Resumo
Escrito em tempos de pandemia sanitária, este artigo aborda uma outra grave “pandemia” em curso no Brasil, que tem provocado o extermínio sistemático, principalmente, dos negros/pobres/jovens, cujas vidas são consideradas descartáveis. Mostra como o Estado se utiliza do racismo estrutural para controlar a vida e a morte dos corpos negros. Enfatiza que a lógica da criminalização e do extermínio é essencialmente política: para manter a ordem social vigente, é preciso controlar a rebeldia popular.
Palavras-chave:
Racismo Estrutural; Estado; Criminalização; Extermínio
Abstract
Written in times of sanitary pandemic, this article approaches another serious “pandemic” underway in Brazil, which has caused the systematic extermination, mainly, of the blacks/poors/youngs, whose lives are considered disposables. It shows how the State uses the structural racism to control the life and the death of blacks bodies. It emphasizes that the logic of the criminalization and extermination is essentially political: for maintain the current social order, it is necessary to control the popular rebellion.
Keywords:
Structural Racism; State; Criminalization; Extermination
Introdução
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro
(Marcelo Yuka - O Rappa)
Ao tempo em que escrevemos estas páginas (maio de 2020), assistimos atordoados à pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19), que tem infectado milhões de pessoas e provocado mortes nos quatro cantos do mundo. Num cenário de guerra, diante do iminente colapso do sistema público de saúde, o governo do estado do Rio de Janeiro já elaborou um protocolo de atendimento, estabelecendo critérios para escolher quem terá acesso a um leito hospitalar e quem será liberado para morrer em casa.
Não obstante, segue em curso, especialmente no Brasil, uma outra “pandemia” cujas mortes não têm causado grande comoção ou indignação. Uma “pandemia” que não é excepcional tampouco temporária; ao contrário, é cotidiana, sistemática, dirigida e focalizada, vitimando um público-alvo bem delimitado: negros/ pobres/jovens. Nessa “pandemia”, o Estado também decide, direta ou indiretamente, quem pode viver e quem deve morrer. Para essa “pandemia”, não há previsão de retorno à normalidade porque ela própria faz parte da normalidade da vida social, principalmente nas favelas e nos bairros mais pobres das cidades brasileiras.
Essa espécie não rara de “pandemia do extermínio” não dá trégua nem mesmo durante uma verdadeira pandemia sanitária. No dia 15 de maio de 2020, uma operação policial deixou treze mortos no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, sendo que seis corpos foram transportados, pelos próprios moradores, até a saída da comunidade, numa cena aterrorizante (MENDONÇA, 2020MENDONÇA, Jeniffer. O massacre que interrompeu a quarentena no Complexo do Alemão. Ponte Jornalismo, São Paulo, 17 maio 2020. Disponível em: https://ponte.org/o-massacre-que-interrompeu-a-quarentena-no-complexo-do-alemao/. Acesso em: 21 maio 2020.
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). Mostrar os corpos como forma de, ao mesmo tempo, evidenciar o que ninguém quer ver e reivindicar que a matança pare.
Poucos dias depois, em 18 de maio de 2020, foi a vez de João Pedro Matos Pinto (14 anos) perder a vida numa operação conjunta das polícias civil e federal no Morro do Salgueiro, em São Gonçalo/RJ. O jovem negro foi atingido por um tiro de fuzil dentro de casa e seu corpo foi encontrado pela família apenas no dia seguinte, já no Instituto Médico Legal (COELHO, 2020COELHO, Leonardo. Polícia sumiu com João Pedro após atirar nele. Foi achado morto. Ponte Jornalismo, São Paulo, 19 maio 2020. Disponível em: https://ponte.org/policia-sumiu-com-joao-pedro-apos-atirar-nele-foi-achado-morto/. Acesso em: 21 maio 2020.
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).
Corpos negros alvejados, abatidos, caídos. Vidas ceifadas, sonhos interrompidos. Não são erros de policiais que “passaram do ponto” ou agiram sob “violenta emoção”. Não são simplesmente crimes cometidos por determinados agentes estatais e que devem ser apurados. Antes de tudo, estamos diante de uma política de Estado. Uma política de extermínio que tem no racismo estrutural a razão de sua existência e que coloca os jovens negros das periferias, literalmente, entre a vida e a morte. A morte que cabe à população negra é demonstrativa do valor que lhe é dado pelo status quo dominante.
Neste artigo, partimos de uma análise sobre as concepções teóricas de racismo (individualista, institucional, culturalista e estrutural), examinando as determinações históricas presentes na realidade brasileira, que tem o racismo como marca indelével. Na sequência, dialogamos com a análise foucaultiana sobre o biopoder, em que o “racismo” se constitui como dispositivo central na organização do Estado moderno, autorizando a produção da morte em nome da vida. Para Foucault, o Estado moderno já nasce racista, o que o autoriza a hierarquizar, segregar e eliminar uma determinada população sob o pretexto da defesa da sociedade. É nesse espectro que ganha inteligibilidade as estatísticas de extermínio que grassam no Brasil, onde a prisão se torna um dispositivo de barragem e controle da revolta popular. Por fim, concluímos que os processos de criminalização e extermínio, sustentados pelo racismo estrutural, são estratégicos para a reprodução da ordem social vigente.
Somos Todos Racistas! A Perspectiva do Racismo Estrutural
Nos dias de hoje, muito se tem falado sobre o racismo, seja por aqueles que simplesmente negam a sua existência, seja por aqueles que o reconhecem e propõem diferentes formas de combatê-lo. Nos debates da vida cotidiana, vemos com frequência acusações e defesas relacionadas ao fato de ser ou não ser racista. Mas, afinal, de que racismo se trata? Em nossa análise, a concepção que se tem acerca da origem e da natureza do racismo faz toda a diferença.
Por isso, preliminarmente, é importante traçar algumas linhas de interpretação teórica. Antes de mais nada, é preciso rechaçar aquela visão típica do liberalismo de que o racismo é um problema de natureza individual. Quer seja na forma de uma suposta doença ou estado patológico, quer seja na forma de um desvio de conduta no sentido moral, aqui o racismo jamais transcende o âmbito do indivíduo isolado.
Segundo Almeida (2018ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte/MG: Letramento, 2018.), esta concepção individualista pode até mesmo não admitir a ocorrência do racismo, mas apenas do “preconceito”, ressaltando uma certa natureza psicológica do fenômeno. “Sob este ângulo”, diz o autor (2018, p. 28), “não haveria sociedades ou instituições racistas, mas indivíduos racistas, que agem isoladamente ou em grupo”. Via de regra, a solução apontada é a responsabilização criminal de tais indivíduos, com a expectativa de corrigir seu comportamento por meio do tratamento penal.
