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Crianças e adolescentes sujeitos de direito à luz da crítica marxista do direito

Children and adolescents as subjects of law in the light of the Marxist critique of law

Resumo:

Este artigo é parte da tese de doutorado cujo objetivo é apresentar as premissas fundamentais necessárias para o estudo da situação da infância e da adolescência no capitalismo brasileiro. Refletimos que a acumulação capitalista da atualidade tem aspectos novos, dentre eles está a atualização dos instrumentos jurídicos. Discorremos sobre como o estudo da crítica marxista do direito, tendo como principal autor Evgeni Pachukanis, pode contribuir para compreendermos até que ponto as “conquistas” legais para a infância, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e seu status sujeito de direito, cooperaram para a proteção ou reforçam e atualizam novas formas de acumulação capitalista. Concluímos que o ECA corresponde ao estágio máximo de completude do direito como parte do próprio avanço das forças produtivas de modernização e industrialização do país, correspondendo à nova fase capitalista. Trata-se da infância integrada ao capital em seu estágio máximo.

Palavras-chave:
Crítica Marxista do direito; crianças e adolescentes; sujeito de direito; capitalismo

Abstract:

This article is part of a doctoral thesis whose aim is to present the fundamental premises needed to study the situation of children and adolescents in Brazilian capitalism. We reflect that today's capitalist accumulation has new aspects, including the updating of legal instruments. We discuss how the study of the Marxist critique of law, whose main author is Evgeni Pachukanis, can help us understand the extent to which the legal "conquests" for children, such as the Statute of the Child and Adolescent (ECA), and their status as subjects of law, have helped to protect or reinforce and update new forms of capitalist accumulation. We conclude that the ECA corresponds to the maximum stage of completeness of the law as part of the very advance of the productive forces of modernization and industrialization in the country, corresponding to the new capitalist phase. This is childhood integrated into capital at its maximum stage.

Keywords:
Marxist critique of law; children and adolescents; subject of law; capitalism

Introdução

No capitalismo contemporâneo, crianças e adolescentes são compreendidos mundialmente enquanto sujeitos em fase peculiar de desenvolvimento humano, a quem, segundo o senso comum, se deve educar para que assumam em suas mãos o “futuro/desenvolvimento da nação”. O interesse pela infância1 1 Trabalharemos com a referência etária da Convenção Sobre os Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas, considerando criança todo o ser humano até 18 anos de idade. No entanto, não trabalharemos de modo rigoroso com estes marcos, já que traremos, em alguns momentos, dados relevantes sobre a situação da juventude até os 21 anos. Justificamos isto em vista do Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispõe de seu controle penal Juvenil até os 21 anos de idade. O debate acerca do conceito de infância, adolescência e juventude não foi o centro do desenvolvimento do artigo e, por isso, flexibiliza para além dos marcos etários, permite maior mobilidade para traços teóricos e outras futuras agendas de estudos que retomem os sentidos históricos, políticos e econômicos, e não apenas quanto ao desenvolvimento biológico para afirmação de tais conceitos. , por parte dos Estados, nasceu como um importante instrumento tático para a formação das nações, já que era/é compreendida como um sujeito moldável e, certamente, inserida nas relações produtivas desde o início da sociedade capitalista (Ariès, 1986ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.; Rizzini, 2011RIZZINI, I. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. São Paulo: Editora Cortez, 2011.; Aguilar, 2011AGUILAR, S. Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945). 2011. 364f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011.). A universalização do trabalho assalariado contou com a infância e juventude que corresponderam massivamente ao quadro de produtores de riquezas nas distintas fases de acumulação capitalista, com grandes taxas de produção de mais-valor. Ao comporem essas relações sociais mercantilizadas, seja ao serem colocada para a venda de sua força de trabalho, seja ao serem assimiladas enquanto conteúdo ideológico, qualificada como “o futuro da nação”, foram colocadas em relação com a forma mercadoria.

Neste artigo iremos trazer aspectos da relação entre infância e as categorias força de trabalho, forma mercadoria e forma sujeito/objeto de direito, à luz da crítica marxista do direito, tendo como principal autor o marxista Evgeni Pachukanis. A teoria geral do direito e do marxismo é em diálogo com o debate sobre a infância sujeito de direito é uma novidade de estudo e oferece novos caminhos teóricos.

Enquanto parte da tese de doutorado em Serviço Social, o objetivo destes escritos é apreender a articulação entre o processo de acumulação capitalista com a forma jurídica e seu imbricamento com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual foi importante marco jurídico nacional, promulgado em 1990, mesmo período em que houve o enraizamento do capitalismo neoliberal no Brasil. Assim, pretendemos revelar o significado das crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direitos para o capitalismo.

Dividimos o percurso argumentativo desse artigo em dois momentos. O primeiro item constrói reflexões marxista sobre o que é o sujeito de direito para as relações sociais capitalistas, munindo o leitor de categorias elementares para alçar as reflexões do seguinte item, o qual vai dialogar com a relação com a situação da infância e o status jurídico sujeito de direito, promulgado a partir do ECA.

Por fim, concluímos que o ECA, enquanto norma jurídica que aparece como capaz de proteger a vida das crianças e dos adolescentes brasileiros, corresponde ao estágio máximo de completude do direito como parte do próprio avanço das forças produtivas de modernização e industrialização do país, correspondendo à nova fase capitalista. Trata-se da infância assujeitada pelo direito/sujeito de direitos integrada ao capital em seu estágio máximo.

