se a quantidade apreendida de drogas será considerada para o consumo ou para o tráfico, o que acaba reproduzindo a culpabilização da juventude negra e pobre.

  1. Determinação social do uso do álcool e implicações no tratamento em transplante de fígado publicado por Vinícius Araújo Pereira; Luzia Cristina de Almeida Serrano; Giovanni Amadeu de Jesus.

O objetivo da pesquisa foi refletir sobre o uso do álcool no capitalismo e suas repercussões no tratamento de transplante de fígado. Os autores sinalizam que adotaram como fonte de coleta de dados entrevistas com sujeitos que necessitavam de transplante hepático. Os autores discutem os diversos obstáculos para o tratamento de transplante hepático, bem como as dificuldades do sistema de saúde cada vez mais privatizado, atender com qualidade os usuários.

Os autores debatem o adoecimento frente ao uso de álcool e a necessidade de responsabilização da indústria e do Estado “de modo que possam responder pelas consequências de sua produção, contribuindo para a redução de danos e a conscientização efetiva, inclusive no que diz respeito às filas de TX8 8 Filas de transplantes. ” (Pereira; Serrano; Jesus, 2022, pPEREIRA, V.A.; SERRANO, L. C. de A.; JESUS, G. A. de. Determinação social do uso do álcool e implicações no tratamento em transplante de fígado. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 145, p. 189–208, 2022.. 204).

Considerações Finais

Verifica-se que dos 1.279 escritos da Revista Serviço Social e Sociedade, abarcando a revista de número 01 até 145, constatamos um número de quatro artigos que se dedicaram ao debate específico sobre drogas. Existe a possibilidade de que outros artigos abordem no interior de seus textos a questão das drogas, mas, os quatro artigos aqui destacados incorporaram a temática da droga como foco principal do debate, inclusive mencionando o termo nas palavras-chave.

Concordamos com Denadai e Garcia (2016)DENADAI, M. C. V.; GARCIA, M. L. T. O Serviço Social e a temática droga. Sociedade em Debate, Pelotas, v. 22, n. 1, p. 261–289, 2016. que as produções científicas na temática das drogas apresentam um crescimento tardio em que pese o crescente engajamento das entidades representativas no debate do assunto. Quanto às publicações sobre drogas na Revista Serviço Social e Sociedade observamos um contorno interessante que são as publicações que abordam a temática a partir da perspectiva da totalidade agraciando o debate com a incorporação da crítica da economia política e a partir das análises que levam em consideração a economia política das drogas, debate este incorporado de forma explícita e aprofundada nos artigos de Vera Lúcia Martins e Andréa Pires Rocha.

O Código de Ética do/a assistente social é explícito em seus princípios fundamentais de defesa da liberdade, dos direitos humanos, de consolidação e ampliação da cidadania, de defesa da democracia, da equidade e justiça social, de empenho na eliminação do preconceito, garantia do pluralismo, defesa e participação na construção de uma nova ordem societária, articulação com movimentos sociais, compromisso de qualidade dos serviços ofertados à população e o exercício do Serviço Social sem descriminar ou ser discriminado (CFESS, 1993). Portanto, cabe ao Serviço Social considerar a complexidade dos usos de drogas, e como as respostas do Estado e da classe burguesa se desdobram, principalmente em relação à população periférica, pobre e negra que sofrem com os abusos do Estado penal. Na consolidação do sistema capitalista a questão das drogas ganha contornos que exigem da categoria reflexões e ações condizentes com o projeto ético-político da profissão.

Segundo Barroco (2011), aBARROCO, M. L. S. Barbárie e neoconservadorismo: os desafios do projeto ético-político. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 106, p. 205–218, 2011. ideologia conservadora reafirma práticas coercitivas nas instituições, sendo assim, a categoria profissional é chamada para o desempenho de atividades laborais, burocráticas, pragmáticas e heterogêneas, o que pode inibir posturas críticas e engajamentos políticos. Todavia, se por um lado, sabemos da histórica relação do Serviço Social com o conservadorismo, por outro, sabemos também do compromisso assumido por esta profissão em defesa da classe trabalhadora, ao qual fazemos parte. Esta defesa está presente nas dimensões teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa que fundamentam o nosso exercício profissional e precisam estar demarcadas na produção de conhecimentos do Serviço Social, para que a formação e o exercício profissional, mediados pela atitude investigativa, tenham ações e reflexões politicamente e eticamente orientadas pelo projeto ético-político profissional.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq/UFV).