Uma segunda concepção entende que o racismo não se restringe a comportamentos individuais, estando presente no próprio funcionamento das instituições, com a aplicação de privilégios e desvantagens com base na distinção de raça. Para os teóricos do racismo institucional, os conflitos e as desigualdades raciais são elementos inerentes ao funcionamento das instituições. Esta concepção atribui centralidade ao poder, enfatizando que o racismo é, essencialmente, uma forma de dominação (ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte/MG: Letramento, 2018.).
Sem dúvida, a concepção institucional do racismo promove um salto qualitativo, na medida em que supera a abordagem individual e, também, introduz a dimensão do poder enquanto elemento constitutivo das relações raciais. Contudo, as instituições estão condicionadas a uma determinada estrutura social, sendo que o racismo institucional, em última instância, faz parte dessa mesma estrutura. “Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista” (ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte/MG: Letramento, 2018., p. 36, grifo do autor).
Com efeito, o racismo configura um problema, simultaneamente, econômico e político. Não é um fenômeno conjuntural ou localizado, pois faz parte do modo regular de funcionamento da sociedade capitalista. É uma relação social que põe frente a frente brancos e negros (ou não brancos), enquanto pertencentes a raças não apenas distintas, mas desiguais e hierarquizadas, consideradas, ideologicamente, como superior e inferior.
Sob esta perspectiva estrutural, o racismo constitui um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade. Nesse sentido, o preconceito e a discriminação raciais, sistematicamente dirigidos a determinados grupos racializados, correspondem a manifestações individuais, coletivas e até institucionais do racismo estrutural, podendo ocorrer de maneira consciente ou inconsciente.
Desse modo, o racismo não pode ser superado através de políticas públicas e medidas legais ou institucionais, ainda que, obviamente, elas sejam importantes e atendam aos interesses e necessidades da população negra (pensemos, por exemplo, nas ações afirmativas). Representatividade importa, claro, mas não é suficiente. Isso porque, em razão do caráter estrutural, o combate ao racismo requer profundas transformações econômicas, sociais e políticas.
Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção (ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte/MG: Letramento, 2018., p. 38, grifo do autor).
Podemos acrescentar, ainda, uma outra concepção, segundo a qual o racismo nada mais é do que uma lamentável herança da escravidão colonial. Numa abordagem culturalista, seria um conjunto de hábitos e costumes legados pelo passado e que, a despeito da modernização capitalista, não puderam ser superados ou eliminados.
Ora, o racismo não é uma sobra inconveniente da sociedade escravista, um elemento alienígena ao progresso prometido pelo capitalismo, ao contrário, é imanente à sua estrutura. Na sociedade capitalista, o racismo herdado do antigo regime é incorporado às suas relações sociais determinantes, adquirindo uma forma capitalista e sendo reproduzido por mecanismos de poder e dominação1 1 “O conflito social de classe não é único conflito existente na sociedade capitalista. Há outros conflitos que ainda que se articulem com as relações de classe, não se originam delas e, tampouco desapareceriam com ela: são conflitos raciais, sexuais, religiosos, culturais e regionais que podem remontar a períodos anteriores ao capitalismo, mas que nele tomam uma forma especificamente capitalista. Portanto, entender a dinâmica dos conflitos raciais e sexuais é absolutamente essencial à compreensão do capitalismo, visto que a dominação de classe se realiza nas mais variadas formas de opressão racial e sexual” (ALMEIDA, 2018, p. 75, grifo do autor). .
Até porque não podemos ignorar a conexão histórica existente entre capitalismo e escravidão. Como demonstrou Eric Williams (2012WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.), as condições que permitiram o desenvolvimento da indústria britânica derivam do “comércio marítimo triangular”, formado pela Inglaterra com seus artigos manufaturados, pela África com sua mercadoria humana e pelas Índias Ocidentais (ilhas do Caribe) com suas matérias-primas coloniais. “Os lucros obtidos”, afirma o autor (2012, p. 90), “forneceram um dos principais fluxos da acumulação do capital que, na Inglaterra, financiou a Revolução Industrial”. Foi esse capital que financiou a máquina a vapor, sendo a escravidão, pois, a base da acumulação capitalista.
Segundo Ianni (1978IANNI, Octávio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978.), na mesma época em que, na Europa, implantava-se o trabalho livre, nas colônias do Novo Mundo se criavam as plantations, os engenhos e as encomiendas, que eram baseados no trabalho escravo. Paradoxalmente, enquanto na Europa ocorria o processo chamado de acumulação primitiva, com o surgimento do trabalhador livre, nas fazendas do Novo Mundo ainda era tempo de escravidão. “Foi esse o contexto histórico no qual se criou o trabalhador livre, na Europa, e o trabalhador escravo, no Novo Mundo. Sob esse aspecto, pois, o escravo, negro ou mulato, índio ou mestiço, esteve na origem do operário” (IANNI, 1978IANNI, Octávio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978., p. 6).
Aliás, a própria abolição da escravatura deve ser problematizada. Pensemos no Brasil, onde a abolição foi um “negócio de brancos”, na expressão utilizada por Octávio Ianni. Com isso não queremos dizer que os negros não assumiram protagonismo radical para alterar a sua condição de escravizados, mas atentamos para as injunções decorrentes desse processo. Qual o significado político e econômico da abolição para os negros que eram escravizados? Que lugar eles passaram a ter na sociedade de classes brasileira? Foram eles alçados à condição política de cidadãos? Tiveram acesso à terra e à moradia? Como trabalhadores livres, puderam eles ingressar no mercado de trabalho em igualdade de condições?
Conforme a historiografia de Clóvis Moura (1994MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Anita, 1994.), a passagem da escravidão para o trabalho livre não prejudicou os interesses das oligarquias latifundiárias. Em que pese tenham perdido os escravizados, elas continuaram na posse da terra e, ainda, contaram com a chegada dos trabalhadores estrangeiros.
De um lado, por meio da Lei da Terra de 1850, o Estado abdicou do direito de doar terras e passou a vendê-las a quem tivesse dinheiro para adquiri-las, o que, no fundo, tinha como finalidade evitar que uma lei abolicionista incluísse a doação de terras aos egressos das senzalas, a título de indenização. De outro lado, o governo brasileiro implantou uma política oficial de importação de trabalhadores estrangeiros, que eram considerados de raças superiores e, portanto, mais capazes e qualificados, em comparação aos ex-escravos negros, isso sob o discurso racista do branqueamento da população brasileira (MOURA, 1994MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Anita, 1994.).