Assim, o papel do direito corresponderia a fundamentar um modo de representação capitalista que ocultasse e, em certo modo, afirmasse uma violência contra o público infantojuvenil, antes explícita, e agora ocultada/apresentada pelas relações jurídicas e pelo discurso da “proteção”. A reflexão sobre repactuação do contrato refere-se, portanto, a uma continuidade dos pactos elaborados anteriormente, também utilizados para racionalizar o “cuidado/proteção” e a gestão da infância em vista dos interesses políticos e econômicos de cada fase de acumulação capitalista.

Força de trabalho e sujeito do direito

A generalização das trocas mercantis, contemplando a própria força de trabalho como mercadoria, corresponde à transformação central das relações sociais, que demarca e dá forma ao surgimento do modo de produção capitalista. Os trabalhadores, expropriados dos meios de trabalhado e forçados a alienarem-se de si mesmos, colocando à venda a própria força de trabalho aos capitalistas, foram também submetidos à divisão social do trabalho, o que possibilitou o aumento produtivo e, consequentemente, novas formas de viver, distintas das já conhecidas nos sistemas produtivos anteriores ao capitalismo. Em consequência dessas grandes mudanças, a compreensão da infância também se modificou e foi inserida como participe na produção de valor novo.

Apesar dos inúmeros momentos históricos que revelam a infância inserida nas relações produtivas capitalistas, a sua relação com a forma mercadoria e, portanto, com a forma sujeito de direito é pouco apreendida na imediaticidade, por estar imersa em ideologias psicologizantes da infância e em relações normativistas, marcadas por leis, convenções etc., que ocultam a base produtiva das relações nas quais ela está inserida. Perde-se de vista, assim, a especificidade do lugar atribuído à infância pelo capitalismo, como aquele favorável à continuidade da reprodução capitalista, imerso nas relações produtivas. Perde-se, ainda, a possibilidade de compreender o desenvolvimento da história de maneira dialética, pois vê-se a leitura sobre a infância a partir de um recorte e não dela mesma como composição da necessária divisão sexual, racial, territorial e geracional do trabalho no capitalismo. Iniciemos, assim, nossas primeiras reflexões a partir da categoria central que determinará as outras de nosso interesse: o trabalho. Sabe-se que a relação entre os seres humanos e a natureza, através de uma atividade de vontade orientada a um fim (teleologia), ocorreu em todas as formas de organização social. Essa atividade — o trabalho — altera não apenas o elemento natural, mas também realiza o seu objetivo pré-estabelecido, o que determina o tipo e o modo de sua atividade, modificando também as relações entre os próprios seres humanos (Marx, 2013, pMARX, K. O capital. São Paulo. Boitempo, 2013.. 255).

A capacidade teleológica do trabalho, histórica e socialmente determinada, vincula-se aos seus aspectos criativos e positivos e, como práxis, ele “realiza duplo movimento: supõe a atividade teleológica (a projeção ideal de suas finalidades e meios) por parte do sujeito que o realiza e cria uma realidade nova e objetiva (resultante da matéria transformada)” (Barroco, 2010, pBARROCO, M. L. Ética: fundamentos sócio-históricos. São Paulo: Cortez, 2010.. 24). Mas, quando em relações de dominação entre classes sociais, esse mesmo trabalho de potencial criativo e de afirmação da humanidade expressa sua face de negação dela mesma. (Barroco, 2010, pBARROCO, M. L. Ética: fundamentos sócio-históricos. São Paulo: Cortez, 2010.. 31).

O processo de trabalho no capitalismo, portanto, corresponde à dupla determinação que existe dialeticamente: o trabalho concreto, como ação teleológica, produtora de valor de uso com a finalidade de suprir as necessidades objetivas e subjetivas dos seres humanos, e o trabalho abstrato, produtor de valor de troca para suprir a necessidade de valorização do valor do modo de produção capitalista (Marx, 2013, pMARX, K. O capital. São Paulo. Boitempo, 2013.. 119).

As crianças e adolescentes que compõem a classe trabalhadora estão inseridas nas determinações das relações sociais capitalistas desde o seu início. Sabendo que os trabalhadores são mortais, o capitalista precisa garantir que eles se perpetuem, portanto que procriem e que garantam a existência da prole. Assim,

As foças de trabalho retiradas do mercado por estarem gastas ou mortas têm de ser constantemente substituídas, no mínimo, por uma quantidade igual de novas forças de trabalho. A quantidade dos meios de subsistência necessários à produção da força de trabalho inclui, portanto, os meios de subsistências dos substitutos dos trabalhadores, isto é, seus filhos, de modo que essa peculiar raça de possuidores de mercadorias possa se perpetuar no mercado (Marx, 2013, pMARX, K. O capital. São Paulo. Boitempo, 2013.. 246).

É certo que essa aproximação para localizar a infância na relação com a força de trabalho se faz sem a interferência das particularidades históricas, de gênero, raça e território, que também aparecem da determinação do valor da força de trabalho, como vimos. O que importa salientar é esse imbricamento infância-força de trabalho, desde tenra idade, e ainda o seu reconhecimento como proprietárias de força de trabalho. Sendo assim, elas são sujeitos de si por serem “livres” para vender sua força de trabalho e, ao mesmo tempo, são objetos, pela mesma determinação, somando-se a própria submissão delas as instituições e normas educacionais/correcionais com fim de disciplinar e qualificar a força de trabalho para valorização do valor. Quando o capitalista compra a força de trabalho ele tem o direito de usufruir do valor de uso dela para que seja consumida durante o tempo do processo produtivo acordado. Diferente das demais mercadorias, a força de trabalho, ao ser consumida, cria um valor, que também é de direito do capitalista.