  • 1
    Processo APQ-00181-18.
  • 2
    O Relatório refere-se tanto as drogas reconhecidas como “legais” quanto “ilegais”.
  • 3
    Usaremos o termo drogas porque é o termo mais encontrado em documentos e relatórios. Todavia, concordamos que ele possui um caráter mistificador e, muitas vezes preconceituoso, sendo os termos psicotrópico e psicoativo os mais adequados para se referir as substâncias que “agem preferencialmente no Sistema Nervoso Central (SNC), estimulando, deprimindo ou perturbando suas funções” (CFESS, 2016CFESS. Série Assistente Social no combate ao preconceito: o estigma do uso de drogas. Conselho Federal de Serviço Social, Brasília, Caderno 2, 2016. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/CFESS-Caderno02-OEstigmaDrogas-Site.pdf. Acesso em: 20 set. 2023.
    http://www.cfess.org.br/arquivos/CFESS-C...
    ).
  • 4
    Este documento defende o Hospital Psiquiátrico e as Comunidades Terapêuticas como serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS); aponta a necessidade de expansão de leitos em hospitais dentro de unidades psiquiátricas especializadas; garante a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia; assume posição contrária à legalização das drogas; desconsidera a estratégia de Redução de Danos; prevê a internação de crianças e adolescentes em unidades psiquiátricas, além de outras afrontas às diretrizes da Reforma Psiquiátrica (Ministério da Saúde, 2019MINISTÉRIO DA SAÚDE. Nota técnica nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS. Assunto: Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Brasília, 2019. Disponível em: https://repositorio.observatoriodocuidado.fiocruz.br/bitstream/handle/handle/2527/Nota_tecnica_11_2019.pdf?sequence=2&isAllowed=y. Acesso em: 14 jun. 2023.
    https://repositorio.observatoriodocuidad...
    ).
  • 5
    Importante sinalizar que a pesquisa se tornou disciplina obrigatória para a formação em Serviço Social em 1982, entretanto, algumas instituições já tinham esta disciplina em seus currículos (Sposati, 2007SPOSATI, A. Pesquisa e produção de conhecimento no campo do Serviço Social. Revista Katálysis, Santa Catarina, v. 10, n. esp., p. 15–25, 2007.).
  • 6
    O CFESS fazia parte desta representação desde 2009 (CFESS, 2011CFESS. CFESS Manifesta Dia internacional de combate às drogas, Conselho Federal de Serviço Social, Brasília, 2011. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessmanifesta2011_SSdebateusosdrogas_APROVADO.pdf Acesso em: 27 out. 2023.
    http://www.cfess.org.br/arquivos/cfessma...
    ).
  • 7
    Alguns importantes documentos lançados pelo CFESS, além do CFESS Manifesta, são: Nota Técnica sobre a regulamentação das comunidades terapêuticas: contribuições do CFESS para o debate de 2014; Nota técnica sobre a legalização e a regulamentação do plantio, cultivo, produção, comercialização e consumo de drogas, com ênfase na política de redução de danos, a partir de parâmetros e estudos internacionais e nacionais (Gestão 2014–2017); Cartilha CFESS: O estigma do uso de drogas de 2016; Nota sobre as implicações das alterações na política nacional de saúde mental, álcool e outras drogas para o exercício profissional de assistentes sociais no Brasil de 2019.
  • 8
    Filas de transplantes.
  • Agência financiadoraFAPEMIG e PIBIC/CNPq.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
  • Consentimento para publicaçãoAs autoras consentem a publicação do presente manuscrito.

Referências

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  • CFESS. Série Assistente Social no combate ao preconceito: o estigma do uso de drogas. Conselho Federal de Serviço Social, Brasília, Caderno 2, 2016. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/CFESS-Caderno02-OEstigmaDrogas-Site.pdf Acesso em: 20 set. 2023.
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Editores Responsáveis

Michelly Laurita Wiese – Editora-chefe
Mailiz Garibotti Lusa – Comissão Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2023
  • Aceito
    15 Mar 2024
  • Revisado
    14 Jun 2024
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