Nesse contexto, segundo Florestan Fernandes (2008FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: o legado da “raça branca”. 5. ed. São Paulo: Globo, 2008.), enquanto o imigrante branco, como agente por excelência do trabalho livre, praticamente monopolizou as oportunidades de trabalho e ascensão social, o negro, como antigo agente do trabalho escravo, foi relegado para ocupações marginais, com pouca ou nenhuma mobilidade social. Ao negro restava, então, duas alternativas irremediáveis: aceitar a incorporação à “escória” do operariado urbano ou procurar na “vagabundagem” e na “criminalidade” meios de sobrevivência. Para ele, sobrava o “trabalho sujo”, ou mais precisamente, “trabalho de negro”, bem como os mocambos e cortiços para morar.
É assim que, a partir da emergência da sociedade de classes brasileira, com a passagem de escravo a trabalhador livre, o negro vai se incorporando, gradualmente, às classes sociais em formação. Para Ianni (1978IANNI, Octávio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec, 1978.), essa dupla condição, de raça e de classe social, absorve-se uma na outra de forma recíproca, o que tende a se acentuar à medida que o negro vai se transformando em trabalhador assalariado, tornando mais complexa sua consciência política.
Raça e classe social, portanto, na perspectiva estrutural que estamos propondo, são elementos absolutamente indissociáveis.
O Estado Moderno Nasceu Racista
Podemos acrescentar à complexidade das análises acima que o racismo se coloca como o dispositivo da eficiência (fazer certo as coisas) e da eficácia (fazer as coisas certas) do Estado moderno. O racismo introduziu um corte entre os dignos de vida e os indignos, os que podem morrer sem prejuízo social, ou melhor, os que devem morrer para, justamente, manter saudável a sociedade. O Estado, como detentor da prerrogativa de proteção da vida, seleciona as suas ameaças e as elimina, se julgar necessário. A formação do Estado moderno tem no racismo o marcador seletivo privilegiado de sua função de defesa da vida. Nessa perspectiva:
Com efeito, que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 304).
No Brasil, o corte hierarquizante foi levado ao limite. Ele foi econômico - radicalmente econômico -, alheando do mercado principal, o mercado de trabalho, todos os que fossem negros. Depois o corte sobre “os que fossem negros” começa a ganhar ares liberais com o discurso da igualdade e do mérito; o corte político: a sua rebeldia deveria parecer patológica, inclusive entre os seus; a luta da classe trabalhadora branca só não ignorou, totalmente, os negros porque as reivindicações destes em muito favorece a todos. Nesse sentido, não tem como ir contra a necessidade com que se forjou a classe trabalhadora no Brasil. Corte cultural, impõe hierarquias monumentais. Corte social, os indóceis, difíceis de governar. E ele, o corte moral com sua qualificação de certas raças como superiores e outras como inferiores. Esse processo de fragmentação - dispositivo do racismo - produziu tanto uma defasagem no interior da própria população negra, como serviu para despedaçar a classe trabalhadora.
O corte, a distinção, a defasagem, a partir do domínio biológico, foram determinantes para produzir um “descompasso” entre brancos e negros, relegando a estes últimos o lugar da marginalização em todos os âmbitos da sociedade brasileira. A população negra no Brasil é marcada por inúmeros golpes que serviram para a sua inferiorização e para o embrutecimento social.
Essa primeira função é imprescindível para o exercício da segunda função do Estado moderno, isto é, a função guerreira de “matar, tirar a vida” em nome da vida. Para isso, a produção do inimigo é condição fundamental; o inimigo não apenas como ameaça à segurança do indivíduo, mas à sua segurança enquanto espécie. Assim, a relação guerreira, funcionalizada pelo racismo, permite “a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), e o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura” (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 305). Nesse sentido, a admissibilidade do assassinato estatal é garantida pelo racismo, condição primordial para a introdução da morte nas relações do biopoder2 2 O Biopoder é um termo criado por Michel Foucault, formulado na genealogia das relações de poder e tematizado, especialmente, durante toda a década de 1970. O Biopoder tem como alvo a população (natalidade, mortalidade, esperança de vida, fecundidade, incidências de doença, habitat), tomada como fenômeno político e econômico, sendo uma tecnologia de poder “[...] indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos da população aos processos econômicos” (FOUCAULT, 1979, p. 132). .
São altas as taxas do assassinato estatal sobre a população negra brasileira, seja na forma de sua eliminação sumária, seja na morte pela guetização, seja o desprezo quanto às suas necessidades sociais, deixando-a morrer sem comoção social. Essa produção do extermínio da população negra é dada por ela ser considerada perigosa para o conjunto da população, como se a sua proliferação ameaçasse o fortalecimento da população branca, considerada adequada. Sobre isso, o projeto de miscigenação foi exemplar como estratégia de embranquecimento da população brasileira, como justificativa para torná-la “forte e saudável”.
O racismo materializa o perigo, latente ou manifesto, discriminando a morte em nome da vida. O racismo é o direito de matar, por meio de diferentes tipos de morte: tirar a vida, causar danos, exilar seja fora do país ou em guetos. “E, claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição etc.” (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 306). É a partir do direito de matar que o extermínio da população originária das Américas garantiu o colonialismo. Em nome desse mesmo direito, é possível expor milhões ao front, quando o Estado julgar necessário. A prisão também pode ser um exemplo, pois nela a tática penal serve à condução da guerra de determinados grupos sociais contra outros; a prisão como peça tática de uma guerra social. Nesse sentido, é sobretudo na designação do criminoso como “inimigo social” que se mostra a guerra produzida pelo racismo, pois que a população negra é apresentada como perigosa.
A produção da classe perigosa no Brasil é o efeito do percurso repressivo que apresentou o negro como irracional e suas manifestações de rebeldia como patológicas, retirando dele a sua dimensão humana. Nessa perspectiva, o pensamento racista conforma a construção da periculosidade da população negra. Como nos diz Clóvis Moura (2019MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019., p. 36), a população negra brasileira ocupa o lugar da “[...] marginalização, pobreza, discriminação e rejeição social por parte dos grandes segmentos da população brasileira”.