Tratando-se da dupla dimensão do valor, (valor de uso e valor de troca) necessariamente abordemos aquilo que a origina: a dupla dimensão do trabalho, o trabalho concreto útil e o trabalho abstrato. O primeiro compreende a particularidade de cada atividade de trabalho, caracterizado pela sua necessária especificidade. O trabalho do pedreiro, por exemplo, possui aspectos específicos que o diferencia do trabalho de um sapateiro, que, por sua vez, se difere da atividade realizada por uma médica, por uma trabalhadora fabril etc. O segundo — o trabalho abstrato — versa sobre a substância do valor, a dimensão quantitativa, e consiste na forma como o trabalho é socialmente distribuído e igualado na sociedade capitalista para que haja a troca entre os frutos desses diferentes trabalhos (Marx, 2013, pMARX, K. O capital. São Paulo. Boitempo, 2013.. 116).

Segundo uma leitura fisiológica do trabalho abstrato, ele refere-se à retirada das particularidades dos diferentes tipos de trabalho, os quais são reduzidos ao que possuem em comum, a dimensão fisiológica do trabalho, um “dispêndio de cérebros, nervos, músculos, e órgãos sensoriais humanos etc.” (Marx, 2013, pMARX, K. O capital. São Paulo. Boitempo, 2013.. 147). A dimensão fisiológica do conceito que explica o trabalho abstrato não é o único discurso em Marx, apesar de ser o mais desenvolvido e apresentado pelos marxistas. Rubin (1987)RUBIN, I. A teoria marxista do valor. São Paulo: Polis, 1987. ressalta que o trabalho abstrato tratado por Marx se refere não somente ao trabalho socialmente igualado, mas também ao “trabalho socialmente igualado numa forma específica, característica da economia mercantil” (Rubin, 1987, pRUBIN, I. A teoria marxista do valor. São Paulo: Polis, 1987.. 156). O dispêndio de energia em seu sentido fisiológico, por si só, não é trabalho que cria valor, segundo a interpretação de Rubin (1987)RUBIN, I. A teoria marxista do valor. São Paulo: Polis, 1987., sendo a “abstração das formas concretas de trabalho, relação social básica entre produtores mercantis separados” (Rubin, 1987, pRUBIN, I. A teoria marxista do valor. São Paulo: Polis, 1987.. 159), o que caracteriza o trabalho abstrato, o qual se realiza através do processo de troca, revelando, assim a sua dimensão social e histórica (Rubin, 1987, pRUBIN, I. A teoria marxista do valor. São Paulo: Polis, 1987.. 159).

O dispêndio de energia humana como tal, num sentido fisiológico, não é ainda trabalho abstrato, trabalho que cria valor, muito embora esse dispêndio seja sua premissa. O que caracteriza o trabalho abstrato é a abstração das formas concretas de trabalho, relação social básica entre produtores mercantis separados (Rubin, 1987, pRUBIN, I. A teoria marxista do valor. São Paulo: Polis, 1987.. 159).

A mercadoria força de trabalho, a qual, no processo de venda, assim como as demais mercadorias, aparece como equivalente, assim como os proprietários de sua compra e venda se colocam como iguais para estabelecerem a troca. Esse acordo de reconhecimento enquanto proprietários é sobredeterminado pela relação de troca e necessário para que a circulação da mercadoria se realize. Por um lado, o trabalhador, como proprietário da força de trabalho, e, por outro, o capitalista, como proprietário dos meios de produção, relacionam-se entre si e como guardiões das mercadorias (Marx, 2013, pMARX, K. O capital. São Paulo. Boitempo, 2013.. 159).

Nesta relação, o capitalista possui o direito de se aproveitar do valor de uso da mercadoria força de trabalho, mercadoria esta capaz ainda de produzir mais valor e possibilitar a acumulação de capital. Isso porque a força de trabalho é a única mercadoria que produz valor novo enquanto seu valor de uso é consumido durante o processo de trabalho, ao vivificar o trabalho morto.

A relação entre proprietários de mercadorias (trabalhador e capitalista), apresentados como iguais no momento da troca, é mediada por um contrato, se colocando também uma relação jurídica entre os sujeitos. É em comum acordo entre os proprietários que a troca se realiza, caso contrário, se não o fosse, essa troca não obteria êxito e ocorreria uma relação de força entre uma das partes contra a outra, por via violenta. O papel do acordo, portanto da relação jurídica, faz com que os sujeitos sejam compreendidos enquanto sujeitos de direito.