Esse processo é construído, dentre outros dispositivos, pelo longo percurso de segregação da população negra brasileira construído na relação da divisão social do trabalho e a divisão racial do trabalho. Clóvis Moura demonstra como a inferiorização do negro foi determinante para a sua imobilidade no mercado de trabalho e para o seu rebaixamento em todos os campos da vida social. Um longo e sistemático processo de barragem social fez com que a grande massa negra ocupe
as favelas, invasões, cortiços, calçadas à noite, áreas de mendicância, pardieiros, prédios abandonados, albergues, aproveitadores de restos de comida, e por extensão os marginais, delinquentes, ladrões contra o património, baixas prostitutas, lumpens, desempregados, horistas de empresas multinacionais, catadores de lixo, lixeiros, domésticas, faxineiras, margaridas, desempregadas, alcoólatras, assaltantes, portadores das neuroses das grandes cidades, malandros e desinteressados no trabalho, encontra-se em estado de semianomia.
Essa grande massa negra - repetimos -, sistematicamente barrada socialmente, através de inúmeros mecanismos e subterfúgios estratégicos, colocada como o rescaldo de uma sociedade que já tem grandes franjas marginalizadas em consequência da sua estrutura de capitalismo dependente, é rejeitada e estigmatizada, inclusive por alguns grupos da classe média negra que não entram em contato com ela, não lhe transmitem identidade e consciência étnicas, finalmente não a aceitam como o centro nevrálgico do dilema racial no Brasil e, com isto, reproduzem uma ideologia que justifica vê-la como periférica, como o negativo do próprio problema do negro (MOURA, 2019MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019., p. 31).
Em seu texto “Estratégia do imobilismo social contra o negro no mercado de trabalho”, Clóvis Moura (1988aMOURA, Clóvis. Estratégia do imobilismo social contra o negro no mercado de trabalho. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 44-46, abr./jun. 1988a. Disponível em: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v02n02/ v02n02_08.pdf. Acesso em: 20 maio 2020.
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) nos conta que, mesmo cem anos após a abolição no Brasil, a população negra continuou nos piores estratos da vida social, devido a múltiplos mecanismos promovidos pela classe dominante racista. Em sua análise da dinâmica de barragem do racismo brasileiro, o autor afirma que esta é invisível e ativa, que se perpetua e se renova por meio de inúmeros mecanismos reguladores e repressivos. Esses mecanismos foram pouco a pouco racionalizados pelo discurso científico e, ainda, articulam duas pontes ideológicas:
A primeira é de que com a miscigenação nós democratizamos a sociedade brasileira, criando aqui a maior democracia racial do mundo; a segunda de que se os negros e os demais segmentos não brancos estão na atual posição econômica, social e cultural, a culpa é exclusivamente deles que não souberam aproveitar o grande leque de oportunidades que essa sociedade lhes deu. Com isto, identifica-se o crime e a marginalização com a população negra, transformando-se as populações não brancas em criminosos em potencial. Têm de andar com a carteira profissional assinada, comportar-se bem nos lugares públicos, não reclamar dos seus direitos quando violados e, principalmente, encarar a polícia como um órgão de poder todo poderoso que pode mandar um negro “passar correndo” ou jogá-lo em um camburão e eliminá-lo em uma estrada. Negro se mata primeiro para depois saber se é criminoso, é um slogan dos órgãos de segurança (MOURA, 1988aMOURA, Clóvis. Estratégia do imobilismo social contra o negro no mercado de trabalho. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 44-46, abr./jun. 1988a. Disponível em: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v02n02/ v02n02_08.pdf. Acesso em: 20 maio 2020.
http://produtos.seade.gov.br/produtos/sp... , p. 46).
A ideologia do preconceito de cor torna operacionalizável a inferiorização e a imobilização dos negros, ao reunir distintos mecanismos seletivos que reproduzem a estrutura social brasileira, fortemente marcada por uma dura estratificação subalternizante que fixa a população negra no subtrabalho ou no cárcere.
Estas distintas análises sobre o racismo nos mostram não apenas como processos de opressão e dominação caminham juntos (como, por exemplo, a divisão racial do trabalho no Brasil), mas principalmente como as formas de opressão não são efeitos secundários, pelo contrário, são inerentes à sociedade capitalista de forma a lhe estruturar. De diferentes formas e por diferentes meios, o capitalismo como relação social produz o racismo. No caso da sociedade brasileira, conter a população negra é elemento integrante dessa formação social, cuja marca fundamental é a violência.
O que verificamos é que o racismo, além de ser marcado pela ideologia, é uma tecnologia de poder determinante do Estado na produção de vidas matáveis, à medida que transforma uma parte da população em perigosa, incorrigível e descartável, sendo por meio de instituições que regulam a forma legalismo e ilegalismo, por meio do dispositivo da criminalidade, que a morte encontra o seu lugar legítimo e soberano.
Vidas Descartáveis: Criminalização e Extermínio de Jovens Negros no Brasil
Para exercer o controle social, tanto sobre indivíduos quanto sobre a população, o Estado moderno se utiliza de um robusto aparato institucional, incluindo a polícia, o Judiciário e a prisão, que são as instituições responsáveis pela aplicação da lei penal e que, juntas, compõem o chamado sistema penal. Em suas funções declaradas, o sistema penal serviria para combater a criminalidade e a violência, garantir a segurança e a ordem públicas e defender a sociedade contra seus inimigos internos. Mas, afinal, qual é a funcionalidade real deste sistema repressivo/punitivo?
Em sua clássica obra, Vigiar e Punir, Foucault (2013FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 41. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2013.) nos traz uma categoria fundamental para compreender o que faz e para que serve o sistema penal. Essa categoria, a “penalidade”, pode ser entendida como uma espécie de gestão diferencial ou desigual das ilegalidades, que estabelece limites de tolerância sob os quais algumas ilegalidades são permitidas enquanto outras são proibidas e perseguidas, variando conforme o pertencimento de classe do infrator.
A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles. Em resumo, a penalidade não “reprimiria” pura e simplesmente as ilegalidades; ela as “diferenciaria”, faria sua “economia” geral. E se podemos falar de uma justiça não é só porque a própria lei ou a maneira de aplicá-la servem aos interesses de uma classe, é porque toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio da penalidade faz parte desses mecanismos de dominação. Os castigos legais devem ser recolocados numa estratégia global das ilegalidades. O “fracasso” da prisão pode sem dúvida ser compreendido a partir daí (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 41. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2013., p. 258).