O direito, assim, surge como o contrato oriundo do desdobramento das relações de troca das mercadorias. Pachukanis (2017, pPACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo. São Paulo: Sundermann, 2017.. 137)2 2 Barreira (2020) se propõe a uma atualização sobre o conceito sujeito de direito, desenvolvido por Pachukanis, considerando que o jurista russo elaborou sua produção sem ter acesso a publicações de textos fundamentais de Marx, como o Urtext, os Grundrisse, as Notas sobre Wagner, os Resultados do processo imediato de produção e Complementos e alterações à primeira edição de O Capital. O não conhecimento destas obras por Pachukanis teria levado a limitações teóricas, as quais Barreira contribui em desvelá-las e relocalizar um debate sobre sujeito de direitos, considerando também essas produções. apresenta o conceito sujeito de direito3 3 O conceito sujeito de direito para a jurisprudência dogmática é compreendido em sua formalidade. Refere-se à “capacidade ou incapacidade de participar das relações jurídicas” (Pachukanis, 2017, p. 139), retirando o processo histórico de seu surgimento. , como o “átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples, que não pode mais ser decomposto”. É no modo de produção capitalista, segundo Pachukanis, que os indivíduos aparecem como sujeitos universais para que haja a possibilidade de circulação das mercadorias. São eles, então, reduzidos como iguais e livres. O reconhecimento enquanto sujeitos proprietários em condição de igualdade é o elemento da forma jurídica do sujeito. Orione (2018)ORIONE, M. Vamos brincar de esconde-esconde? Revista Eletrônica Socioeducação, ano 2, ed. 2, p. 125–138, 2018. nos ensina que a forma típica do modo de produção capitalista é, portanto, a forma jurídica, constituída pelo sujeito de direito e pela ideologia jurídica, sendo que dela e da forma mercadoria derivam as demais formas sociais (como, por exemplo, a forma gênero e a forma raça).

Os trabalhadores, ao mesmo tempo em que se colocam como sujeitos de direito, proprietários da mercadoria força de trabalho, são reduzidos a objetos, já que alienam a própria força de trabalho na venda.

Na condição de sujeito-proprietário, o homem faz circular a si mesmo como objeto de troca, pois em sua existência, como lembra Bernard Edelman, ele só aparece como representante dessa mercadoria que ele possui: a si mesmo, de modo que se pode dizer que o homem como sujeito de direito é constituído para a troca, e é justamente essa condição que realiza a sua liberdade (Naves, 2017, pNAVES, M. E. P. In: PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo. São Paulo: Sundermann, 2017.. 68).

Os seres humanos, assim, passam a relacionar-se entre si como coisas e como sujeitos jurídicos, apresentando-se “ao mesmo tempo em duas formas absurdas: como valor da mercadoria e como capacidade do homem em ser sujeito de direito” (Pachukanis, 2017, pPACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo. São Paulo: Sundermann, 2017.. 141). Sujeito de direito este que, como parte das relações sociais fetichizadas, é ele mesmo um sujeito jurídico reificado, validado hierarquicamente a partir das propriedades que possui. A relação jurídica, portanto, é nada mais que uma relação fruto da produção econômica, que se realiza na troca ao colocar em relação impessoal, abstrata, dois sujeitos desiguais. Dito de outra maneira, seguindo uma que se opõe à ideia substancialista do valor, o contrato/direito valida uma relação de reconhecimento e de tratamento que aparece como igual, em um primeiro momento, mas, em um segundo momento, se realiza com atravessamentos que valoram de modo distinto cada um dos sujeitos.

Para a teoria de Pachukanis (2017)PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo. São Paulo: Sundermann, 2017., que parte de uma leitura fisiológica do trabalho, a relação entre os sujeitos de direitos aparece e encerra-se como equivalência, orientada por um sujeito universal. Entretanto, considerando uma análise sobre o sujeito de direito a partir de uma leitura da validação social que ocorre apenas na troca, “o indivíduo anterior a este momento aparece como alguém detentor de personalidade jurídica, o momento jurídico da pessoa “(Heinrich, 2018HEINRICH, M.; LIMA, R. Objetividade valor e forma valor: apontamentos de Marx para a segunda edição de O Capital. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 38, n. 1 (150), p. 201–214, jan./mar. 2018., p. 56, grifo do autor), aquela encarnação da sociabilidade que o torna capaz de atos jurídicos — notadamente, a compra e venda de mercadorias, incluindo sua força de trabalho — mas que nem por isso o efetiva como sujeito de direito (Barreira, 2020, pBARREIRA, C. A sujeição ao direito: elementos para uma releitura do “sujeito de direito” em Pachukanis. In: CUNHA, José Ricardo (org.). Teorias críticas e crítica ao direito – volume I. Rio de Janeiro: Lumens Juri, 2020.. 28).

Consolida-se, então, a relação que aparece como sendo entre proprietários iguais, mas que são distintos, os donos dos meios de produção e os donos da força de trabalho, ainda que esses componentes que os distinguem sejam “anulados” pelas relações sujeitos jurídicos abstratos que, como as mercadorias, inserem-se em uma gelatina incapaz de reconhecer sua diversidade natural, em um primeiro momento da troca. A igualdade e a liberdade4 4 Em continuidade a esta reflexão, podemos afirmar que o trabalhador assalariado é livre para decidir sobre a venda de sua força de trabalho, liberdade esta consonante com a formação da sociedade burguesa e que, ao lado da igualdade, forjam a aparência de relações sociais como se fossem esvaziadas de quaisquer conflitos de interesses ou mesmo de exploração. apresentam-se como atributos fundamentais do sujeito de direito, reconhecendo todas as pessoas como proprietários em potencial, mas que não garante que, de fato, todas se efetivem como tal. Portanto, mesmo as próprias forças de trabalho colocadas à venda, que aparecem como equivalentes, ao se confrontarem entre si no mercado, assumem também um atravessamento social fundante do valor de troca que as hierarquiza entre si. Ainda sobre isso, o valor da força de trabalho de uma criança, uma mulher, um/a negro/a, um/a indígena etc. não é socialmente equiparado com o valor socialmente validado da força de trabalho colocada no mercado por um trabalhador branco. A distinção entre o que se indica (igualdade de propriedade) e o que de fato se efetiva (desigualdade) corresponde às faces de abstrações de uma mesma moeda.

O contrato, assim, falseia uma relação de paz entre iguais, pois, na verdade, possui em sua essência um caráter desigual e violento, mas, salientamos: a igualdade na esfera da circulação corresponde à primeira abstração, mas é mera formalidade para ocultar a relação desigual da esfera da produção e para que assim ela se reproduza de modo ampliado. Ao mesmo tempo, também é real a validação entre essas mercadorias equiparadas abstratamente, quando se colocam em comparação na esfera da circulação, fazendo revelar uma validação hierarquizante, reconhecida, por vezes, nos próprios contratos.

O que conseguimos sintetizar das reflexões até aqui elaboradas, portanto, é que o sujeito de direito nada mais é do que uma dimensão das relações produtivas, que expressa as relações de expropriação dos meios de produção, e então expressa a própria propriedade privada nas relações entre os seres humanos.

Crianças e Adolescentes sujeitos/objetos do direito

O desenvolvimento da sociedade capitalista exigiu a participação também de crianças e jovens nas relações produtivas, estando elas disponíveis para a relação de troca do tempo despedido de sua força de trabalho para ser vendida à burguesia. Eram elas colocadas como proprietárias da força de trabalho, aparecendo como equivalentes na realização da troca, mas, ao ser validada socialmente, seu valor era diferenciado, em comparação a outras forças de trabalho disponíveis no mercado.

O desvalor que aparece para a qualidade de crianças e adolescentes se institui com base objetiva, nas relações produtivas, e se desdobra na consolidação ideológica que vem justificar a desqualificação da infância, contribuindo para as relações opressoras e de exploração intensificada. De outra forma, a maneira como a infância é localizada nas relações capitalistas não corresponde apenas à ideologização do ser criança, mas também a sua relação direta com a sobredeterminação da forma mercadoria e da forma sujeito de direto. É, assim, ela mesma sujeito e objeto de direito, que oculta e revela, ao mesmo tempo, as desigualdades. As crianças e adolescentes são sujeitos de direito e compõe as relações de contrato, jurídicas, capitalistas; mas em vista de sua consideração ou não em um contrato formal — legislações etc. — ela pode não ser efetivada como tal, não porque não cumpram seu papel nas relações produtivas, mas sim porque foi validada de modo que seu valor se realiza fora dele, pois, “a própria sujeição ao direito, aparece aqui como algo dependente das racionalidades opressoras que constroem uma teia de desigualdades sociais” (Barreira, 2020, pBARREIRA, C. A sujeição ao direito: elementos para uma releitura do “sujeito de direito” em Pachukanis. In: CUNHA, José Ricardo (org.). Teorias críticas e crítica ao direito – volume I. Rio de Janeiro: Lumens Juri, 2020.. 32).

Destarte, o fato de a infância ter sido marginalizada dos contratos sociais formais em alguns momentos não significa que ela não tenha se constituído parte das trocas, mas sim o seu contrário, pois, ao passo que compunha certo grau de hierarquização para a validação do valor de sua força de trabalho, era inserida como partícipe de atividades produtivas e reprodutivas caras à acumulação com tal atravessamento ao valor. Estar fora ou mesmo dentro das relações contratuais legais pode revelar, ainda, formas distintas para garantia da valorização do valor.

Com a universalização da forma mercadoria, a infância também é atravessada pela nova forma produtiva e reprodutiva e expressa-se nas relações cotidianas entre os seres humanos, mesmo em contextos em que o objeto mercadoria não esteja presente (nos afetos, nas expressões criativas etc.). A universalização do sujeito de direito se configura inclusive em relações a conteúdos que não sejam necessariamente mercantis e capturam a subjetividade humana para uma compreensão fetichista jurídica das relações cotidianas que contribuem para ocultar a história de expropriação e exploração e naturaliza a busca por melhores condições de vida através da própria via jurídica. “O fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico” (Pachukanis, 2017, pPACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo. São Paulo: Sundermann, 2017.. 124).

O Estado ocupa importante papel para garantir o contrato e favorecer a circulação das mercadorias, além de atuar incisivamente na construção de hegemonias ideológicas para a consolidação do papel atribuído à infância de acordo com os interesses de cada momento, apresentando, como um meio para tal, a formulação de leis, convenções etc. É ele uma necessidade da forma jurídica que se apresenta como um “terceiro neutro” na relação com os proprietários de mercadoria que efetivam a troca, como ensina Pachukanis, esse “terceiro” “encarna a garantia mútua que os possuidores de mercadorias, na condição de proprietários, um ao outro, e que, consequentemente, é a regra personificada da correlação entre possuidores de mercadorias” (Pachukanis, 2017, pPACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo. São Paulo: Sundermann, 2017.. 180).