Para Alessandro Baratta (2011BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2011.), esse caráter seletivo do sistema penal cumpre, basicamente, duas funções na sociedade capitalista. Em primeiro lugar, priorizando a punição de determinados comportamentos ilegais, oculta a existência de outros comportamentos também ilegais e que podem provocar maior dano social, imunizando-os, assim, do processo de criminalização. Em segundo lugar, ao aplicar penas que estigmatizam preferencialmente indivíduos das classes subalternas, impede as possibilidades de ascensão social destes indivíduos, mantendo, assim, o cenário de desigualdade3 3 “Ou seja: não só as normas do direito penal se formam e se aplicam seletivamente, refletindo as relações de desigualdade existentes, mas o direito penal exerce, também, uma função ativa, de reprodução e de produção, com respeito às relações de desigualdade” (BARATTA, 2011, p. 166). .
E quanto à periferia do capitalismo, quais seriam as particularidades dos sistemas penais? Segundo Castro (2005CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2005.), na América Latina existe um “sistema penal subterrâneo”, funcionando à margem da lei e sob as aparências do sistema penal oficial. Nesse sistema subterrâneo, procedimentos proibidos por lei são largamente utilizados no controle das classes subalternas, como faz prova a violência das incursões policiais, as violações de domicílio, os abusos de autoridade, as prisões sem condenação, as execuções sumárias, bem como as diversas formas de desrespeito aos direitos humanos.
Não por acaso, Zaffaroni (2001ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.) caracteriza o exercício do poder punitivo, na região marginal latinoamericana, como sendo um “genocídio em ato”. Aqui, na periferia do capitalismo, os sistemas penais não estariam deslegitimados pelas promessas não cumpridas, por sua ineficiência, incapacidade etc., mas por sua violência institucional, suas omissões e cumplicidades, por sua própria letalidade.
Com efeito, as prisões periféricas não seguem o modelo panóptico-disciplinar das prisões centrais, tão bem analisado por Foucault. Na nossa região marginal, a prisão não cumpre a função de disciplinar o detento para o trabalho industrial, restringindo-se ao controle tout court das maiorias pobres e marginalizadas, cuja força de trabalho pode ser simplesmente descartada (ZAFFARONI, 2001ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.).
Na América Latina, historicamente, as prisões reproduzem o suplício sobre os corpos dos detentos, não havendo o deslocamento punitivo aludido por Foucault, do corpo para a alma. Aqui, a violência é a forma de punir por excelência, principalmente contra índios, mestiços e negros (das senzalas às favelas), razão pela qual os corpos “nunca saíram de cena como objeto de punição” (ANDRADE, 2012ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012.).
Nesse contexto, segundo Andrade (2012ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012.), a lógica da criminalização convive de forma simbiótica com a lógica do extermínio, estabelecendo-se uma complexa interação entre controle penal formal e controle penal informal, entre sistema penal oficial e sistema penal subterrâneo, entre pena pública de prisão e pena privada de morte, entre perda da liberdade e perda da vida, transbordando as dores do aprisionamento para ancorar na eliminação humana, sobretudo daqueles sujeitos que “não têm lugar no mundo”.
Um bom liberal diria que é preciso fazer respeitar o princípio da legalidade, envidando esforços para que a polícia apreenda em vez de matar, para que o Judiciário julgue com o devido processo legal em vez de violálo, para que a prisão reeduque o detento em vez de torturá-lo. É certo que, diante de um “sistema penal genocida”, que ignora flagrantemente garantias constitucionais (como, por exemplo, a presunção de inocência), o garantismo jurídico-penal jamais pode ser abdicado, constituindo, aliás, um lócus de resistência. Contudo, a criminalização que ocorre por dentro da lei e o extermínio conduzido fora da lei não são polos opostos; muito pelo contrário, são duas faces da mesma moeda:
Sem dúvida, o genocídio é inseparável da criminalização, sendo duas faces da mesma moeda, que vivem juntas e se alimentam reciprocamente. A criminalização não é uma alternativa legal e humanizada ao genocídio, pois, na verdade, é ela quem permite ou viabiliza a matança de jovens pobres e negros. Em todo caso, a criminalização antecede ou sucede ao genocídio, podendo se dar até postumamente, como forma de justificativa. É por isso que, quase sempre, a vítima tinha “passagem” ou era considerada “suspeita”, reagindo ou não à ação das forças de segurança. Nessa parte periférica do mundo, o genocídio criminaliza e a criminalização mata, tudo ao mesmo tempo, sendo mais correto falar do par genocídiocriminalização (MENEGHETTI, 2018MENEGHETTI, Gustavo. Na mira do sistema penal: o processo de criminalização de adolescentes pobres, negros e moradores da periferia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018., p. 6).
Dito isso, podemos avançar para trazer alguns dados empíricos atuais sobre a realidade brasileira. Basicamente, duas estatísticas nos parecem fundamentais. Em primeiro lugar, sobre o encarceramento em massa. Segundo o último levantamento nacional de informações penitenciárias, atualizado em junho de 2017, havia mais de 726 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil, com uma taxa de aprisionamento de 349,78 pessoas presas para cada 100 mil habitantes; no período entre 2000 e 2017, houve aumento de mais de 200% no número absoluto de presos e de mais de 150% na taxa de aprisionamento (BRASIL, 2019). Assim, o Brasil alcançou a marca de terceira maior população carcerária do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da China.
E quem são estas pessoas presas? Quais suas principais características socioeconômicas? A maior parte da população carcerária é composta por jovens, sendo 54% com idade entre 18 e 29 anos. Em relação à raça/etnia, enquanto 35,4% são brancos, o total de negros (incluindo pretos e pardos) chega a 66,3%. Quanto à escolaridade, a maioria dos presos, 51,3%, possui ensino fundamental incompleto. “É possível observar que a maior parte dos custodiados é composta por: jovens, pretos, pardos e com baixa escolaridade. O crime de roubo e de tráfico de drogas foram os responsáveis pela maior parte das prisões” (BRASIL, 2019, p. 68).
Esse conjunto de informações estatísticas é exemplar não apenas das marcas da produção da criminalização, como também representa um mecanismo que corrobora com mais práticas punitivas ao tomar como verdadeira a realidade em si mesma por ele ofertada, ao oferecer o “perfil” do criminoso como peça natural do cenário, colaborando com o estabelecimento de um continuum na engrenagem do extermínio.
A população carcerária brasileira demonstra que a prisão é o lugar onde uns podem ser deixados de lado, estocados para o bem da sociedade. Dessa forma, a prisão aparece como dispositivo próprio não para quem cometeu uma infração, mas, antes de tudo, para alguém que demonstrou um comportamento inadequado, que deve ser, rapidamente, punido, para que o comportamento irregular não se alastre como contágio entre os indivíduos de seu meio. Para a população negra, uma infração é sempre uma infração penal. Para o Estado, o ato cometido é apenas revelador de sua natureza precária, movida por baixas inclinações; vidas que já dão mostras de sua dissolução e irregularidade. Assim, confinar o indivíduo é confinar a natureza desviante que ele carrega, trancar o que ele é.