Com a generalização das trocas mercantis, o Estado “separa-se” da sociedade, e a ele é atrelado a importância de zelar pelo cidadão, e aos membros da sociedade a representação enquanto sujeito proprietário. A separação de proprietário e cidadão oculta a dimensão da pessoalidade dos sujeitos e da classe e afirma a forma política do capital: o Estado. Enquanto guardião do bem comum e fiador dos contratos e trocas, possibilita a manifestação da igualdade entre proprietários. Por sua vez, a norma jurídica é quem também atuará na esfera do “bem comum”, pelos direitos sociais públicos. Cabe ao direito público preservar e continuar capitalismo, e não o superar. “É, portanto, a ‘correção’ que assegura o domínio da lógica da equivalência que a esfera do direto público é desenvolvida, estando abarcada também nos assim chamados direitos sociais” (Silva, 2019, pSILVA, J. Para uma crítica além da universalidade: forma jurídica e previdência social no Brasil. 2019. 270f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.. 81, grifo da autora). Os direitos sociais buscam preservar os elementos constituidores da forma jurídica, especialmente da igualdade entre os sujeitos de direito, “corrigindo”, aparentemente, as situações que provoquem uma diferenciação entre os proprietários de mercadorias. Se é condição equivalerem-se para que a troca se efetive, o direito social, portanto, “resolve” esse “lugar comum”, essa igualdade entre si para a continuidade do circuito das trocas mercantis. As normas protetivas, portanto, preservam a “igualdade” necessária.

Os direitos sociais — acesso à saúde, educação, assistência social, dentre outros —, por meio das políticas públicas, são apresentados como ações humanistas — cidadania, como dever do Estado, a fim de garantir as condições mínimas para a sociedade e a preservação do “bem comum”. No entanto, são elas que assumem a própria condição de reprodução da força de trabalho e de sobrevivência dos que estão desempregados ou inaptos, para que, no dia seguinte, o conjunto da classe trabalhadora permaneça viva para a continuidade das relações de exploração, aliviando, para o capitalista, o pagamento dos salários.

O acesso às políticas sociais e o modo como são executadas, portanto, partem das necessidades dos próprios processos de acumulação capitalista — extração de mais-valor — e não das urgências concretas dos interessados, ainda que haja os atravessamentos da luta de classes por melhores condições de vida. O “proprietário-cidadão” das políticas públicas sociais é apresentado como “usuário”, “beneficiário”, retirado dele a condição classe e distanciando-o da organização do conjunto da classe trabalhadora. Como “usuário” dos serviços, deixa de reconhecer-se como trabalhador e passa a não se ver na extensão daquela “categoria” de trabalhadores que atua no serviço utilizado, forjando uma ideia de interesses distintos entre os pares. O “usuário” das políticas sociais pertence à classe trabalhadora, assim como o trabalhador que presta determinado serviço (Orione, 2018, pORIONE, M. Vamos brincar de esconde-esconde? Revista Eletrônica Socioeducação, ano 2, ed. 2, p. 125–138, 2018.. 134).

Com a Constituição Federal do Brasil (1988) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), crianças e adolescentes “ganham” o status de sujeitos de direitos, todas elas consideradas igualmente cidadãs e alvos dos direitos sociais e das políticas públicas estatais. O princípio da igualdade jurídica é afirmado, normatizando em seu Artigo 3º que os direitos anunciados se aplicam a

Todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem (Brasil, 1990BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Brasília: Presidência da República, 1990.).

Entre o próprio segmento se equipara a sua condição — todas as crianças e adolescentes são igualados perante a lei — e na relação com os cidadãos-proprietários adultos apresenta-se uma distinção, havendo, pela norma, a prioridade da intervenção do Estado para a “correção” e “ajuste” ao princípio da equivalência entre os diferentes proprietários adultos e proprietários crianças/adolescentes. O artigo 4º expressa:

  1. primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Prioriza-se esse “ajuste” menos em virtude da sensibilidade humanista e romantizada da chamada condição peculiar de desenvolvimento e o estabelece na aparência mais para a garantia da reprodução/reposição da força de trabalho dos pais e mães e, por que não, das próprias crianças e adolescentes. Vejamos: como já dito, tratando as políticas públicas sociais como apoio ao capitalista para extração de mais-valia e, assim, rebaixando o preço da força de trabalho, elas precisam existir, mas não correspondem às necessidades da própria classe, pois, quem dita como será essa realização é o próprio movimento do capitalismo. Mesmo atravessados por movimentos populares, a forma jurídica possibilita capturar as pautas e absorvê-las de forma a reforçar ainda mais a manutenção das relações de exploração. O ECA com seu conteúdo de discurso protetivo, apresenta as particularidades do segmento, mas, ao mesmo tempo, retira a classe. Trata-se de uma “individualização pluralizada” (Orione, 2018, pORIONE, M. Vamos brincar de esconde-esconde? Revista Eletrônica Socioeducação, ano 2, ed. 2, p. 125–138, 2018.. 132), na qual se retira a história e a relação com o modo de produção capitalista.