Uma segunda estatística importante é aquela que retrata a violência letal no país. Segundo os dados do último Atlas da Violência, foram mais de 65 mil homicídios no ano de 2017, o que significa uma taxa de 31,6 mortes para cada 100 mil habitantes, sendo o maior índice da história. Desse total de vítimas, mais da metade, 54,5%, eram jovens entre 15 e 29 anos de idade, o que representa uma taxa de 69,9 mortes para cada 100 mil habitantes jovens, configurando um recorde de “juventude perdida” (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019).
A desigualdade racial entre as vítimas da violência letal no Brasil é ainda mais evidente, ao ponto de 75,5% das pessoas assassinadas em 2017 serem negras (pretas ou pardas). Naquele ano, a taxa de homicídios entre os não negros foi de 16,0 por 100 mil, ao passo que, entre os negros, chegou a 43,1 por 100 mil; proporcionalmente, para cada indivíduo não negro assassinado, foram mortos 2,7 indivíduos negros. No período de 2007 a 2017, enquanto a taxa de homicídios de não negros aumentou 3,3%, a taxa de homicídios de negros cresceu 33,1% (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019).
Uma parte não desprezível dessas mortes têm sido ocasionada diretamente pela ação das forças estatais de segurança, em especial pelas polícias. Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram mais de 6 mil mortes decorrentes de intervenções policiais em 2018, sendo 17 vítimas por dia, com um crescimento de 19,6% em relação ao ano anterior; na média nacional, a cada 100 mortes violentas intencionais, 11 delas foram provocadas pelas polícias, sendo que, nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, este índice praticamente dobra (20 e 23, respectivamente). Dentre as vítimas da letalidade policial, 99,3% eram homens, 77,9% eram jovens entre 15 e 29 anos e 75,4% eram negros4 4 De outro lado, foram 343 policiais civis e militares assassinados em 2018, havendo uma redução de 10,4% em comparação ao ano anterior. Dentre as vítimas, 97% eram homens, 65,5% tinham entre 30 e 49 anos e 51,7% eram negros (FBSP, 2019). Já no tocante às mortes no interior do sistema penitenciário, não há dados estatísticos disponíveis. Sabemos, por exemplo, que, no início de 2017, ocorreram três grandes rebeliões em presídios dos estados do Amazonas, de Roraima e do Rio Grande do Norte, totalizando mais de uma centena de detentos mortos. (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019).
Com efeito, a violência policial não é um fato isolado, tampouco um equívoco dessa ou daquela operação; ela é sistemática, rotineira, “normal”. Esta violência fardada também não é fruto de agentes policiais despreparados ou mesmo mal-intencionados, que cometeriam um desvio de conduta no exercício de suas funções profissionais. Não é pura e simplesmente um crime policial, cujo problema é a impunidade. Sua natureza é institucional, não individual.
Ao pesquisar os chamados “autos de resistência”, referentes a homicídios praticados por policiais em serviço no Rio de Janeiro, no período entre 2003 e 2009, D’Elia Filho (2015) sustenta que existe uma política pública, com razões de Estado, a ensejar a alta letalidade do sistema penal. Segundo o autor, essa política de extermínio de inimigos adquire forma jurídica na tese da legítima defesa, mas a exclusão da ilicitude não deriva da apuração dos fatos e sim da condição da vítima, do local do “confronto” e da apreensão de armas e drogas. A vítima, assim, é desqualificada e criminalizada como justificativa para sua morte, mesmo quando alvejada por diversos disparos de armas de fogo, mesmo quando atingida pelas costas.
A violência policial não é um erro de procedimento de alguns policiais despreparados. É uma política de Estado no Brasil, que recebe o apoio e o incentivo de parcela da sociedade. Punir policiais que são identificados no abuso do uso da força, inclusive a letal, não irá resolver o problema. Muito pelo contrário, punir os policiais é a forma que o Estado tem de não se comprometer com a sua própria política [...] (D’ELIA FILHO, 2015D’ELIA FILHO. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015., p. 5).
No centro dessa política de Estado de extermínio, que tem na favela seu principal cenário, está a propalada “guerra às drogas”. Uma espécie de “guerra santa”, uma cruzada religiosa que precisa extirpar o mal, o grande inimigo público, o “traficante-herege que pretende se apossar da alma das crianças”, como diz Nilo Batista (2002BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro - I. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2002.). Longe de reduzir o comércio e o consumo das drogas consideradas ilícitas, a política antidrogas tem servido, na verdade, como um pretexto infalível para justificar o controle violento de determinados territórios e populações. O discurso beligerante produz um consenso em torno do autoritarismo e permite instaurar uma espécie de “vale-tudo”, legitimando as operações militares, as batidas policiais, as detenções arbitrárias e, claro, as “mortes em confronto”.
Da droga, queremos destacar sua capacidade, quase mágica, de simultaneamente fascinar e aterrorizar, e de aglutinar consenso na condenação a ela, e ao mesmo tempo, por contraste, de legitimar todas as iniciativas que a combatem. É como na fábula do rei Midas (que transformava em ouro tudo o que tocava), mas ao contrário: tudo o que a droga toca se transforma em lixo. Assim, uma trouxinha de maconha colocada pela polícia no carro de um inimigo ou de um suposto delinquente é um passaporte gratuito para a morte. A própria imprensa registra essa ocorrência como um fato natural (geralmente diz: “Polícia mata traficante em troca de tiros”). O anjo exterminador se bate contra o mal, e a plateia aplaude (CASTRO, 2005CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2005., p. 172).
Sob o pretexto da “guerra às drogas”, milhares de jovens negros, pobres e habitantes das periferias têm sido, diuturnamente, criminalizados, encarcerados e exterminados. Ao pesquisar quem são os ditos traficantes de drogas ilícitas, D’Elia Filho (2007) revela que a grande maioria dos presos no comércio varejista de drogas é composta pelos chamados “aviões”, “esticas”, “mulas”, etc., os quais obtêm lucros insignificantes no negócio, não passando de “acionistas do nada”, na expressão do criminólogo norueguês Nils Christie. Além disso, longe de serem “bandidos violentos e perigosos”, como propagado pela mídia sensacionalista, a imensa maioria é flagrada sem portar sequer um revólver. “Menos de 10% dos presos no tráfico de entorpecentes portam arma de fogo, o que nos leva a concluir que a chamada ‘guerra contra as drogas’ tem como alvo o setor mais fraco e inofensivo do comércio ilícito de drogas” (D’ELIA FILHO, 2007D’ELIA FILHO, Orlando Zaccone. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007. , p. 117).
Não obstante, a criminalização e o extermínio continuam implacáveis. E isso por razões não tanto econômicas, mas essencialmente políticas. A estratégia das classes dominantes e das elites brancas é secular: o uso do medo como dispositivo de controle social. Segundo Clóvis Moura (1988bMOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática, 1988b.), durante todo o escravismo brasileiro, a práxis política do negro - a quilombagem e as diversas “rebeliões da senzala”5 5 “Entendemos por quilombagem o movimento de rebeldia permanente organizado e dirigido pelos próprios escravos que se verificou durante o escravismo brasileiro em todo o território nacional. Movimento de mudança social provocado, ele foi uma força de desgaste significativa ao sistema escravista, solapou as suas bases em diversos níveis - econômico, social e militar - e influiu poderosamente para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse substituído pelo trabalho livre” (MOURA, 1992, p. 22). - gerou uma espécie de “síndrome do medo” na classe senhorial, impactando diretamente nas medidas de repressão, que se estendiam do açoite à execução sumária, passando pela tortura. “Uma verdadeira paranoia apoderou-se dos membros da classe senhorial”, diz o autor (1988b, p. 231), “e determinou o seu comportamento básico em relação às medidas repressivas contra os negros em geral”.
Vera Malaguti Batista (2003BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. ), ao reconstituir a história do medo na cidade do Rio de Janeiro, traçou um paralelo entre a década de 30 do século XIX e os anos 90 do século XX. No período imperial, sobretudo após a Revolta dos Malês de 1835, havia um grande temor diante do perigo da insurreição escrava, criando-se um clima de caos e desordem para justificar o uso de medidas drásticas de repressão. Na conjuntura contemporânea, surgiu uma nova onda de pânico para separar, de forma maniqueísta, os chamados “cidadãos de bem” e os ditos “bandidos”; um novo discurso do medo onde a favela aparece como o lugar da desordem e da violência, cuja ameaça deve ser removida, se necessário, através de uma intervenção militar.
No Brasil, a difusão do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar estratégias de neutralização e disciplinamento planejado das massas empobrecidas. O ordenamento introduzido pela escravidão na formação socioeconômica sofre diversos abalos a qualquer ameaça de insurreição. O fim da escravidão e a implantação da República (fenômenos quase concomitantes) não romperam jamais aquele ordenamento. Nem do ponto de vista socioeconômico, nem do cultural. Daí as consecutivas ondas de medo da rebelião negra, da descida dos morros. Elas são necessárias para a implantação de políticas de lei e ordem. A massa negra, escrava ou liberta, se transforma num gigantesco Zumbi que assombra a civilização; dos quilombos ao arrastão nas praias cariocas (BATISTA, 2003BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. , p. 21).
Vemos, portanto, historicamente, o mesmo discurso do medo funcionando como dispositivo de controle social. De um lado, a paranoia da classe senhorial e o temor da quilombagem dos escravos negros; de outro lado, o pânico das classes dominantes e o medo da descida dos morros. Passado (escravista) e presente (capitalista) ligados pelo racismo estrutural. Outrora como agora, a raiz do medo é mais política do que econômica. O que amedronta não é a ameaça individual à riqueza material, mas o perigo de uma (re)ação política coletiva contra a ordem social burguesa. É como se, a qualquer momento, o espírito de Zumbi dos Palmares pudesse tomar conta dos jovens negros e pobres das periferias.
No Brasil, criou-se o mito de que as relações entre brancos e negros, assim como as relações entre senhores e escravos, seriam mais igualitárias e corresponderiam a uma “democracia racial”. Expressando o caráter dissimulado do racismo brasileiro, este mito contrasta com o extermínio sistemático da população negra. Para além das estratégias de branqueamento da raça e da cultura6 6 Para Abdias do Nascimento (1978), o “genocídio” do negro começa já na estratégia de branqueamento da raça, isto é, na tentativa de clarear a população brasileira, através da política imigratória e da miscigenação étnica. Além disso, uma outra estratégia de “genocídio” é o processo de assimilação cultural ou aculturação, utilizado para destruir o negro como criador de uma cultura própria, africana ou afrobrasileira. , a eliminação pura e simples da população negra, sobretudo dos jovens, chega ao ponto de 75% das pessoas assassinadas no país serem negras.
Devemos compreender ‘democracia racial’ como significando a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África do Sul, mas eficazmente institucionalizado nos níveis oficiais de governo assim como difuso no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país. Da classificação grosseira dos negros como selvagens e inferiores, ao enaltecimento das virtudes da mistura de sangue como tentativa de erradicação da “mancha negra”; da operatividade do “sincretismo” religioso à abolição legal da questão negra através da Lei de Segurança Nacional e da omissão censitária - manipulando todos esses métodos e recursos - a história não oficial do Brasil registra o longo e antigo genocídio que se vem perpetrando contra o afro-brasileiro. Monstruosa máquina ironicamente designada “democracia racial” que só concede aos negros um único “privilégio”: aquele de se tornarem brancos, por dentro e por fora. A palavra-senha desse imperialismo da brancura, e do capitalismo que lhe é inerente, responde a apelidos bastardos como assimilação, aculturação, miscigenação; mas sabemos que embaixo da superfície teórica permanece intocada a crença na inferioridade do africano e seus descendentes (NASCIMENTO, 1978NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978., p. 93, grifo do autor).
Nos tempos da escravidão e do colonialismo, os negros escravos conheciam a morte pelo excesso de trabalho braçal e desgastante, pelas doenças não tratadas, pelos abusos punitivos do feitor, pelos confrontos com os capitãesdo-mato, pelas execuções públicas. Nos dias atuais, os negros livres têm suas vidas ceifadas nos homicídios de todas as espécies, nos tiroteios com a polícia, nas “balas perdidas”, nas rebeliões nos presídios e penitenciárias, nas execuções privadas, nas ocultações de cadáver. Vidas humanas consideradas, literalmente, descartáveis.
Considerações Finais
Ao contrário da pandemia sanitária, a curva ascendente do encarceramento e do extermínio da juventude negra e pobre não tem nenhuma previsão de achatamento, estabilização e queda. É uma “pandemia” em expansão irrefreável, que tem recebido o investimento do poder público e o apoio de parcela considerável da sociedade brasileira, sobretudo nesses tempos de retrocesso e autoritarismo político.