O Sistema de Garantia de Direitos (SGD), criado em 2006 pelo Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), é um exemplo disto. Enquanto intelectuais e militantes bem-intencionados (ou não) preocupavam-se com a vida do público infantojuvenil, o ringue da disputa para a luta pela vida foi dentro do âmbito jurídico, em que, pela via dos Conselhos de Direitos, foi promulgado o que seria a “solução” para se efetivar as políticas sociais. A institucionalização e o fortalecimento do sistema de garantias de direito foram defendidos por Neto (2005, pNETO, Wanderlino Nogueira. Por um sistema de promoção dos direitos humanos de crianças e adolescentes. IN: Revista Serviço Social e Sociedade. n 83.Ano XXVI. Setembro 2005.. 12), que afirmou a importância de

Procurar garantir esses direitos, isto é, promovê-los, por meio de instrumentos normativos (leis, tratados, resoluções, decretos etc.) de instâncias públicas (órgãos estatais e entidades sociais, por exemplo) e de mecanismos processos de mobilização, de construção de capacidades, de apoio técnico-financeiro, de monitoramento, de ações judiciais, do gerenciamento de dados e informações, de fundos de investimentos etc., todos com o mesmo fito.

Quando discutida a questão dos direitos humanos dos grupos identitários (negros, mulheres, LGBTQIA+), a infância foi englobada para se pensar com maior profundidade sobre a defesa de direitos e como isto se realizaria para o segmento. A discussão alcançou a Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED) e então chegou ao CONANDA. Como tema de uma Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (1999), passou-se a construir consensos mínimos para a elaboração do que seria este sistema de garantia. O SGD constitui-se, então, como

Articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal (Baptista, 2012, pBAPTISTA, M. Algumas reflexões sobre o sistema de garantia de direitos. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 109, p. 179-199, mar. 2012.. 186).

Ele organiza-se a partir de três eixos estratégicos de ação na área dos direitos humanos: I - da defesa; II - da promoção; e III - do controle de sua efetivação. A institucionalização, objetivo do próprio SGD, é compreendida como tática importante por este setor de intelectuais e militantes da área da defesa da infância, de modo que, na própria formulação sobre a característica estratégica do SGD, se naturaliza o enquadramento dos movimentos sociais a modalidade das organizações da sociedade civil/organizações não governamentais e, portanto, a precarização e terceirização das próprias políticas para a infância. O discurso e a prática da promoção e proteção dos direitos humanos como alternativa para enfrentar a baixa efetivação da normativa legal, ao buscar as saídas institucionais por ela mesma, representa o sucesso da artimanha jurídica.

Sua sofisticação é observada no arsenal de sistematizações em defesa dos “novos” sujeitos de direito crianças e adolescentes: uma generalização do status jurídico entre as crianças e os adolescentes, a primazia das políticas públicas sociais (ainda que não se efetive por completo), para garantia da reprodução da força de trabalho e do mercado-filantrópico e a organização de um Sistema de Garantia de Direitos, promulgado por um Conselho de Direitos, estruturado por via de normativas, e que convoca “atores” de diferentes instituições que atuam de acordo com suas competências (exceto a classe trabalhadora e suas experiências, que, em certa medida, escapam do controle jurídico e Estatal):

As instituições legislativas nos diferentes níveis governamentais; as instituições ligadas ao sistema de justiça, a promotoria, o Judiciário, a defensoria pública, o conselho tutelar, aquelas responsáveis pelas políticas e pelo conjunto de serviços e programas de atendimento direto (organizações governamentais e não governamentais) nas áreas de educação, saúde, trabalho, esportes, lazer, cultura, assistência social; aquelas que, representando a sociedade, são responsáveis pela formulação de políticas e pelo controle das ações do poder público; e, ainda, aquelas que têm a possibilidade de disseminar direitos fazendo chegar a diferentes espaços da sociedade o conhecimento e a discussão sobre os mesmos: a mídia (escrita, falada e televisiva), o cinema e os diversificados espaços de apreensão e de discussão de saberes, como as unidades de ensino (infantil, fundamental, médio, superior, pós-graduado) e de conhecimento e crítica (seminários, congressos, encontros, grupos de trabalho) (Baptista, 2012, pBAPTISTA, M. Algumas reflexões sobre o sistema de garantia de direitos. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 109, p. 179-199, mar. 2012.. 85).

Algo deu errado com as expectativas que intelectuais e militantes defensores tinham em relação ao ECA, pois “o caráter de classe do direito já está dado pela sua própria organização interna, pelo modo como ele especificamente se estrutura no processo de valor de troca” (Naves, 2014, pNAVES, M. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões, 2014.. 33). O que a teoria crítica nos ofereceu, até então, enquanto recurso analítico, foi auxiliar a entendermos o movimento histórico, compreendendo a forma jurídica e a operação dos processos de “individualização pluralizada”, para além de um olhar para os conteúdos normativos. E mais, como isso se opera na relação com a infância e a adolescência na acumulação e ampliação capitalista.

Considerações finais

Esse artigo é parte da tese de dourado em Serviço Social, que apresenta aprofundamentos em relação ao conteúdo aqui expresso. No entanto, cabe considerarmos como caminho conclusivo para o artigo o desvelamento das normas jurídicas para a infância, em especial o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como a expressão da forma mais “acabada” da relação social capitalista, pois generaliza a infância e a coloca como equivalente para as relações sociais capitalistas.

O que temos no conteúdo e nos princípios normativos do ECA é a atualização e a modernização do status jurídico correspondente à fase contemporânea capitalista, na qual a igualdade formal generalizada, como implica o Estatuto, caracteriza a própria sociedade capitalista neoliberal dos países periféricos, para que se realize e se aprofunde as trocas mercantis e as espoliações/expropriações — a infância como mercadoria sujeito ou como mercadoria objeto. Em outras palavras, o ECA corresponde ao estágio máximo de completude do direito como parte do próprio avanço das forças produtivas de modernização e industrialização do país, satisfazendo à nova fase.

Enquanto norma jurídica, o ECA é, portanto, por um lado um processo fruto da conciliação de classes, em contexto do capitalismo neoliberal Brasileiro, que se apresenta como protetivo, mas cumpre concretamente a possibilidade dos aprofundamentos das desigualdades sociais entre o próprio segmento. Uma das expressões disto aparece no mercado-filantrópico das ONGs, enquanto aparelhos privados de hegemonia (Fontes, 2010FONTES, Virginia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.), aliados ao princípio da Proteção Integral, transformando a infância em nicho de mercado. O que se apresentava como proteção se inverte e se realiza como desproteção ao sujeito criança e uma proteção ao sujeito/objeto do direito criança, de modo que, neste caso, o que se protege é a relação capitalista entre sujeito e mercadoria.

Observar esse movimento da realidade a luz da crítica marxista do direito amplia nossos diálogos e abre uma agenda importante de estudos sobre a situação das crianças e dos adolescentes e das políticas e serviços públicos para o segmento.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • 1
    Trabalharemos com a referência etária da Convenção Sobre os Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas, considerando criança todo o ser humano até 18 anos de idade. No entanto, não trabalharemos de modo rigoroso com estes marcos, já que traremos, em alguns momentos, dados relevantes sobre a situação da juventude até os 21 anos. Justificamos isto em vista do Estatuto da Criança e do Adolescente, que dispõe de seu controle penal Juvenil até os 21 anos de idade. O debate acerca do conceito de infância, adolescência e juventude não foi o centro do desenvolvimento do artigo e, por isso, flexibiliza para além dos marcos etários, permite maior mobilidade para traços teóricos e outras futuras agendas de estudos que retomem os sentidos históricos, políticos e econômicos, e não apenas quanto ao desenvolvimento biológico para afirmação de tais conceitos.
  • 2
    Barreira (2020)BARREIRA, C. A sujeição ao direito: elementos para uma releitura do “sujeito de direito” em Pachukanis. In: CUNHA, José Ricardo (org.). Teorias críticas e crítica ao direito – volume I. Rio de Janeiro: Lumens Juri, 2020. se propõe a uma atualização sobre o conceito sujeito de direito, desenvolvido por Pachukanis, considerando que o jurista russo elaborou sua produção sem ter acesso a publicações de textos fundamentais de Marx, como o Urtext, os Grundrisse, as Notas sobre Wagner, os Resultados do processo imediato de produção e Complementos e alterações à primeira edição de O Capital. O não conhecimento destas obras por Pachukanis teria levado a limitações teóricas, as quais Barreira contribui em desvelá-las e relocalizar um debate sobre sujeito de direitos, considerando também essas produções.
  • 3
    O conceito sujeito de direito para a jurisprudência dogmática é compreendido em sua formalidade. Refere-se à “capacidade ou incapacidade de participar das relações jurídicas” (Pachukanis, 2017, pPACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo. São Paulo: Sundermann, 2017.. 139), retirando o processo histórico de seu surgimento.
  • 4
    Em continuidade a esta reflexão, podemos afirmar que o trabalhador assalariado é livre para decidir sobre a venda de sua força de trabalho, liberdade esta consonante com a formação da sociedade burguesa e que, ao lado da igualdade, forjam a aparência de relações sociais como se fossem esvaziadas de quaisquer conflitos de interesses ou mesmo de exploração.
  • Agência financiadora

    A pesquisa, como parte da tese de doutorado em Serviço Social, contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação

    A autora consente a publicação do artigo.

Referências

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  • ARIÈS, P. História social da criança e da família 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
  • BAPTISTA, M. Algumas reflexões sobre o sistema de garantia de direitos. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 109, p. 179-199, mar. 2012.
  • BARROCO, M. L. Ética: fundamentos sócio-históricos. São Paulo: Cortez, 2010.
  • BARREIRA, C. A sujeição ao direito: elementos para uma releitura do “sujeito de direito” em Pachukanis. In: CUNHA, José Ricardo (org.). Teorias críticas e crítica ao direito – volume I. Rio de Janeiro: Lumens Juri, 2020.
  • BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Brasília: Presidência da República, 1990.
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  • NAVES, M. E. P. In: PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo São Paulo: Sundermann, 2017.
  • NAVES, M. A questão do direito em Marx São Paulo: Outras Expressões, 2014.
  • NETO, Wanderlino Nogueira. Por um sistema de promoção dos direitos humanos de crianças e adolescentes. IN: Revista Serviço Social e Sociedade. n 83.Ano XXVI. Setembro 2005.
  • ORIONE, M. Vamos brincar de esconde-esconde? Revista Eletrônica Socioeducação, ano 2, ed. 2, p. 125–138, 2018.
  • PACHUKANIS, E. A teoria geral do direito e o marxismo São Paulo: Sundermann, 2017.
  • RIZZINI, I. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. São Paulo: Editora Cortez, 2011.
  • RUBIN, I. A teoria marxista do valor São Paulo: Polis, 1987.
  • SILVA, J. Para uma crítica além da universalidade: forma jurídica e previdência social no Brasil. 2019. 270f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2023
  • Aceito
    28 Mar 2024
  • Revisado
    04 Maio 2024
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