Uma população inteira tem como destino certo o extermínio. No caso da população negra-pobre-jovem, pesa sobre ela estigmas de toda ordem, de violenta à perigosa, de imoral à vadia, como se fizessem parte de sua própria anatomia. Mas a sanha de matar, ao punir essa população, recobre ainda o seu caráter enquanto ameaça política de denúncia e contestação à ordem estabelecida, pois que seus corpos são, também, testemunhos da incapacidade e falência da sociedade capitalista.
Ao capitalismo importa a resignação da vida que coube a ela, suas formas de contestação e rebeldia não apenas são intoleradas como, igualmente, invisibilizadas pela sua criminalização. Nada deve escapar aos dispositivos de controle sobre essa população. Trata-se de produzir uma equação que, independente de seus fatores, reforce o estigma e a ameaça que conformam seus corpos; independente de suas práticas, ela precisa sempre representar perigo à vida social.
Como se pôde ver ao longo deste artigo, as formas de extermínio da população negra não são apenas gestadas por mecanismos repressivos, mas por intensos processos de produção de discursos que legitimam o seu extermínio, ao produzir a vida descartável com cor e endereço certo.
O processo de criminalização da população negra brasileira serve e reforça a ideia de que ela representa uma ameaça, de que os bairros onde mora concentram criminalidade. Ao mesmo tempo, apresenta um argumento circular que autoriza mais violência por parte do Estado, pois a sua condição de perigoso se impõe como elemento suficiente para a produção de um singular processo de criminalização. Se alguém é criminalizado é devido ser perigoso, assim criminalizar produz a prova dos nove que atesta a sua condição de perigoso na produção de um discurso que volta para si mesmo como se fora coerente e, portanto, verdadeiro.
Importante reforçar que a natureza do perigo é, eminentemente, política. Utilizar de pechas e toda sorte de desqualificação à população negra para atestar sua periculosidade serve para justificar medidas administrativas racionais de banimento, como, por exemplo, encarceramento, estigmas, segregação, eliminação sumária, que podem ser acionadas diante de qualquer manifestação de raiva e cólera por parte dessa população.
Ao adentrar nos debates sobre a lei referente ao furto de madeira, no artigo publicado na Gazeta Renana em 1842, o jovem Marx (2017MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. São Paulo: Boitempo, 2017.) já descobrira algo fundamental: o que move um processo de criminalização é sempre um interesse material, simultaneamente econômico e político. Ao defender a coleta de madeira como um direito consuetudinário dos pobres, contra os interesses dos proprietários fundiários, Marx percebe que o ato de dizer “isto é crime” é um ato estritamente político.
Do mesmo modo, o ato de selecionar determinados indivíduos para serem “criminosos” também é um ato estritamente político. Em todo caso, é um ato que produz efeitos políticos. O principal desses efeitos talvez seja o de produzir uma cisão no interior da classe e da raça, levantando um muro para separar os trabalhadores honestos dos “vagabundos” ou “bandidos”, bem como para distinguir o “bom negro” ou “negro cordial” do “negro perigoso”. Afinal de contas, para manter a ordem social vigente, é preciso controlar a rebeldia popular. Eis a lógica essencialmente política subjacente à criminalização e ao extermínio dos jovens negros:
contê-los, controlá-los, inferiorizá-los, docilizá-los, desencorajá-los, anulá-los, colocá-los dramaticamente entre a vida e a morte. Até quando perdurará essa “pandemia”? Até quando aceitaremos isso como normalidade?
Agradecimentos
Os autores agradecem à Revista Katálysis pela oportunidade de divulgação do seu trabalho.
Referências
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- ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
Notas
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1
“O conflito social de classe não é único conflito existente na sociedade capitalista. Há outros conflitos que ainda que se articulem com as relações de classe, não se originam delas e, tampouco desapareceriam com ela: são conflitos raciais, sexuais, religiosos, culturais e regionais que podem remontar a períodos anteriores ao capitalismo, mas que nele tomam uma forma especificamente capitalista. Portanto, entender a dinâmica dos conflitos raciais e sexuais é absolutamente essencial à compreensão do capitalismo, visto que a dominação de classe se realiza nas mais variadas formas de opressão racial e sexual” (ALMEIDA, 2018, p. 75, grifo do autor).
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O Biopoder é um termo criado por Michel Foucault, formulado na genealogia das relações de poder e tematizado, especialmente, durante toda a década de 1970. O Biopoder tem como alvo a população (natalidade, mortalidade, esperança de vida, fecundidade, incidências de doença, habitat), tomada como fenômeno político e econômico, sendo uma tecnologia de poder “[...] indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos da população aos processos econômicos” (FOUCAULT, 1979, p. 132).
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“Ou seja: não só as normas do direito penal se formam e se aplicam seletivamente, refletindo as relações de desigualdade existentes, mas o direito penal exerce, também, uma função ativa, de reprodução e de produção, com respeito às relações de desigualdade” (BARATTA, 2011, p. 166).
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De outro lado, foram 343 policiais civis e militares assassinados em 2018, havendo uma redução de 10,4% em comparação ao ano anterior. Dentre as vítimas, 97% eram homens, 65,5% tinham entre 30 e 49 anos e 51,7% eram negros (FBSP, 2019). Já no tocante às mortes no interior do sistema penitenciário, não há dados estatísticos disponíveis. Sabemos, por exemplo, que, no início de 2017, ocorreram três grandes rebeliões em presídios dos estados do Amazonas, de Roraima e do Rio Grande do Norte, totalizando mais de uma centena de detentos mortos.
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“Entendemos por quilombagem o movimento de rebeldia permanente organizado e dirigido pelos próprios escravos que se verificou durante o escravismo brasileiro em todo o território nacional. Movimento de mudança social provocado, ele foi uma força de desgaste significativa ao sistema escravista, solapou as suas bases em diversos níveis - econômico, social e militar - e influiu poderosamente para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse substituído pelo trabalho livre” (MOURA, 1992, p. 22).
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Para Abdias do Nascimento (1978), o “genocídio” do negro começa já na estratégia de branqueamento da raça, isto é, na tentativa de clarear a população brasileira, através da política imigratória e da miscigenação étnica. Além disso, uma outra estratégia de “genocídio” é o processo de assimilação cultural ou aculturação, utilizado para destruir o negro como criador de uma cultura própria, africana ou afrobrasileira.
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Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação
Não se aplica. -
Agência financiadora
Não se aplica. -
Consentimento para publicação
Consentimento dos autores.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Out 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2020
Histórico
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Recebido
06 Jun 2020 -
Aceito
16 Jun 2020 -
Revisado
10 Jul 2020